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A MEMÓRIA FICCIONALIZADA EM HERANÇAS E
LEITE DERRAMADO: RASTROS, APAGAMENTOS E
NEGOCIAÇÕES
Marilene Weinhardt
(UFPR - CNPq)
RESUMO
Na produção contemporânea que pode ser lida como herdeira
do romance histórico, admitindo ou não essa filiação, conju-
gam-se textualidades de extrações muito diversas. Nessa
pluralidade, avulta a recorrência ao discurso memorialístico.
Se a presença da memória é hoje reconhecida como condição
da produção literária, no caso da ficcionalização do passado
histórico seu dimensionamento apresenta particularidades em
decorrência de diversas formas de trânsito: entre passado in-
dividual e passado coletivo, entre acontecimentos pessoais e
acontecimentos sociais, entre o lembrado porque vivido e o
lembrado a partir de relatos. Esta abordagem busca perceber
rastros, apagamentos e negociações dos processos da memó-
ria ficcionalizados em Heranças (2008), de Silviano Santiago,
e Leite derramado (2009), de Chico Buarque. A proposta é
que a memória individual figurada nas duas obras pode ser
lida como reverberação da memória coletiva da sociedade
brasileira no período ficcionalizado.
PALAVRAS-CHAVE: ficção contemporânea - ficção histórica
% Silviano Santiago - Chico Buarque.
matraga, rio de janeiro, v.19, n.31, jul./dez. 2012246
A MEMÓRIA FICCIONALIZADA EM HERANÇAS E LEITE DERRAMADO: RASTROS, APAGAMENTOS E NEGOCIAÇÕES
Se podemos acusar a memória de se mostrar pouco confiável,
é precisamente porque ela é o nosso único recurso para signi-
ficar o caráter passado daquilo de que declaramos nos lembrar.
Paul Ricoeur
A Memória como Recurso Ficcional na Ficção
Recente
A ficção que encena o passado histórico, seja aceitando, seja re-
cusando a inscrição na qualificação romance histórico, constituiu uma
expressiva linha de força da produção brasileira nas derradeiras déca-
das do século XX. (WEINHARDT, 2006) A situação parece não se man-
ter no mesmo patamar no novo século, verificando-se declínio na aten-
ção da crítica sobre essa modalidade. Os estudos sobre a ficção contem-
porânea, ainda que acentuem a diversidade, a impossibilidade de defi-
nir uma tendência como dominante – limitação decorrente da varieda-
de das publicações do período e também da dificuldade para julgar o
presente – apontam para a insistência na ficcionalização do presente,
centrada em especial na violência urbana da atualidade, predisposição
que já se mostrara vigorosa no período anterior. (CARNEIRO, 2005;
RESENDE, 2008; SCHOLLHAMMER, 2009) Em que medida trata-se de
revival da década de 1970, em que medida agrega novos comportamen-
tos, a partir dos elementos sociais do presente, é tema para esses estudos.
Entretanto, certa queda em termos numéricos não significa esmo-
recimento da criação que inscreve a ação ficcional no passado históri-
co. Além disso, é preciso considerar que classificações decorrem da
conjugação da potencialidade de cada obra com critérios estabelecidos
pelo leitor. O hibridismo, a porosidade entre as diferentes modalidades,
marca característica da produção literária, mais efetiva hoje do que em
qualquer outra época, multiplica as possibilidades de escolha entre modos
de leitura possíveis. Não é preciso reiterar que não há, necessariamente,
distância absoluta entre um tipo de opção e outra da parte dos escrito-
res de criação, bem como o leitor comum faz suas escolhas em decor-
rência de variadas motivações, o tempo ficcionalizado é apenas uma
delas, talvez nem seja das mais determinantes. Quem precisa recorrer a
balizas é a abordagem crítica, que se preocupa com sistematizações.
matraga, rio de janeiro, v.19 n.31, jul./dez. 2012 247
Marilene Weinhardt
Classificar é nosso modo de conhecer, a despeito da provisoriedade de
cada modelo construído.
Portanto, a curva descendente no número de publicações de fic-
ção histórica – se é que de fato é descendente, se essa impressão não
resulta da atenção da crítica ao que se mostra como ruptura, em detri-
mento das permanências, independente do potencial estético de uma e
outras – não indica acentuada perda do interesse no passado, da parte
de escritores e leitores, e está longe de indicar tendência de desapareci-
mento da ficção histórica. A listagem de títulos lançados na primeira
década do século XXI que se pode classificar como ficção histórica está
muito próxima de uma centena. (WEINHARDT, 2011a) As opções
temáticas e formais permitem acolhê-los na categoria que, herdada do
século XIX, tomou novo impulso no final do século passado, seja sob a
denominação novo romance histórico (MENTON, 1993), seja como
metaficção historiográfica (HUTCHEON, 1991), conforme a vertente te-
órica adotada pelo crítico. Há mesmo títulos que podem ser considera-
dos bastante próximos do modelo oitocentista (LUKACS, 1972), o que
não determina sua insignificância como prática cultural deste momento.
Desse levantamento, expressiva parcela, em termos numéricos e
particularmente quanto à realização estética, é constituída por discur-
sos em primeira pessoa, figurando a ação de relatar no presente da
escrita, ou seja, na contemporaneidade. Os narradores apresentam-se
como indivíduos maduros ou mesmo muito idosos, e contam suas pró-
prias vivências, na modalidade memorialística, situando suas ações em
conjunção com o momento histórico. Não se tem em vista, nesta sele-
ção, a vertente que se vem denominando autoficção, nem o romance
autobiográfico, definido por Philippe Lejeune (2008, p. 25).
O uso do discurso de memórias é recorrente em romances histó-
ricos de diferentes épocas. Nessa mesma listagem resultante do levan-
tamento das publicações da primeira década do século XXI com potencial
para leitura como ficção histórica, há outros títulos que usam o discur-
so memorialístico como recurso ficcional, mas o tempo do narrador
memorialista é situado em faixa que não coincide com o tempo da
escrita e do escritor. É o caso de Um defeito de cor (2006), de Ana Maria
Gonçalves, ou ainda de O rastro do jaguar (2009), de Murilo Carvalho.
Em ambos o narrador relata sua longa experiência de vida, perfeita-
mente inserida no panorama do momento ficcionalizado, o que permite
classificá-los como romance histórico sem sombra de dúvida. Mas em
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A MEMÓRIA FICCIONALIZADA EM HERANÇAS E LEITE DERRAMADO: RASTROS, APAGAMENTOS E NEGOCIAÇÕES
ambos o narrador situa-se em tempo passado em relação ao tempo da
escrita. Eric Hobsbawm ensina que há “zona de penumbra entre a histó-
ria e a memória; entre o passado como um registro geral e aberto a um
exame mais ou menos isento e o passado como parte lembrada ou expe-
riência de nossas vidas” (HOBSBAWM, 1988, p. 15). Romances em que
a figuração do tempo mais longínquo evocado é essa “zona de penum-
bra” é que estão em mira. Nos dois exemplos citados, o tempo passado
ficcionalizado constitui “zona de penumbra” para a personagem, mas
não para o escritor.
Para demarcar ainda outra linha limítrofe, vale lembrar que o uso
da primeira pessoa relatando suas vivências não é de uso restrito da
ficção histórica. O centramento na trajetória individual ou familiar tam-
bém é excludente neste caso. Sirva como exemplo de mais um campo
de exclusão o premiado O filho eterno (2007), de Cristóvão Tezza. Nar-
rado em primeira pessoa, o relato é restrito à experiência pessoal. O que
se busca analisar aqui é a figuração do passado recente, apresentado em
perspectiva individual inserida no plano social. É preciso referir que
esta é uma delimitação problemática para o romance histórico, uma vez
que é bastante frequente, entre os teóricos deste subgênero, a resistên-
cia à aceitação do tempo vivido como histórico. Para não repetir aqui
argumentação já apresentada em outros estudos (WEINHARDT, 2011b),
resume-se a posição adotada tendo em vista que se segue na esteira de
Fredric Jameson no entendimento de passado histórico ficcionalizado
como aquele resultante do entrecruzamento do “plano existencial da
vida individual”, ainda que, no caso, indivíduos sejam ficcionais, com o
“plano histórico transindividual” (JAMESON, 2007, p. 190), e com Perry
Anderson quanto às possibilidades de reinvenção dessa forma no pre-
sente (ANDERSON, 2007, p. 216-217), a despeito das diferenças de opi-
nião entre os dois estudiosos em relação ao lugar do romance histórico
na contemporaneidade.
Em delimitação de campo a partir das premissas anunciadas –
publicação na primeira década do século XXI; uso do discurso de me-
mórias; tempo narrado predominantemente no século XX; conjugação
dos eventos pessoais com os sócio-históricos – enquadram-se os se-
guintes títulos: O fantasma de Buñuel (2004), de Maria José Silveira;
Não falei (2004) de Beatriz Bracher; Sob o peso das sombras (2004), de
Francisco Dantas; Cinzas do norte (2005), de Milton Hatoum; Antonio
(2007), de Beatriz Bracher; Roliúde (2007), de Homero Fonseca; A cha-
ve de casa (2007), de Tatiana Salem Levy; Órfãos do Eldorado (2008),
matraga, rio de janeiro, v.19 n.31, jul./dez. 2012 249
Marilene Weinhardt
de Milton Hatoum; Heranças (2008), de Silviano Santiago; Yuxin: alma
(2009), de Ana Miranda; e Leite derramado (2009), de Chico Buarque.
A listagem é variada. Quanto aos autores, constam estreantes,
nomes recorrentes nos levantamentos sobre ficção histórica, alguns que
aparecem com mais de um título. Os espaços geográficos e sociais, seja
quanto à origem dos escritores, seja quanto à cena ficcionalizada, tam-
bém têm variação considerável. Vale esclarecer que a atenção a qual-
quer tipo de espacializaçao não foi critério de escolha, mas já indicam
tendência de descentralização. Também não foi critério de seleção, mas
é de notar ainda o equilíbrio entre escritores e escritoras.
Neste conjunto chama a atenção uma série de paralelismos entre
dois títulos. Trata-se de Heranças, de Silviano Santiago, e Leite derra-
mado, de Chico Buarque. É sobre estes dois romances que se concentra
a leitura a seguir. Ambos figuram relatos produzidos no início do sécu-
lo XXI, por indivíduos não apenas em idade avançada, mas já à beira da
morte, ambos fazendo balanço do percurso existencial, percurso esse
que comportou mudança radical de estatuto econômico e social. A vida
de ambos os narradores foi marcada pelo desaparecimento de uma mu-
lher, espécie de dobradiça, alterando os rumos da vida de cada narrador.
A conjugação com os demais romances do conjunto será tarefa para
outro momento.
Nos dados extratextuais também podem ser apontados algumas
coincidências, ou pelo menos proximidade: as obras foram lançadas
em 2008 e 2009, respectivamente; os autores, ambos vivendo no Rio
de Janeiro, não são exatamente contemporâneos entre si, mas podem
ser considerados da mesma geração, o primeiro contando pouco mais
de setenta anos quando do lançamento, o segundo no meio da casa
dos sessenta; ambos têm atividades profissionais ligadas ao universo
cultural, no caso do primeiro mais centrado no trato com o fenômeno
literário, tanto na reflexão como na criação, no caso do segundo,
artista de variada expressão; nenhum está na sua primeira aventura
como ficcionista, pelo contrário, independente de outras produções
que garantem suas inscrições na cena cultural, os títulos romanescos
que já assinaram, alguns premiados, lhes asseguram um lugar na his-
tória da ficção brasileira do entresséculos. Enfim, a comparação en-
tre os autores não é o que está em questão e tais paralelismos só
foram evocados porque podem ter alguma significação subsidiária
na proposta de leitura que se defenderá.
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A MEMÓRIA FICCIONALIZADA EM HERANÇAS E LEITE DERRAMADO: RASTROS, APAGAMENTOS E NEGOCIAÇÕES
De início, interessa perceber a situação narrativa criada em cada
romance. Tratando-se de discurso de memórias, a reflexão teórica que
está na base dos comentários que se seguem está em A memória, a
história, o esquecimento, de Paul Ricoeur, sem perder de vista, obvia-
mente, que se está diante da ficcionalização desse discurso. Lê-los como
discursos memorialistas é parte do pacto de leitura. O que se buscará
apreender é o que podem oferecer, como possibilidade de leitura, as
operações com os rastros, os apagamentos e as negociações da memória
em cada uma dessas figurações.
