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SETOR DE
CURSO DE
LICENCIATURA EM
A T A D E D E F E S A D E T C C
Na presente data,
comentário do Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação
Pedro Filipe de Lima
E PENSAMENTOS IMPERF
composta pelo professor
pelo Doutorando Fabrício
foi pela APROVAÇÃO do Candidato
pontos).
Curitiba,
Prof. Paulo Soethe
Orientador
ETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS
URSO DE GRADUAÇÃO EM LETRAS
ICENCIATURA EM LETRAS ALEMÃO
A T A D E D E F E S A D E T C C
Na presente data, por webconference, às 11h15, deu-se a
do Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação
, intitulado A constituição do espaço em VASTAS EMOÇÕES
E PENSAMENTOS IMPERFEITOS, de Rubem Fonseca, mediante Banca de Avaliação
professor Paulo Astor Soethe (DEPAC/CH, orientador)
pelo Doutorando Fabrício César de Aguiar. A decisão da Banca de
foi pela APROVAÇÃO do Candidato, a quem se atribuiu a nota
Curitiba, 16 de dezembro de 2017.
Fabrício César de Aguiar
se a arguição e
do Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação do Estudante
ASTAS EMOÇÕES
, mediante Banca de Avaliação
/CH, orientador) e
César de Aguiar. A decisão da Banca de Avaliação
, a quem se atribuiu a nota 8,0 (oito
Fabrício César de Aguiar
A constituição do espaço em Vastas emoções e pensamentos imperfeitos,
de Rubem Fonseca
Pedro Filipe de Lima
Introdução
Rubem Fonseca (1925-presente) está entre os autores mais relevantes e prolíficos da
literatura em língua portuguesa contemporânea. Ganhador do Prêmio Camões de Literatura em
2003 (LOPEZ, 2003), sua literatura é caracterizada pelo alto nível de elementos controversos, como
a violência e o erotismo em seus mais diferentes níveis, e uma escrita direta e frenética. Autor de 12
romances e 18 antologias de contos – gênero que muitos literatos consideram a sua grande
especialidade na literatura –, Fonseca nunca deixou de produzir: desde a publicação de seu primeiro
livro, a antologia Os prisioneiros (1963), o escritor lança novos trabalhos com certa regularidade
desde então, o que reflete a sua grande paixão pela literatura.
Além da qualidade literária, sua obra estabelece um forte diálogo com a modernidade e pós-
modernidade, fenômenos atuais e que são objeto de interesse de muitos acadêmicos – esses dois
fatores estão entre as justificativas para que o autor esteja, também, entre os autores brasileiros
contemporâneos mais estudados nas universidades brasileiras atualmente (ALMEIDA, 2013).
Apesar de ter nascido em Juiz de Fora, interior de Minas Gerais, Fonseca mora na capital do
Rio de Janeiro desde criança. Tal dado talvez justifique o fato de que a grande maioria de suas
histórias se passam nessa cidade, uma vez que, ao conhecê-la desde a sua infância e ter
acompanhado várias de suas mudanças no âmbito econômico, histórico e político, o autor se sinta
mais seguro em ambientar suas obras nesse espaço, julgando-se capaz de retratá-lo com mais
confiança e segurança – o que não o impede de forma alguma de inserir, em suas tramas, elementos
universais para o ser humano, como o medo, a dor e a insegurança.
Sendo o espaço um aspecto fundamental para a composição de qualquer narrativa e que
sempre tem algo a dizer sobre ela, ainda que muitas vezes nas entrelinhas, esta monografia terá por
intuito discutir a composição e constituição do espaço no romance Vastas emoções e pensamentos
imperfeitos, lançado por Fonseca em 1988. O romance em questão conta a história de um cineasta
frustrado que há tempos não se envolve em nenhuma superprodução e que, após ajudar uma mulher
que estava fugindo de um sujeito misterioso, vê seu nome ser envolvido num esquema de roubos de
diamantes. Com o intuito de fugir de tal situação, ele decide unir o útil ao agradável e aceita um
convite para participar da produção de um filme na Alemanha que será baseado nos contos de Isaac
Babel (1884-1940), escritor ucraniano que fora perseguido durante o governo stalinista na URSS.
Sendo assim, o autor parte do Rio de Janeiro para Berlim, capital alemã, onde também se verá numa
complicada e intricada trama em que o escritor supracitado é o grande pivô.
Num primeiro momento, faremos uma discussão teórica sobre o espaço literário enquanto
objeto de estudo na literatura, bem como sobre suas implicações e possíveis impactos no romance
em questão, para que então possamos discutir a construção do espaço em Vastas emoções1
como um
todo. Também selecionaremos um trecho do romance – o momento em que o protagonista chega na
Alemanha Oriental – para mostrarmos a construção do espaço nesse ponto da obra em específico e,
por fim, discutiremos as considerações finais a que podemos chegar após toda o caminho que aqui
será percorrido.
Apontamentos sobre o espaço na literatura
Discutir e estudar a constituição do espaço na literatura é algo de suma importância para que
possamos entender uma obra, uma vez que analisá-lo é, também, pensar o(s) local(is) em que os
acontecimentos de um determinado romance estão situados e como eles dialogam e influenciam as
ações dos personagens. Dessa forma, é possível dizer que essa é uma das razões pelas quais há uma
ampla tradição em estudos topoanalíticos do romance, sendo que muitos deles foram produzidos na
Universidade Federal do Paraná.
Algo que nos parece pertinente apontar, em primeiro lugar, é o fato de que o espaço no
romance não deve ser visto como um de seus aspectos que tenha a obrigação de ser fiel ao mundo
real no sentido de ser um espelho fidedigno e preciso deste. Tal ideia nos impede de analisar uma
obra enquanto objeto autônomo e que, no decorrer de suas páginas, reinventa e cria o seu próprio
espaço, seja através do processo criativo do autor ou pelas demais interpretações que venham a
surgir de sua obra. Se lembrarmos da analogia criada por Umberto ECO (1994, p. 17) ao dizer que
todo romance é um “jogo” com regras que devem ser decifradas ao longo de sua leitura, pensar
sobre o espaço deve, portanto, fazer com que perguntemo-nos como ele é retratado numa obra, por
que ele é representado dessa forma e quais são as suas implicações nesse romance, em vez de nos
questionarmos pura e simplesmente se ele corresponde ao nosso imaginário de um cenário em
específico ou não.
Nesse sentido, o espaço num romance não pode ser visto única e somente como o seu
cenário, pois ele é um componente tão importante para uma obra quanto os seus demais – tempo,
enredo, narrador e personagens. Esses elementos podem, inclusive, se misturar e atravessar uns aos
1 Nos referiremos ao romance Vastas emoções e pensamentos imperfeitos desse ponto em diante usando apenas as
duas primeiras palavras de seu título.
outros, algo comum na literatura moderna, que constantemente busca experimentar novas
possibilidades. Pensemos, por exemplo, no conto Almoço na serra no domingo de carnaval, de
Rubem Fonseca. Nele, um homem visita a sua namorada na casa que pertencera outrora a ele e sua
família, mas o pai dela, sujeito que se encontra numa classe social mais elevada que a dele, a
comprou. Ao chegar no local, o protagonista se depara com uma festa na beira da piscina e a
descreve:
Parei a certa distância da piscina cercada de mesas cobertas por enormes guarda-sóis
coloridos. As pessoas em trajes de banho deitavam-se em espreguiçadeiras, nadavam,
conversavam, bebiam e comiam salgadinhos servidos por garçons de preto. “Apenas um
grupo de amigos mais chegados”, dissera Sônia. Eram umas cem pessoas. (FONSECA,
2010, p. 119 – aspas no original)
Nesta cena, não é possível dizer que o espaço é descrito apenas pela piscina, guarda-sóis,
espreguiçadeiras e demais utensílios, pois ele também é constituído pelas pessoas que ali estão.
Suas ações – conversar, comer, beber etc – também compõem o espaço, uma vez que elas nos
ajudarão a perceber, mais adiante, como aquela casa, antes tão familiar ao protagonista, tornou-se
um lugar estranho para ele. Desse modo, essas pessoas, que podemos chamar aqui de figurantes do
conto, são, ao mesmo tempo, espaço e personagens. Sendo assim, é fundamental que busquemos
definições mais complexas de espaço do que apenas cenário. As relações entre espaço e
personagens nesse conto2
em específico, por exemplo, nos permitem perceber que
(…) o espaço, no romance, tem sido – ou assim pode entender-se – tudo que,
intencionalmente disposto, enquadra a personagem e que, inventariado, tanto pode ser
absorvido como acrescentado pelo personagem, sucedendo, inclusive, ser constituído por
figuras humanas, então coisificadas ou com a individualidade tendendo para zero (LINS,
1976, p. 72).
Quando pensamos nessa complexa relação entre espaço e personagens, vemos o quanto as
impressões deles sobre esse ponto da trama têm um papel decisivo no funcionamento do romance.
Tal fato fica mais claro em romances escritos em primeira pessoa, em que o autor admite
abertamente a parcialidade contida em sua história, uma vez que somente um ponto de vista é
arbitrariamente posto no texto – no caso, o do personagem escolhido para contar a trama. Em
romances em terceira pessoa, contudo, a importância dessas impressões pode não ser tão clara, a
menos que o narrador utilize recursos mais explícitos, como o discurso indireto livre e o fluxo de
consciência. No entanto, mesmo em romances em que o narrador não demonstre tanta proximidade
com os seus personagens, as impressões deles no que diz respeito ao espaço que os rodeia ainda
existem, uma vez que todo romance é apenas um fragmento de sua própria realidade, não podendo,
2 Sem entrar em maiores discussões sobre esse assunto, esta monografia terá por conceito de conto um romance com
formato mais compacto e breve.
desse modo, abarcar todas as suas nuances. Por conseguinte, a palavra, na sua condição de unidade
compositora de qualquer narrativa, exerce uma influência ímpar na constituição do espaço, sendo
uma peça fundamental para a sua composição:
Nos textos ficcionais, o espaço pressupõe a utilização de recursos verbais que explicitem a
percepção do entorno pelos personagens. E quando se trata de refletir sobre a percepção e
sobre o sentido da percepção do espaço, as obras literárias são uma fonte privilegiada: por
seu caráter imaginário e mimético, elas se mostram capazes de evocar a “contribuição
perpétua da corporeidade do sujeito” sob formas plásticas e sensoriais, mais do que com
argumentos e abstrações. (SOETHE, 1999, p. 97 – [MERLEAU-PONTY, 1996, p. 340])
Sendo assim, é possível afirmar que as próprias palavras contém algum espaço em seus
significados, já que esses significados são vivos e não estáticos, e a literatura, enquanto
manifestação cultural construída através da linguagem, também exerce influência na composição
desses significados.
Ao contrário do que se poderia pensar, as palavras que contém espaços em seus significados
não somente aquelas que, em suas definições, carregam delimitações naturais de território, como
casa ou presídio. Muitas outras palavras também contém tal carga semântica em seu teor:
pensemos, por exemplo, nas já citadas guarda-sóis e espreguiçadeiras. A primeira delas também
contém implicações de espaço, ainda que não o pareça num primeiro momento, já que se trata
apenas de um objeto feito para nos proteger do sol. No entanto, se ele pode abrigar um indivíduo,
ele também pode conter um personagem e, dessa forma, ser espaço. A segunda, outrossim, pode ser
tanto um reles componente de uma paisagem como também um objeto capaz de oferecer abrigo e
conforto, podendo ser, portanto, também um espaço por si só.
Essa flexibilidade existente em torno dos significados das palavras nos mostra como o
espaço de um romance pode adquirir significados únicos ao ser lido por diferentes pessoas, fugindo
assim de interpretações óbvias e indo além daquelas que são compartilhadas por comunidades que
utilizam essas palavras em seus cotidianos. Desse modo, é possível afirmar que toda palavra tem, ao
mesmo tempo, uma faceta individual e outra coletiva:
Pode-se colocar que a palavra existe para o locutor sob três aspectos: como palavra neutra
da língua e que não pertence a ninguém; como palavra do outro pertencente aos outros e
que preenche o eco dos enunciados alheios; e, finalmente, como palavra minha, pois, na
medida em que uso essa palavra numa determinada situação, com uma intenção discursiva,
ela já se impregnou de minha expressividade. Sob estes dois últimos aspectos, a palavra é
expressiva, mas esta expressividade, repetimos, não pertence à própria palavra: nasce no
ponto de contato entre a palavra e a realidade efetiva, nas circunstâncias de uma situação
real, que se atualiza através do enunciado individual. Neste caso, a palavra expressa o juízo
de valor de um homem individual (...) e apresenta-se como um aglomerado de enunciados.
(BAKHTIN, 1997 p. 313)
Se todo romance é constituído através da linguagem e esta apresenta caráter fluído (com
limitações, obviamente) e dialógico, o seu espaço não seria construído de forma diferente. Para
delimitar o(s) espaço(s) de sua narrativa, o autor utiliza de palavras e significados que já estão, em
alguma medida, consolidados na realidade e, ao contar com a ajuda do leitor para a construção de
seu romance, ele espera que seus leitores tenha ciência da existência desses significados. Dessa
forma, é possível que, mesmo ao criar um mundo fictício, o autor empregue conhecimentos pré-
existentes em nosso mundo para então nos situar quanto às características do espaço desse mundo
fictício. Para exemplificar essa questão, vejamos um trecho do romance A Guerra dos tronos, do
estadunidense George Martin, e que se passa num mundo fictício:
No sul, os últimos represeiros tinham sido derrubados ou queimados havia mil anos, exceto
na Ilha das Caras, onde os homens verdes mantinham sua vigilância silenciosa e as coisas
eram diferentes. Aqui cada castelo possuía seu bosque sagrado, e cada bosque sagrado tinha
sua árvore-coração, e cada árvore-coração, seu rosto.
Catelyn encontrou o marido sob o represeiro, sentado numa pedra coberta de musgo. Tinha
Gelo, a espada, pousada sobre as coxas, e limpava-lhe a lâmina naquelas águas, negras
como a noite. (…)
– Sim. - concordou Catelyn. As palavras provocaram-lhe um arrepio, como sempre. As
palavras Stark. Todas as casas nobres tinham as suas palavras. Lemas de família, pedras de
toque, espécies de orações, que alardeavam honra e glória, prometiam lealdade e verdade,
juravam fé e coragem. Todas, menos a dos Stark (MARTIN, 2010, p.22)
A palavra castelo, no trecho acima, nos remete ao mundo medieval, e saber que os
protagonistas da história – a família Stark – moram num castelo já nos diz muito sobre esse mundo.
Contudo, ela não é o único componente que nos mostra características desse espaço irreal: vemos,
nesse trecho, que cada castelo tem um bosque e que esse bosque é frequentado pelos seus donos,
não sendo, portanto, um simples adorno em meio à construção. Vemos, também, que o marido de
Catelyn limpa a sua própria espada, arma que também nos remete à Idade Média europeia por estar
entre as mais utilizadas pelos europeus durante esse período. Pouco depois, durante uma digressão,
Catelyn nos conta que as casas nobres desse mundo têm as suas palavras, isto é, seus lemas, assim
como no período supramencionado em nosso mundo. Não é, portanto, apenas através da palavra
castelo que o leitor descobre que A Guerra dos tronos se passa num mundo fictício inspirado na
Idade Média da Europa, mas por uma série de informações que o autor introduz no texto, compostas
por palavras e termos que têm algum tipo de proximidade semântica.
Nessa perspectiva, não podemos dizer que o espaço numa obra seja estático, mas sim que
ele é construído no desenrolar de seu desenvolvimento. Por conseguinte,
Espaço é sinônimo de simultaneidade, e é por meio desta que se atinge a totalidade da obra.
Em tais abordagens (de Joseph Frank e George Poulet, literatos discutidos anteriormente no
texto a que essa citação pertence originalmente), o desdobramento lugar/espaço se projeta
no próprio entendimento do que é a obra. Por um lado, a obra é constituída de partes
autônomas, concretamente delimitadas, mas que podem estabelecer articulações entre si –
segundo, pois, uma concepção relacional de espaço. Por outro, exige-se a interação entre
todas as partes, algo que lhe conceda unidade, a qual só pode dar em um espaço total,
absoluto e abstrato, que é o espaço da obra. (BRANDÃO, 2013, p. 61-62)
Além de discutir como o espaço é constituído e a sua relação com os personagens, nos
parece relevante, também, apontar como ele dialoga com outros elementos da narrativa, como o
tempo e o enredo.
É de suma importância compreendermos que espaço e tempo são dois elementos de uma
trama que estão intrinsecamente ligados, pois ambos se moldam e se complementam num mesmo
texto. Pensemos, por exemplo, no romance que estamos discutindo nessa monografia, Vastas
emoções: Ao chegar na Alemanha, o narrador-protagonista sabe que o Muro de Berlim compõe a
paisagem local e é utilizado para dividir as Alemanhas ocidental (capitalista) e oriental (socialista).
Algo natural, se lembrarmos que a história se passa nos anos 80. No entanto, qualquer leitor
familiarizado com a história desse país acharia estranho um romance se passar na Alemanha após
19913
e que ainda o tenha enquanto divisor político-ideológico. Sendo assim, a Alemanha do
romance a que nos dedicamos estudar está situada num tempo específico, sendo necessário, dessa
forma, fazer um recorte bastante pontual ao estudar o espaço nela representado. Nesse sentido,
“(…) não há espaço sem tempo, nem tempo sem espaço, devido à temporalidade que marca
o primeiro e a espacialidade que acompanha o segundo: o tempo precisa do espaço para se
concretizar e o espaço precisa do tempo para se tornar ‘realidade’ consistente e viva.”
