Artigo de Fábio José, professor universitário e ex-vereador do município de Juazeiro do Norte pelo PSTU, acerca do assassinato do jovem de 14 anos pela polícia da boa vizinhaça de Cid Gomes, governador do Ceará.
1. Violência policial: até quando?
Fábio José
O assassinato de um menino de 14 anos, ocorrido no domingo (25/07), em Fortaleza, demonstrou a total
inadequação do modelo policial existente no Brasil e, de ordinário, tomado como necessário e insubstituível.
Somente quando as grandes tragédias saltam aos olhos é que observamos algum nível de reflexão acerca do
problema. Perplexos, muitos se perguntam: até quando? Diante desse cenário, queremos aqui expressar o nosso
ponto de vista acerca do tema.
De plano, queremos lembrar que o assassinato do menino ganhou contornos nacionais. A imagem de um pai
desesperado e um filho morto produziu uma comoção quase inenarrável. Como diria Drummond: “Bala que mata
gatuno/também serve pra furtar/a vida de nosso irmão“. Um soldado do publicizado programa do governo Cid
Gomes (PSB, PT, PCdoB, PMDB etc.) - o Ronda do Quarteirão” ou Batalhão da Polícia Comunitária (BPC) - atirou na
cabeça do garoto e dilacerou uma cidade em pleno domingo à tarde. Muitos estavam no estádio Castelão para
torcer pelo Ceará contra o Palmeiras. O jogo foi a zero a zero. Mas a bala da pistola ponto 40 do soldado do Ronda
fez a morte vencer a vida por mil a zero.
Esse é o episódio. Uma tragédia. Ou aprendemos com mais um acontecimento trágico ou seguiremos sucumbindo.
Esse é o dilema.
Quando Cid lançou o programa “Ronda do Quarteirão” (2007) o fez com grande alarde, fardas desenhadas por
estilista e carros luxuosos para os militares da “polícia cidadã”, da “boa vizinhança”. Diante da deterioração desse
“novo” modelo, as coisas começam a aparecer como elas realmente são e não como eram traduzidas pela linguagem
mística da propaganda oficial. Diante desse contexto, podemos alinhavar algumas conclusões.
Primeiro, não existe polícia comunitária quando esta está armada e de farda e a população anda a paisana e
desarmada, sujeita à fúria de alguém armado e fardado. Entre essa polícia e essa comunidade há um abismo
intransponível e não uma ponte. Falar de polícia comunitária é o paradoxo dos paradoxos, senão um acinte.
Segundo, um policial não usa um revólver por razões lúdicas ou ornamentais. Ele usa um revólver para atirar e tem
licença para matar. Enquanto for assim, as várias e mal sucedidas tentativas de “civilização das tropas” e
“modernização”seguirão produzindo uma situação recorrente de barbárie.
Terceiro, independente da habilidade ou perícia técnica do policial, enquanto ele estiver sob o jugo de uma estrutura
de natureza militar, seguirão ocorrendo torturas (nos porões e públicas), abuso de autoridade e casos fatais. Não é
uma questão de mais ou de menos inteligência ou de mais ou de menos conhecimento técnico. Alguém acha que a
polícia britânica não é “preparada”? E o que fez essa polícia? Matou o brasileiro Jean Charles como quem mata um
coelho em uma caçada. Para o governador do Ceará, trata-se simplesmente de “reciclar, treinar e capacitar melhor”.
Muitos recorrem à hipótese de que tudo se resume a erros de execução. Insistimos: não é essa a questão. Tem a ver
com a natureza da própria polícia militar. Até a existência de uma vara específica - da justiça militar - é parte do
caráter de uma instituição divorciada da população.
Quarto, o fato desse dramático domingo de julho é um desdobramento lógico do anterior e uma antecipação da
próxima fatalidade. Cid Gomes diz que não vai “misturar isso com qualquer outra coisa”, como quem quer esquecer
que as coisas estão misturadas e que o seu governo é o principal responsável pelo acontecido. Ele também pondera
que não se deve desmoralizar a categoria; mas o que desmoraliza a categoria é o seu divórcio da comunidade, são as
jornadas de trabalho extenuantes, os salários aviltantes que obrigam o policial a fazer “bico” e a impossibilidade
2. institucional de se organizar e lutar para fazer valer os seus direitos.
Mais: não adianta o Sr. Marcos Cals (candidato a governador pelo PSDB) cornetear quando se sabe que ele era
secretário de justiça do atual governo e sempre se manteve em uma postura de silêncio cúmplice. Ele é parte desses
desdobramentos. Assim como o seu padrinho político, o Sr. Tasso Jereissati. Mesmo o Sr Lúcio Alcântara não pode
esquecer quando ordenou a entrada da tropa de choque em 18 de julho de 2004 nas dependências da Universidade
Regional do Cariri, sem ordem judicial e na calada da madrugada. Eles todos são responsáveis por essas tragédias
nossas de cada dia. Pensam com a mesma lógica. Devido a isso todos apresentam projetos que trazem justificativas
para manter tudo do modo que se encontra.
Quinto, o que precisamos fazer é trocar esse modelo, trocá-lo sem qualquer receio. Priorizando esse ângulo de
análise é que, por exemplo, julgamos um absurdo que, a pretexto de desacato a autoridade, as pessoas sigam
apanhando da polícia e arrastadas para delegacias e prisões. O argumento do desacato a autoridade - algo difuso e
anacrônico - serve somente de cortina de fumaça para que permaneçam os exercícios de arbitrariedade, truculência
e opressão policial.
É preciso uma campanha nacional para por um fim a esse mecanismo que coloca a população civil, não sob a
proteção, mas debaixo dos humores dos militares. Não raro, os civis se intimidam em vez de proferir palavras
injuriosas contra homens fardados e armados.
Nesses termos, é preciso defender 1) extinção do programa “Ronda do Quarteirão”; 2) criação de uma polícia
unificada e desmilitarizada sobre o controle dos trabalhadores, o que quer dizer “sob o controle da comunidade”; 3)
direito de livre organização sindical para que os policiais possam reivindicar melhores condições de trabalho,
jornadas de trabalho menos extenuantes e salários mais dignos.
Tudo isso pode parecer absurdo. Mas não é bem assim. O que acabaram de expor os jornais - acerca da morte não
acidental do garoto Bruce Cristian - tem estreita relação com outros casos, como o do turista espanhol (“confundido
com um meliante” e alvejado pela polícia militar) ou do taxista (violentamente “abordado” pelos policiais). Não
basta, porém, que tudo possa ser corretamente descrito. Precisamos trocar esse modelo por outro. É como se
disséssemos que trocaremos uma roupa surrada por uma limpa. Esse é o desafio e essa é a proposta.