Não se acompanha uma narrativa de memórias em decorrência da
curiosidade pelo desfecho, este está dado de antemão, uma vez que o
memorialista é visto na abertura na sua condição de “agora”, isto é, no
presente da narração, evocando o “não agora”. (RICOEUR, 2007, p. 52) A
questão não é “o que vai acontecer” e sim “o que aconteceu na vida deste
indivíduo que o faz pensar que sua existência vale o esforço do relato”, ou
melhor,“oqueeleachaqueaconteceu”.Ricoeurdeclaraqueafenomenologia
da memória que propõe “estrutura-se em torno de duas perguntas: De que
há lembrança? De quem é a memória?” (RICOEUR, 2007, p. 23).
A Memória Laboriosa
O conciso parágrafo de abertura de Heranças deixa patente que o
narrador não tem outra expectativa que não a morte: “Elegi a cidade,
escolhi o cemitério. Decidi passar os últimos anos de vida no Rio de
Janeiro e ser enterrado no S. João Batista.” (SANTIAGO, 2008, p. 7).
Além da tripla alusão ao fim irrevogável (“cemitério”, “últimos anos de
vida”, “enterrado”), é de notar os três verbos – eleger, escolher, decidir
– indicativos não apenas de exercício de vontade, mas de capacidade
de gerir, de controlar. Todo o percurso dessa personagem, que só vai
ser identificada pelo nome próprio muito próximo ao final, é determi-
nado por seus atos de vontade. Aí esta a resposta para a segunda ques-
tão estruturadora da fenomelogia de Ricoeur: a memória é deste ho-
mem, senhor de seu destino e de sua narrativa. Os mecanismos de
regulação de sua trajetória, descritos em minúcias, desvelam para o
leitor que os meios de controle alcançam também as lembranças. Assim
como teve um projeto de vida seguido com rigor, em que cada passo foi
calculado, a narração também tem um objetivo específico, não é resul-
tado de uma tentativa de preencher o tempo vago que o afastamento
das atividades profissionais costuma deixar. Não é uma rememoração
ao acaso, mas uma “recordação laboriosa”, para usar expressão que
matraga, rio de janeiro, v.19 n.31, jul./dez. 2012 251
Marilene Weinhardt
Ricoeur busca em Bergson. (RICOEUR, 2007, p. 46). A sensação de que
o fim se aproxima, as constantes referências ao precário estado de saú-
de, que não merece explicação exceto quanto à certeza do fim próximo
e algumas poucas referências a incômodos físicos, não afetam a capaci-
dade de raciocínio e de gerenciamento da situação e do próprio destino
deste indivíduo que, “(n)este ano de 2007” (RICOEUR, 2007, p. 8), está
confortavelmente instalado, escrevendo seu relato em um computador
de última geração, em luxuoso apartamento à beira-mar, no bairro de
Ipanema, para onde se transferiu há pouco mais de um ano, vindo do
bairro de Lourdes, em Belo Horizonte. A precisão com a geografia é
mais uma das tantas exatidões que marcam a narrativa.
O primeiro capítulo, como aquecimento e preparação, distende-
se sobre as circunstâncias atuais, sublinhando as condições de bem-
estar material e de isolamento, comporta rápidas alusões ao passado
mineiro, insiste na preparação para a morte, quer dizer, com as provi-
dências de ordem material para não incomodar e, principalmente, não
depender de ninguém, concluindo com um parágrafo que é, ao mesmo
tempo, o projeto e a súmula da narrativa:
Só me interessam – possível leitor destas páginas – os atos da vida
que não cheguei a compreender e os acontecimentos que permane-
cem como incógnita. Debato-me noite e dia com aquela letrinha x,
que é o fundamento e razão de ser das equações matemáticas. Pela
correspondência entre os dados decifrados de episódio vivido e as
criptografias dum outro, e pelo jogo entre o incompreensível e o já
solucionado e assimilado pela consciência, é que irei destrinchar
minha experiência de vida para melhor comunicá-la a você, que
porventura venha a se interessar por ela. (SANTIAGO, 2008, p. 16).
Portanto, retomando a primeira questão estruturadora da
fenomenologia de Ricoeur, há lembrança do que não foi entendido.
Essa será a busca e a tônica do relato. As reflexões sobre as dificuldades
do processo da recuperação do passado pela memória e sua expressão
na escrita comparecem com regularidade. O leitor está avisado de que
deve estar atento aos menores indícios. É tarefa sua perceber rastros,
apagamentos e negociações que se estendem por trinta e três capítulos
que, grosso modo, seguem linha cronológica, por vezes interrompida
por antecipações, por vezes por digressões. Ainda que o memorialista
exerça controle sobre a lembrança, seria inverossímil se seu funciona-
mento fosse absolutamente linear.
O segundo capítulo abre-se com o que poderia soar, para o leitor
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A MEMÓRIA FICCIONALIZADA EM HERANÇAS E LEITE DERRAMADO: RASTROS, APAGAMENTOS E NEGOCIAÇÕES
minimamente inserido no cânone da literatura brasileira, como um eco
de Brás Cubas. Mas outro som mescla-se à evocação da tradição literá-
ria, a voz popular, presente no provérbio que a antecede: “Escapei-me
do provérbio que reza: ‘Quando Deus não dá filhos, o diabo dá sobri-
nhos.’ Não tive filhos. Não tive sobrinhos.” A sequência, à primeira
vista decorrente do jogo sintático – “Tive muitas amantes.” – dá opor-
tunidade para se preservar a verossimilhança, na explicitação da práti-
ca aliança entre o plano social, o intelectual e o apelo sexual: “[m]uitas
[dessas amantes] foram subtraídas dos vários bairros tradicionais da
capital mineira. À vista da sólida formação cultural que ostentavam, eu
era atraído e nocauteado pela sedução da beleza.” (SANTIAGO, 2008, p.
18). Assim se explica que o filho do dono da loja de armarinhos, condi-
ção sempre lembrada, sem ter logrado formação superior por não conse-
guir sequer passar em um vestibular, ostenta verniz de erudição:
vampirizou a cultura das amantes. Se o leitor, ainda não familiarizado
com o universo ficcional em que adentrou, não percebe os dois níveis de
informação nesta primeira passagem, ela é reiterada logo no capítulo
seguinte: “Se hoje sou homem relativamente culto foi por ter aprendido
a combinar de maneira proveitosa a instrução cultural à vida social pro-
míscua. Sou autodidata.” (SANTIAGO, 2008, p. 37. Itálico do original).
Aqui e ali, ao longo do relato, aflora a situação de origem, seja
em dados factuais, seja nos ajuizamentos sobre o mundo, seja na ex-
pressão linguística, em particular na prontidão e naturalidade com que
emprega provérbios, prático congelamento do senso comum, ouvidos
no balcão da loja do pai, enquanto os hábitos no cotidiano e, especial-
mente, a experiência das viagens ao exterior, procuram construir uma
imagem de refinamento, adequada ao parvenu, conforme se
autodenomina. (SANTIAGO, 2008, p. 121). É bem verdade que outros
ecos literários se fazem ouvir com maior ou menor intensidade, mas
estes ficam por conta do diálogo dos leitores com o autor, passando ao
largo do narrador. As viagens, inicialmente à então capital do país e
depois à Europa eram também usadas como consolo para as namoradas
que engravidava e, indefectivelmente, induzia ao aborto. As opiniões
sobre o direito ao livre exercício da sexualidade e a recusa à procria-
ção criam oportunidade para que se perceba a carência de princípios
morais e o absoluto desrespeito ao outro. Não é preciso muito mais
para que o leitor perceba que está diante de um cínico, um mau-caráter
confesso. No entanto, esse mais virá em detalhes, sem subterfúgios. As
explicações não se travestem como justificativas.
A fase que pode ser lida como romance de formação se alonga.
matraga, rio de janeiro, v.19 n.31, jul./dez. 2012 253
Marilene Weinhardt
Ele é o filho do pai, o filho macho, que merece companhia, atenção,
lições para o relacionamento com mulheres. O herdeiro. Herdeiro na
tradição de garanhão, porque há uma irmã, justamente chamada Filinha,
esta sim, efetivamente, trabalhando na loja de aviamentos, ao lado do
pai, de modo competente, garantindo a manutenção material. O modo
que dá conta, pela primeira vez, da existência da irmã funciona no
plano do pacto de leitura, simulando reforçar a veracidade, ao se diri-
gir aos conterrâneos:
Antes que o leitor mineiro me reconheça e queira corrigir informa-
ções contidas neste relato, é melhor que esclareça – ou enfatize –
alguns detalhes de ordem pessoal. Nasci, sim, em Belo Horizonte,
mas na realidade não nasci e cresci filho único de Seu Nestor.
Tampouco fui seu primeiro herdeiro universal. [...] Depois da morte –
também precoce – de minha irmã Josefina, os comerciantes da pra-
ça passaram a julgar-me filho único de Seu Nestor. (SANTIAGO,
2008, p. 31).
Atento, ou antes, distraído pela estratégia que, na superfície, se
mostra como garantia de verdade, o leitor não se dá conta, de imediato,
no indício implícito na razão dessa separação entre os irmãos já no
parágrafo subsequente:
Carinhosamente chamada pelos pais – e por mim – de Filinha, Josefina
faleceu aos trinta e três anos, estando eu na flor da juventude, com
vinte e oito anos. Cinco anos e o legado financeiro de Seu Nestor
separavam Filinha e o filhinho de papai. Por ocasião da leitura do
testamento paterno, passaram a separar-nos de maneira obsessiva
e caprichosa. No dia em que o carro na BR-3 levou minha irmã desta
para a melhor, desatrelei-me definitivamente dela. Fui convertido
em herdeiro dos bens familiares. [...] herdeiro único da família Ferreira
Ramalho. (SANTIAGO, 2008, p. 31-32).
Logo o leitor percebe que aí está o sentido do título, sobretudo se
atentou para a primeira epígrafe – “Quem tem irmão não precisa ter
inimigo” – sem suspeitar que é apenas uma primeira explicação, para
ambos, título e epígrafe, redimensionados adiante. É em torno desse
acidente que vitimou a irmã que a memória do narrador vai fazer
circunvoluções, refazendo todos os rastros aparentemente apagados,
revelando as negociações. Memória é narrativa. Aí está a incógnita, o x
da equação que motiva a narração. Na busca empreendida pelo narrador
para a reconstrução desse momento, o leitor fica conhecendo o duplo
percurso de vitorioso do narrador, acumulando conquistas afetivo-sexuais
e fortuna econômico-financeira, no percurso de herdeiro de loja e de
matraga, rio de janeiro, v.19, n.31, jul./dez. 2012254
A MEMÓRIA FICCIONALIZADA EM HERANÇAS E LEITE DERRAMADO: RASTROS, APAGAMENTOS E NEGOCIAÇÕES
casarão em bairro de Belo Horizonte a morador da Vieira Souto, pas-
sando pelos estágios de construtor imobiliário e especulador. As metá-
foras relacionadas ao ofício da costura permeiam o texto. Mais uma
vez, o leitor pode se deixar enganar pela areia nos olhos, julgando
tratar-se apenas de um condicionamento do indivíduo que cresceu ven-
do o pai submeter a medida do mundo ao metro e à qualidade dos
aviamentos, ou pode abrir um novo campo de visão, descortinando a
importância de cada ponto bem dado para a aparência do efeito final. É
preciso atentar para a qualificação que lhe é atribuída, a ele, leitor, não
se contentar com a simplificação contida na expressão influência
machadiana, sempre à mão, como se esta residisse em recursos estilísticos
de superfície. Mais de uma vez o narrador adjetiva o leitor como “cúm-
plice”. Este é um termo que aparece com maior frequência na crônica
policial. Onde está o crime?
A técnica mais relevante para elucidar um crime é a escuta dos
diversos envolvidos e o confronto dos depoimentos. Em um relato de
memória há um único depoente. Mas, prescrito o crime, diante do tri-
bunal de sua consciência, para usar um lugar comum ao gosto de uma
das facetas do narrador, o depoente pode se refratar. Quem precisa estar
atento não é o depoente, mas quem ouve, ou lê. A morte de Filinha é
relatada várias vezes. Obcecado, o narrador incita o leitor a acompanhá-
lo nas especulações:
Na verdade, seria ridículo privilegiar uma das versões que explicam o
acidente automobilístico na BR-3. Mais ridículo seria apadrinhá-la.
Se tomada isoladamente, versão alguma elucida a contento a morte
de Filinha. É tolice partir do fato acontecido e caminhar para o
exame de hipótese única. Quando muito, a tática levará a excluir
essa ou aquela situação como improvável, fantasiosa ou fanfarronesca.