(GULLÓN, 1980, p. 1 apud PEDRA, 2003, p. 22)
Quanto aos diálogos entre espaço e enredo, tal relação se torna explícita ao termos em vista
que todo romance é, também, uma resposta à sociedade a qual ele foi escrito, sendo portanto um
local habitado por um imaginário coletivo composto de pessoas que têm toda uma história de
relação com esse espaço. Quando temos o discernimento de que todo espaço, seja ele real ou
fictício, carrega consigo uma imensa carga simbólica, percebemo-lo como
(…) categoria reflexiva e de análise, que contempla aspectos constitutivos, materiais e
simbólicos, das dinâmicas sociais e, por conseguinte, das manifestações culturais, de modo
que o espaço deixa de ser mero palco dos acontecimentos. A categoria espaço, que pode ser
vista, por exemplo, sob uma perspectiva identitária, politiza-se, por assim dizer, como
configuradora de manifestações subjetivas individuais e coletivas. (BOECHAT, 2011, p. 38)
Essa questão é bastante exemplificada no conto A caminho de Assunção, também de
Fonseca. Sua história se passa em meio a uma guerra e vemos, nela, um soldado e seus
companheiros desenvolverem e manifestarem um estado de animalidade em meio à barbárie em que
3 Ano da queda do Muro de Berlim.
se encontram, tendo a sua humanidade reduzida e posta em cheque. Vejamos, para que possamos
testificar essa afirmação, um trecho desse conto:
Nas ribanceiras e montes, nas macegas e capoeiras estavam caídos corpos mortos de muitos
milhares de homens e animais. Saía do chão um cheiro de terra molhada e sangue e pólvora
misturado com a fragrância doce da bosta dos cavalos.
(...)
O major José Rias assumiu o comando do regimento. Os oficiais e sargentos se reuniram
em torno de sua cabeça pelada pelo tifo. A pele do rosto de Rias era pálida como cera de
vela de santo e seus olhos, encravados fundo no crânio, brilhavam de febre e loucura. O
espírito de Procópio parecia ter entrado no seu corpo. Vamos até Assunção! Viva a
Cavalaria! (FONSECA, 2010, p. 58)
A guerra, enquanto evento atípico na rotina dos homens e que os leva a vivenciarem
emoções extremas, é um ambiente propício para que alguém diga que o cheiro dos excrementos de
um animal é doce, além de proporcionar delírios, tais como os mencionados no trecho acima. Desse
modo, vemos espaço e enredo como componentes misturados e atravessados, pois, nesse conto, um
não existe sem o outro.
Conforme já dito, essa carga simbólica em torno do espaço também está presente em
romances que se passam em mundo fictícios e o já citado A Guerra dos tronos elucida muito bem
essa afirmação: ao criar um mundo inspirado na Idade Média europeia, o autor deposita no leitor a
expectativa de que haverá semelhanças entre ambos os espaços, não apenas em seus cenários, mas
também no modo de vida e comportamento das pessoas, que também ajudam a constitui-lo.
O espaço enquanto aspecto do romance é, portanto, construído através de referências
discursivas apresentadas ao leitor no decorrer da narrativa e que estão inerentemente entrelaçadas
com os seus demais componentes, uma vez que todos eles se amalgamam no decorrer do texto. Seu
caráter, sendo assim, não pode ser visto como secundário, já que ele pode ser, ao mesmo tempo,
agente influenciador e influenciado pelos demais elementos de uma obra, estando em igual nível de
complexidade com os outros componentes da narrativa.
Vastas emoções: um romance, muitos espaços
Recapitulemos, pois, o teor do enredo de Vastas emoções: o narrador-protagonista – em
momento algum o texto revela o seu nome – perde a sua mulher num acidente de carro e foge o
tempo todo de qualquer lembrança que o faça rememorar a história que vivera com ela, chegando
ao ponto de mudar de residência para fugir de seu passado. Num de seus primeiros dias em seu
novo apartamento, recebe a visita de uma misteriosa mulher chamada Angélica, que lhe pede abrigo
e dorme por um dia em sua casa. Antes de ir embora, ela deixa uma caixa contendo pedras preciosas
e garante que virá buscá-las em alguns dias. Contudo, o narrador4
descobre que ela fora assassinada
e decide então investigar a sua morte. Paralelamente a essa trama, o protagonista, que também é
cineasta, é chamado para filmar na Alemanha um filme com roteiro baseado em contos de Isaac
Babel, escritor soviético que fora assassinado pelo regime Stalinista devido às duras críticas que
fazia a tal governo. As investigações envolvendo a morte de Angélica colocam em risco a vida do
narrador e Liliana – sua namorada e com quem tem uma relação complicada –, fazendo com que ele
deixe de hesitar e viaje para a Alemanha, não somente por estar há muito tempo sem filmar uma
grande produção, mas também para proteger as vidas de ambos. No entanto, ao chegar na Europa,
Plessner, principal patrocinador do filme em questão, pede para que ele vá até a Alemanha Oriental
e busque para ele um livro de Babel que fora roubado da Biblioteca Lenin e permanecera
desconhecido até então – situação que coloca o narrador, novamente, em risco de vida.
Como podemos inferir ao ler o parágrafo acima, Vastas emoções possui uma trama
intrincada – e, por vezes, rocambolesca – e que dá abertura a muitos desdobramentos,
principalmente no que tange à constituição de seu espaço. Para didatizarmos nosso estudo e
delimitarmos nosso escopo de pesquisa, dividiremos os espaços da obra em três grandes grupos,
discutindo assim como cada um deles se apresenta e se desenvolve ao longo da obra. São eles: os
espaços constitutivos, espaços habituais e espaços estrangeiros.
Os espaços constitutivos seriam os espaços que ajudam o leitor a perceber e apreender a
identidade dos personagens. Não se trata aqui de dizer, por exemplo, que o espaço represente
características dos personagens, mas sim que ele se torna uma extensão dessas características e
serve de complemento para que possamos compreendê-las. Pensemos, pois, na identidade dos
personagens de um romance como sendo um quebra-cabeças cujas peças se apresentam para o leitor
ao longo da leitura. Os espaços constitutivos seriam, nesse sentido, algumas das peças desse
quebra-cabeças, mas nunca o quebra-cabeças por si só.
O primeiro exemplo de espaço constitutivo que encontramos em Vastas emoções são os
apartamentos em que o protagonista vive ao longo do romance: o primeiro, com a falecida esposa e
do qual ele se muda já no primeiro capítulo da trama, e o segundo, onde ele conhece Angélica e
vive outros episódios. A sensação de sufocamento que ele vive em sua antiga residência é explícita
no texto, mostrando-nos a relação conflituosa do narrador com ela:
Eu ia mudar de casa naquele dia. Depois do que acontecera, não queria viver ali nem mais
um dia. Ouvi a campainha. Deviam ser os homens da mudança. Se o surto não passasse eu
não poderia sair da cama. Os homens iriam embora sem fazer a mudança. (…) Duas horas
depois, ao engolir, com os mesmos sofrimentos nojentos, a segunda pílula, o ataque
4 Desse ponto em diante do texto, usaremos apenas a terminologia narrador para se referir ao personagem narrador-
protagonista do texto.
passara. Pude então levantar-me e abrir a porta. Os homens estavam sentados no chão do
corredor da área de serviço, esperando. Começamos a mudança (p. 7)
Contudo, sair desse espaço não é suficiente para que o narrador consiga se livrar dos
fantasmas de seu passado, de modo que, ao longo dos primeiros capítulos do livro, ele enfrenta uma
série de crises existenciais decorrentes não somente da morte de sua ex-mulher, mas também do
fato de que ele está há muito tempo sem filmar nenhum grande trabalho. Dessa forma, ele não
consegue seguir adiante com sua vida, o que inevitavelmente se reflete em seu novo apartamento:
ele não desfaz as malas e caixas, deixando a maioria de seus pertences guardados e/ou revirados.
Seu novo apartamento, portanto, é um local desorganizado e caótico, assim como seu estado de
espírito em praticamente todo o romance. O próprio narrador descreve, sem constrangimentos, o
estado em que sua residência se encontra:
Móveis, livros, objetos e roupas ficaram espalhados desordenadamente pelo novo
apartamento. Separei do meio da confusão o cavalo de Roualt, a mala com o diário e as
coisas de Ruth; fui para a cama e deitei-me, com o diário de Ruth sobre o peito. (p.7-8)
Um dos principais sinais que temos de que a bagunça em sua casa não é apenas uma
impressão pessoal do narrador, mas um dado concreto dentro do universo da obra, é o fato de que
outros personagens também a descrevem:
(Angélica) “Você está triste?”, perguntou.
“Estou.” Para aquela mulher monstruosa eu não tinha vergonha de confessar que estava
triste.
Normalmente os homens não ficam tristes. Por que a sua casa está tão bagunçada? Meu
Deus! Parece que um tufão passou aqui!”
Logo que acabou de dizer isso começou a dormir, sem me dar tempo de responder.
Roncava, zumbindo como um besouro (p. 10 – grifo meu)
(Liliana) “O quarto também está assim, essa loucura?” (p. 48)
(Narrador e policial) “É o senhor que mora aqui?”, perguntou um deles. (um dos policiais)
“Sou”
“Gostaríamos que dissesse se está faltando alguma coisa,” disse um homem que devia ser
um policial, olhando avaliativamente a desarrumação da sala. “Ladrões arrombaram seu
apartamento e mataram o porteiro do prédio.”
“Mataram o porteiro?”
“Aqui mesmo. Na porta. Ele ficou caído no corredor.”
Olhei envergonhado a confusão da sala. Mas a polícia pensava que aquilo tinha sido feito
pelos ladrões.
Acompanhado pelo policial vistoriei os vários cômodos do apartamento.
“Acho que não falta nada”, eu disse.
“Tudo indica que eles acabaram de revirar o apartamento quando o porteiro chegou.
Atiraram nele e fugiram. O porteiro do prédio ao lado viu dois homens saírem correndo e
entrarem num automóvel. Não anotou a placa.” (p. 62-63 – grifos meus)
Nas citações anteriores, o policial é o único que o faz se sentir constrangido pela bagunça
em sua casa. Liliana não o constrange devido à relação amorosa existente entre os dois e Angélica
também não o deixa desconfortável, devido à sua aparência e voz infantis.5
Outro aspecto dessas citações que nos parece relevante destacar é a objetividade da
narração, característica intrínseca de Fonseca e que está presente em toda a sua obra. O narrador de
Vastas emoções, por exemplo, só nos revela detalhes aparentemente secundários do espaço, como a
presença de um televisor na sala ou uma lista telefônica na prateleira, quando ele interage com tais
elementos, materializando-os através de seu contato com eles.
Outros espaços constitutivos presente na obra são a casa e templo do irmão do protagonista,
José. Ex-vendedor de carros e agora um pastor evangélico líder da Igreja Evangélica de Jesus
Salvador das Almas, o personagem tem uma relação conturbada com o irmão. Apesar de o narrador
trabalhar constantemente com o irmão em filmes de cunho religioso, é nítido, ao longo da narrativa,
que ele não tem tanto apreço pelo parente. Um dos principais propósitos da presença de José
enquanto personagem na obra é contribuir para a construção da identidade do protagonista, sujeito
multifacetado e que se desdobra em outras personas ao longo da narrativa, que dialogam e
transpassam umas as outras, como muitos outros protagonistas fonsequianos.6
Além disso, há um
momento na trama em que ele empresta dinheiro ao irmão, ajudando-o em um de seus percalços,
sendo uma espécie de deus ex machina num dado momento da obra.
Vejamos, pois, trechos de Vastas emoções em que os espaços supracitados são mencionados:
O enorme prédio que abrigava as novas instalações da Igreja Evangélica de Jesus Salvador
das Almas ficava em Copacabana.
José esperava por mim.
“Que tal?”, perguntou, depois que segui seu tour de propriétaire.
“Por que você escolheu Copacabana? Não tem lugar na rua onde se possa parar o carro.”
José riu. “Primeiro, você devia ter colocado o carro em nossa garagem.”
“Eu vim de táxi.”
“Segundo, os membros da nossa igreja não têm carro.”
“Você tem três”, eu disse.
“Terceiro, o perfil psicossocial do morador de Copacabana é muito parecido com o do
morador da zona norte. Copacabana é uma boa entrada para nós que viemos da periferia. A
Delfim Moreira (avenida no Leblon) pode ficar mais tarde.”
“Ah, você fez um estudo mercadológico.”
“Há algum mal nisso? Meu irmão, meu irmão, você só tem ódio e desespero no coração.
Devia se juntar a nós.” (p. 36 – grifos meus)
O programa (de televisão de José) estava sendo transmitido diretamente da nova igreja de
Copacabana, lotada, apesar de ser um domingo de carnaval. (…) José havia descido do
púlpito e caminhava pelo corredor. (…) Quando acabou o sermão, uma mulher entrevistou
os fiéis que estavam na igreja. Os entrevistados haviam sido cuidadosamente escolhidos. (p.
50-52, grifos meus)
5 p.9-10 de Vastas emoções.
6 Para mais informações sobre esse assunto, ver LIMA, 2017.
A porta foi aberta por um empregado uniformizado. Gislaine desenhava o uniforme de
todos – arrumadeiras, copeiros, jardineiros, motoristas. Ela também fizera a decoração da
casa, depois de frequentar numa escola, durante seis semanas, um curso de decoração de
interiores.
Fui conduzido pelo copeiro à biblioteca. Havia uma diferença muito grande entre a
biblioteca de José e a de Gurian que eu acabara de deixar. A de José fora meticulosamente
arrumada e catalogada por uma bibliotecária que era membro da Igreja de Jesus Salvador
das Almas. Numa das estantes estavam as gavetas de madeira com as fichas do catálogo.
Abri uma das gavetas, mas antes que pudesse ler a primeira ficha Gislaine entrou na
biblioteca, seguida por uma empregada com xícaras de café.
(…) Sentei-me, esperando que ela se retirasse. Mas Gislaine sentou-se numa poltrona ao
meu lado, as pernas cruzadas, as mãos juntas sobre o regaço. (p. 80-81 – grifos meus)
Como podemos ver, José, ao contrário do irmão, é um homem pragmático e direto em seus
posicionamentos e no modo como encara o mundo ao seu redor. Suas atitudes sempre são bem
planejadas e pensadas nos menores detalhes. Tal organização se reflete em seus espaços: a escolha
atenta da igreja em Copacabana, o templo repleto de fiéis e a casa sistematicamente organizada
ajudam o leitor a visualizar a sua personalidade. Para o narrador, um homem cético e que tende a ter
uma visão fatalista do mundo, o irmão não é nada além de um empreendedor bem-sucedido e que,
após trabalhar muito em seu negócio – o protagonista chega a dizer que, após ter sido um vendedor
de sucesso de carros, José se tornara então um vendedor de salvação de almas7
–, vive agora de
colher os seus frutos.
Assim como nos espaços constitutivos do protagonista, os espaços de José são revelados
apenas quando se tornam parte concreta do enredo. Ele não precisaria mencionar que sua igreja tem
uma garagem se essa informação fosse desnecessária no contexto de comunicação aqui
apresentado, assim como o narrador só menciona a poltrona existente na biblioteca quando
Gislaine, sua cunhada, senta nela. Sendo uma história narrada em primeira pessoa, a subjetividade
do narrador também está presente na constituição desses espaços, como era de se esperar. A menção
ao fato de que a igreja era enorme ou que José tem, em sua mansão, arrumadeiras, copeiros,
jardineiros, motoristas – todos parte do mundo luxuoso do pastor – está atrelada a juízos de valor
pessoais que ele tem em relação a José.
Por fim, o último espaço constitutivo que gostaríamos de discutir é a casa do porteiro do
prédio em que o protagonista vive. Após o seu assassinato, o narrador vai até o seu apartamento e
conversa com a sua esposa, agora uma mulher viúva:
Olhei por cima do ombro dela: um pequeno quarto ocupado por três camas cobertas com
colchas ordinárias, um armário velho de roupas; num nicho da parede um pequeno fogão de
duas bocas; sentadas, numa das camas, duas crianças olhavam na minha direção,
assustadas. (p. 63)
7 Cf. Vastas emoções, p. 17.
Devido ao dinamismo do texto, o narrador não nos diz concretamente que o falecido
porteiro era um homem pobre, mas nos mostra essa informação através de seu antigo apartamento,
espaço frequentado e constituído por ele. Dessa forma, ao conhecer o local em que o homem vivia,
o leitor obterá essa informação. Esse tipo de recurso – mostrar um dado através de uma cena, para
que o leitor o infira, em vez de pura e simplesmente dizer esse dado – é um recurso comum da
literatura moderna e bastante usado em Vastas emoções, tendo aqui nesse fragmento um exemplo
emblemático desse artifício literário.
Os três exemplos de espaços constitutivos que aqui apresentamos são, principalmente, as
casas de alguns dos personagens, sendo a igreja de José a única exceção. Tal informação não é de
forma alguma randômica, pois sabemos que há uma alta carga de simbologia existente em torno da
ideia de residência. Dessa forma, a casa, enquanto morada do indivíduo, tem “o valor de
representante do pequeno mundo em que vive o ser humano, o lugar de descanso, união e
comunhão em que o homem pode se recolher quando se encontra desarraigado” (PEDRA, 2003, p.
52)
O segundo grupo de espaços que aqui discutiremos, os espaços habituais, seriam os espaços
em que o protagonista transita livremente por estar familiarizado com eles e se sente seguro o
bastante para fazê-lo sem qualquer tipo de receio. Assim como os espaços constitutivos, eles
também dialogam com a identidade dos personagens, mas no sentido de situá-los e localizá-los num
território específico, bem como revelar o modo como os personagens interagem com esses espaços.