Até aí morreu Neves. A avaliação final dos fatos advirá da soma de
todas as versões. [...] Excluir simplifica. Empobrece. [...] Não me dou
trégua, tampouco a transmito ao leitor. Ao trabalho! (SANTIAGO,
2008, p.125).
Examinadas várias versões, acrescentando detalhes que não cons-
taram nos registros da época, o narrador admite alguma culpa, mas
permanece o termo acidente: “Terei o direito de divagar sobre a pri-
meira das versões explicativas do acidente? Como ter certeza absoluta
de minha culpa? Na impossibilidade, afirmo que estive duplamente
implicado. Concorri para o bom sucesso do acidente, ao sabotar o mo-
tor do carro na madrugada do sábado.” (SANTIAGO, 2008, p.135).
matraga, rio de janeiro, v.19 n.31, jul./dez. 2012 255
Marilene Weinhardt
O narrador busca reparação, localizando o namorado de Filinha e
pai do filho que ela esperava quando morreu, para nomeá-lo herdeiro,
mas só “agora”, à vista da morte, depois de ter passado toda a vida
auferindo os lucros da herança. Obviamente, esse amado da irmã tam-
bém está velho, teve sua experiência de vida, realizou-se como profis-
sional e no casamento, a despeito da origem humilde e de defeito físico
que traz de nascença. Essa herança recebida nessa altura vai compensá-
lo da vida que não foi? O narrador poderá se sentir apaziguado, supos-
tamente renunciando ao que já não pode mesmo gozar? E a vida de
Filinha? A epígrafe revela-se em sua plenitude. Não é apenas o narrador
que tem na irmã a inimiga, esta tem nele um inimigo, inimigo mortal. A
herança passa para outras mãos, “(e)svaziou-se o poço da memória”
(SANTIAGO, 2008, p. 361), mas o resgate da culpa é possível? “Dei o
nome de Heranças ao relato que escrevo.” (SANTIAGO, 2008, p. 361).
Refere-se aos bens que passaram para suas mãos, foram multiplicados
muitas vezes e entregues nas mãos do amante infeliz, ou à culpa que o
acompanhou?
A Memória sem Gradiente
Culpa assumida é o que não aflige o memorialista de Leite derra-
mado. Seu discurso é o da vitimização, rememorando 100 anos de vida,
eventualmente remetendo aos ancestrais, o que pode alcançar o século
XIX. A voz é um fluxo constante. São vinte e três capítulos, o que é o
mesmo que dizer vinte e três parágrafos, ou melhor, talvez seja mais
apropriados designá-los como blocos, já que não há nem mesmo o afas-
tamento da margem marcando o início de parágrafo, cuja extensão flu-
tua entre duas e quatorze páginas. Para usar Bergson via Ricoeur mais
uma vez, pode-se identificar nesta narrativa o processo da “recordação
instantânea” (RICOEUR, 2007, p. 46), ou seja, a evocação que resulta de
“ter uma lembrança”, não de “ir em busca de uma lembrança”, (RICOEUR,
2007, p. 24) é casual. Assim, a ficcionalização não é a do controle do
discurso, mas do acaso, o que certamente não é menos laborioso na
constituição do dito discurso. O simulacro do caos não é o caos.
Na abertura o leitor se depara com um eu que entrevê a possibi-
lidade de um futuro que deverá ser a réplica do passado, em discurso
entremeado por indícios da situação atual:
Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz
infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da
matraga, rio de janeiro, v.19, n.31, jul./dez. 2012256
A MEMÓRIA FICCIONALIZADA EM HERANÇAS E LEITE DERRAMADO: RASTROS, APAGAMENTOS E NEGOCIAÇÕES
minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa
da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela,
das joias e do nome da minha família. Vai dar ordens aos criados,
vai montar no cavalo da minha antiga mulher. E se na fazenda
ainda não houver luz elétrica, providenciarei um gerador para você
ver televisão. Vai ter também ar condicionado em todos os aposen-
tos da sede, porque na baixada hoje em dia faz muito calor. Não sei
se foi sempre assim, se meus antepassados suavam debaixo de tan-
ta roupa. Minha mulher, sim, suava bastante, mas ela já era de uma
nova geração e não tinha a austeridade da minha mãe. Minha mu-
lher gostava do sol, voltava sempre afogueada das tardes no areal
de Copacabana. Mas nosso chalé em Copacabana já veio abaixo...
(BUARQUE, 2009, p. 5-6).
Ele parece confiar no poder de sedução da referência a práticas
culturais do cotidiano que certamente não estão ao alcance dos meios
de vida da ouvinte. No entanto, para quem está fazendo uma proposta
de casamento, as referências à mulher do passado são, no mínimo, indí-
cio de inabilidade. Essa amada será a obsessão do narrador. No trecho
citado fica marcada a diferença entre a tradição da família e o modo de
ser da “antiga mulher”. Os espaços onde viveu aparecem de cambulhada,
só muito adiante o leitor vai entender a referência ao calor “na baixada
hoje”, quando mudando-se para a periferia, o narrador identifica que o
lugar da “infância feliz” é o mesmo ocupado hoje pela igreja que lhe
dará abrigo quando não mais tiver para onde ir. O bloco se estende por
mais três páginas, com referências ao passado glorioso da família, nas
terras da fazenda do avô ou no casarão construído pelo pai em Botafogo,
as viagens ao exterior acompanhando o pai, incluindo iniciação sexual,
o cotidiano da infância e da adolescência, em família falando-se em
francês para que os criados não entendessem. Aqui e ali afloram as
circunstâncias presentes (“deixam a televisão ligada, fora do ar. Deve
ser para que [...] eu não moleste os outros pacientes com meu palavrório.”
Ou ainda: “Ouço ruídos de gente, de vísceras, um sujeito entubado emite
sons rascantes, talvez queira me dizer alguma coisa.”) e informações so-
bre as condições de emissão do discurso (“Estou pensando alto para que
você me escute. E falo devagar, como quem escreve, para que você trans-
creva sem precisar ser taquígrafa, você está aí?”). (BUARQUE, 2009, p. 6-8).
Concluída a leitura do romance, se voltar ao início o leitor se
dará conta dos elementos de enredo já antecipados neste bloco. Questão
fulcral na fenomenologia da memória de Ricoeur é a “conquista da
distância temporal, [...] que podemos qualificar de gradiente de
matraga, rio de janeiro, v.19 n.31, jul./dez. 2012 257
Marilene Weinhardt
distanciamento. A operação descritiva consiste então em classificar as
experiências relativas à profundidade temporal, desce àquelas em que
[...] o passado adere ao presente, até aquelas em que o passado é reco-
nhecido em sua preteridade passada.” (RICOEUR, 2007, p. 43). A memó-
ria deste indivíduo internado em um hospital, na sua condição de cen-
tenário potencializada pela percepção da passagem do tempo em na
cama de enfermaria, perde o gradiente de distanciamento. As cenas
estão todas lá, cabe ao leitor perceber as circunstâncias que determi-
nam a perda da profundidade temporal e procurar e restabelecê-las.
O trânsito entre o mundo utópico do passado e a distopia do
presente será constante, por vezes de difícil percepção. Cabe ao leitor
construir o percurso, como quem monta as peças de um quebra-cabeça.
O problema é que há peças repetidas, peças que se superpõem, os con-
tornos são os mesmos, ou quase, a tonalidade pode ser diferente. Ima-
gem mais expressiva do modo de realização do romance é imaginar que
há mais de um jogo a ser montado. É preciso decidir a peça que cabe no
cenário que representa o que de fato foi vivido, o que se encaixa na
cena tal como a memória reconstrói o vivido. A rigor, talvez só interes-
se apreender este último quadro, ou sequência de quadros, porque não
se está lendo o relato de uma vida, mas o relato da rememoração da
vida. O primeiro subcapítulo de A memória, a história, o esquecimento
é justamente intitulado “Memória e imaginação”. O vivido rememorado
não é mais o vivido, mas o vivido permeado pela imaginação. Retorna
a questão dos rastros, apagamento e negociações a serem apreendidos
em sua funcionalidade ficcionalizada.
No plano que se pode designar como objetivo, para reduzi-lo à
qualificação mais rasteira possível, se tem “Eulálio Montenegro
d’Assumpção, [nascido a] 16 de junho de 1907, viúvo” (BUARQUE, 2009,
p. 77), internado em um hospital, pouco tempo depois de ter comemo-
rado o centésimo aniversário, portanto o presente da narração se dá em
2007. Descendente de linhagem senhoril, com a morte do pai começa a
se fazer sentir a desagregação econômica que fará com que sua última
mudança de endereço, depois de tantas, sempre em escala descendente,
seja para um cômodo nos fundos de uma igreja pentecostal, ouvindo os
ditames do milenarismo que grassa no início do século XXI na prega-
ção do pastor, e a voz da filha que proclama em altos brados os bordões
da nova crença. Esse homem teve um casamento que se deu contra a
vontade da mãe, em vista da origem social da escolhida, e uma separa-
matraga, rio de janeiro, v.19, n.31, jul./dez. 2012258
A MEMÓRIA FICCIONALIZADA EM HERANÇAS E LEITE DERRAMADO: RASTROS, APAGAMENTOS E NEGOCIAÇÕES
ção, tendo-lhe ficado a filha, que por sua vez foi casada, teve um filho,
Eulálio d’Assumpção Palumba, e vários relacionamentos posteriores, a cada
um iam minguando os recursos materiais. Há ainda outro e mais outro
Eulálio, portanto o narrador vive o suficiente para conhecer o trineto.
Esse parágrafo contendo uma vida de 100 anos poderia ser ainda
mais reduzido se fosse preenchido pelos feitos do herói do romanesco.
Parece que sua única decisão efetiva foi a escolha da esposa: “Eram as
exéquias do meu pai, no entanto eu não sabia mais me libertar de Matilde”
(BUARQUE, 2009, p. 30), que participava do coral. Esta é a única ação
de resistência que pratica, resistência mais significativa porque foi pre-
ciso vencer a força de uma mãe autoritária e aferrada às tradições de
casta. As outras ações acontecem em decorrência de circunstâncias e
por obediência a convenções.
Quase tudo a respeito de Matilde fica sob o signo da dúvida,
exceto a paixão que o toma. A perda da amada determina sua falta de
rumo na vida. Entre as frustradas buscas para encontrá-la e as tentativas
de construção de uma origem para apresentar à filha, somadas com a
idealização própria do objeto do desejo e os fantasmas entrevistos por
um ciumento, tudo se funde e confunde na rememoração. O leitor tem
pistas, sobretudo na voz dos outros, eventualmente registradas, para
apreender um enredo verossímil. Mas o romance não é “o que de fato
aconteceu”, e sim como esse narrador o viveu os fatos, quer dizer, como
ele rememora o que viveu. A obsessão por ela faz com que apareça
tantas vezes, em relatos que se repetem ao mesmo tempo em que se
corrigem, que o leitor menos atento pode se deixar enredar no novelo
de lembranças e invenções, não percebendo que a expressão leite der-
ramado no título não é a metáfora desgastada a ponto de se transformar
em um lugar comum, mas a razão mesmo do desaparecimento dela. Ele
sabe disso, mas tanto negou esse desaparecimento, tanto criou outras
versões, para uso próprio, para a filha, para a sociedade, que borrou
tudo. Apagamentos e negociações se superpuseram aos rastros. Nesse
emaranhado de imagens predomina o alaranjado, cor do vestido em
que ela se mostrava mais sedutora. Esse jogo é explorado editorialmen-
te, disponibilizando-se no lançamento exemplares com a capa externa
laranja e a interna branca, e vice-versa. No jogo de ilusões, o leitor
participava com a ilusão de um poder de decisão na compra.
Para ilustrar ainda a indecisão que lhe é habitual, vale evocar
outro episódio, ainda que sem o mesmo alcance de repercussão em seu
destino. Trata-se das circunstâncias da morte do pai, em que ele não se
matraga, rio de janeiro, v.19 n.31, jul./dez. 2012 259
Marilene Weinhardt
sente em situação de escolher uma explicação conclusiva: “...corria que
meu pai tinha sido morto a mando de um corno. Isso porque foi metra-
lhado ao entrar na sua garçonnière, mas mamãe só lia O Paiz, cujas
reportagens atribuíam o crime à oposição.” (BUARQUE, 2009, p. 36).