Sendo assim, podemos dizer que um espaço habitual é “(…) um elemento carregado de
significação, é um espaço vivido; essa configuração espacial pode mais do que ser localizada
geograficamente, ela é reveladora de problemáticas humanas que se estabelecem na partilha de um
lugar comum” (BOECHAT, 2003, p. 60).
Assim como a grande maioria das obras de Fonseca, a história de Vastas emoções se inicia
na capital do Rio de Janeiro, onde o autor vive desde criança. Ao longo da trama, não há nenhum
momento em que o narrador mencione ter nascido ou vivido em outra cidade, o que nos faz inferir
que ele vive no local desde sempre – tal dado nos dá a dimensão da naturalidade com que ele lida
com os espaços dessa cidade. Esta é, muito provavelmente, a razão pela qual em momento algum
ele se sente na obrigação de afirmar categoricamente que vive no Rio de Janeiro, e o leitor deve
inferi-lo através de informações apresentadas ao longo do texto pelo protagonista e demais
personagens:
Cheguei ao Copacabana Palace (famoso hotel do Rio de Janeiro) pontualmente às três
horas. (p. 13)
Fomos a um restaurante no Leblon (bairro no Rio de Janeiro). (p. 85)
A relação do narrador com os seus espaços habituais é mais complexa do que aparenta, uma
vez que eles estão presentes em todo o seu cotidiano: para se ter uma ideia, não há uma única cena
em que o personagem compre alimentos num supermercado para então prepará-los em casa. Todas
as suas refeições mencionadas na obra são feitas em bares e restaurantes, algo proporcionado pela
metrópole em que ele se encontra. Também vemos que ele transita por esses espaços livremente e é
capaz de usá-los a seu favor, justamente por conhecê-los bem:
Demorei quase dez horas para andar aqueles dez quilômetros entre um apartamento e outro,
havia muitas ruas de tráfego pesado e um túnel para atravessar. Claro que eu podia pedir
dinheiro a um transeunte “para inteirar a passagem,” eram comuns pedintes desse tipo pelas
ruas da cidade, mas não tive coragem. (p. 80 – aspas no original)
Saí do prédio onde ficava o escritório de Maurício com o envelope de dinheiro preso ao
cinto debaixo da camisa, e a caixa de pedras no bolso. Tive então uma surpresa que me
deixou estarrecido. Do outro lado da rua estava o homem da capa, acompanhado de
Diderot. Tentaram atravessar a rua mas o trânsito estava muito intenso e eles ficaram ali
parados, esperando uma oportunidade. Pus-me a correr pela rua como um alucinado, dobrei
na primeira esquina e me embarafustei por uma loja de artigos femininos, onde fiquei
algum tempo fingindo que procurava uma mercadoria para comprar. (p. 102-103)
Entrei em todas as agências bancárias que encontrei pelo caminho (andando a pé), tentando
alugar um cofre. Nenhuma delas tinha cofres disponíveis. (p. 103)
Mesmo sem conhecer cada ínfimo detalhe do Rio de Janeiro, o protagonista transita
livremente por ele pois tem em sua mente uma noção clara de como fazê-lo, podendo caminhar
quilômetros sem se sentir perdido e entrando em agências bancárias não por conhecer as suas
respectivas dinâmicas, mas por saber que elas compõem o espaço em que ele vive e ter uma boa
noção dos serviços que elas prestam à sociedade.
Além de se locomover por esses espaços sem problemas, é por conhecer os espaços
habituais que o narrador é capaz de perceber as suas adversidades e problematizá-las. A presença de
conflitos sociais é uma das características mais proeminentes da literatura fonsequiana num geral e
está presente também em Vastas emoções. Em primeiro plano, ela se destaca pela própria
problemática do enredo, que envolve episódios como o contrabando de diamantes causador da
morte de Angélica e a ineficiência das autoridades em investigar o caso. Entretanto, ela também
aparece em pormenores da história e conversas secundárias dos personagens, como podemos
constatar nesses dois trechos do romance:
Era tarde da noite, porém ainda havia muita gente no baixo Leblon. Fui até a Pizzaria
Guanabara e comi uma pizza em pé, no balcão da Ataulfo de Paiva, junto com motoristas
de táxi, um par de homossexuais, uma prostituta. Depois atravessei a rua e fui andando para
minha casa. Passei por vários jovens sentados nos degraus da porta de um banco, moças e
rapazes, alguns drogados, esperando o traficante, outros esperando o freguês, esperando
Godot, esperando o filme (eu, certamente), esperando acabar a noite, acabar a vida. Estava
eu no meio dessas elucubrações quando uma menina se levantou dos degraus do banco, e
veio em minha direção. Usava jeans apertados, suas pernas eram grossas e os braços finos.
A pintura da boca e dos olhos, os cabelos escuros, davam ao seu rosto muito branco uma
fragilidade mórbida.
“Oi”, disse ela.
Afastei-me. Veio atrás de mim e segurou-me pelo braço enquanto caminhávamos.
“Eu disse oi e você não me respondeu.”
Parei. Olhei bem para ela. Teria no máximo dezesseis anos.
“O que você quer que eu diga?”
“Diga oi também, pelo menos.”
“Oi.”
“Você não quer me pagar um rango no Guanabara?”
Fiquei calado, pensando.
“Depois vou para sua casa, se você quiser.”
O rosto da moça era decente e digno, ainda que perver􀆟tido, talvez fosse uma estudante
que se prostituía para comprar drogas. Fosse lá o que fosse, prometia alívio e carinho.
“Qual é o teu nome?”
“Dani.”
“Vamos”, eu disse. Atravessamos a rua, de volta para o lado onde estava o Guanabara.
“Posso pedir um filé com fritas?”
“Pode pedir o que você quiser.”
Quando chegou o prato dela, Dani perguntou: “Você não vai comer nada?”.
“Estou sem fome.”
Comeu com voracidade. Entre uma garfada e outra, parava gentilmente e sorria.
Mas􀆟tigava, ora de um lado, ora de outro, algo harmônico, saudável, bovino, perfeito,
invejável.
“Então?”, ela disse.
“Então o quê?”
“E agora?”
“E agora o quê?”
“Agora.”
“Agora o quê?”
“Agora.”
Estávamos em pé na calçada.
“Boa noite”, eu disse.
Segurou-me pelo braço. “Tenho camisinha, não precisa ter medo.”
“Não é isso. Estou cansado.” (p. 18-19 – aspas e parênteses no original)
(Liliana) “Você vai fazer na Alemanha um filme sobre uma guerrinha que aconteceu na
Europa há mais de sessenta anos? Bábel era um escritorzinho fraco, afrancesado. Faz um
filme sobre a guerra que está acontecendo no teu país, agora. Essa nossa guerra hobbesiana
de todos contra todos.”
“Dietrich acha que sou a pessoa certa para dirigir a Cavalaria Vermelha”, eu disse. Mostrei-
lhe o livro com a foto de Bábel (...)” (p. 32 – aspas e grifo no original)
No primeiro episódio acima, a única reação do protagonista frente a uma adolescente que
quer se prostituir em troca de um prato de comida é a apatia. Tal atitude é condizente com o
momento em que ele se encontra no livro, mergulhado numa profunda crise existencial que o deixa
desinteressado em relação aos acontecimentos à sua volta. Na segunda conversa supramencionada,
quando o narrador já se encontra obcecado por Bábel, os problemas de sua cidade e país se tornam
banais frente a sua mais nova paixão literária – essa passa a ser a sua nova razão para não agir frente
aos problemas ao seu redor. Em contraposição a outros protagonistas fonsequianos, como o famoso
detetive Mandrake. O narrador de Vastas emoções não se importa e não se relaciona com os
problemas típicos de seus espaços habituais, tornando-os pormenores em sua história.
Uma última característica dos espaços habituais que nos parece importante apontar é o modo
como Fonseca os descreve: em todas as citações vistas aqui até o presente momento, vimos que as
descrições dos espaços são rápidas e diretas, elementos como mesas e cadeiras só são mencionados
quando se tornam substancialmente importantes para a trama, dando assim mais dinamicidade ao
desenrolar da história – assim como Fonseca o faz nos espaços constitutivos. Descrições mais
demoradas de espaços situados no Rio de Janeiro só acontecem quando o protagonista se encontra
num momento tenso da trama, como quando ele decide visitar um amigo joalheiro para investigar o
valor das pedras preciosas que Angélica deixou em seu apartamento antes de ser assassinada:
As medidas de segurança eram muito rígidas. Embaixo ficava a loja, que ocupava todo o
andar térreo do prédio. Em frente à loja havia vários seguranças à paisana, que olhavam
atentos para quem entrava. Na portaria do prédio recebi um crachá, depois de ter deixado a
carteira de identidade com o porteiro. Um segurança armado subiu comigo no elevador.
Dentro do elevador e em todos os locais por onde transitei até chegar no escritório de
Maurício havia câmeras de televisão registrando caminhada. (p. 24)
Essas descrições mais demoradas também acontecem quando ele chega até um desfile de
carnaval onde ele acredita que encontrará alguém que lhe ajudará em suas investigações sobre a
vida de Angélica:
No salão do desfile havia uma longa mesa onde estavam os jurados que avaliariam as
fantasias, homens e mulheres vestidos a rigor, pessoas do mundo social e artístico, cujos
nomes eram anunciados por um locutor. O desfile seria feito para a televisão. Alguns
espectadores, poucos, postavam-se em frente à mesa dos jurados.
Por uma porta lateral podia-se ir a outros salões, onde os concorrentes – cerca de cinquenta,
pré-selecionados – se maquiavam e vestiam as fantasias.
Não foi difícil encontrar Áureo e Negromontes, no salão maior cheio de colunas,
acompanhado de Mildred e Marijó. (p.58)
Ainda que o narrador esteja adentrando esses espaços pela primeira vez, eles são habituais
pelo vínculo que o protagonista já demonstrar ter com eles mesmo antes de conhecê-los: o prédio
em que o escritório de Maurício se encontra está no Rio de Janeiro, onde o protagonista transita
livremente por ter sempre vivido na cidade. Além disso, mesmo não demonstrando interesse pessoal
em carnavais, por morar num local em que tal festividade é tão conhecida, ele não a trata com
estranhamento – transformando, pois, esses espaços em habituais para si, uma vez que eles estão
onde ele está e são frequentados por pessoas que, como ele, transitam por aquela cidade.
O último grande grupo de espaços que aqui discutiremos, os espaços estrangeiros, são os
espaços que são completamente desconhecidos para o protagonista, tendo, portanto, uma distância
cultural e geográfica considerável dele. Quando eles são apresentados na obra, são espaços novos
não somente para os leitores, mas também para o narrador, razão pela qual ele não se locomove
entre eles com a mesma naturalidade que o faz nos espaços habituais. Em Vastas emoções, esses
espaços estão na Alemanha, país em que o protagonista chega pela primeira vez num dado momento
da trama e pretende produzir, nele, um filme a pedido de Plessner e Dietrich. Devido à presença de
personagens alemães nesses espaços, cremos ser importante salientar que esse estrangeirismo
referente a esses espaços se dá pelo fato de que a história é narrada da perspectiva de um brasileiro
que nunca esteve antes no país – se tal variável não existisse, esse tipo de espaço obviamente não
existiria no romance que aqui discutimos.
O voo do protagonista sai do Rio de Janeiro e aterriza em Frankfurt, onde ele faz uma
conexão aérea para Berlim. Após passar uma noite na capital alemã, pega outro avião para Munique
acompanhado de Veronika Hempel, roteirista que fora contratada para ajudá-lo. Vejamos alguns
trechos do romance para discutir como Fonseca constrói esses trajetos:
Chegando a Frankfurt, peguei a conexão da Panam para Berlim.
Nevava em Berlim. Dietrich esperava por mim no aeroporto. (…)
Da janela do carro aquecido, as ruas cobertas de neve pareciam um filme black and white.
Havia poucas pessoas caminhando. (p 114)
O hotel que Dietrich reservara para mim era simpático. Havia no banheiro pasta e escova de
dentes. Sobre a mesa do quarto, uma garrafa de vinho e uma cesta com frutas. Docinhos na
mesa de cabeceira. (ibidem)
“Tenho que fazer algumas compras”, eu disse depois, na rua.
(Veronika) “Não temos tempo, isso não foi previsto, fazer compras antes do nosso
embarque. Temos apenas o tempo suficiente para ir daqui ao Flughafen Tegel. Onde está a
sua mala?”
“Eu não tenho mala”, disse com um sorriso calculadamente simpático, esperando sua
demonstração de surpresa.
Não houve surpresas. “Faça as compras em Munique”, ela disse, secamente.
No avião ficamos a maior parte do tempo calados.
“O povo de Munique gosta muito de festas. Eles têm até um animado fasching… mas não é
um carnaval tão… entusiasmado quanto o de vocês, brasileiros.”
Senti na sua voz uma ponta de desdém que me deixou aborrecido. Não respondi. (p. 117)
O mesmo tipo de objetividade existente ao retratar os espaços habituais também se encontra
na retratação dos espaços estrangeiros vistos pelo protagonista até o presente momento da narrativa,
mas aqui ela está presente por outra razão: além de ser um local desconhecido do protagonista, ele
está de passagem por eles, não havendo, dessa maneira, necessidade de descrevê-los com uma
maior profundidade. Vemos, também, que o autor usa elementos familiares ao leitor brasileiro para
a construção da Alemanha de Vastas emoções: em vez de se ater às diferenças, as primeiras
descrições do país europeu se dão através das semelhanças. A descrição do quarto de hotel, por
exemplo, é bastante genérica, podendo ser tranquilamente um cômodo semelhante aos já existentes
no Brasil. Ainda que a neve não seja um fenômeno comum no Brasil, um brasileiro médio a
conhece através de filmes ou seriados que tenha assistido, não sendo, portanto, uma ocorrência
meteorológica desconhecida para leitores brasileiros – a comunidade para a qual a obra em questão
foi inicialmente preconcebida.
A menção de Veronika às festas de Munique e sua comparação com o carnaval brasileiro
tem a finalidade de criar um momento típico em que pessoas de culturas diferentes se conhecem:
estabelecer comparações e pontes entre os indivíduos. Conforme podemos constatar através da
leitura do trecho sobredito, seu intento não foi bem-sucedido – lembremos que o protagonista
encara seu comentário como desdenhoso –, mas serve para ajudar o leitor a constituir esse espaço
em seu imaginário, uma vez que ele tem contato com tal semelhança entre ambas as nações.
Esse recurso usado por Fonseca para criar a Alemanha de Vastas emoções – conciliar
semelhanças e diferenças ao longo do texto, representando assim o cosmopolitismo existente nas
cidades brasileiras e europeias – se repete em outros momentos:
Plessner morava numa casa antiga, de dois pavimentos, numa rua sossegada. A porta da
casa – grande, de madeira ornamentada – abria diretamente na calçada da rua. Notei que
havia um portão ao lado, que devia ser o da garagem. (p. 122)
Passei o resto do dia trabalhando. Parei apenas para sair e comer um sanduíche de bratwurst
num quiosque da rua. Na verdade saí mais para ver as pessoas, pois não sentia fome. Em
Berlim – como em qualquer outra cidade que já visitara – eu não olhara, e certamente não
olharia, para uma vitrine, nem mesmo se fosse de videocassetes ou de livros ou de
máquinas fotográficas. A única coisa que eu via eram os homens e as mulheres, mais as
mulheres do que os homens. Eu virava a cabeça quando elas passavam por mim, sem me
incomodar se isso parecia impróprio ou grosseiro. O movimento do corpo das pessoas é
sempre muito indicativo, expressivo, não podia desprezar essa demonstração, essa
revelação do ser. (p. 130)
Novamente, vemos a descrição de uma casa que poderia existir em qualquer grande cidade.
Quanto à segunda citação, é nela que vemos por que o narrador não manifesta estranhamentos ou
deslumbres por estar numa cidade em outro país, pois ele já esteve em outras cidades estrangeiras –
em outros momentos do texto, ele menciona que já visitou Londres e Paris –, o que faz com que ele
trate com razoável naturalidade a sua estadia numa cidade que ele desconhece. Conforme ele
aponta, seu maior interesse está nas pessoas, conhecer seus hábitos e costumes, sendo assim capaz
de estabelecer relações de identidade e alteridade. Esta é, muito provavelmente, a razão pela qual
ele busca descrever os espaços de Berlim com base em referenciais que já lhe são familiares. Nesse
sentido, podemos dizer que Vastas emoções
explora todas as maneiras de um ser humano, apesar de completamente adaptado à vida
urbana, reagir aos constantes estímulos que a cidade lhe proporciona e às limitações
psicológicas que essa condição o obriga (o narrador). Mostrando assim o modus vivendi de
um ser urbano em seu habitat natural. Revela ainda as diferenças que podem haver (sic),
dentro de tantas semelhanças entre as diversas cidades onde o protagonista transitou (…)
(ROSA, 2007, p. 117)
No entanto, há, pelo menos, duas marcas no texto que mostram que, apesar de estar num
nível mais abaixo, esse estranhamento oriundo de se estar num local desconhecido é vivenciado
pelo narrador. A primeira delas, mais óbvia, é a menção a locais com nomes próprios estrangeiros e
numa língua distante da portuguesa, a alemã. Conforme vimos nas citações presentes nesta
monografia, o protagonista passa por Frankfurt e Berlim, pega um voo no aeroporto Flughafen
Tegel – principal aeroporto internacional da capital da Alemanha – e come um sanduíche de
bratwurst – prato típico alemão. O romance abunda de outras referências a nomes próprios alemães,
o que nos mostra que Fonseca realizou uma razoável pesquisa para então criar esse espaço em sua
obra.