Portanto, a mãe faz uma escolha, encontra uma explicação que a satis-
faz, ou pelo menos o filho julga que ela entendeu assim a morte do
marido, enquanto ele, inseguro que é, ainda que tenha vários indícios
no comportamento e nas palavras de outros, não firma uma decisão.
A confusão entre as figuras do neto, bisneto e trineto é de outra
ordem, faz parte da verossimilhança narrativa, o próprio narrador a
explica. Ainda que exija outra longa transcrição, é mais expressivo
dar-lhe a voz, ouvi-lo em conversa com a filha, uma das suas várias
ouvintes, ou que ele julga que estão a ouvi-lo:
É como se dizia antigamente, pai rico, filho nobre, neto pobre. O
neto pobre calhou de estar na sua barriga, Eulálio d’Assumpção
Palumba, o garotão por nós criado, que cresceu rebelde com toda a
razão. Já maduro entrou nos eixos, mas você deve lembrar quando
ele meteu na cabeça de ser comunista. [...] Esse seu filho engravidou
outra comunista, que teve um filho na cadeia e na cadeia morreu.
Você diz que ele próprio morreu nas mãos da polícia, e com efeito
tenho vaga lembrança de tal assunto. Mas lembrança de velho não é
confiável, e agora estou seguro de ter visto o garotão Eulálio ainda
outro dia, forte toda a vida. Ele até me deu uma caixa de charutos,
mas que besteira a minha, o que morreu foi outro Eulálio [...]. O
Eulálio magro é que virou comunista, porque já nasceu na cadeia e
dizem que teve um desmame precoce. Daí fumava maconha, batia
nas professoras, foi expulso de todas as escolas. Mas mesmo
semianalfabeto e piromaníaco arranjou trabalho e prosperou, outro
dia me deu uma caixa de charutos. Visitou-me em casa com uma
namoradinha de barriga de fora e brinco no umbigo. Essa me faria
gosto como nora, mas quem pariu na cadeia foi outra. Não me
esqueço o dia em que me telefonaram para buscar o bebê no hospital
do Exército [...]. Até me emocionei ao ver o pimpolho, praticamente
órfão de pai e mãe, porque Amerigo Palumba estava longe e você,
presa e incomunicável. Mas espere um pouco, isso não é possível
porque você saiu do hospital ao meu lado, com a criança no colo.
[...] Você deve estar fazendo confusão com o outro... (BUARQUE,
2009, p. 38-39. Grifos meus).
À parte o efeito de verossimilhança alcançado na figuração da
memória de velho, que busca a precisão e cada vez mais se confunde,
por vezes atribuindo a confusão ao outro, o leitor apreende mais do
matraga, rio de janeiro, v.19, n.31, jul./dez. 2012260
A MEMÓRIA FICCIONALIZADA EM HERANÇAS E LEITE DERRAMADO: RASTROS, APAGAMENTOS E NEGOCIAÇÕES
que o narrador sabe. Nessa sequência de gerações a família transita da
burguesia decadente a militante político, a malandro e, finalmente, a
traficante, todos apresentados no vocabulário e nas construções sintáti-
cas desse indivíduo bem-nascido que narra.
O jogo de espelhos, que por vezes só duplica a imagem, por vezes
a refrata em número de imagens e deformação variável, é uma constan-
te na construção, mas não há um modelo estabelecido, cada refração
comporta uma inovação. O derradeiro movimento desse jogo é a me-
mória da morte do avô, que de repente é um ancestral mais distante,
para enfim se revelar ao leitor como o fim do próprio narrador.
Da Memória Individual à Cena Coletiva
Na abertura deste trabalho, declarou-se interesse na
ficcionalização da história e intenção de tratar de obras que usam o
discurso de memórias como recurso para construir narrativas que po-
dem ser lidas como romances históricos. Entretanto, a leitura de Heran-
ças e de Leite derramado tomou rumos que podem conduzir antes a
uma abordagem de caráter psicológico, ou mesmo psicanalítico. A lei-
tura como romances de formação, ou ainda como romances de geração,
são também possibilidades em aberto. Sem desprezar o potencial de
interpretações que trilhem essas vertentes, não é o que se tem em vista
aqui. Os comentários que intentam evidenciar as habilidades contidas
nos dois títulos para construir relatos de memória capazes de criar
indivíduos e universos que se sustentam nos limites da ficção, preten-
dem, antes de mais nada, reafirmar o óbvio: o pressuposto de que,
independe do adjetivo com que se qualifique um subgênero literário –
social, histórico, de costumes, político, de sondagem psicológica, ou
qualquer outro – antes de tudo as ficções devem ser capazes de criar
uma realidade, não de refleti-la. Em segundo lugar, mas que é o que
releva aqui, decorrem da concepção de romance histórico mobilizada
nesta abordagem. Trata-se de apreender como se dá o cruzamento do
tempo individual com o tempo transindividual, evocados de início e
agora já tendo perdido as aspas, uma vez que estão incorporados nesta
reflexão. Pretende-se dar um passo adiante.
Antes dessa tentativa de avanço, vale ainda anotar que a trama de
ambos os romances decorre da inscrição de indivíduos na instância
histórica. Essas personagens não são protótipos, têm suas idiossincrasias,
mas é da conjugação destas com o momento histórico que resulta seu
percurso. O Walter de Heranças é egótico, ambicioso, capaz de atitudes
matraga, rio de janeiro, v.19 n.31, jul./dez. 2012 261
Marilene Weinhardt
que não passam pelo mais elástico crivo moral para alcançar seus obje-
tivos. Mas é o fato de viver na época da expansão imobiliária em Belo
Horizonte e das negociatas que enovelam administração pública e in-
vestimentos particulares que lhe permitiu escolher o caminho que o
levou a transformar a modesta fortuna de uma pequena casa comercial
de cidade provinciana no capital de construtora de alto porte e de
investidor. Em outro momento histórico, um indivíduo como ele pode-
ria ter usado meios escusos para ser herdeiro universal e acabar seus
dias atrás do balcão, como o pai. Aliás, parece que ele não mirava além
disso quando decidiu transformar-se em filho único. O Eulálio de Leite
derramado é um fraco, incapaz de reagir aos reveses da vida. Mas é por
ter nascido de antiga linhagem, no momento em que este tipo de ascen-
dência perde significado porque derruiu seu poder econômico, que sua
tragicidade avulta. Tivesse aparecido alguém com as mesmas caracte-
rísticas em outro estágio daquele grupo social, e seria um excêntrico,
talvez um marginal na família, mas não na sociedade, o clã garantiria o
escudo. Somando-se aos traços individuais, há um conjunto de circuns-
tâncias históricas e sociais para que o primeiro seja um emergente e o
segundo um derrotado, um vencido. Portanto, mesmo nos limites de
uma concepção bastante precisa de ficção histórica, desde que não se
tenha como exigência distanciamento alongado entre o tempo de vida
do escritor e o tempo histórico ficcionalizado, é possível lê-los como
ficção histórica.
Isso posto, é o momento de retomar a questão do trânsito entre
memória e historicidade. Ricoeur, que serviu de norte nesta leitura, a
certa altura declara que seu livro é “uma apologia da memória como
matriz da história”. (RICOEUR, 2007, p. 100) Ora, se as memórias figura-
das nestas obras ficcionais são pessoais, a memória das classes que re-
presentam é coletiva. Interessa, dado o caráter da literatura como forma
de representação, conferir a possibilidade de ler esses discursos
memorialistas como possíveis reflexos da memória da coletividade. Não
se está propondo leitura na chave alegórica, nem como um simbolismo
transparente, as duas personagens ficcionais representando a história
do país, mas antes uma leitura que perceba que, na ficção, tudo se passa
como se fosse rememoração privada, mas é como rememoração
transindividual que pode encontrar eficácia. Usado na ficção, que se
constitui como mediação simbólica, o efeito buscado pelo discurso de
memória difere do efetivo discurso de memória. Este intenta preservar
e comungar o passado, enquanto aquele cria um sentido para uma for-
matraga, rio de janeiro, v.19, n.31, jul./dez. 2012262
A MEMÓRIA FICCIONALIZADA EM HERANÇAS E LEITE DERRAMADO: RASTROS, APAGAMENTOS E NEGOCIAÇÕES
ma de ver o passado. Ao perceber o sentido criado, o leitor pode parti-
lhar ou não a crítica. Ou não perceber o sentido crítico e se contentar
com a construção de um passado.
O que se intenta é, entre outras leituras defensáveis, considerar a
possibilidade de apreender os dois romances como mais algumas, entre
as tantas reflexões sobre o país e a sociedade, na sua configuração
atual, percebendo-os como efeito imediato do percurso percorrido no
século XX, e efeito mediato de tempos históricos que remontam aos
ancestrais portugueses dos tempos do descobrimento do Novo Mundo.
É justamente visando a apontar a pluralidade como condição inescapável
que foram escolhidos esses dois romances em que há pontos de proxi-
midade de diversas ordens, nos planos extratextual e intratextual, apon-
tados de início, e diversidade de opções e soluções narrativas, detalha-
das nos tópicos dedicados a comentar cada romance, buscando uma
função de complementaridade para articular este modo de leitura pro-
posto. Walter e Eulálio, dois indivíduos que não comportam as qualida-
des tradicionais do herói, mas também não cabem no modelo que busca
a deseroicização pela via do humor, tão frequente na criação do final
do século, revelam-se na sua dimensão humana, mas não alcançam a
reconciliação com o próprio passado. O primeiro culpando-se, o segun-
do vitimizando-se, nenhum atinge a redenção, o apaziguamento, por-
que não fizeram o luto pelos desaparecimentos que os marcaram. “[O]
pesar é essa tristeza que não fez o trabalho do luto.” (RICOEUR, 2007, p.
91). É inegável que nenhum vence o pesar, supera a tristeza.
A rememoração, sob a vigilância da consciência controlada na
escrita por um, desbragada na oralidade do outro, não os redime. A des-
peito do valor atribuído à confissão pelo catolicismo, o perdão não é
alcançado pela palavra tão somente. Sem ação efetiva não há remissão. O
vetor da trajetória social e econômica de cada um percorre sentido in-
verso, um é o arrivista, outro é o decadente, nenhum é inocente. Um, cuja
ascendência conhecida mal alcança o avô, se recusa a ter filhos e impede
o descendente em linha indireta de chegar ao nascimento, recusando a
continuidade, ele é o fim definitivo; o outro, que cultiva a árvore
genealógica de muitas gerações, chega ao trineto, mas sua descendência
acha os caminhos que a sociedade atual oferece aos párias, a igreja
salvacionista e o tráfico. Se não é um painel, certamente é uma cena con-
temporânea bastante expressiva. De nada serviu o esforço da rememoração?
Ela é o primeiro passo de resistência diante da ameaça do esqueci-
mento. Se outros passos serão dados para fugir da inércia cabe ao leitor.
matraga, rio de janeiro, v.19 n.31, jul./dez. 2012 263
Marilene Weinhardt
ABSTRACT
In the contemporary literary output that can be read as the
heir of the historical novel, such affiliation being admitted or
not, textualities from very different extractions combine. In
this plurality, the recurrence of the memorialistic stands out.
Whereas the presence of memory is now recognized as a
condition of the literary, when it comes to the fictionalization
of the historical past it takes on special features due to various
forms of interchanges: between individual and collective past,
between personal and social events, between remembering
through experience and remembering through reports. This
article seeks to understand traces, deletions and negotiation
in the processes of memory fictionalized in the novels Heran-
ças (2008), by Silviano Santiago, and Leite derramado (2009),
by Chico Buarque. The inference is that the individual memory
outlined in the two works can be read as reverberations of
Brazilian society’s collective memory of the period
fictionalized by the authors.
KEY-WORDS: contemporary fiction % historical fiction %
Silviano Santiago % Chico Buarque.
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p. 31-55.
______. Romance histórico: das origens escocesas ao Brasil finissecular. In: Ficção
histórica: teoria e crítica. Ponta Grossa-PR: Editora UEPG, 2011b. p. 13-55.
Recebido em: 30/05/2012.
Aceito em: 31/07/2012.

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  • 1. matraga, rio de janeiro, v.19 n.31, jul./dez. 2012 245 A MEMÓRIA FICCIONALIZADA EM HERANÇAS E LEITE DERRAMADO: RASTROS, APAGAMENTOS E NEGOCIAÇÕES Marilene Weinhardt (UFPR - CNPq) RESUMO Na produção contemporânea que pode ser lida como herdeira do romance histórico, admitindo ou não essa filiação, conju- gam-se textualidades de extrações muito diversas. Nessa pluralidade, avulta a recorrência ao discurso memorialístico. Se a presença da memória é hoje reconhecida como condição da produção literária, no caso da ficcionalização do passado histórico seu dimensionamento apresenta particularidades em decorrência de diversas formas de trânsito: entre passado in- dividual e passado coletivo, entre acontecimentos pessoais e acontecimentos sociais, entre o lembrado porque vivido e o lembrado a partir de relatos. Esta abordagem busca perceber rastros, apagamentos e negociações dos processos da memó- ria ficcionalizados em Heranças (2008), de Silviano Santiago, e Leite derramado (2009), de Chico Buarque. A proposta é que a memória individual figurada nas duas obras pode ser lida como reverberação da memória coletiva da sociedade brasileira no período ficcionalizado. PALAVRAS-CHAVE: ficção contemporânea - ficção histórica % Silviano Santiago - Chico Buarque.
  • 2. matraga, rio de janeiro, v.19, n.31, jul./dez. 2012246 A MEMÓRIA FICCIONALIZADA EM HERANÇAS E LEITE DERRAMADO: RASTROS, APAGAMENTOS E NEGOCIAÇÕES Se podemos acusar a memória de se mostrar pouco confiável, é precisamente porque ela é o nosso único recurso para signi- ficar o caráter passado daquilo de que declaramos nos lembrar. Paul Ricoeur A Memória como Recurso Ficcional na Ficção Recente A ficção que encena o passado histórico, seja aceitando, seja re- cusando a inscrição na qualificação romance histórico, constituiu uma expressiva linha de força da produção brasileira nas derradeiras déca- das do século XX. (WEINHARDT, 2006) A situação parece não se man- ter no mesmo patamar no novo século, verificando-se declínio na aten- ção da crítica sobre essa modalidade. Os estudos sobre a ficção contem- porânea, ainda que acentuem a diversidade, a impossibilidade de defi- nir uma tendência como dominante – limitação decorrente da varieda- de das publicações do período e também da dificuldade para julgar o presente – apontam para a insistência na ficcionalização do presente, centrada em especial na violência urbana da atualidade, predisposição que já se mostrara vigorosa no período anterior. (CARNEIRO, 2005; RESENDE, 2008; SCHOLLHAMMER, 2009) Em que medida trata-se de revival da década de 1970, em que medida agrega novos comportamen- tos, a partir dos elementos sociais do presente, é tema para esses estudos. Entretanto, certa queda em termos numéricos não significa esmo- recimento da criação que inscreve a ação ficcional no passado históri- co. Além disso, é preciso considerar que classificações decorrem da conjugação da potencialidade de cada obra com critérios estabelecidos pelo leitor. O hibridismo, a porosidade entre as diferentes modalidades, marca característica da produção literária, mais efetiva hoje do que em qualquer outra época, multiplica as possibilidades de escolha entre modos de leitura possíveis. Não é preciso reiterar que não há, necessariamente, distância absoluta entre um tipo de opção e outra da parte dos escrito- res de criação, bem como o leitor comum faz suas escolhas em decor- rência de variadas motivações, o tempo ficcionalizado é apenas uma delas, talvez nem seja das mais determinantes. Quem precisa recorrer a balizas é a abordagem crítica, que se preocupa com sistematizações.
  • 3. matraga, rio de janeiro, v.19 n.31, jul./dez. 2012 247 Marilene Weinhardt Classificar é nosso modo de conhecer, a despeito da provisoriedade de cada modelo construído. Portanto, a curva descendente no número de publicações de fic- ção histórica – se é que de fato é descendente, se essa impressão não resulta da atenção da crítica ao que se mostra como ruptura, em detri- mento das permanências, independente do potencial estético de uma e outras – não indica acentuada perda do interesse no passado, da parte de escritores e leitores, e está longe de indicar tendência de desapareci- mento da ficção histórica. A listagem de títulos lançados na primeira década do século XXI que se pode classificar como ficção histórica está muito próxima de uma centena. (WEINHARDT, 2011a) As opções temáticas e formais permitem acolhê-los na categoria que, herdada do século XIX, tomou novo impulso no final do século passado, seja sob a denominação novo romance histórico (MENTON, 1993), seja como metaficção historiográfica (HUTCHEON, 1991), conforme a vertente te- órica adotada pelo crítico. Há mesmo títulos que podem ser considera- dos bastante próximos do modelo oitocentista (LUKACS, 1972), o que não determina sua insignificância como prática cultural deste momento. Desse levantamento, expressiva parcela, em termos numéricos e particularmente quanto à realização estética, é constituída por discur- sos em primeira pessoa, figurando a ação de relatar no presente da escrita, ou seja, na contemporaneidade. Os narradores apresentam-se como indivíduos maduros ou mesmo muito idosos, e contam suas pró- prias vivências, na modalidade memorialística, situando suas ações em conjunção com o momento histórico. Não se tem em vista, nesta sele- ção, a vertente que se vem denominando autoficção, nem o romance autobiográfico, definido por Philippe Lejeune (2008, p. 25). O uso do discurso de memórias é recorrente em romances histó- ricos de diferentes épocas. Nessa mesma listagem resultante do levan- tamento das publicações da primeira década do século XXI com potencial para leitura como ficção histórica, há outros títulos que usam o discur- so memorialístico como recurso ficcional, mas o tempo do narrador memorialista é situado em faixa que não coincide com o tempo da escrita e do escritor. É o caso de Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Gonçalves, ou ainda de O rastro do jaguar (2009), de Murilo Carvalho. Em ambos o narrador relata sua longa experiência de vida, perfeita- mente inserida no panorama do momento ficcionalizado, o que permite classificá-los como romance histórico sem sombra de dúvida. Mas em
  • 4. matraga, rio de janeiro, v.19, n.31, jul./dez. 2012248 A MEMÓRIA FICCIONALIZADA EM HERANÇAS E LEITE DERRAMADO: RASTROS, APAGAMENTOS E NEGOCIAÇÕES ambos o narrador situa-se em tempo passado em relação ao tempo da escrita. Eric Hobsbawm ensina que há “zona de penumbra entre a histó- ria e a memória; entre o passado como um registro geral e aberto a um exame mais ou menos isento e o passado como parte lembrada ou expe- riência de nossas vidas” (HOBSBAWM, 1988, p. 15). Romances em que a figuração do tempo mais longínquo evocado é essa “zona de penum- bra” é que estão em mira. Nos dois exemplos citados, o tempo passado ficcionalizado constitui “zona de penumbra” para a personagem, mas não para o escritor. Para demarcar ainda outra linha limítrofe, vale lembrar que o uso da primeira pessoa relatando suas vivências não é de uso restrito da ficção histórica. O centramento na trajetória individual ou familiar tam- bém é excludente neste caso. Sirva como exemplo de mais um campo de exclusão o premiado O filho eterno (2007), de Cristóvão Tezza. Nar- rado em primeira pessoa, o relato é restrito à experiência pessoal. O que se busca analisar aqui é a figuração do passado recente, apresentado em perspectiva individual inserida no plano social. É preciso referir que esta é uma delimitação problemática para o romance histórico, uma vez que é bastante frequente, entre os teóricos deste subgênero, a resistên- cia à aceitação do tempo vivido como histórico. Para não repetir aqui argumentação já apresentada em outros estudos (WEINHARDT, 2011b), resume-se a posição adotada tendo em vista que se segue na esteira de Fredric Jameson no entendimento de passado histórico ficcionalizado como aquele resultante do entrecruzamento do “plano existencial da vida individual”, ainda que, no caso, indivíduos sejam ficcionais, com o “plano histórico transindividual” (JAMESON, 2007, p. 190), e com Perry Anderson quanto às possibilidades de reinvenção dessa forma no pre- sente (ANDERSON, 2007, p. 216-217), a despeito das diferenças de opi- nião entre os dois estudiosos em relação ao lugar do romance histórico na contemporaneidade. Em delimitação de campo a partir das premissas anunciadas – publicação na primeira década do século XXI; uso do discurso de me- mórias; tempo narrado predominantemente no século XX; conjugação dos eventos pessoais com os sócio-históricos – enquadram-se os se- guintes títulos: O fantasma de Buñuel (2004), de Maria José Silveira; Não falei (2004) de Beatriz Bracher; Sob o peso das sombras (2004), de Francisco Dantas; Cinzas do norte (2005), de Milton Hatoum; Antonio (2007), de Beatriz Bracher; Roliúde (2007), de Homero Fonseca; A cha- ve de casa (2007), de Tatiana Salem Levy; Órfãos do Eldorado (2008),
  • 5. matraga, rio de janeiro, v.19 n.31, jul./dez. 2012 249 Marilene Weinhardt de Milton Hatoum; Heranças (2008), de Silviano Santiago; Yuxin: alma (2009), de Ana Miranda; e Leite derramado (2009), de Chico Buarque. A listagem é variada. Quanto aos autores, constam estreantes, nomes recorrentes nos levantamentos sobre ficção histórica, alguns que aparecem com mais de um título. Os espaços geográficos e sociais, seja quanto à origem dos escritores, seja quanto à cena ficcionalizada, tam- bém têm variação considerável. Vale esclarecer que a atenção a qual- quer tipo de espacializaçao não foi critério de escolha, mas já indicam tendência de descentralização. Também não foi critério de seleção, mas é de notar ainda o equilíbrio entre escritores e escritoras. Neste conjunto chama a atenção uma série de paralelismos entre dois títulos. Trata-se de Heranças, de Silviano Santiago, e Leite derra- mado, de Chico Buarque. É sobre estes dois romances que se concentra a leitura a seguir. Ambos figuram relatos produzidos no início do sécu- lo XXI, por indivíduos não apenas em idade avançada, mas já à beira da morte, ambos fazendo balanço do percurso existencial, percurso esse que comportou mudança radical de estatuto econômico e social. A vida de ambos os narradores foi marcada pelo desaparecimento de uma mu- lher, espécie de dobradiça, alterando os rumos da vida de cada narrador. A conjugação com os demais romances do conjunto será tarefa para outro momento. Nos dados extratextuais também podem ser apontados algumas coincidências, ou pelo menos proximidade: as obras foram lançadas em 2008 e 2009, respectivamente; os autores, ambos vivendo no Rio de Janeiro, não são exatamente contemporâneos entre si, mas podem ser considerados da mesma geração, o primeiro contando pouco mais de setenta anos quando do lançamento, o segundo no meio da casa dos sessenta; ambos têm atividades profissionais ligadas ao universo cultural, no caso do primeiro mais centrado no trato com o fenômeno literário, tanto na reflexão como na criação, no caso do segundo, artista de variada expressão; nenhum está na sua primeira aventura como ficcionista, pelo contrário, independente de outras produções que garantem suas inscrições na cena cultural, os títulos romanescos que já assinaram, alguns premiados, lhes asseguram um lugar na his- tória da ficção brasileira do entresséculos. Enfim, a comparação en- tre os autores não é o que está em questão e tais paralelismos só foram evocados porque podem ter alguma significação subsidiária na proposta de leitura que se defenderá.