A segunda marca é o próprio modo como o protagonista se locomove quando está na
Alemanha. A primeira vez que ele o faz é num carro com Veronika em Munique, sendo ela a
motorista e ele, o passageiro – esse tipo de dinâmica entre os dois se repete ao longo de sua estadia
na Alemanha. Quando ele já está em Berlim e precisará ir até a casa de Dietrich de metrô, recebe
dele instruções de como fazê-lo:
“Você quer jantar comigo amanhã?” Tirou um pequeno bloco do bolso, escreveu e me deu o
papel. “Se for de U-bahn, salte da estação Kleistpark. Kleistpark, não se esqueça.” (p. 132)
Somente após quase uma semana de sua chegada em Berlim é que o protagonista decide
andar sozinho pela cidade:
Saí logo depois dela (Veronika). Cansara-me de ficar dentro daquele quarto de hotel.
Percorri a Kudamn, abrigado em minha capa forrada de pele, à procura de um cinema.
Todos os filmes não alemães que estavam sendo exibidos eram dublados em alemão. (…)
Andei pela cidade. Jantei num restaurante italiano e voltei para o hotel. Vi televisão. (p.
136-137)
Como podemos inferir por esse trecho, o protagonista não deve ter ido tão longe do hotel,
uma vez que percorre todos esses trajetos caminhando e num curto espaço de tempo. Sendo assim,
com base nos trechos aqui vistos, podemos ver que, sempre que o protagonista de Vastas emoções
precisa realizar algum trajeto longo Alemanha, o faz junto com alguém – na maioria das vezes,
Veronika – ou após receber instruções de como fazê-lo.
Este percurso que fizemos até o presente momento delineia toda a construção do espaço no
romance aqui estudado. Como pudemos ver, o diálogo entre espaço e os demais componentes da
obra – em especial personagens e tempo – é uma variável constante no decorrer da trama.
O rapto do romance de Babel: espaços volúveis
Conforme dito anteriormente, nos parece pertinente discutirmos a constituição do espaço
mais detalhadamente em alguma cena específica do romance, para que possamos ver como ele
opera em sintonia com os demais elementos do texto e constatar o que foi dito na seção anterior
usando trechos pré-selecionados. Escolhemos o momento em que o protagonista vai até a Alemanha
Oriental buscar ilegalmente um romance perdido de Babel por se tratar de um dos clímax da trama
e, dessa forma, dar um tratamento diferenciado em relação ao espaço – vejamos por quê.
É possível, pois, ver esse capítulo como uma espécie de jornada, com começo, meio e fim. A
pedido de Plessner, o protagonista irá até o Museu Pergamon e lá encontrará Ivan, ex-diplomata
soviético e que, no momento em que o protagonista se encontra na Alemanha, tornou-se um
perseguido político devido às críticas que fazia ao regime – assim como Babel. Para chegar lá, o
narrador terá que passar pela alfândega da Alemanha oriental e descer na estação Friedrichstrasse,
que servia como uma das divisões entre os dois lados de Berlim. Vejamos, pois, os primeiros
movimentos do protagonista quando ele já se encontra na Alemanha oriental:
Subi, calmamente, uma escada larga de poucos degraus, dominando a sensação de triunfo
que fazia o meu coração bater apressado. Ainda não deixara a estação. Vi um café. Pessoas
andando. Quanto mais depressa eu saísse dali, melhor.
Fazia frio na rua. Caminhei alguns minutos. Quando encontrei um lugar seguro abri a
página do Stadtplan marcada por Plessner.
Seguindo o traçado feito no mapa peguei a Friedrichstrasse e fui até a Under den Linden.
Percorri parte da Under den Linden e logo cheguei ao canal do rio Spree e vi a
Museuminsgel, onde ficava o Pergamon. A ilha dos museus situava-se num triângulo em
que um dos lados era o Spree. Havia vários museus na ilha.
Comprei a entrada. Entrei, talvez excessivamente apressado, procurando um grupo de
visitantes com um guia.
O prédio do Pergamon era o maior da ilha dos Museus. Seus imensos salões estavam
vazios, parecia não haver um só visitante dentro dele, apenas guardas. Depois de caminhar
sem destino percebi que um guarda me encarava de maneira suspicaz. (…) Não havia
nenhum Ivan, nem guia, nem visitantes naquele maldito museu. (…) (p. 180)
Um dos principais aspectos da citação acima que faz com que ela se destaque no romance é
a abundância de nomes próprios alemães. Nem quando o protagonista estava no Rio de Janeiro
vimos uma sequência de nomes de ruas e locais tão próximos numa mesma sequência de
parágrafos. Tal fato tem, pelo menos, duas razões. A primeira delas diz respeito à própria situação
em que o protagonista – um brasileiro que nunca esteve na Alemanha Oriental – se encontra nesse
momento em Vastas emoções: para se orientar numa região em que ele nunca esteve antes e não
pode em hipótese alguma se perder, bem como deve evitar ao máximo pedir informações a
transeuntes, é fundamental que ele se oriente com base nos nomes de ruas e locais, todos eles
indicados por Plessner. A segunda razão está relacionada com o papel do escritor em orientar o
leitor de sua obra: para que seja possível conhecer a Alemanha da época em que o romance se
passa, é de suma importância que todos esses nomes próprios estejam presentes, uma vez que eles
nos ajudam a conhecer melhor o lugar. Ao fazermos uma rápida pesquisa, descobrimos que, de fato,
todos os lugares mencionados nessa citação existem na Alemanha e se encontravam no lado oriental
da cidade, o que nos mostra o cuidado de Fonseca para criar uma narrativa verossímil.
Esse cuidado também se reflete nas descrições realistas de peças que se encontram no
museu:
Juntei-me ao grupo. O guia falava em alemão, francês e inglês. Estávamos num longo e
largo corredor ladeado por paredes em movimento, que pareciam urrar. O guia explicou que
aquela babylonische Prozessionsstrasse, na rua da procissão da Babilônia, fora reconstruída
com fragmentos originais. Era do tempo de Nabucodonosor II, que reinou de 604 a 562 e
destruiu Jerusalém cinco anos antes de morrer. Engraçado o guia falar nisso. As coisas na
vida real tendem a adquirir coincidência. Áureo de Negromonte, o carnavalesco, que de
maneira imprevisível se ligara à minha vida, tivera uma fantasia baseada na corte de
Nabucodonosor. (p. 181)
Ainda que o protagonista se encontre num momento tão tenso da obra, Fonseca encontra um
modo de entrelaçar fatos da vida do narrador, atrelando artefatos que de fato se encontram no
Museu Pergamon aos episódios vividos pelo protagonista no Rio de Janeiro. Além disso, há um
claro aviso implícito para o leitor: a trama do Rio de Janeiro ainda não foi resolvida e o autor não se
esqueceu dela.
Como o protagonista não encontrara Ivan no museu – algo que Plessner lhe dissera que ia
acontecer – o protagonista começa a andar a esmo pela Berlim Oriental, sempre cheio de receio,
pois está com uma quantia alta de dólares escondida em seu corpo e teme que alguém descubra seus
reais objetivos nessa região da cidade. Como ele não sabe quem é Ivan – apenas o diplomata
conhece a sua identidade, Plessner enviou-lhe uma foto do protagonista, para que ele o
reconhecesse –, o narrador espera que ele o encontre para realizar a troca: os dólares pelo romance
de Babel. Esse encontro acontece apenas quando o narrador se encontra longe do museu:
Dirigi-me então ao escritório de turismo e entrei. Vários turistas pediam informações,
apanhavam folhetos. Vi na parede um mapa grande. Postei-me à sua frente.
Um senhor ao meu lado falou qualquer coisa em alemão.
Respondi, em inglês, que não falava alemão.
“Já esteve no Museu Pergamon?”, ele perguntou.
“Sim”, eu disse.
“É a sua primeira visita a Ost Berlim?”
A pronúncia era fortemente acentuada. Mas ele falava inglês com desembaraço.
“Nós não nos vimos no museu?”, perguntei. Ele era o homem alto de cabelos brancos que
me olhara no museu enquanto eu pensava em Hércules. Continuava com a pasta preta.
“Você é muito observador”, ele disse, rindo, “mas achei que havia pessoas suspeitas à nossa
volta. Você notou?”
“A mitologia grega me perturbou.” (p. 183)
Como podemos ver em outros momentos de Vastas emoções, Fonseca transforma o espaço –
a agência de turismo – num mero palco para que as relações entre os personagens e as conjecturas
do protagonista ali se desenrolem. Se a descrição do museu e suas exposições foram importantes
para desenvolver a tensão em torno do possível encontro entre o narrador e Ivan, aqui a sua
importância se encontra diminuída, uma vez que a construção das relações entre os personagens
passa a ser mais importante. Assim como não há nenhuma descrição do aeroporto de Berlim, mas há
uma descrição detalhada do trajeto feito pelo protagonista na Berlim Oriental. Desse modo, vemos
que o controle que o autor exerce sobre a linguagem no romance aqui estudado também se reflete
sobre a constituição do espaço, e nos mostra que, em Vastas emoções,
a linguagem vai se transformando camaleonicamente, a mercê do ambiente, dos
interlocutores, do assunto, ou das necessidades pessoais. Tal fenômeno acarreta múltiplos
diálogos no interior do texto que vai adquirindo, também, uma coloração plurilinguística,
uma vez que não podemos pensar num único estilo, mas na somatória de vários estilos.
(BERNARDI, 1996, p. 60)
Ao contrário do que se poderia esperar, o encontro entre os dois é apenas mais um dos
clímax dentro desse momento da história. Se antes a tensão era concretizada pela própria situação
em que o protagonista se encontrava, agora ela também será fantasiada por ele enquanto se encontra
na Berlim Oriental. Após se conhecerem, o protagonista e Ivan entram num restaurante onde
pretendem realizar a troca – os dólares pelo romance de Babel. O estabelecimento é descrito
brevemente como sendo um local de “aparência decadente, simpática” (p. 184) e, ali, os dois
conversam sobre amenidades, mas o encontro logo se transforma num momento propício para que
Ivan, bêbado após tomar destilados, desabafa sobre a censura que vem sofrendo ao criticar o regime
socialista aplicado na região. O protagonista vê um sujeito telefonar enquanto encara os dois. Ele
rapidamente foge, pois percebe que esse pode ser o estopim de um novo conflito. Quando sai do
local, vê dois homens chegarem e imagina as consequências da imprudência do ex-diplomata:
Imaginem este roteiro: os dois homens saltam do carro e entram lentamente no restaurante,
olhando em torno com duros olhares perspicazes. Sentam-se à mesa de Ivan e se
identificam como agentes da SSD, a polícia política da Alemanha Oriental. Ivan diz que é
um diplomata, servindo na embaixada da União Soviética em Berlim. O que o senhor está
carregando nesta mala? A embriaguez de Ivan desaparece. Ele começa a suar
abundantemente. Papéis da embaixada, diz Ivan, agarrando a pasta de encontro ao peito.
Um dos policiais arranca violentamente a pasta dos braços de Ivan. A pasta é aberta e os
dólares saltam como bonecos de mola. Ivan grita que tem imunidades diplomáticas. O
garçom que nos serviu denuncia: Foi um americano que deu este dinheiro para ele, em troca
de documentos confidenciais. O espião americano carrega os papéis secretos junto ao
corpo, por baixo de uma capa. O espião acabou de sair, não deve estar longe. Um dos
agentes corre em direção à porta da rua. (p. 189)
Como podemos ver, o protagonista usa a sua faceta de cineasta para imaginar o que está
acontecendo dentro do bar, pois pede para que imaginem este roteiro. Há alguns pontos
interessantes nesse filme hipotético criado pelo protagonista e que merecem a nossa atenção. O
primeiro deles, obviamente, diz respeito ao espaço, que é pouco descrito – há uma breve menção às
cadeiras da mesa de Ivan e a mala que ele carrega consigo – e, assim como muitos dos espaços de
Vastas emoções, exerce majoritariamente a função de palco para que a ação se desenrole. O segundo
refere-se ao uso da linguagem: assim como no romance que aqui discutimos, esta curta história
criada pelo protagonista é direta e vertiginosa, a ação se desenvolve em poucas palavras e segue
num fôlego só. Nesse sentido, vemos que o estilo do protagonista se aproxima ao do próprio autor
da obra, criando um possível vínculo entre os dois – e ele não é o único dos protagonistas
fonsequianos que apresentam características do mineiro, pois vemos isso acontecer ao longo de toda
a obra de Fonseca. O terceiro e último ponto desse roteiro que gostaríamos de discutir é o uso dos
verbos, todos no presente, o que faz com que essa breve trama se sobressaia em relação à própria
história de Vastas emoções, em que os verbos estão no tempo passado. Uma possível explicação
seria que esse recurso foi utilizado para salientar o fato de que essa história em específico não é real
e não faz parte do enredo real da obra aqui estudada.
Toda a tensão vivida pelo protagonista nesse momento da história faz com que ele de
alguma forma consiga se orientar sozinho na Berlim Oriental, uma vez que ele nos diz que não
precisou usar o mapa para voltar (p. 190).
A Berlim Oriental seria, se pensarmos nos grupos de espaços já discutidos neste trabalho,
mais um dos espaços estrangeiros, já que o protagonista não os conhece e depende totalmente das
instruções de terceiros para se deslocar nele. Se por um lado não há nenhuma oportunidade para que
ele conheça a cultura do local, visto que está na região só de passagem, por outro, esse espaço se
aproxima dos espaços habituais pela tensão existente em torno do contexto em que ele se apresenta
na obra, já que, assim como ele passou a correr risco de vida no Rio de Janeiro, ele também corre
perigo enquanto está nele. Tal fato nos mostra como as características dos espaços de Vastas
emoções se mesclam e se atravessam, não sendo, portanto, categorias rigidamente fixas.
A jornada mencionada no início desta seção tem seu início com a chegada do protagonista
na Berlim Oriental e, em seu desenvolvimento, apresenta pelo menos dois pontos de virada – a troca
a ser feita e o medo do protagonista de ser descoberto no restaurante –, sendo, dessa forma, um dos
momentos mais tensos da trama. Seu fim se dá quando o protagonista enfim retorna a Berlim
Ocidental com o conto em mãos. O espaço se manifesta, em todas essas etapas, como um elemento
fundamental para que essa tensão se desenvolva, devido ao fato de que o narrador o desconhece.
Considerações finais
Conforme discutimos no começo desta monografia, o espaço não pode ser visto apenas
como cenário ou componente isolado da narrativa, uma vez que ele se entrelaça aos demais
elementos do romance. Em Vastas emoções, esse entrelaçamento se dá de forma mais nítida com os
componentes personagens e tempo: se não considerarmos os espaços constitutivos, que ajudam a
construir no texto as identidades do protagonista, de seu irmão José e até mesmo do porteiro
assassinado, teremos uma visão muito limitada da identidade dos personagens. O mesmo ocorre
com o tempo: para entendermos toda a tensão existente na ida do personagem à Berlim Oriental, é
crucial nos lembrarmos de que a história se passa na Alemanha dos anos 80 e que, na época o país
se encontrava dividido entre Alemanha capitalista e socialista.
Vimos, também, a importância da palavra enquanto unidade compositora do romance na
constituição dos espaços de Vastas emoções: quando o protagonista se encontra na Alemanha, por
exemplo, Fonseca abunda o texto de palavras nesse idioma para situar o leitor nesse espaço e tornar
a sua narrativa mais verossímil.
O trato dado pelo autor ao espaço de sua obra nos mostra o cuidado em seu processo de
criação: sendo um romance dinâmico e que flerta com o gênero policial, seria incoerente despender
tempo com descrições exaustivas e prolixas, o que não o impede de forma alguma de ser uma
categoria tão complexa como as anteriores e se fazer presente na obra em vários aspectos. Os
espaços constitutivos, por exemplo, nos mostraram que o espaço em Vastas emoções opera com
camadas, superficiais e profundas, ao desempenharem a função de auxiliar na construção identitária
de alguns personagens. Os espaços habituais, por sua vez, nos revelam a familiaridade com que o
protagonista lida com o Rio de Janeiro, espaço onde vive e, ao que tudo indica no texto, sempre
viveu.
Dessa forma, muito mais do que uma categoria física, vemos, em Vastas emoções, um claro
exemplo de espaço vivo e que constantemente se modifica a depender do contexto e dos
movimentos dos personagens, sendo muito mais do que um mero agente passivo no desenrolar de
sua trama.
Referências bibliográficas:
ALMEIDA, Marco Rodrigo. Pesquisas apontam Machado de Assis como o autor brasileiro mais
estudado. 03 jul 2013. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/07/1305864-
pesquisam-apontam-machado-de-assis-como-o-autor-brasileiro-mais-estudado.shtml>. Acesso em:
16/08/2017.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Emsantina Galvão G. Pereira.
São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BERNARDI, Rosse-Marye. Uma leitura bakhtiniana de Vastas emoções e pensamentos imperfeitos,
de Rubem Fonseca. In: FARACO, C.A; TEZZA, C; CASTRO, G. (Org.) Diálogos com Bakhtin.
Editora da UFPR, Curitiba, 1996. p. 43-68.
BOECHAT, Fernanda Boarin. Espaço da identidade: a relação entre espaço e personagens em
Cinzas do norte e Órfãos do Eldorado, de Miltom Hatoum. 2011. Dissertação (Mestrado em
Estudos Literários) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, 2011.
BRANDÃO, Luis Alberto. Teorias do espaço literário. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte,
Fapemig, 2013.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.
FONSECA, Rubem. O Cobrador. Rio de Janeiro: Agir, 2010.
_____. Vastas emoções e pensamentos imperfeitos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
LIMA, Pedro Felipe de. A representação do sujeito pós-moderno em dois contos de Rubem
Fonseca, Revista Espaço Acadêmico, Maringá, n. 196, p. 107-118, 2017.