  • 6. matraga, rio de janeiro, v.19, n.31, jul./dez. 2012250 A MEMÓRIA FICCIONALIZADA EM HERANÇAS E LEITE DERRAMADO: RASTROS, APAGAMENTOS E NEGOCIAÇÕES De início, interessa perceber a situação narrativa criada em cada romance. Tratando-se de discurso de memórias, a reflexão teórica que está na base dos comentários que se seguem está em A memória, a história, o esquecimento, de Paul Ricoeur, sem perder de vista, obvia- mente, que se está diante da ficcionalização desse discurso. Lê-los como discursos memorialistas é parte do pacto de leitura. O que se buscará apreender é o que podem oferecer, como possibilidade de leitura, as operações com os rastros, os apagamentos e as negociações da memória em cada uma dessas figurações. Não se acompanha uma narrativa de memórias em decorrência da curiosidade pelo desfecho, este está dado de antemão, uma vez que o memorialista é visto na abertura na sua condição de “agora”, isto é, no presente da narração, evocando o “não agora”. (RICOEUR, 2007, p. 52) A questão não é “o que vai acontecer” e sim “o que aconteceu na vida deste indivíduo que o faz pensar que sua existência vale o esforço do relato”, ou melhor,“oqueeleachaqueaconteceu”.Ricoeurdeclaraqueafenomenologia da memória que propõe “estrutura-se em torno de duas perguntas: De que há lembrança? De quem é a memória?” (RICOEUR, 2007, p. 23). A Memória Laboriosa O conciso parágrafo de abertura de Heranças deixa patente que o narrador não tem outra expectativa que não a morte: “Elegi a cidade, escolhi o cemitério. Decidi passar os últimos anos de vida no Rio de Janeiro e ser enterrado no S. João Batista.” (SANTIAGO, 2008, p. 7). Além da tripla alusão ao fim irrevogável (“cemitério”, “últimos anos de vida”, “enterrado”), é de notar os três verbos – eleger, escolher, decidir – indicativos não apenas de exercício de vontade, mas de capacidade de gerir, de controlar. Todo o percurso dessa personagem, que só vai ser identificada pelo nome próprio muito próximo ao final, é determi- nado por seus atos de vontade. Aí esta a resposta para a segunda ques- tão estruturadora da fenomelogia de Ricoeur: a memória é deste ho- mem, senhor de seu destino e de sua narrativa. Os mecanismos de regulação de sua trajetória, descritos em minúcias, desvelam para o leitor que os meios de controle alcançam também as lembranças. Assim como teve um projeto de vida seguido com rigor, em que cada passo foi calculado, a narração também tem um objetivo específico, não é resul- tado de uma tentativa de preencher o tempo vago que o afastamento das atividades profissionais costuma deixar. Não é uma rememoração ao acaso, mas uma “recordação laboriosa”, para usar expressão que
  • 7. matraga, rio de janeiro, v.19 n.31, jul./dez. 2012 251 Marilene Weinhardt Ricoeur busca em Bergson. (RICOEUR, 2007, p. 46). A sensação de que o fim se aproxima, as constantes referências ao precário estado de saú- de, que não merece explicação exceto quanto à certeza do fim próximo e algumas poucas referências a incômodos físicos, não afetam a capaci- dade de raciocínio e de gerenciamento da situação e do próprio destino deste indivíduo que, “(n)este ano de 2007” (RICOEUR, 2007, p. 8), está confortavelmente instalado, escrevendo seu relato em um computador de última geração, em luxuoso apartamento à beira-mar, no bairro de Ipanema, para onde se transferiu há pouco mais de um ano, vindo do bairro de Lourdes, em Belo Horizonte. A precisão com a geografia é mais uma das tantas exatidões que marcam a narrativa. O primeiro capítulo, como aquecimento e preparação, distende- se sobre as circunstâncias atuais, sublinhando as condições de bem- estar material e de isolamento, comporta rápidas alusões ao passado mineiro, insiste na preparação para a morte, quer dizer, com as provi- dências de ordem material para não incomodar e, principalmente, não depender de ninguém, concluindo com um parágrafo que é, ao mesmo tempo, o projeto e a súmula da narrativa: Só me interessam – possível leitor destas páginas – os atos da vida que não cheguei a compreender e os acontecimentos que permane- cem como incógnita. Debato-me noite e dia com aquela letrinha x, que é o fundamento e razão de ser das equações matemáticas. Pela correspondência entre os dados decifrados de episódio vivido e as criptografias dum outro, e pelo jogo entre o incompreensível e o já solucionado e assimilado pela consciência, é que irei destrinchar minha experiência de vida para melhor comunicá-la a você, que porventura venha a se interessar por ela. (SANTIAGO, 2008, p. 16). Portanto, retomando a primeira questão estruturadora da fenomenologia de Ricoeur, há lembrança do que não foi entendido. Essa será a busca e a tônica do relato. As reflexões sobre as dificuldades do processo da recuperação do passado pela memória e sua expressão na escrita comparecem com regularidade. O leitor está avisado de que deve estar atento aos menores indícios. É tarefa sua perceber rastros, apagamentos e negociações que se estendem por trinta e três capítulos que, grosso modo, seguem linha cronológica, por vezes interrompida por antecipações, por vezes por digressões. Ainda que o memorialista exerça controle sobre a lembrança, seria inverossímil se seu funciona- mento fosse absolutamente linear. O segundo capítulo abre-se com o que poderia soar, para o leitor
  • 8. matraga, rio de janeiro, v.19, n.31, jul./dez. 2012252 A MEMÓRIA FICCIONALIZADA EM HERANÇAS E LEITE DERRAMADO: RASTROS, APAGAMENTOS E NEGOCIAÇÕES minimamente inserido no cânone da literatura brasileira, como um eco de Brás Cubas. Mas outro som mescla-se à evocação da tradição literá- ria, a voz popular, presente no provérbio que a antecede: “Escapei-me do provérbio que reza: ‘Quando Deus não dá filhos, o diabo dá sobri- nhos.’ Não tive filhos. Não tive sobrinhos.” A sequência, à primeira vista decorrente do jogo sintático – “Tive muitas amantes.” – dá opor- tunidade para se preservar a verossimilhança, na explicitação da práti- ca aliança entre o plano social, o intelectual e o apelo sexual: “[m]uitas [dessas amantes] foram subtraídas dos vários bairros tradicionais da capital mineira. À vista da sólida formação cultural que ostentavam, eu era atraído e nocauteado pela sedução da beleza.” (SANTIAGO, 2008, p. 18). Assim se explica que o filho do dono da loja de armarinhos, condi- ção sempre lembrada, sem ter logrado formação superior por não conse- guir sequer passar em um vestibular, ostenta verniz de erudição: vampirizou a cultura das amantes. Se o leitor, ainda não familiarizado com o universo ficcional em que adentrou, não percebe os dois níveis de informação nesta primeira passagem, ela é reiterada logo no capítulo seguinte: “Se hoje sou homem relativamente culto foi por ter aprendido a combinar de maneira proveitosa a instrução cultural à vida social pro- míscua. Sou autodidata.” (SANTIAGO, 2008, p. 37. Itálico do original). Aqui e ali, ao longo do relato, aflora a situação de origem, seja em dados factuais, seja nos ajuizamentos sobre o mundo, seja na ex- pressão linguística, em particular na prontidão e naturalidade com que emprega provérbios, prático congelamento do senso comum, ouvidos no balcão da loja do pai, enquanto os hábitos no cotidiano e, especial- mente, a experiência das viagens ao exterior, procuram construir uma imagem de refinamento, adequada ao parvenu, conforme se autodenomina. (SANTIAGO, 2008, p. 121). É bem verdade que outros ecos literários se fazem ouvir com maior ou menor intensidade, mas estes ficam por conta do diálogo dos leitores com o autor, passando ao largo do narrador. As viagens, inicialmente à então capital do país e depois à Europa eram também usadas como consolo para as namoradas que engravidava e, indefectivelmente, induzia ao aborto. As opiniões sobre o direito ao livre exercício da sexualidade e a recusa à procria- ção criam oportunidade para que se perceba a carência de princípios morais e o absoluto desrespeito ao outro. Não é preciso muito mais para que o leitor perceba que está diante de um cínico, um mau-caráter confesso. No entanto, esse mais virá em detalhes, sem subterfúgios. As explicações não se travestem como justificativas. A fase que pode ser lida como romance de formação se alonga.
  • 9. matraga, rio de janeiro, v.19 n.31, jul./dez. 2012 253 Marilene Weinhardt Ele é o filho do pai, o filho macho, que merece companhia, atenção, lições para o relacionamento com mulheres. O herdeiro. Herdeiro na tradição de garanhão, porque há uma irmã, justamente chamada Filinha, esta sim, efetivamente, trabalhando na loja de aviamentos, ao lado do pai, de modo competente, garantindo a manutenção material. O modo que dá conta, pela primeira vez, da existência da irmã funciona no plano do pacto de leitura, simulando reforçar a veracidade, ao se diri- gir aos conterrâneos: Antes que o leitor mineiro me reconheça e queira corrigir informa- ções contidas neste relato, é melhor que esclareça – ou enfatize – alguns detalhes de ordem pessoal. Nasci, sim, em Belo Horizonte, mas na realidade não nasci e cresci filho único de Seu Nestor. Tampouco fui seu primeiro herdeiro universal. [...] Depois da morte – também precoce – de minha irmã Josefina, os comerciantes da pra- ça passaram a julgar-me filho único de Seu Nestor. (SANTIAGO, 2008, p. 31). Atento, ou antes, distraído pela estratégia que, na superfície, se mostra como garantia de verdade, o leitor não se dá conta, de imediato, no indício implícito na razão dessa separação entre os irmãos já no parágrafo subsequente: Carinhosamente chamada pelos pais – e por mim – de Filinha, Josefina faleceu aos trinta e três anos, estando eu na flor da juventude, com vinte e oito anos. Cinco anos e o legado financeiro de Seu Nestor separavam Filinha e o filhinho de papai. Por ocasião da leitura do testamento paterno, passaram a separar-nos de maneira obsessiva e caprichosa. No dia em que o carro na BR-3 levou minha irmã desta para a melhor, desatrelei-me definitivamente dela. Fui convertido em herdeiro dos bens familiares. [...] herdeiro único da família Ferreira Ramalho. (SANTIAGO, 2008, p. 31-32). Logo o leitor percebe que aí está o sentido do título, sobretudo se atentou para a primeira epígrafe – “Quem tem irmão não precisa ter inimigo” – sem suspeitar que é apenas uma primeira explicação, para ambos, título e epígrafe, redimensionados adiante. É em torno desse acidente que vitimou a irmã que a memória do narrador vai fazer circunvoluções, refazendo todos os rastros aparentemente apagados, revelando as negociações. Memória é narrativa. Aí está a incógnita, o x da equação que motiva a narração. Na busca empreendida pelo narrador para a reconstrução desse momento, o leitor fica conhecendo o duplo percurso de vitorioso do narrador, acumulando conquistas afetivo-sexuais e fortuna econômico-financeira, no percurso de herdeiro de loja e de
  • 10. matraga, rio de janeiro, v.19, n.31, jul./dez. 2012254 A MEMÓRIA FICCIONALIZADA EM HERANÇAS E LEITE DERRAMADO: RASTROS, APAGAMENTOS E NEGOCIAÇÕES casarão em bairro de Belo Horizonte a morador da Vieira Souto, pas- sando pelos estágios de construtor imobiliário e especulador. As metá- foras relacionadas ao ofício da costura permeiam o texto. Mais uma vez, o leitor pode se deixar enganar pela areia nos olhos, julgando tratar-se apenas de um condicionamento do indivíduo que cresceu ven- do o pai submeter a medida do mundo ao metro e à qualidade dos aviamentos, ou pode abrir um novo campo de visão, descortinando a importância de cada ponto bem dado para a aparência do efeito final. É preciso atentar para a qualificação que lhe é atribuída, a ele, leitor, não se contentar com a simplificação contida na expressão influência machadiana, sempre à mão, como se esta residisse em recursos estilísticos de superfície. Mais de uma vez o narrador adjetiva o leitor como “cúm- plice”. Este é um termo que aparece com maior frequência na crônica policial. Onde está o crime? A técnica mais relevante para elucidar um crime é a escuta dos diversos envolvidos e o confronto dos depoimentos. Em um relato de memória há um único depoente. Mas, prescrito o crime, diante do tri- bunal de sua consciência, para usar um lugar comum ao gosto de uma das facetas do narrador, o depoente pode se refratar. Quem precisa estar atento não é o depoente, mas quem ouve, ou lê. A morte de Filinha é relatada várias vezes. Obcecado, o narrador incita o leitor a acompanhá- lo nas especulações: Na verdade, seria ridículo privilegiar uma das versões que explicam o acidente automobilístico na BR-3. Mais ridículo seria apadrinhá-la. Se tomada isoladamente, versão alguma elucida a contento a morte de Filinha. É tolice partir do fato acontecido e caminhar para o exame de hipótese única. Quando muito, a tática levará a excluir essa ou aquela situação como improvável, fantasiosa ou fanfarronesca. Até aí morreu Neves. A avaliação final dos fatos advirá da soma de todas as versões. [...] Excluir simplifica. Empobrece. [...] Não me dou trégua, tampouco a transmito ao leitor. Ao trabalho! (SANTIAGO, 2008, p.125). Examinadas várias versões, acrescentando detalhes que não cons- taram nos registros da época, o narrador admite alguma culpa, mas permanece o termo acidente: “Terei o direito de divagar sobre a pri- meira das versões explicativas do acidente? Como ter certeza absoluta de minha culpa? Na impossibilidade, afirmo que estive duplamente implicado. Concorri para o bom sucesso do acidente, ao sabotar o mo- tor do carro na madrugada do sábado.” (SANTIAGO, 2008, p.135).