LINS, Osman. Espaço romanesco – conceito e possibilidades. In: _____. Lima Barreto e o espaço
romanesco. São Paulo: Ática, 1976.
LOPEZ, Nayse. Prémio Camões para Rubem Fonseca. 14 mai. 2003. Disponível em:
<https://www.publico.pt/culturaipsilon/jornal/premio-camoes-para-rubem-fonseca-201190>. Acesso
em: 16/08/2017.
MARTIN, George R. R. A Guerra dos tronos. São Paulo: Leya, 2010.
PEDRA, Nylcéa Thereza de Siqueira. Espacialidade e personagem: A reconstrução do ethos em
Cipriano Salcedo. 2003. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Setor de Ciências
Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2003.
ROSA, Seleste Michels da. O sentimento urbano em Vastas emoções e pensamentos imperfeitos.
Nau Literária, Porto Alegre, vol. 3, n. 1, p. 105-118, 2007.
SOETHE, Paulo Astor. Ethos, corpo e entorno: sentido ético da conformação do espaço em Der
Zauberberg e Grande sertão: veredas. 1999. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.

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A constituição do espaço em Vastas emoções e pensamentos imperfeitos

  • 1. SETOR DE CURSO DE LICENCIATURA EM A T A D E D E F E S A D E T C C Na presente data, comentário do Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação Pedro Filipe de Lima E PENSAMENTOS IMPERF composta pelo professor pelo Doutorando Fabrício foi pela APROVAÇÃO do Candidato pontos). Curitiba, Prof. Paulo Soethe Orientador ETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS URSO DE GRADUAÇÃO EM LETRAS ICENCIATURA EM LETRAS ALEMÃO A T A D E D E F E S A D E T C C Na presente data, por webconference, às 11h15, deu-se a do Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação , intitulado A constituição do espaço em VASTAS EMOÇÕES E PENSAMENTOS IMPERFEITOS, de Rubem Fonseca, mediante Banca de Avaliação professor Paulo Astor Soethe (DEPAC/CH, orientador) pelo Doutorando Fabrício César de Aguiar. A decisão da Banca de foi pela APROVAÇÃO do Candidato, a quem se atribuiu a nota Curitiba, 16 de dezembro de 2017. Fabrício César de Aguiar se a arguição e do Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação do Estudante ASTAS EMOÇÕES , mediante Banca de Avaliação /CH, orientador) e César de Aguiar. A decisão da Banca de Avaliação , a quem se atribuiu a nota 8,0 (oito Fabrício César de Aguiar
  • 2. A constituição do espaço em Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, de Rubem Fonseca Pedro Filipe de Lima Introdução Rubem Fonseca (1925-presente) está entre os autores mais relevantes e prolíficos da literatura em língua portuguesa contemporânea. Ganhador do Prêmio Camões de Literatura em 2003 (LOPEZ, 2003), sua literatura é caracterizada pelo alto nível de elementos controversos, como a violência e o erotismo em seus mais diferentes níveis, e uma escrita direta e frenética. Autor de 12 romances e 18 antologias de contos – gênero que muitos literatos consideram a sua grande especialidade na literatura –, Fonseca nunca deixou de produzir: desde a publicação de seu primeiro livro, a antologia Os prisioneiros (1963), o escritor lança novos trabalhos com certa regularidade desde então, o que reflete a sua grande paixão pela literatura. Além da qualidade literária, sua obra estabelece um forte diálogo com a modernidade e pós- modernidade, fenômenos atuais e que são objeto de interesse de muitos acadêmicos – esses dois fatores estão entre as justificativas para que o autor esteja, também, entre os autores brasileiros contemporâneos mais estudados nas universidades brasileiras atualmente (ALMEIDA, 2013). Apesar de ter nascido em Juiz de Fora, interior de Minas Gerais, Fonseca mora na capital do Rio de Janeiro desde criança. Tal dado talvez justifique o fato de que a grande maioria de suas histórias se passam nessa cidade, uma vez que, ao conhecê-la desde a sua infância e ter acompanhado várias de suas mudanças no âmbito econômico, histórico e político, o autor se sinta mais seguro em ambientar suas obras nesse espaço, julgando-se capaz de retratá-lo com mais confiança e segurança – o que não o impede de forma alguma de inserir, em suas tramas, elementos universais para o ser humano, como o medo, a dor e a insegurança. Sendo o espaço um aspecto fundamental para a composição de qualquer narrativa e que sempre tem algo a dizer sobre ela, ainda que muitas vezes nas entrelinhas, esta monografia terá por intuito discutir a composição e constituição do espaço no romance Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, lançado por Fonseca em 1988. O romance em questão conta a história de um cineasta frustrado que há tempos não se envolve em nenhuma superprodução e que, após ajudar uma mulher que estava fugindo de um sujeito misterioso, vê seu nome ser envolvido num esquema de roubos de diamantes. Com o intuito de fugir de tal situação, ele decide unir o útil ao agradável e aceita um convite para participar da produção de um filme na Alemanha que será baseado nos contos de Isaac Babel (1884-1940), escritor ucraniano que fora perseguido durante o governo stalinista na URSS.
  • 3. Sendo assim, o autor parte do Rio de Janeiro para Berlim, capital alemã, onde também se verá numa complicada e intricada trama em que o escritor supracitado é o grande pivô. Num primeiro momento, faremos uma discussão teórica sobre o espaço literário enquanto objeto de estudo na literatura, bem como sobre suas implicações e possíveis impactos no romance em questão, para que então possamos discutir a construção do espaço em Vastas emoções1 como um todo. Também selecionaremos um trecho do romance – o momento em que o protagonista chega na Alemanha Oriental – para mostrarmos a construção do espaço nesse ponto da obra em específico e, por fim, discutiremos as considerações finais a que podemos chegar após toda o caminho que aqui será percorrido. Apontamentos sobre o espaço na literatura Discutir e estudar a constituição do espaço na literatura é algo de suma importância para que possamos entender uma obra, uma vez que analisá-lo é, também, pensar o(s) local(is) em que os acontecimentos de um determinado romance estão situados e como eles dialogam e influenciam as ações dos personagens. Dessa forma, é possível dizer que essa é uma das razões pelas quais há uma ampla tradição em estudos topoanalíticos do romance, sendo que muitos deles foram produzidos na Universidade Federal do Paraná. Algo que nos parece pertinente apontar, em primeiro lugar, é o fato de que o espaço no romance não deve ser visto como um de seus aspectos que tenha a obrigação de ser fiel ao mundo real no sentido de ser um espelho fidedigno e preciso deste. Tal ideia nos impede de analisar uma obra enquanto objeto autônomo e que, no decorrer de suas páginas, reinventa e cria o seu próprio espaço, seja através do processo criativo do autor ou pelas demais interpretações que venham a surgir de sua obra. Se lembrarmos da analogia criada por Umberto ECO (1994, p. 17) ao dizer que todo romance é um “jogo” com regras que devem ser decifradas ao longo de sua leitura, pensar sobre o espaço deve, portanto, fazer com que perguntemo-nos como ele é retratado numa obra, por que ele é representado dessa forma e quais são as suas implicações nesse romance, em vez de nos questionarmos pura e simplesmente se ele corresponde ao nosso imaginário de um cenário em específico ou não. Nesse sentido, o espaço num romance não pode ser visto única e somente como o seu cenário, pois ele é um componente tão importante para uma obra quanto os seus demais – tempo, enredo, narrador e personagens. Esses elementos podem, inclusive, se misturar e atravessar uns aos 1 Nos referiremos ao romance Vastas emoções e pensamentos imperfeitos desse ponto em diante usando apenas as duas primeiras palavras de seu título.
  • 4. outros, algo comum na literatura moderna, que constantemente busca experimentar novas possibilidades. Pensemos, por exemplo, no conto Almoço na serra no domingo de carnaval, de Rubem Fonseca. Nele, um homem visita a sua namorada na casa que pertencera outrora a ele e sua família, mas o pai dela, sujeito que se encontra numa classe social mais elevada que a dele, a comprou. Ao chegar no local, o protagonista se depara com uma festa na beira da piscina e a descreve: Parei a certa distância da piscina cercada de mesas cobertas por enormes guarda-sóis coloridos. As pessoas em trajes de banho deitavam-se em espreguiçadeiras, nadavam, conversavam, bebiam e comiam salgadinhos servidos por garçons de preto. “Apenas um grupo de amigos mais chegados”, dissera Sônia. Eram umas cem pessoas. (FONSECA, 2010, p. 119 – aspas no original) Nesta cena, não é possível dizer que o espaço é descrito apenas pela piscina, guarda-sóis, espreguiçadeiras e demais utensílios, pois ele também é constituído pelas pessoas que ali estão. Suas ações – conversar, comer, beber etc – também compõem o espaço, uma vez que elas nos ajudarão a perceber, mais adiante, como aquela casa, antes tão familiar ao protagonista, tornou-se um lugar estranho para ele. Desse modo, essas pessoas, que podemos chamar aqui de figurantes do conto, são, ao mesmo tempo, espaço e personagens. Sendo assim, é fundamental que busquemos definições mais complexas de espaço do que apenas cenário. As relações entre espaço e personagens nesse conto2 em específico, por exemplo, nos permitem perceber que (…) o espaço, no romance, tem sido – ou assim pode entender-se – tudo que, intencionalmente disposto, enquadra a personagem e que, inventariado, tanto pode ser absorvido como acrescentado pelo personagem, sucedendo, inclusive, ser constituído por figuras humanas, então coisificadas ou com a individualidade tendendo para zero (LINS, 1976, p. 72). Quando pensamos nessa complexa relação entre espaço e personagens, vemos o quanto as impressões deles sobre esse ponto da trama têm um papel decisivo no funcionamento do romance. Tal fato fica mais claro em romances escritos em primeira pessoa, em que o autor admite abertamente a parcialidade contida em sua história, uma vez que somente um ponto de vista é arbitrariamente posto no texto – no caso, o do personagem escolhido para contar a trama. Em romances em terceira pessoa, contudo, a importância dessas impressões pode não ser tão clara, a menos que o narrador utilize recursos mais explícitos, como o discurso indireto livre e o fluxo de consciência. No entanto, mesmo em romances em que o narrador não demonstre tanta proximidade com os seus personagens, as impressões deles no que diz respeito ao espaço que os rodeia ainda existem, uma vez que todo romance é apenas um fragmento de sua própria realidade, não podendo, 2 Sem entrar em maiores discussões sobre esse assunto, esta monografia terá por conceito de conto um romance com formato mais compacto e breve.
  • 5. desse modo, abarcar todas as suas nuances. Por conseguinte, a palavra, na sua condição de unidade compositora de qualquer narrativa, exerce uma influência ímpar na constituição do espaço, sendo uma peça fundamental para a sua composição: Nos textos ficcionais, o espaço pressupõe a utilização de recursos verbais que explicitem a percepção do entorno pelos personagens. E quando se trata de refletir sobre a percepção e sobre o sentido da percepção do espaço, as obras literárias são uma fonte privilegiada: por seu caráter imaginário e mimético, elas se mostram capazes de evocar a “contribuição perpétua da corporeidade do sujeito” sob formas plásticas e sensoriais, mais do que com argumentos e abstrações. (SOETHE, 1999, p. 97 – [MERLEAU-PONTY, 1996, p. 340]) Sendo assim, é possível afirmar que as próprias palavras contém algum espaço em seus significados, já que esses significados são vivos e não estáticos, e a literatura, enquanto manifestação cultural construída através da linguagem, também exerce influência na composição desses significados. Ao contrário do que se poderia pensar, as palavras que contém espaços em seus significados não somente aquelas que, em suas definições, carregam delimitações naturais de território, como casa ou presídio. Muitas outras palavras também contém tal carga semântica em seu teor: pensemos, por exemplo, nas já citadas guarda-sóis e espreguiçadeiras. A primeira delas também contém implicações de espaço, ainda que não o pareça num primeiro momento, já que se trata apenas de um objeto feito para nos proteger do sol. No entanto, se ele pode abrigar um indivíduo, ele também pode conter um personagem e, dessa forma, ser espaço. A segunda, outrossim, pode ser tanto um reles componente de uma paisagem como também um objeto capaz de oferecer abrigo e conforto, podendo ser, portanto, também um espaço por si só. Essa flexibilidade existente em torno dos significados das palavras nos mostra como o espaço de um romance pode adquirir significados únicos ao ser lido por diferentes pessoas, fugindo assim de interpretações óbvias e indo além daquelas que são compartilhadas por comunidades que utilizam essas palavras em seus cotidianos. Desse modo, é possível afirmar que toda palavra tem, ao mesmo tempo, uma faceta individual e outra coletiva: Pode-se colocar que a palavra existe para o locutor sob três aspectos: como palavra neutra da língua e que não pertence a ninguém; como palavra do outro pertencente aos outros e que preenche o eco dos enunciados alheios; e, finalmente, como palavra minha, pois, na medida em que uso essa palavra numa determinada situação, com uma intenção discursiva, ela já se impregnou de minha expressividade. Sob estes dois últimos aspectos, a palavra é expressiva, mas esta expressividade, repetimos, não pertence à própria palavra: nasce no ponto de contato entre a palavra e a realidade efetiva, nas circunstâncias de uma situação real, que se atualiza através do enunciado individual. Neste caso, a palavra expressa o juízo de valor de um homem individual (...) e apresenta-se como um aglomerado de enunciados. (BAKHTIN, 1997 p. 313)
  • 6. Se todo romance é constituído através da linguagem e esta apresenta caráter fluído (com limitações, obviamente) e dialógico, o seu espaço não seria construído de forma diferente. Para delimitar o(s) espaço(s) de sua narrativa, o autor utiliza de palavras e significados que já estão, em alguma medida, consolidados na realidade e, ao contar com a ajuda do leitor para a construção de seu romance, ele espera que seus leitores tenha ciência da existência desses significados. Dessa forma, é possível que, mesmo ao criar um mundo fictício, o autor empregue conhecimentos pré- existentes em nosso mundo para então nos situar quanto às características do espaço desse mundo fictício. Para exemplificar essa questão, vejamos um trecho do romance A Guerra dos tronos, do estadunidense George Martin, e que se passa num mundo fictício: No sul, os últimos represeiros tinham sido derrubados ou queimados havia mil anos, exceto na Ilha das Caras, onde os homens verdes mantinham sua vigilância silenciosa e as coisas eram diferentes. Aqui cada castelo possuía seu bosque sagrado, e cada bosque sagrado tinha sua árvore-coração, e cada árvore-coração, seu rosto. Catelyn encontrou o marido sob o represeiro, sentado numa pedra coberta de musgo. Tinha Gelo, a espada, pousada sobre as coxas, e limpava-lhe a lâmina naquelas águas, negras como a noite. (…) – Sim. - concordou Catelyn. As palavras provocaram-lhe um arrepio, como sempre. As palavras Stark. Todas as casas nobres tinham as suas palavras. Lemas de família, pedras de toque, espécies de orações, que alardeavam honra e glória, prometiam lealdade e verdade, juravam fé e coragem. Todas, menos a dos Stark (MARTIN, 2010, p.22) A palavra castelo, no trecho acima, nos remete ao mundo medieval, e saber que os protagonistas da história – a família Stark – moram num castelo já nos diz muito sobre esse mundo. Contudo, ela não é o único componente que nos mostra características desse espaço irreal: vemos, nesse trecho, que cada castelo tem um bosque e que esse bosque é frequentado pelos seus donos, não sendo, portanto, um simples adorno em meio à construção. Vemos, também, que o marido de Catelyn limpa a sua própria espada, arma que também nos remete à Idade Média europeia por estar entre as mais utilizadas pelos europeus durante esse período. Pouco depois, durante uma digressão, Catelyn nos conta que as casas nobres desse mundo têm as suas palavras, isto é, seus lemas, assim como no período supramencionado em nosso mundo. Não é, portanto, apenas através da palavra castelo que o leitor descobre que A Guerra dos tronos se passa num mundo fictício inspirado na Idade Média da Europa, mas por uma série de informações que o autor introduz no texto, compostas por palavras e termos que têm algum tipo de proximidade semântica. Nessa perspectiva, não podemos dizer que o espaço numa obra seja estático, mas sim que ele é construído no desenrolar de seu desenvolvimento. Por conseguinte, Espaço é sinônimo de simultaneidade, e é por meio desta que se atinge a totalidade da obra. Em tais abordagens (de Joseph Frank e George Poulet, literatos discutidos anteriormente no texto a que essa citação pertence originalmente), o desdobramento lugar/espaço se projeta
  • 7. no próprio entendimento do que é a obra. Por um lado, a obra é constituída de partes autônomas, concretamente delimitadas, mas que podem estabelecer articulações entre si – segundo, pois, uma concepção relacional de espaço. Por outro, exige-se a interação entre todas as partes, algo que lhe conceda unidade, a qual só pode dar em um espaço total, absoluto e abstrato, que é o espaço da obra. (BRANDÃO, 2013, p. 61-62) Além de discutir como o espaço é constituído e a sua relação com os personagens, nos parece relevante, também, apontar como ele dialoga com outros elementos da narrativa, como o tempo e o enredo. É de suma importância compreendermos que espaço e tempo são dois elementos de uma trama que estão intrinsecamente ligados, pois ambos se moldam e se complementam num mesmo texto. Pensemos, por exemplo, no romance que estamos discutindo nessa monografia, Vastas emoções: Ao chegar na Alemanha, o narrador-protagonista sabe que o Muro de Berlim compõe a paisagem local e é utilizado para dividir as Alemanhas ocidental (capitalista) e oriental (socialista). Algo natural, se lembrarmos que a história se passa nos anos 80. No entanto, qualquer leitor familiarizado com a história desse país acharia estranho um romance se passar na Alemanha após 19913 e que ainda o tenha enquanto divisor político-ideológico. Sendo assim, a Alemanha do romance a que nos dedicamos estudar está situada num tempo específico, sendo necessário, dessa forma, fazer um recorte bastante pontual ao estudar o espaço nela representado. Nesse sentido, “(…) não há espaço sem tempo, nem tempo sem espaço, devido à temporalidade que marca o primeiro e a espacialidade que acompanha o segundo: o tempo precisa do espaço para se concretizar e o espaço precisa do tempo para se tornar ‘realidade’ consistente e viva.” (GULLÓN, 1980, p. 1 apud PEDRA, 2003, p. 22) Quanto aos diálogos entre espaço e enredo, tal relação se torna explícita ao termos em vista que todo romance é, também, uma resposta à sociedade a qual ele foi escrito, sendo portanto um local habitado por um imaginário coletivo composto de pessoas que têm toda uma história de relação com esse espaço. Quando temos o discernimento de que todo espaço, seja ele real ou fictício, carrega consigo uma imensa carga simbólica, percebemo-lo como (…) categoria reflexiva e de análise, que contempla aspectos constitutivos, materiais e simbólicos, das dinâmicas sociais e, por conseguinte, das manifestações culturais, de modo que o espaço deixa de ser mero palco dos acontecimentos. A categoria espaço, que pode ser vista, por exemplo, sob uma perspectiva identitária, politiza-se, por assim dizer, como configuradora de manifestações subjetivas individuais e coletivas. (BOECHAT, 2011, p. 38) Essa questão é bastante exemplificada no conto A caminho de Assunção, também de Fonseca. Sua história se passa em meio a uma guerra e vemos, nela, um soldado e seus companheiros desenvolverem e manifestarem um estado de animalidade em meio à barbárie em que 3 Ano da queda do Muro de Berlim.