  • 11. matraga, rio de janeiro, v.19 n.31, jul./dez. 2012 255 Marilene Weinhardt O narrador busca reparação, localizando o namorado de Filinha e pai do filho que ela esperava quando morreu, para nomeá-lo herdeiro, mas só “agora”, à vista da morte, depois de ter passado toda a vida auferindo os lucros da herança. Obviamente, esse amado da irmã tam- bém está velho, teve sua experiência de vida, realizou-se como profis- sional e no casamento, a despeito da origem humilde e de defeito físico que traz de nascença. Essa herança recebida nessa altura vai compensá- lo da vida que não foi? O narrador poderá se sentir apaziguado, supos- tamente renunciando ao que já não pode mesmo gozar? E a vida de Filinha? A epígrafe revela-se em sua plenitude. Não é apenas o narrador que tem na irmã a inimiga, esta tem nele um inimigo, inimigo mortal. A herança passa para outras mãos, “(e)svaziou-se o poço da memória” (SANTIAGO, 2008, p. 361), mas o resgate da culpa é possível? “Dei o nome de Heranças ao relato que escrevo.” (SANTIAGO, 2008, p. 361). Refere-se aos bens que passaram para suas mãos, foram multiplicados muitas vezes e entregues nas mãos do amante infeliz, ou à culpa que o acompanhou? A Memória sem Gradiente Culpa assumida é o que não aflige o memorialista de Leite derra- mado. Seu discurso é o da vitimização, rememorando 100 anos de vida, eventualmente remetendo aos ancestrais, o que pode alcançar o século XIX. A voz é um fluxo constante. São vinte e três capítulos, o que é o mesmo que dizer vinte e três parágrafos, ou melhor, talvez seja mais apropriados designá-los como blocos, já que não há nem mesmo o afas- tamento da margem marcando o início de parágrafo, cuja extensão flu- tua entre duas e quatorze páginas. Para usar Bergson via Ricoeur mais uma vez, pode-se identificar nesta narrativa o processo da “recordação instantânea” (RICOEUR, 2007, p. 46), ou seja, a evocação que resulta de “ter uma lembrança”, não de “ir em busca de uma lembrança”, (RICOEUR, 2007, p. 24) é casual. Assim, a ficcionalização não é a do controle do discurso, mas do acaso, o que certamente não é menos laborioso na constituição do dito discurso. O simulacro do caos não é o caos. Na abertura o leitor se depara com um eu que entrevê a possibi- lidade de um futuro que deverá ser a réplica do passado, em discurso entremeado por indícios da situação atual: Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da
  • 12. matraga, rio de janeiro, v.19, n.31, jul./dez. 2012256 A MEMÓRIA FICCIONALIZADA EM HERANÇAS E LEITE DERRAMADO: RASTROS, APAGAMENTOS E NEGOCIAÇÕES minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das joias e do nome da minha família. Vai dar ordens aos criados, vai montar no cavalo da minha antiga mulher. E se na fazenda ainda não houver luz elétrica, providenciarei um gerador para você ver televisão. Vai ter também ar condicionado em todos os aposen- tos da sede, porque na baixada hoje em dia faz muito calor. Não sei se foi sempre assim, se meus antepassados suavam debaixo de tan- ta roupa. Minha mulher, sim, suava bastante, mas ela já era de uma nova geração e não tinha a austeridade da minha mãe. Minha mu- lher gostava do sol, voltava sempre afogueada das tardes no areal de Copacabana. Mas nosso chalé em Copacabana já veio abaixo... (BUARQUE, 2009, p. 5-6). Ele parece confiar no poder de sedução da referência a práticas culturais do cotidiano que certamente não estão ao alcance dos meios de vida da ouvinte. No entanto, para quem está fazendo uma proposta de casamento, as referências à mulher do passado são, no mínimo, indí- cio de inabilidade. Essa amada será a obsessão do narrador. No trecho citado fica marcada a diferença entre a tradição da família e o modo de ser da “antiga mulher”. Os espaços onde viveu aparecem de cambulhada, só muito adiante o leitor vai entender a referência ao calor “na baixada hoje”, quando mudando-se para a periferia, o narrador identifica que o lugar da “infância feliz” é o mesmo ocupado hoje pela igreja que lhe dará abrigo quando não mais tiver para onde ir. O bloco se estende por mais três páginas, com referências ao passado glorioso da família, nas terras da fazenda do avô ou no casarão construído pelo pai em Botafogo, as viagens ao exterior acompanhando o pai, incluindo iniciação sexual, o cotidiano da infância e da adolescência, em família falando-se em francês para que os criados não entendessem. Aqui e ali afloram as circunstâncias presentes (“deixam a televisão ligada, fora do ar. Deve ser para que [...] eu não moleste os outros pacientes com meu palavrório.” Ou ainda: “Ouço ruídos de gente, de vísceras, um sujeito entubado emite sons rascantes, talvez queira me dizer alguma coisa.”) e informações so- bre as condições de emissão do discurso (“Estou pensando alto para que você me escute. E falo devagar, como quem escreve, para que você trans- creva sem precisar ser taquígrafa, você está aí?”). (BUARQUE, 2009, p. 6-8). Concluída a leitura do romance, se voltar ao início o leitor se dará conta dos elementos de enredo já antecipados neste bloco. Questão fulcral na fenomenologia da memória de Ricoeur é a “conquista da distância temporal, [...] que podemos qualificar de gradiente de
  • 13. matraga, rio de janeiro, v.19 n.31, jul./dez. 2012 257 Marilene Weinhardt distanciamento. A operação descritiva consiste então em classificar as experiências relativas à profundidade temporal, desce àquelas em que [...] o passado adere ao presente, até aquelas em que o passado é reco- nhecido em sua preteridade passada.” (RICOEUR, 2007, p. 43). A memó- ria deste indivíduo internado em um hospital, na sua condição de cen- tenário potencializada pela percepção da passagem do tempo em na cama de enfermaria, perde o gradiente de distanciamento. As cenas estão todas lá, cabe ao leitor perceber as circunstâncias que determi- nam a perda da profundidade temporal e procurar e restabelecê-las. O trânsito entre o mundo utópico do passado e a distopia do presente será constante, por vezes de difícil percepção. Cabe ao leitor construir o percurso, como quem monta as peças de um quebra-cabeça. O problema é que há peças repetidas, peças que se superpõem, os con- tornos são os mesmos, ou quase, a tonalidade pode ser diferente. Ima- gem mais expressiva do modo de realização do romance é imaginar que há mais de um jogo a ser montado. É preciso decidir a peça que cabe no cenário que representa o que de fato foi vivido, o que se encaixa na cena tal como a memória reconstrói o vivido. A rigor, talvez só interes- se apreender este último quadro, ou sequência de quadros, porque não se está lendo o relato de uma vida, mas o relato da rememoração da vida. O primeiro subcapítulo de A memória, a história, o esquecimento é justamente intitulado “Memória e imaginação”. O vivido rememorado não é mais o vivido, mas o vivido permeado pela imaginação. Retorna a questão dos rastros, apagamento e negociações a serem apreendidos em sua funcionalidade ficcionalizada. No plano que se pode designar como objetivo, para reduzi-lo à qualificação mais rasteira possível, se tem “Eulálio Montenegro d’Assumpção, [nascido a] 16 de junho de 1907, viúvo” (BUARQUE, 2009, p. 77), internado em um hospital, pouco tempo depois de ter comemo- rado o centésimo aniversário, portanto o presente da narração se dá em 2007. Descendente de linhagem senhoril, com a morte do pai começa a se fazer sentir a desagregação econômica que fará com que sua última mudança de endereço, depois de tantas, sempre em escala descendente, seja para um cômodo nos fundos de uma igreja pentecostal, ouvindo os ditames do milenarismo que grassa no início do século XXI na prega- ção do pastor, e a voz da filha que proclama em altos brados os bordões da nova crença. Esse homem teve um casamento que se deu contra a vontade da mãe, em vista da origem social da escolhida, e uma separa-
  • 14. matraga, rio de janeiro, v.19, n.31, jul./dez. 2012258 A MEMÓRIA FICCIONALIZADA EM HERANÇAS E LEITE DERRAMADO: RASTROS, APAGAMENTOS E NEGOCIAÇÕES ção, tendo-lhe ficado a filha, que por sua vez foi casada, teve um filho, Eulálio d’Assumpção Palumba, e vários relacionamentos posteriores, a cada um iam minguando os recursos materiais. Há ainda outro e mais outro Eulálio, portanto o narrador vive o suficiente para conhecer o trineto. Esse parágrafo contendo uma vida de 100 anos poderia ser ainda mais reduzido se fosse preenchido pelos feitos do herói do romanesco. Parece que sua única decisão efetiva foi a escolha da esposa: “Eram as exéquias do meu pai, no entanto eu não sabia mais me libertar de Matilde” (BUARQUE, 2009, p. 30), que participava do coral. Esta é a única ação de resistência que pratica, resistência mais significativa porque foi pre- ciso vencer a força de uma mãe autoritária e aferrada às tradições de casta. As outras ações acontecem em decorrência de circunstâncias e por obediência a convenções. Quase tudo a respeito de Matilde fica sob o signo da dúvida, exceto a paixão que o toma. A perda da amada determina sua falta de rumo na vida. Entre as frustradas buscas para encontrá-la e as tentativas de construção de uma origem para apresentar à filha, somadas com a idealização própria do objeto do desejo e os fantasmas entrevistos por um ciumento, tudo se funde e confunde na rememoração. O leitor tem pistas, sobretudo na voz dos outros, eventualmente registradas, para apreender um enredo verossímil. Mas o romance não é “o que de fato aconteceu”, e sim como esse narrador o viveu os fatos, quer dizer, como ele rememora o que viveu. A obsessão por ela faz com que apareça tantas vezes, em relatos que se repetem ao mesmo tempo em que se corrigem, que o leitor menos atento pode se deixar enredar no novelo de lembranças e invenções, não percebendo que a expressão leite der- ramado no título não é a metáfora desgastada a ponto de se transformar em um lugar comum, mas a razão mesmo do desaparecimento dela. Ele sabe disso, mas tanto negou esse desaparecimento, tanto criou outras versões, para uso próprio, para a filha, para a sociedade, que borrou tudo. Apagamentos e negociações se superpuseram aos rastros. Nesse emaranhado de imagens predomina o alaranjado, cor do vestido em que ela se mostrava mais sedutora. Esse jogo é explorado editorialmen- te, disponibilizando-se no lançamento exemplares com a capa externa laranja e a interna branca, e vice-versa. No jogo de ilusões, o leitor participava com a ilusão de um poder de decisão na compra. Para ilustrar ainda a indecisão que lhe é habitual, vale evocar outro episódio, ainda que sem o mesmo alcance de repercussão em seu destino. Trata-se das circunstâncias da morte do pai, em que ele não se
  • 15. matraga, rio de janeiro, v.19 n.31, jul./dez. 2012 259 Marilene Weinhardt sente em situação de escolher uma explicação conclusiva: “...corria que meu pai tinha sido morto a mando de um corno. Isso porque foi metra- lhado ao entrar na sua garçonnière, mas mamãe só lia O Paiz, cujas reportagens atribuíam o crime à oposição.” (BUARQUE, 2009, p. 36). Portanto, a mãe faz uma escolha, encontra uma explicação que a satis- faz, ou pelo menos o filho julga que ela entendeu assim a morte do marido, enquanto ele, inseguro que é, ainda que tenha vários indícios no comportamento e nas palavras de outros, não firma uma decisão. A confusão entre as figuras do neto, bisneto e trineto é de outra ordem, faz parte da verossimilhança narrativa, o próprio narrador a explica. Ainda que exija outra longa transcrição, é mais expressivo dar-lhe a voz, ouvi-lo em conversa com a filha, uma das suas várias ouvintes, ou que ele julga que estão a ouvi-lo: É como se dizia antigamente, pai rico, filho nobre, neto pobre. O neto pobre calhou de estar na sua barriga, Eulálio d’Assumpção Palumba, o garotão por nós criado, que cresceu rebelde com toda a razão. Já maduro entrou nos eixos, mas você deve lembrar quando ele meteu na cabeça de ser comunista. [...] Esse seu filho engravidou outra comunista, que teve um filho na cadeia e na cadeia morreu. Você diz que ele próprio morreu nas mãos da polícia, e com efeito tenho vaga lembrança de tal assunto. Mas lembrança de velho não é confiável, e agora estou seguro de ter visto o garotão Eulálio ainda outro dia, forte toda a vida. Ele até me deu uma caixa de charutos, mas que besteira a minha, o que morreu foi outro Eulálio [...]. O Eulálio magro é que virou comunista, porque já nasceu na cadeia e dizem que teve um desmame precoce. Daí fumava maconha, batia nas professoras, foi expulso de todas as escolas. Mas mesmo semianalfabeto e piromaníaco arranjou trabalho e prosperou, outro dia me deu uma caixa de charutos. Visitou-me em casa com uma namoradinha de barriga de fora e brinco no umbigo. Essa me faria gosto como nora, mas quem pariu na cadeia foi outra. Não me esqueço o dia em que me telefonaram para buscar o bebê no hospital do Exército [...]. Até me emocionei ao ver o pimpolho, praticamente órfão de pai e mãe, porque Amerigo Palumba estava longe e você, presa e incomunicável. Mas espere um pouco, isso não é possível porque você saiu do hospital ao meu lado, com a criança no colo. [...] Você deve estar fazendo confusão com o outro... (BUARQUE, 2009, p. 38-39. Grifos meus). À parte o efeito de verossimilhança alcançado na figuração da memória de velho, que busca a precisão e cada vez mais se confunde, por vezes atribuindo a confusão ao outro, o leitor apreende mais do