  • 8. se encontram, tendo a sua humanidade reduzida e posta em cheque. Vejamos, para que possamos testificar essa afirmação, um trecho desse conto: Nas ribanceiras e montes, nas macegas e capoeiras estavam caídos corpos mortos de muitos milhares de homens e animais. Saía do chão um cheiro de terra molhada e sangue e pólvora misturado com a fragrância doce da bosta dos cavalos. (...) O major José Rias assumiu o comando do regimento. Os oficiais e sargentos se reuniram em torno de sua cabeça pelada pelo tifo. A pele do rosto de Rias era pálida como cera de vela de santo e seus olhos, encravados fundo no crânio, brilhavam de febre e loucura. O espírito de Procópio parecia ter entrado no seu corpo. Vamos até Assunção! Viva a Cavalaria! (FONSECA, 2010, p. 58) A guerra, enquanto evento atípico na rotina dos homens e que os leva a vivenciarem emoções extremas, é um ambiente propício para que alguém diga que o cheiro dos excrementos de um animal é doce, além de proporcionar delírios, tais como os mencionados no trecho acima. Desse modo, vemos espaço e enredo como componentes misturados e atravessados, pois, nesse conto, um não existe sem o outro. Conforme já dito, essa carga simbólica em torno do espaço também está presente em romances que se passam em mundo fictícios e o já citado A Guerra dos tronos elucida muito bem essa afirmação: ao criar um mundo inspirado na Idade Média europeia, o autor deposita no leitor a expectativa de que haverá semelhanças entre ambos os espaços, não apenas em seus cenários, mas também no modo de vida e comportamento das pessoas, que também ajudam a constitui-lo. O espaço enquanto aspecto do romance é, portanto, construído através de referências discursivas apresentadas ao leitor no decorrer da narrativa e que estão inerentemente entrelaçadas com os seus demais componentes, uma vez que todos eles se amalgamam no decorrer do texto. Seu caráter, sendo assim, não pode ser visto como secundário, já que ele pode ser, ao mesmo tempo, agente influenciador e influenciado pelos demais elementos de uma obra, estando em igual nível de complexidade com os outros componentes da narrativa. Vastas emoções: um romance, muitos espaços Recapitulemos, pois, o teor do enredo de Vastas emoções: o narrador-protagonista – em momento algum o texto revela o seu nome – perde a sua mulher num acidente de carro e foge o tempo todo de qualquer lembrança que o faça rememorar a história que vivera com ela, chegando ao ponto de mudar de residência para fugir de seu passado. Num de seus primeiros dias em seu novo apartamento, recebe a visita de uma misteriosa mulher chamada Angélica, que lhe pede abrigo e dorme por um dia em sua casa. Antes de ir embora, ela deixa uma caixa contendo pedras preciosas
  • 9. e garante que virá buscá-las em alguns dias. Contudo, o narrador4 descobre que ela fora assassinada e decide então investigar a sua morte. Paralelamente a essa trama, o protagonista, que também é cineasta, é chamado para filmar na Alemanha um filme com roteiro baseado em contos de Isaac Babel, escritor soviético que fora assassinado pelo regime Stalinista devido às duras críticas que fazia a tal governo. As investigações envolvendo a morte de Angélica colocam em risco a vida do narrador e Liliana – sua namorada e com quem tem uma relação complicada –, fazendo com que ele deixe de hesitar e viaje para a Alemanha, não somente por estar há muito tempo sem filmar uma grande produção, mas também para proteger as vidas de ambos. No entanto, ao chegar na Europa, Plessner, principal patrocinador do filme em questão, pede para que ele vá até a Alemanha Oriental e busque para ele um livro de Babel que fora roubado da Biblioteca Lenin e permanecera desconhecido até então – situação que coloca o narrador, novamente, em risco de vida. Como podemos inferir ao ler o parágrafo acima, Vastas emoções possui uma trama intrincada – e, por vezes, rocambolesca – e que dá abertura a muitos desdobramentos, principalmente no que tange à constituição de seu espaço. Para didatizarmos nosso estudo e delimitarmos nosso escopo de pesquisa, dividiremos os espaços da obra em três grandes grupos, discutindo assim como cada um deles se apresenta e se desenvolve ao longo da obra. São eles: os espaços constitutivos, espaços habituais e espaços estrangeiros. Os espaços constitutivos seriam os espaços que ajudam o leitor a perceber e apreender a identidade dos personagens. Não se trata aqui de dizer, por exemplo, que o espaço represente características dos personagens, mas sim que ele se torna uma extensão dessas características e serve de complemento para que possamos compreendê-las. Pensemos, pois, na identidade dos personagens de um romance como sendo um quebra-cabeças cujas peças se apresentam para o leitor ao longo da leitura. Os espaços constitutivos seriam, nesse sentido, algumas das peças desse quebra-cabeças, mas nunca o quebra-cabeças por si só. O primeiro exemplo de espaço constitutivo que encontramos em Vastas emoções são os apartamentos em que o protagonista vive ao longo do romance: o primeiro, com a falecida esposa e do qual ele se muda já no primeiro capítulo da trama, e o segundo, onde ele conhece Angélica e vive outros episódios. A sensação de sufocamento que ele vive em sua antiga residência é explícita no texto, mostrando-nos a relação conflituosa do narrador com ela: Eu ia mudar de casa naquele dia. Depois do que acontecera, não queria viver ali nem mais um dia. Ouvi a campainha. Deviam ser os homens da mudança. Se o surto não passasse eu não poderia sair da cama. Os homens iriam embora sem fazer a mudança. (…) Duas horas depois, ao engolir, com os mesmos sofrimentos nojentos, a segunda pílula, o ataque 4 Desse ponto em diante do texto, usaremos apenas a terminologia narrador para se referir ao personagem narrador- protagonista do texto.
  • 10. passara. Pude então levantar-me e abrir a porta. Os homens estavam sentados no chão do corredor da área de serviço, esperando. Começamos a mudança (p. 7) Contudo, sair desse espaço não é suficiente para que o narrador consiga se livrar dos fantasmas de seu passado, de modo que, ao longo dos primeiros capítulos do livro, ele enfrenta uma série de crises existenciais decorrentes não somente da morte de sua ex-mulher, mas também do fato de que ele está há muito tempo sem filmar nenhum grande trabalho. Dessa forma, ele não consegue seguir adiante com sua vida, o que inevitavelmente se reflete em seu novo apartamento: ele não desfaz as malas e caixas, deixando a maioria de seus pertences guardados e/ou revirados. Seu novo apartamento, portanto, é um local desorganizado e caótico, assim como seu estado de espírito em praticamente todo o romance. O próprio narrador descreve, sem constrangimentos, o estado em que sua residência se encontra: Móveis, livros, objetos e roupas ficaram espalhados desordenadamente pelo novo apartamento. Separei do meio da confusão o cavalo de Roualt, a mala com o diário e as coisas de Ruth; fui para a cama e deitei-me, com o diário de Ruth sobre o peito. (p.7-8) Um dos principais sinais que temos de que a bagunça em sua casa não é apenas uma impressão pessoal do narrador, mas um dado concreto dentro do universo da obra, é o fato de que outros personagens também a descrevem: (Angélica) “Você está triste?”, perguntou. “Estou.” Para aquela mulher monstruosa eu não tinha vergonha de confessar que estava triste. Normalmente os homens não ficam tristes. Por que a sua casa está tão bagunçada? Meu Deus! Parece que um tufão passou aqui!” Logo que acabou de dizer isso começou a dormir, sem me dar tempo de responder. Roncava, zumbindo como um besouro (p. 10 – grifo meu) (Liliana) “O quarto também está assim, essa loucura?” (p. 48) (Narrador e policial) “É o senhor que mora aqui?”, perguntou um deles. (um dos policiais) “Sou” “Gostaríamos que dissesse se está faltando alguma coisa,” disse um homem que devia ser um policial, olhando avaliativamente a desarrumação da sala. “Ladrões arrombaram seu apartamento e mataram o porteiro do prédio.” “Mataram o porteiro?” “Aqui mesmo. Na porta. Ele ficou caído no corredor.” Olhei envergonhado a confusão da sala. Mas a polícia pensava que aquilo tinha sido feito pelos ladrões. Acompanhado pelo policial vistoriei os vários cômodos do apartamento. “Acho que não falta nada”, eu disse. “Tudo indica que eles acabaram de revirar o apartamento quando o porteiro chegou. Atiraram nele e fugiram. O porteiro do prédio ao lado viu dois homens saírem correndo e entrarem num automóvel. Não anotou a placa.” (p. 62-63 – grifos meus)
  • 11. Nas citações anteriores, o policial é o único que o faz se sentir constrangido pela bagunça em sua casa. Liliana não o constrange devido à relação amorosa existente entre os dois e Angélica também não o deixa desconfortável, devido à sua aparência e voz infantis.5 Outro aspecto dessas citações que nos parece relevante destacar é a objetividade da narração, característica intrínseca de Fonseca e que está presente em toda a sua obra. O narrador de Vastas emoções, por exemplo, só nos revela detalhes aparentemente secundários do espaço, como a presença de um televisor na sala ou uma lista telefônica na prateleira, quando ele interage com tais elementos, materializando-os através de seu contato com eles. Outros espaços constitutivos presente na obra são a casa e templo do irmão do protagonista, José. Ex-vendedor de carros e agora um pastor evangélico líder da Igreja Evangélica de Jesus Salvador das Almas, o personagem tem uma relação conturbada com o irmão. Apesar de o narrador trabalhar constantemente com o irmão em filmes de cunho religioso, é nítido, ao longo da narrativa, que ele não tem tanto apreço pelo parente. Um dos principais propósitos da presença de José enquanto personagem na obra é contribuir para a construção da identidade do protagonista, sujeito multifacetado e que se desdobra em outras personas ao longo da narrativa, que dialogam e transpassam umas as outras, como muitos outros protagonistas fonsequianos.6 Além disso, há um momento na trama em que ele empresta dinheiro ao irmão, ajudando-o em um de seus percalços, sendo uma espécie de deus ex machina num dado momento da obra. Vejamos, pois, trechos de Vastas emoções em que os espaços supracitados são mencionados: O enorme prédio que abrigava as novas instalações da Igreja Evangélica de Jesus Salvador das Almas ficava em Copacabana. José esperava por mim. “Que tal?”, perguntou, depois que segui seu tour de propriétaire. “Por que você escolheu Copacabana? Não tem lugar na rua onde se possa parar o carro.” José riu. “Primeiro, você devia ter colocado o carro em nossa garagem.” “Eu vim de táxi.” “Segundo, os membros da nossa igreja não têm carro.” “Você tem três”, eu disse. “Terceiro, o perfil psicossocial do morador de Copacabana é muito parecido com o do morador da zona norte. Copacabana é uma boa entrada para nós que viemos da periferia. A Delfim Moreira (avenida no Leblon) pode ficar mais tarde.” “Ah, você fez um estudo mercadológico.” “Há algum mal nisso? Meu irmão, meu irmão, você só tem ódio e desespero no coração. Devia se juntar a nós.” (p. 36 – grifos meus) O programa (de televisão de José) estava sendo transmitido diretamente da nova igreja de Copacabana, lotada, apesar de ser um domingo de carnaval. (…) José havia descido do púlpito e caminhava pelo corredor. (…) Quando acabou o sermão, uma mulher entrevistou os fiéis que estavam na igreja. Os entrevistados haviam sido cuidadosamente escolhidos. (p. 50-52, grifos meus) 5 p.9-10 de Vastas emoções. 6 Para mais informações sobre esse assunto, ver LIMA, 2017.
  • 12. A porta foi aberta por um empregado uniformizado. Gislaine desenhava o uniforme de todos – arrumadeiras, copeiros, jardineiros, motoristas. Ela também fizera a decoração da casa, depois de frequentar numa escola, durante seis semanas, um curso de decoração de interiores. Fui conduzido pelo copeiro à biblioteca. Havia uma diferença muito grande entre a biblioteca de José e a de Gurian que eu acabara de deixar. A de José fora meticulosamente arrumada e catalogada por uma bibliotecária que era membro da Igreja de Jesus Salvador das Almas. Numa das estantes estavam as gavetas de madeira com as fichas do catálogo. Abri uma das gavetas, mas antes que pudesse ler a primeira ficha Gislaine entrou na biblioteca, seguida por uma empregada com xícaras de café. (…) Sentei-me, esperando que ela se retirasse. Mas Gislaine sentou-se numa poltrona ao meu lado, as pernas cruzadas, as mãos juntas sobre o regaço. (p. 80-81 – grifos meus) Como podemos ver, José, ao contrário do irmão, é um homem pragmático e direto em seus posicionamentos e no modo como encara o mundo ao seu redor. Suas atitudes sempre são bem planejadas e pensadas nos menores detalhes. Tal organização se reflete em seus espaços: a escolha atenta da igreja em Copacabana, o templo repleto de fiéis e a casa sistematicamente organizada ajudam o leitor a visualizar a sua personalidade. Para o narrador, um homem cético e que tende a ter uma visão fatalista do mundo, o irmão não é nada além de um empreendedor bem-sucedido e que, após trabalhar muito em seu negócio – o protagonista chega a dizer que, após ter sido um vendedor de sucesso de carros, José se tornara então um vendedor de salvação de almas7 –, vive agora de colher os seus frutos. Assim como nos espaços constitutivos do protagonista, os espaços de José são revelados apenas quando se tornam parte concreta do enredo. Ele não precisaria mencionar que sua igreja tem uma garagem se essa informação fosse desnecessária no contexto de comunicação aqui apresentado, assim como o narrador só menciona a poltrona existente na biblioteca quando Gislaine, sua cunhada, senta nela. Sendo uma história narrada em primeira pessoa, a subjetividade do narrador também está presente na constituição desses espaços, como era de se esperar. A menção ao fato de que a igreja era enorme ou que José tem, em sua mansão, arrumadeiras, copeiros, jardineiros, motoristas – todos parte do mundo luxuoso do pastor – está atrelada a juízos de valor pessoais que ele tem em relação a José. Por fim, o último espaço constitutivo que gostaríamos de discutir é a casa do porteiro do prédio em que o protagonista vive. Após o seu assassinato, o narrador vai até o seu apartamento e conversa com a sua esposa, agora uma mulher viúva: Olhei por cima do ombro dela: um pequeno quarto ocupado por três camas cobertas com colchas ordinárias, um armário velho de roupas; num nicho da parede um pequeno fogão de duas bocas; sentadas, numa das camas, duas crianças olhavam na minha direção, assustadas. (p. 63) 7 Cf. Vastas emoções, p. 17.
  • 13. Devido ao dinamismo do texto, o narrador não nos diz concretamente que o falecido porteiro era um homem pobre, mas nos mostra essa informação através de seu antigo apartamento, espaço frequentado e constituído por ele. Dessa forma, ao conhecer o local em que o homem vivia, o leitor obterá essa informação. Esse tipo de recurso – mostrar um dado através de uma cena, para que o leitor o infira, em vez de pura e simplesmente dizer esse dado – é um recurso comum da literatura moderna e bastante usado em Vastas emoções, tendo aqui nesse fragmento um exemplo emblemático desse artifício literário. Os três exemplos de espaços constitutivos que aqui apresentamos são, principalmente, as casas de alguns dos personagens, sendo a igreja de José a única exceção. Tal informação não é de forma alguma randômica, pois sabemos que há uma alta carga de simbologia existente em torno da ideia de residência. Dessa forma, a casa, enquanto morada do indivíduo, tem “o valor de representante do pequeno mundo em que vive o ser humano, o lugar de descanso, união e comunhão em que o homem pode se recolher quando se encontra desarraigado” (PEDRA, 2003, p. 52) O segundo grupo de espaços que aqui discutiremos, os espaços habituais, seriam os espaços em que o protagonista transita livremente por estar familiarizado com eles e se sente seguro o bastante para fazê-lo sem qualquer tipo de receio. Assim como os espaços constitutivos, eles também dialogam com a identidade dos personagens, mas no sentido de situá-los e localizá-los num território específico, bem como revelar o modo como os personagens interagem com esses espaços. Sendo assim, podemos dizer que um espaço habitual é “(…) um elemento carregado de significação, é um espaço vivido; essa configuração espacial pode mais do que ser localizada geograficamente, ela é reveladora de problemáticas humanas que se estabelecem na partilha de um lugar comum” (BOECHAT, 2003, p. 60). Assim como a grande maioria das obras de Fonseca, a história de Vastas emoções se inicia na capital do Rio de Janeiro, onde o autor vive desde criança. Ao longo da trama, não há nenhum momento em que o narrador mencione ter nascido ou vivido em outra cidade, o que nos faz inferir que ele vive no local desde sempre – tal dado nos dá a dimensão da naturalidade com que ele lida com os espaços dessa cidade. Esta é, muito provavelmente, a razão pela qual em momento algum ele se sente na obrigação de afirmar categoricamente que vive no Rio de Janeiro, e o leitor deve inferi-lo através de informações apresentadas ao longo do texto pelo protagonista e demais personagens: Cheguei ao Copacabana Palace (famoso hotel do Rio de Janeiro) pontualmente às três horas. (p. 13) Fomos a um restaurante no Leblon (bairro no Rio de Janeiro). (p. 85)
  • 14. A relação do narrador com os seus espaços habituais é mais complexa do que aparenta, uma vez que eles estão presentes em todo o seu cotidiano: para se ter uma ideia, não há uma única cena em que o personagem compre alimentos num supermercado para então prepará-los em casa. Todas as suas refeições mencionadas na obra são feitas em bares e restaurantes, algo proporcionado pela metrópole em que ele se encontra. Também vemos que ele transita por esses espaços livremente e é capaz de usá-los a seu favor, justamente por conhecê-los bem: Demorei quase dez horas para andar aqueles dez quilômetros entre um apartamento e outro, havia muitas ruas de tráfego pesado e um túnel para atravessar. Claro que eu podia pedir dinheiro a um transeunte “para inteirar a passagem,” eram comuns pedintes desse tipo pelas ruas da cidade, mas não tive coragem. (p. 80 – aspas no original) Saí do prédio onde ficava o escritório de Maurício com o envelope de dinheiro preso ao cinto debaixo da camisa, e a caixa de pedras no bolso. Tive então uma surpresa que me deixou estarrecido. Do outro lado da rua estava o homem da capa, acompanhado de Diderot. Tentaram atravessar a rua mas o trânsito estava muito intenso e eles ficaram ali parados, esperando uma oportunidade. Pus-me a correr pela rua como um alucinado, dobrei na primeira esquina e me embarafustei por uma loja de artigos femininos, onde fiquei algum tempo fingindo que procurava uma mercadoria para comprar. (p. 102-103) Entrei em todas as agências bancárias que encontrei pelo caminho (andando a pé), tentando alugar um cofre. Nenhuma delas tinha cofres disponíveis. (p. 103) Mesmo sem conhecer cada ínfimo detalhe do Rio de Janeiro, o protagonista transita livremente por ele pois tem em sua mente uma noção clara de como fazê-lo, podendo caminhar quilômetros sem se sentir perdido e entrando em agências bancárias não por conhecer as suas respectivas dinâmicas, mas por saber que elas compõem o espaço em que ele vive e ter uma boa noção dos serviços que elas prestam à sociedade. Além de se locomover por esses espaços sem problemas, é por conhecer os espaços habituais que o narrador é capaz de perceber as suas adversidades e problematizá-las. A presença de conflitos sociais é uma das características mais proeminentes da literatura fonsequiana num geral e está presente também em Vastas emoções. Em primeiro plano, ela se destaca pela própria problemática do enredo, que envolve episódios como o contrabando de diamantes causador da morte de Angélica e a ineficiência das autoridades em investigar o caso. Entretanto, ela também aparece em pormenores da história e conversas secundárias dos personagens, como podemos constatar nesses dois trechos do romance: Era tarde da noite, porém ainda havia muita gente no baixo Leblon. Fui até a Pizzaria Guanabara e comi uma pizza em pé, no balcão da Ataulfo de Paiva, junto com motoristas de táxi, um par de homossexuais, uma prostituta. Depois atravessei a rua e fui andando para minha casa. Passei por vários jovens sentados nos degraus da porta de um banco, moças e rapazes, alguns drogados, esperando o traficante, outros esperando o freguês, esperando Godot, esperando o filme (eu, certamente), esperando acabar a noite, acabar a vida. Estava
  • 15. eu no meio dessas elucubrações quando uma menina se levantou dos degraus do banco, e veio em minha direção. Usava jeans apertados, suas pernas eram grossas e os braços finos. A pintura da boca e dos olhos, os cabelos escuros, davam ao seu rosto muito branco uma fragilidade mórbida. “Oi”, disse ela. Afastei-me. Veio atrás de mim e segurou-me pelo braço enquanto caminhávamos. “Eu disse oi e você não me respondeu.” Parei. Olhei bem para ela. Teria no máximo dezesseis anos. “O que você quer que eu diga?” “Diga oi também, pelo menos.” “Oi.” “Você não quer me pagar um rango no Guanabara?” Fiquei calado, pensando. “Depois vou para sua casa, se você quiser.” O rosto da moça era decente e digno, ainda que perver􀆟tido, talvez fosse uma estudante que se prostituía para comprar drogas. Fosse lá o que fosse, prometia alívio e carinho. “Qual é o teu nome?” “Dani.” “Vamos”, eu disse. Atravessamos a rua, de volta para o lado onde estava o Guanabara. “Posso pedir um filé com fritas?” “Pode pedir o que você quiser.” Quando chegou o prato dela, Dani perguntou: “Você não vai comer nada?”. “Estou sem fome.” Comeu com voracidade. Entre uma garfada e outra, parava gentilmente e sorria. Mas􀆟tigava, ora de um lado, ora de outro, algo harmônico, saudável, bovino, perfeito, invejável. “Então?”, ela disse. “Então o quê?” “E agora?” “E agora o quê?” “Agora.” “Agora o quê?” “Agora.” Estávamos em pé na calçada. “Boa noite”, eu disse. Segurou-me pelo braço. “Tenho camisinha, não precisa ter medo.” “Não é isso. Estou cansado.” (p. 18-19 – aspas e parênteses no original) (Liliana) “Você vai fazer na Alemanha um filme sobre uma guerrinha que aconteceu na Europa há mais de sessenta anos? Bábel era um escritorzinho fraco, afrancesado. Faz um filme sobre a guerra que está acontecendo no teu país, agora. Essa nossa guerra hobbesiana de todos contra todos.” “Dietrich acha que sou a pessoa certa para dirigir a Cavalaria Vermelha”, eu disse. Mostrei- lhe o livro com a foto de Bábel (...)” (p. 32 – aspas e grifo no original) No primeiro episódio acima, a única reação do protagonista frente a uma adolescente que quer se prostituir em troca de um prato de comida é a apatia. Tal atitude é condizente com o momento em que ele se encontra no livro, mergulhado numa profunda crise existencial que o deixa desinteressado em relação aos acontecimentos à sua volta. Na segunda conversa supramencionada, quando o narrador já se encontra obcecado por Bábel, os problemas de sua cidade e país se tornam banais frente a sua mais nova paixão literária – essa passa a ser a sua nova razão para não agir frente aos problemas ao seu redor. Em contraposição a outros protagonistas fonsequianos, como o famoso
  • 16. detetive Mandrake. O narrador de Vastas emoções não se importa e não se relaciona com os problemas típicos de seus espaços habituais, tornando-os pormenores em sua história. Uma última característica dos espaços habituais que nos parece importante apontar é o modo como Fonseca os descreve: em todas as citações vistas aqui até o presente momento, vimos que as descrições dos espaços são rápidas e diretas, elementos como mesas e cadeiras só são mencionados quando se tornam substancialmente importantes para a trama, dando assim mais dinamicidade ao desenrolar da história – assim como Fonseca o faz nos espaços constitutivos. Descrições mais demoradas de espaços situados no Rio de Janeiro só acontecem quando o protagonista se encontra num momento tenso da trama, como quando ele decide visitar um amigo joalheiro para investigar o valor das pedras preciosas que Angélica deixou em seu apartamento antes de ser assassinada: As medidas de segurança eram muito rígidas. Embaixo ficava a loja, que ocupava todo o andar térreo do prédio. Em frente à loja havia vários seguranças à paisana, que olhavam atentos para quem entrava. Na portaria do prédio recebi um crachá, depois de ter deixado a carteira de identidade com o porteiro. Um segurança armado subiu comigo no elevador. Dentro do elevador e em todos os locais por onde transitei até chegar no escritório de Maurício havia câmeras de televisão registrando caminhada. (p. 24) Essas descrições mais demoradas também acontecem quando ele chega até um desfile de carnaval onde ele acredita que encontrará alguém que lhe ajudará em suas investigações sobre a vida de Angélica: No salão do desfile havia uma longa mesa onde estavam os jurados que avaliariam as fantasias, homens e mulheres vestidos a rigor, pessoas do mundo social e artístico, cujos nomes eram anunciados por um locutor. O desfile seria feito para a televisão. Alguns espectadores, poucos, postavam-se em frente à mesa dos jurados. Por uma porta lateral podia-se ir a outros salões, onde os concorrentes – cerca de cinquenta, pré-selecionados – se maquiavam e vestiam as fantasias. Não foi difícil encontrar Áureo e Negromontes, no salão maior cheio de colunas, acompanhado de Mildred e Marijó. (p.58) Ainda que o narrador esteja adentrando esses espaços pela primeira vez, eles são habituais pelo vínculo que o protagonista já demonstrar ter com eles mesmo antes de conhecê-los: o prédio em que o escritório de Maurício se encontra está no Rio de Janeiro, onde o protagonista transita livremente por ter sempre vivido na cidade. Além disso, mesmo não demonstrando interesse pessoal em carnavais, por morar num local em que tal festividade é tão conhecida, ele não a trata com estranhamento – transformando, pois, esses espaços em habituais para si, uma vez que eles estão onde ele está e são frequentados por pessoas que, como ele, transitam por aquela cidade. O último grande grupo de espaços que aqui discutiremos, os espaços estrangeiros, são os espaços que são completamente desconhecidos para o protagonista, tendo, portanto, uma distância cultural e geográfica considerável dele. Quando eles são apresentados na obra, são espaços novos
  • 17. não somente para os leitores, mas também para o narrador, razão pela qual ele não se locomove entre eles com a mesma naturalidade que o faz nos espaços habituais. Em Vastas emoções, esses espaços estão na Alemanha, país em que o protagonista chega pela primeira vez num dado momento da trama e pretende produzir, nele, um filme a pedido de Plessner e Dietrich. Devido à presença de personagens alemães nesses espaços, cremos ser importante salientar que esse estrangeirismo referente a esses espaços se dá pelo fato de que a história é narrada da perspectiva de um brasileiro que nunca esteve antes no país – se tal variável não existisse, esse tipo de espaço obviamente não existiria no romance que aqui discutimos. O voo do protagonista sai do Rio de Janeiro e aterriza em Frankfurt, onde ele faz uma conexão aérea para Berlim. Após passar uma noite na capital alemã, pega outro avião para Munique acompanhado de Veronika Hempel, roteirista que fora contratada para ajudá-lo. Vejamos alguns trechos do romance para discutir como Fonseca constrói esses trajetos: Chegando a Frankfurt, peguei a conexão da Panam para Berlim. Nevava em Berlim. Dietrich esperava por mim no aeroporto. (…) Da janela do carro aquecido, as ruas cobertas de neve pareciam um filme black and white. Havia poucas pessoas caminhando. (p 114) O hotel que Dietrich reservara para mim era simpático. Havia no banheiro pasta e escova de dentes. Sobre a mesa do quarto, uma garrafa de vinho e uma cesta com frutas. Docinhos na mesa de cabeceira. (ibidem) “Tenho que fazer algumas compras”, eu disse depois, na rua. (Veronika) “Não temos tempo, isso não foi previsto, fazer compras antes do nosso embarque. Temos apenas o tempo suficiente para ir daqui ao Flughafen Tegel. Onde está a sua mala?” “Eu não tenho mala”, disse com um sorriso calculadamente simpático, esperando sua demonstração de surpresa. Não houve surpresas. “Faça as compras em Munique”, ela disse, secamente. No avião ficamos a maior parte do tempo calados. “O povo de Munique gosta muito de festas. Eles têm até um animado fasching… mas não é um carnaval tão… entusiasmado quanto o de vocês, brasileiros.” Senti na sua voz uma ponta de desdém que me deixou aborrecido. Não respondi. (p. 117) O mesmo tipo de objetividade existente ao retratar os espaços habituais também se encontra na retratação dos espaços estrangeiros vistos pelo protagonista até o presente momento da narrativa, mas aqui ela está presente por outra razão: além de ser um local desconhecido do protagonista, ele está de passagem por eles, não havendo, dessa maneira, necessidade de descrevê-los com uma maior profundidade. Vemos, também, que o autor usa elementos familiares ao leitor brasileiro para a construção da Alemanha de Vastas emoções: em vez de se ater às diferenças, as primeiras descrições do país europeu se dão através das semelhanças. A descrição do quarto de hotel, por exemplo, é bastante genérica, podendo ser tranquilamente um cômodo semelhante aos já existentes
  • 18. no Brasil. Ainda que a neve não seja um fenômeno comum no Brasil, um brasileiro médio a conhece através de filmes ou seriados que tenha assistido, não sendo, portanto, uma ocorrência meteorológica desconhecida para leitores brasileiros – a comunidade para a qual a obra em questão foi inicialmente preconcebida. A menção de Veronika às festas de Munique e sua comparação com o carnaval brasileiro tem a finalidade de criar um momento típico em que pessoas de culturas diferentes se conhecem: estabelecer comparações e pontes entre os indivíduos. Conforme podemos constatar através da leitura do trecho sobredito, seu intento não foi bem-sucedido – lembremos que o protagonista encara seu comentário como desdenhoso –, mas serve para ajudar o leitor a constituir esse espaço em seu imaginário, uma vez que ele tem contato com tal semelhança entre ambas as nações. Esse recurso usado por Fonseca para criar a Alemanha de Vastas emoções – conciliar semelhanças e diferenças ao longo do texto, representando assim o cosmopolitismo existente nas cidades brasileiras e europeias – se repete em outros momentos: Plessner morava numa casa antiga, de dois pavimentos, numa rua sossegada. A porta da casa – grande, de madeira ornamentada – abria diretamente na calçada da rua. Notei que havia um portão ao lado, que devia ser o da garagem. (p. 122) Passei o resto do dia trabalhando. Parei apenas para sair e comer um sanduíche de bratwurst num quiosque da rua. Na verdade saí mais para ver as pessoas, pois não sentia fome. Em Berlim – como em qualquer outra cidade que já visitara – eu não olhara, e certamente não olharia, para uma vitrine, nem mesmo se fosse de videocassetes ou de livros ou de máquinas fotográficas. A única coisa que eu via eram os homens e as mulheres, mais as mulheres do que os homens. Eu virava a cabeça quando elas passavam por mim, sem me incomodar se isso parecia impróprio ou grosseiro. O movimento do corpo das pessoas é sempre muito indicativo, expressivo, não podia desprezar essa demonstração, essa revelação do ser. (p. 130) Novamente, vemos a descrição de uma casa que poderia existir em qualquer grande cidade. Quanto à segunda citação, é nela que vemos por que o narrador não manifesta estranhamentos ou deslumbres por estar numa cidade em outro país, pois ele já esteve em outras cidades estrangeiras – em outros momentos do texto, ele menciona que já visitou Londres e Paris –, o que faz com que ele trate com razoável naturalidade a sua estadia numa cidade que ele desconhece. Conforme ele aponta, seu maior interesse está nas pessoas, conhecer seus hábitos e costumes, sendo assim capaz de estabelecer relações de identidade e alteridade. Esta é, muito provavelmente, a razão pela qual ele busca descrever os espaços de Berlim com base em referenciais que já lhe são familiares. Nesse sentido, podemos dizer que Vastas emoções explora todas as maneiras de um ser humano, apesar de completamente adaptado à vida urbana, reagir aos constantes estímulos que a cidade lhe proporciona e às limitações psicológicas que essa condição o obriga (o narrador). Mostrando assim o modus vivendi de um ser urbano em seu habitat natural. Revela ainda as diferenças que podem haver (sic),