  • 16. matraga, rio de janeiro, v.19, n.31, jul./dez. 2012260 A MEMÓRIA FICCIONALIZADA EM HERANÇAS E LEITE DERRAMADO: RASTROS, APAGAMENTOS E NEGOCIAÇÕES que o narrador sabe. Nessa sequência de gerações a família transita da burguesia decadente a militante político, a malandro e, finalmente, a traficante, todos apresentados no vocabulário e nas construções sintáti- cas desse indivíduo bem-nascido que narra. O jogo de espelhos, que por vezes só duplica a imagem, por vezes a refrata em número de imagens e deformação variável, é uma constan- te na construção, mas não há um modelo estabelecido, cada refração comporta uma inovação. O derradeiro movimento desse jogo é a me- mória da morte do avô, que de repente é um ancestral mais distante, para enfim se revelar ao leitor como o fim do próprio narrador. Da Memória Individual à Cena Coletiva Na abertura deste trabalho, declarou-se interesse na ficcionalização da história e intenção de tratar de obras que usam o discurso de memórias como recurso para construir narrativas que po- dem ser lidas como romances históricos. Entretanto, a leitura de Heran- ças e de Leite derramado tomou rumos que podem conduzir antes a uma abordagem de caráter psicológico, ou mesmo psicanalítico. A lei- tura como romances de formação, ou ainda como romances de geração, são também possibilidades em aberto. Sem desprezar o potencial de interpretações que trilhem essas vertentes, não é o que se tem em vista aqui. Os comentários que intentam evidenciar as habilidades contidas nos dois títulos para construir relatos de memória capazes de criar indivíduos e universos que se sustentam nos limites da ficção, preten- dem, antes de mais nada, reafirmar o óbvio: o pressuposto de que, independe do adjetivo com que se qualifique um subgênero literário – social, histórico, de costumes, político, de sondagem psicológica, ou qualquer outro – antes de tudo as ficções devem ser capazes de criar uma realidade, não de refleti-la. Em segundo lugar, mas que é o que releva aqui, decorrem da concepção de romance histórico mobilizada nesta abordagem. Trata-se de apreender como se dá o cruzamento do tempo individual com o tempo transindividual, evocados de início e agora já tendo perdido as aspas, uma vez que estão incorporados nesta reflexão. Pretende-se dar um passo adiante. Antes dessa tentativa de avanço, vale ainda anotar que a trama de ambos os romances decorre da inscrição de indivíduos na instância histórica. Essas personagens não são protótipos, têm suas idiossincrasias, mas é da conjugação destas com o momento histórico que resulta seu percurso. O Walter de Heranças é egótico, ambicioso, capaz de atitudes
  • 17. matraga, rio de janeiro, v.19 n.31, jul./dez. 2012 261 Marilene Weinhardt que não passam pelo mais elástico crivo moral para alcançar seus obje- tivos. Mas é o fato de viver na época da expansão imobiliária em Belo Horizonte e das negociatas que enovelam administração pública e in- vestimentos particulares que lhe permitiu escolher o caminho que o levou a transformar a modesta fortuna de uma pequena casa comercial de cidade provinciana no capital de construtora de alto porte e de investidor. Em outro momento histórico, um indivíduo como ele pode- ria ter usado meios escusos para ser herdeiro universal e acabar seus dias atrás do balcão, como o pai. Aliás, parece que ele não mirava além disso quando decidiu transformar-se em filho único. O Eulálio de Leite derramado é um fraco, incapaz de reagir aos reveses da vida. Mas é por ter nascido de antiga linhagem, no momento em que este tipo de ascen- dência perde significado porque derruiu seu poder econômico, que sua tragicidade avulta. Tivesse aparecido alguém com as mesmas caracte- rísticas em outro estágio daquele grupo social, e seria um excêntrico, talvez um marginal na família, mas não na sociedade, o clã garantiria o escudo. Somando-se aos traços individuais, há um conjunto de circuns- tâncias históricas e sociais para que o primeiro seja um emergente e o segundo um derrotado, um vencido. Portanto, mesmo nos limites de uma concepção bastante precisa de ficção histórica, desde que não se tenha como exigência distanciamento alongado entre o tempo de vida do escritor e o tempo histórico ficcionalizado, é possível lê-los como ficção histórica. Isso posto, é o momento de retomar a questão do trânsito entre memória e historicidade. Ricoeur, que serviu de norte nesta leitura, a certa altura declara que seu livro é “uma apologia da memória como matriz da história”. (RICOEUR, 2007, p. 100) Ora, se as memórias figura- das nestas obras ficcionais são pessoais, a memória das classes que re- presentam é coletiva. Interessa, dado o caráter da literatura como forma de representação, conferir a possibilidade de ler esses discursos memorialistas como possíveis reflexos da memória da coletividade. Não se está propondo leitura na chave alegórica, nem como um simbolismo transparente, as duas personagens ficcionais representando a história do país, mas antes uma leitura que perceba que, na ficção, tudo se passa como se fosse rememoração privada, mas é como rememoração transindividual que pode encontrar eficácia. Usado na ficção, que se constitui como mediação simbólica, o efeito buscado pelo discurso de memória difere do efetivo discurso de memória. Este intenta preservar e comungar o passado, enquanto aquele cria um sentido para uma for-
  • 18. matraga, rio de janeiro, v.19, n.31, jul./dez. 2012262 A MEMÓRIA FICCIONALIZADA EM HERANÇAS E LEITE DERRAMADO: RASTROS, APAGAMENTOS E NEGOCIAÇÕES ma de ver o passado. Ao perceber o sentido criado, o leitor pode parti- lhar ou não a crítica. Ou não perceber o sentido crítico e se contentar com a construção de um passado. O que se intenta é, entre outras leituras defensáveis, considerar a possibilidade de apreender os dois romances como mais algumas, entre as tantas reflexões sobre o país e a sociedade, na sua configuração atual, percebendo-os como efeito imediato do percurso percorrido no século XX, e efeito mediato de tempos históricos que remontam aos ancestrais portugueses dos tempos do descobrimento do Novo Mundo. É justamente visando a apontar a pluralidade como condição inescapável que foram escolhidos esses dois romances em que há pontos de proxi- midade de diversas ordens, nos planos extratextual e intratextual, apon- tados de início, e diversidade de opções e soluções narrativas, detalha- das nos tópicos dedicados a comentar cada romance, buscando uma função de complementaridade para articular este modo de leitura pro- posto. Walter e Eulálio, dois indivíduos que não comportam as qualida- des tradicionais do herói, mas também não cabem no modelo que busca a deseroicização pela via do humor, tão frequente na criação do final do século, revelam-se na sua dimensão humana, mas não alcançam a reconciliação com o próprio passado. O primeiro culpando-se, o segun- do vitimizando-se, nenhum atinge a redenção, o apaziguamento, por- que não fizeram o luto pelos desaparecimentos que os marcaram. “[O] pesar é essa tristeza que não fez o trabalho do luto.” (RICOEUR, 2007, p. 91). É inegável que nenhum vence o pesar, supera a tristeza. A rememoração, sob a vigilância da consciência controlada na escrita por um, desbragada na oralidade do outro, não os redime. A des- peito do valor atribuído à confissão pelo catolicismo, o perdão não é alcançado pela palavra tão somente. Sem ação efetiva não há remissão. O vetor da trajetória social e econômica de cada um percorre sentido in- verso, um é o arrivista, outro é o decadente, nenhum é inocente. Um, cuja ascendência conhecida mal alcança o avô, se recusa a ter filhos e impede o descendente em linha indireta de chegar ao nascimento, recusando a continuidade, ele é o fim definitivo; o outro, que cultiva a árvore genealógica de muitas gerações, chega ao trineto, mas sua descendência acha os caminhos que a sociedade atual oferece aos párias, a igreja salvacionista e o tráfico. Se não é um painel, certamente é uma cena con- temporânea bastante expressiva. De nada serviu o esforço da rememoração? Ela é o primeiro passo de resistência diante da ameaça do esqueci- mento. Se outros passos serão dados para fugir da inércia cabe ao leitor.
  • 19. matraga, rio de janeiro, v.19 n.31, jul./dez. 2012 263 Marilene Weinhardt ABSTRACT In the contemporary literary output that can be read as the heir of the historical novel, such affiliation being admitted or not, textualities from very different extractions combine. In this plurality, the recurrence of the memorialistic stands out. Whereas the presence of memory is now recognized as a condition of the literary, when it comes to the fictionalization of the historical past it takes on special features due to various forms of interchanges: between individual and collective past, between personal and social events, between remembering through experience and remembering through reports. This article seeks to understand traces, deletions and negotiation in the processes of memory fictionalized in the novels Heran- ças (2008), by Silviano Santiago, and Leite derramado (2009), by Chico Buarque. The inference is that the individual memory outlined in the two works can be read as reverberations of Brazilian society’s collective memory of the period fictionalized by the authors. KEY-WORDS: contemporary fiction % historical fiction % Silviano Santiago % Chico Buarque. REFERÊNCIAS: ANDERSON, Perry. Trajetos de uma forma literária. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, n. 77, p. 205-220, mar. 2007. BRACHER, Beatriz. Antonio. São Paulo: Editora 34, 2007. ______. Não falei. São Paulo: Editora 34, 2007. BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. CARNEIRO, Flávio. No país do presente: ficção brasileira no início do século XXI. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. DANTAS, Francisco. Sob o peso das sombras. São Paulo: Planeta do Brasil, 2004. FONSECA, Homero. Roliúde. Rio de Janeiro: Record, 2007. HATOUM, Milton. Cinzas do norte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. ______. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
  • 20. matraga, rio de janeiro, v.19, n.31, jul./dez. 2012264 A MEMÓRIA FICCIONALIZADA EM HERANÇAS E LEITE DERRAMADO: RASTROS, APAGAMENTOS E NEGOCIAÇÕES HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991. HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios: 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. JAMESON, Fredric. O romance histórico ainda é possível? Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, n.77, p.185-203, mar. 2007. LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. LEVY, Tatiana Salem. A chave de casa. Rio de Janeiro: Record, 2007. LUKÁCS. Georges. Le roman historique. Paris: Payot, 1972. MENTON, Seymour. La nueva novela histórica de la América Latina. 1979- 1992. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. MIRANDA, Ana. Yuxin: alma. São Paulo: Companhia das Letras; São Paulo: Edições SESC SP, 2009. RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no sé- culo XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Edi- tora da UNICAMP, 2007. SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janei- ro: Civilização Brasileira, 2009. SANTIAGO, Silviano. Heranças. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. SILVEIRA, Maria José. O fantasma de Buñuel. São Paulo: Francis, 2004. WEINHARDT, Marilene. O romance histórico na ficção brasileira recente. In: CORREA, Regina Helena M.A. (Org.) Nem fruta nem flor. Londrina: Humani- dades, 2006. p. 131-172. ______. Outros palimpsestos: ficção e história – 2001-2010. In: OURIQUE, João Luiz Pereira; CUNHA, João Manuel dos Santos; NEUMANN, Gerson Roberto. Literatura: crítica comparada. Pelotas, Ed. Universitária PREC/UFPEL, 2011a., p. 31-55. ______. Romance histórico: das origens escocesas ao Brasil finissecular. In: Ficção histórica: teoria e crítica. Ponta Grossa-PR: Editora UEPG, 2011b. p. 13-55. Recebido em: 30/05/2012. Aceito em: 31/07/2012.