  • 19. dentro de tantas semelhanças entre as diversas cidades onde o protagonista transitou (…) (ROSA, 2007, p. 117) No entanto, há, pelo menos, duas marcas no texto que mostram que, apesar de estar num nível mais abaixo, esse estranhamento oriundo de se estar num local desconhecido é vivenciado pelo narrador. A primeira delas, mais óbvia, é a menção a locais com nomes próprios estrangeiros e numa língua distante da portuguesa, a alemã. Conforme vimos nas citações presentes nesta monografia, o protagonista passa por Frankfurt e Berlim, pega um voo no aeroporto Flughafen Tegel – principal aeroporto internacional da capital da Alemanha – e come um sanduíche de bratwurst – prato típico alemão. O romance abunda de outras referências a nomes próprios alemães, o que nos mostra que Fonseca realizou uma razoável pesquisa para então criar esse espaço em sua obra. A segunda marca é o próprio modo como o protagonista se locomove quando está na Alemanha. A primeira vez que ele o faz é num carro com Veronika em Munique, sendo ela a motorista e ele, o passageiro – esse tipo de dinâmica entre os dois se repete ao longo de sua estadia na Alemanha. Quando ele já está em Berlim e precisará ir até a casa de Dietrich de metrô, recebe dele instruções de como fazê-lo: “Você quer jantar comigo amanhã?” Tirou um pequeno bloco do bolso, escreveu e me deu o papel. “Se for de U-bahn, salte da estação Kleistpark. Kleistpark, não se esqueça.” (p. 132) Somente após quase uma semana de sua chegada em Berlim é que o protagonista decide andar sozinho pela cidade: Saí logo depois dela (Veronika). Cansara-me de ficar dentro daquele quarto de hotel. Percorri a Kudamn, abrigado em minha capa forrada de pele, à procura de um cinema. Todos os filmes não alemães que estavam sendo exibidos eram dublados em alemão. (…) Andei pela cidade. Jantei num restaurante italiano e voltei para o hotel. Vi televisão. (p. 136-137) Como podemos inferir por esse trecho, o protagonista não deve ter ido tão longe do hotel, uma vez que percorre todos esses trajetos caminhando e num curto espaço de tempo. Sendo assim, com base nos trechos aqui vistos, podemos ver que, sempre que o protagonista de Vastas emoções precisa realizar algum trajeto longo Alemanha, o faz junto com alguém – na maioria das vezes, Veronika – ou após receber instruções de como fazê-lo. Este percurso que fizemos até o presente momento delineia toda a construção do espaço no romance aqui estudado. Como pudemos ver, o diálogo entre espaço e os demais componentes da obra – em especial personagens e tempo – é uma variável constante no decorrer da trama. O rapto do romance de Babel: espaços volúveis
  • 20. Conforme dito anteriormente, nos parece pertinente discutirmos a constituição do espaço mais detalhadamente em alguma cena específica do romance, para que possamos ver como ele opera em sintonia com os demais elementos do texto e constatar o que foi dito na seção anterior usando trechos pré-selecionados. Escolhemos o momento em que o protagonista vai até a Alemanha Oriental buscar ilegalmente um romance perdido de Babel por se tratar de um dos clímax da trama e, dessa forma, dar um tratamento diferenciado em relação ao espaço – vejamos por quê. É possível, pois, ver esse capítulo como uma espécie de jornada, com começo, meio e fim. A pedido de Plessner, o protagonista irá até o Museu Pergamon e lá encontrará Ivan, ex-diplomata soviético e que, no momento em que o protagonista se encontra na Alemanha, tornou-se um perseguido político devido às críticas que fazia ao regime – assim como Babel. Para chegar lá, o narrador terá que passar pela alfândega da Alemanha oriental e descer na estação Friedrichstrasse, que servia como uma das divisões entre os dois lados de Berlim. Vejamos, pois, os primeiros movimentos do protagonista quando ele já se encontra na Alemanha oriental: Subi, calmamente, uma escada larga de poucos degraus, dominando a sensação de triunfo que fazia o meu coração bater apressado. Ainda não deixara a estação. Vi um café. Pessoas andando. Quanto mais depressa eu saísse dali, melhor. Fazia frio na rua. Caminhei alguns minutos. Quando encontrei um lugar seguro abri a página do Stadtplan marcada por Plessner. Seguindo o traçado feito no mapa peguei a Friedrichstrasse e fui até a Under den Linden. Percorri parte da Under den Linden e logo cheguei ao canal do rio Spree e vi a Museuminsgel, onde ficava o Pergamon. A ilha dos museus situava-se num triângulo em que um dos lados era o Spree. Havia vários museus na ilha. Comprei a entrada. Entrei, talvez excessivamente apressado, procurando um grupo de visitantes com um guia. O prédio do Pergamon era o maior da ilha dos Museus. Seus imensos salões estavam vazios, parecia não haver um só visitante dentro dele, apenas guardas. Depois de caminhar sem destino percebi que um guarda me encarava de maneira suspicaz. (…) Não havia nenhum Ivan, nem guia, nem visitantes naquele maldito museu. (…) (p. 180) Um dos principais aspectos da citação acima que faz com que ela se destaque no romance é a abundância de nomes próprios alemães. Nem quando o protagonista estava no Rio de Janeiro vimos uma sequência de nomes de ruas e locais tão próximos numa mesma sequência de parágrafos. Tal fato tem, pelo menos, duas razões. A primeira delas diz respeito à própria situação em que o protagonista – um brasileiro que nunca esteve na Alemanha Oriental – se encontra nesse momento em Vastas emoções: para se orientar numa região em que ele nunca esteve antes e não pode em hipótese alguma se perder, bem como deve evitar ao máximo pedir informações a transeuntes, é fundamental que ele se oriente com base nos nomes de ruas e locais, todos eles indicados por Plessner. A segunda razão está relacionada com o papel do escritor em orientar o
  • 21. leitor de sua obra: para que seja possível conhecer a Alemanha da época em que o romance se passa, é de suma importância que todos esses nomes próprios estejam presentes, uma vez que eles nos ajudam a conhecer melhor o lugar. Ao fazermos uma rápida pesquisa, descobrimos que, de fato, todos os lugares mencionados nessa citação existem na Alemanha e se encontravam no lado oriental da cidade, o que nos mostra o cuidado de Fonseca para criar uma narrativa verossímil. Esse cuidado também se reflete nas descrições realistas de peças que se encontram no museu: Juntei-me ao grupo. O guia falava em alemão, francês e inglês. Estávamos num longo e largo corredor ladeado por paredes em movimento, que pareciam urrar. O guia explicou que aquela babylonische Prozessionsstrasse, na rua da procissão da Babilônia, fora reconstruída com fragmentos originais. Era do tempo de Nabucodonosor II, que reinou de 604 a 562 e destruiu Jerusalém cinco anos antes de morrer. Engraçado o guia falar nisso. As coisas na vida real tendem a adquirir coincidência. Áureo de Negromonte, o carnavalesco, que de maneira imprevisível se ligara à minha vida, tivera uma fantasia baseada na corte de Nabucodonosor. (p. 181) Ainda que o protagonista se encontre num momento tão tenso da obra, Fonseca encontra um modo de entrelaçar fatos da vida do narrador, atrelando artefatos que de fato se encontram no Museu Pergamon aos episódios vividos pelo protagonista no Rio de Janeiro. Além disso, há um claro aviso implícito para o leitor: a trama do Rio de Janeiro ainda não foi resolvida e o autor não se esqueceu dela. Como o protagonista não encontrara Ivan no museu – algo que Plessner lhe dissera que ia acontecer – o protagonista começa a andar a esmo pela Berlim Oriental, sempre cheio de receio, pois está com uma quantia alta de dólares escondida em seu corpo e teme que alguém descubra seus reais objetivos nessa região da cidade. Como ele não sabe quem é Ivan – apenas o diplomata conhece a sua identidade, Plessner enviou-lhe uma foto do protagonista, para que ele o reconhecesse –, o narrador espera que ele o encontre para realizar a troca: os dólares pelo romance de Babel. Esse encontro acontece apenas quando o narrador se encontra longe do museu: Dirigi-me então ao escritório de turismo e entrei. Vários turistas pediam informações, apanhavam folhetos. Vi na parede um mapa grande. Postei-me à sua frente. Um senhor ao meu lado falou qualquer coisa em alemão. Respondi, em inglês, que não falava alemão. “Já esteve no Museu Pergamon?”, ele perguntou. “Sim”, eu disse. “É a sua primeira visita a Ost Berlim?” A pronúncia era fortemente acentuada. Mas ele falava inglês com desembaraço. “Nós não nos vimos no museu?”, perguntei. Ele era o homem alto de cabelos brancos que me olhara no museu enquanto eu pensava em Hércules. Continuava com a pasta preta. “Você é muito observador”, ele disse, rindo, “mas achei que havia pessoas suspeitas à nossa volta. Você notou?” “A mitologia grega me perturbou.” (p. 183)
  • 22. Como podemos ver em outros momentos de Vastas emoções, Fonseca transforma o espaço – a agência de turismo – num mero palco para que as relações entre os personagens e as conjecturas do protagonista ali se desenrolem. Se a descrição do museu e suas exposições foram importantes para desenvolver a tensão em torno do possível encontro entre o narrador e Ivan, aqui a sua importância se encontra diminuída, uma vez que a construção das relações entre os personagens passa a ser mais importante. Assim como não há nenhuma descrição do aeroporto de Berlim, mas há uma descrição detalhada do trajeto feito pelo protagonista na Berlim Oriental. Desse modo, vemos que o controle que o autor exerce sobre a linguagem no romance aqui estudado também se reflete sobre a constituição do espaço, e nos mostra que, em Vastas emoções, a linguagem vai se transformando camaleonicamente, a mercê do ambiente, dos interlocutores, do assunto, ou das necessidades pessoais. Tal fenômeno acarreta múltiplos diálogos no interior do texto que vai adquirindo, também, uma coloração plurilinguística, uma vez que não podemos pensar num único estilo, mas na somatória de vários estilos. (BERNARDI, 1996, p. 60) Ao contrário do que se poderia esperar, o encontro entre os dois é apenas mais um dos clímax dentro desse momento da história. Se antes a tensão era concretizada pela própria situação em que o protagonista se encontrava, agora ela também será fantasiada por ele enquanto se encontra na Berlim Oriental. Após se conhecerem, o protagonista e Ivan entram num restaurante onde pretendem realizar a troca – os dólares pelo romance de Babel. O estabelecimento é descrito brevemente como sendo um local de “aparência decadente, simpática” (p. 184) e, ali, os dois conversam sobre amenidades, mas o encontro logo se transforma num momento propício para que Ivan, bêbado após tomar destilados, desabafa sobre a censura que vem sofrendo ao criticar o regime socialista aplicado na região. O protagonista vê um sujeito telefonar enquanto encara os dois. Ele rapidamente foge, pois percebe que esse pode ser o estopim de um novo conflito. Quando sai do local, vê dois homens chegarem e imagina as consequências da imprudência do ex-diplomata: Imaginem este roteiro: os dois homens saltam do carro e entram lentamente no restaurante, olhando em torno com duros olhares perspicazes. Sentam-se à mesa de Ivan e se identificam como agentes da SSD, a polícia política da Alemanha Oriental. Ivan diz que é um diplomata, servindo na embaixada da União Soviética em Berlim. O que o senhor está carregando nesta mala? A embriaguez de Ivan desaparece. Ele começa a suar abundantemente. Papéis da embaixada, diz Ivan, agarrando a pasta de encontro ao peito. Um dos policiais arranca violentamente a pasta dos braços de Ivan. A pasta é aberta e os dólares saltam como bonecos de mola. Ivan grita que tem imunidades diplomáticas. O garçom que nos serviu denuncia: Foi um americano que deu este dinheiro para ele, em troca de documentos confidenciais. O espião americano carrega os papéis secretos junto ao corpo, por baixo de uma capa. O espião acabou de sair, não deve estar longe. Um dos agentes corre em direção à porta da rua. (p. 189) Como podemos ver, o protagonista usa a sua faceta de cineasta para imaginar o que está acontecendo dentro do bar, pois pede para que imaginem este roteiro. Há alguns pontos
  • 23. interessantes nesse filme hipotético criado pelo protagonista e que merecem a nossa atenção. O primeiro deles, obviamente, diz respeito ao espaço, que é pouco descrito – há uma breve menção às cadeiras da mesa de Ivan e a mala que ele carrega consigo – e, assim como muitos dos espaços de Vastas emoções, exerce majoritariamente a função de palco para que a ação se desenrole. O segundo refere-se ao uso da linguagem: assim como no romance que aqui discutimos, esta curta história criada pelo protagonista é direta e vertiginosa, a ação se desenvolve em poucas palavras e segue num fôlego só. Nesse sentido, vemos que o estilo do protagonista se aproxima ao do próprio autor da obra, criando um possível vínculo entre os dois – e ele não é o único dos protagonistas fonsequianos que apresentam características do mineiro, pois vemos isso acontecer ao longo de toda a obra de Fonseca. O terceiro e último ponto desse roteiro que gostaríamos de discutir é o uso dos verbos, todos no presente, o que faz com que essa breve trama se sobressaia em relação à própria história de Vastas emoções, em que os verbos estão no tempo passado. Uma possível explicação seria que esse recurso foi utilizado para salientar o fato de que essa história em específico não é real e não faz parte do enredo real da obra aqui estudada. Toda a tensão vivida pelo protagonista nesse momento da história faz com que ele de alguma forma consiga se orientar sozinho na Berlim Oriental, uma vez que ele nos diz que não precisou usar o mapa para voltar (p. 190). A Berlim Oriental seria, se pensarmos nos grupos de espaços já discutidos neste trabalho, mais um dos espaços estrangeiros, já que o protagonista não os conhece e depende totalmente das instruções de terceiros para se deslocar nele. Se por um lado não há nenhuma oportunidade para que ele conheça a cultura do local, visto que está na região só de passagem, por outro, esse espaço se aproxima dos espaços habituais pela tensão existente em torno do contexto em que ele se apresenta na obra, já que, assim como ele passou a correr risco de vida no Rio de Janeiro, ele também corre perigo enquanto está nele. Tal fato nos mostra como as características dos espaços de Vastas emoções se mesclam e se atravessam, não sendo, portanto, categorias rigidamente fixas. A jornada mencionada no início desta seção tem seu início com a chegada do protagonista na Berlim Oriental e, em seu desenvolvimento, apresenta pelo menos dois pontos de virada – a troca a ser feita e o medo do protagonista de ser descoberto no restaurante –, sendo, dessa forma, um dos momentos mais tensos da trama. Seu fim se dá quando o protagonista enfim retorna a Berlim Ocidental com o conto em mãos. O espaço se manifesta, em todas essas etapas, como um elemento fundamental para que essa tensão se desenvolva, devido ao fato de que o narrador o desconhece.
  • 24. Considerações finais Conforme discutimos no começo desta monografia, o espaço não pode ser visto apenas como cenário ou componente isolado da narrativa, uma vez que ele se entrelaça aos demais elementos do romance. Em Vastas emoções, esse entrelaçamento se dá de forma mais nítida com os componentes personagens e tempo: se não considerarmos os espaços constitutivos, que ajudam a construir no texto as identidades do protagonista, de seu irmão José e até mesmo do porteiro assassinado, teremos uma visão muito limitada da identidade dos personagens. O mesmo ocorre com o tempo: para entendermos toda a tensão existente na ida do personagem à Berlim Oriental, é crucial nos lembrarmos de que a história se passa na Alemanha dos anos 80 e que, na época o país se encontrava dividido entre Alemanha capitalista e socialista. Vimos, também, a importância da palavra enquanto unidade compositora do romance na constituição dos espaços de Vastas emoções: quando o protagonista se encontra na Alemanha, por exemplo, Fonseca abunda o texto de palavras nesse idioma para situar o leitor nesse espaço e tornar a sua narrativa mais verossímil. O trato dado pelo autor ao espaço de sua obra nos mostra o cuidado em seu processo de criação: sendo um romance dinâmico e que flerta com o gênero policial, seria incoerente despender tempo com descrições exaustivas e prolixas, o que não o impede de forma alguma de ser uma categoria tão complexa como as anteriores e se fazer presente na obra em vários aspectos. Os espaços constitutivos, por exemplo, nos mostraram que o espaço em Vastas emoções opera com camadas, superficiais e profundas, ao desempenharem a função de auxiliar na construção identitária de alguns personagens. Os espaços habituais, por sua vez, nos revelam a familiaridade com que o protagonista lida com o Rio de Janeiro, espaço onde vive e, ao que tudo indica no texto, sempre viveu. Dessa forma, muito mais do que uma categoria física, vemos, em Vastas emoções, um claro exemplo de espaço vivo e que constantemente se modifica a depender do contexto e dos movimentos dos personagens, sendo muito mais do que um mero agente passivo no desenrolar de sua trama. Referências bibliográficas: ALMEIDA, Marco Rodrigo. Pesquisas apontam Machado de Assis como o autor brasileiro mais estudado. 03 jul 2013. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/07/1305864- pesquisam-apontam-machado-de-assis-como-o-autor-brasileiro-mais-estudado.shtml>. Acesso em: 16/08/2017.
  • 25. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Emsantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BERNARDI, Rosse-Marye. Uma leitura bakhtiniana de Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, de Rubem Fonseca. In: FARACO, C.A; TEZZA, C; CASTRO, G. (Org.) Diálogos com Bakhtin. Editora da UFPR, Curitiba, 1996. p. 43-68. BOECHAT, Fernanda Boarin. Espaço da identidade: a relação entre espaço e personagens em Cinzas do norte e Órfãos do Eldorado, de Miltom Hatoum. 2011. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011. BRANDÃO, Luis Alberto. Teorias do espaço literário. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte, Fapemig, 2013. ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. FONSECA, Rubem. O Cobrador. Rio de Janeiro: Agir, 2010. _____. Vastas emoções e pensamentos imperfeitos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. LIMA, Pedro Felipe de. A representação do sujeito pós-moderno em dois contos de Rubem Fonseca, Revista Espaço Acadêmico, Maringá, n. 196, p. 107-118, 2017. LINS, Osman. Espaço romanesco – conceito e possibilidades. In: _____. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976. LOPEZ, Nayse. Prémio Camões para Rubem Fonseca. 14 mai. 2003. Disponível em: <https://www.publico.pt/culturaipsilon/jornal/premio-camoes-para-rubem-fonseca-201190>. Acesso em: 16/08/2017. MARTIN, George R. R. A Guerra dos tronos. São Paulo: Leya, 2010. PEDRA, Nylcéa Thereza de Siqueira. Espacialidade e personagem: A reconstrução do ethos em Cipriano Salcedo. 2003. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2003. ROSA, Seleste Michels da. O sentimento urbano em Vastas emoções e pensamentos imperfeitos. Nau Literária, Porto Alegre, vol. 3, n. 1, p. 105-118, 2007. SOETHE, Paulo Astor. Ethos, corpo e entorno: sentido ético da conformação do espaço em Der Zauberberg e Grande sertão: veredas. 1999. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.