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4aurinegra #188 | 28MAI2010
gente de ouro
Deixou o mundo das
Ciências Farmacêuticas da
mesma forma como nele
entrou: com determinação
e irreverência.Decidiu que
se aposentaria no dia 25 de
Abril de 2010,nem antes,nem
depois.E assim foi.Terminam
45 anos de trabalho que
marcaram,de forma indelével,
as estruturas farmacêuticas
hospitalares do País.
As suas primeiras memó-
rias, tal como o seu coração,
dividem-se entre a Mealhada e
o Montouro. Elemento comum
é a presença da sua família: “O
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amor profundo, visível, do meu
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festa da sua infância, o Natal e a
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ESPÍRITO LIVRE ENJAULADO
Onegóciodefamíliaprospe-
rava e Manuel, o pai, imaginava
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tinha outros planos. Queria que
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veio a adolescência. O corpo
de criança ia ganhando contor-
nos de mulher e a irreverência
e frontalidade de Odete Isabel
iam-se sublimando. De tal for-
ma que os seus pais, impotentes
perante tamanho desafio, deci-
dem enviá-la para um colégio
de freiras em Famalicão: “Inter-
na, eu, uma mulher livre desde
que me conheço! Não era pos-
sível, uma pessoa como eu que
gostava de andar descalça na
rua, ali com tantas regras, sem
poder sair de casa”.
Tinha 11 anos quando dei-
xou a casa dos pais, rumo a
uma nova vida, diferente, que
faria sua por seis anos: “Acabei
por gostar tanto das freiras que,
quando fui para o Porto para a
Faculdade, voltei para lá. Neste
momento presto-lhes uma ho-
menagem, pois penso que foram
em grande parte responsáveis, a
par dos meus pais, pela minha
personalidade”.
Foi no colégio que começou
a interessar-se pela área das
Ciências. Primeiro sonhou ser
cirurgiã. Uma combinação de
preconceitos em relação à mu-
lher e conselhos contrários de
um médico amigo da família, fi-
zeram-na acordar. De uma reu-
nião para decidir o seu futuro
saiu, finalmente, fumo branco:
seguiria Farmácia. Malas feitas
rumo ao Porto, onde se cumpre
mais um capítulo da história de
Odete Isabel.
PERCURSO INVEJÁVEL...
Durante o curso de Farmá-
cia, apaixonou-se pelas análises
clínicascomamesmaforçacom
que rejeitou a“farmácia de ofici-
na”, escolha mais comum para
quem cursava naquela área. A
festa de formatura, na Mealha-
da, foi um verdadeiro aconte-
cimento, um almoço ao puro
estilo bairradino: leitão, batata,
vinho, pão e laranja. O futuro,
contudo, continuava a não ser
na Bairrada, por isso voltam as
malas e segue-se Lisboa.
Começa a caça ao primeiro
emprego, ontem como hoje um
processo complexo: “Que pena
não ser dactilógrafa, que pena
não ser enfermeira, diziam-me.
No fundo, que pena eu não ser
outra coisa qualquer. Aquilo
que eu era, as pessoas não valo-
rizavam”. Um encontro fortuito
acabaria por ditar a sua sorte.
No autocarro revê uma colega
de curso que lhe faz esmorecer
a paixão pelas análises clínicas,
dadas as dificuldades em ar-
ranjar emprego na área. Como
a melhor forma de curar um
desgosto de amor é com nova
paixão, a farmácia hospitalar
conquista o coração de Odete
Isabel.
Próxima paragem: Hospital
de São José. O factor sorte defi-
ne, novamente, o resultado. “A
chave fundamental para a mi-
nha carreira posterior é que, em
vez de entrar pelo sítio que dizia
‘Farmácia’, entrei por onde dizia
‘Administração’. O Administra-
dor-Geral achou que eu era tão
atrevida que, após um diálogo
interessantíssimo, liga para a
farmácia do hospital e pergunta
se há lugar. No dia seguinte, às
nove da manhã, estava a traba-
lhar no Hospital de São José”.
Osensinamentoseafilosofia
detrabalhoquelálheincutiram,
foram as traves mestras para os
seus futuros projectos. Depois
de alguns anos em Lisboa, pas-
sa, a convite do então Director-
Geral das farmácias hospitala-
res, Professor Carlos Silveira, a
fazer parte dessa estrutura. A
sua função seria supervisionar
as farmácias hospitalares da
região Norte. “No Porto fiz um
trabalho muito bom e, depois
disso, chegou a vez de Coimbra.
Vim para o Centro Hospitalar de
Coimbra (CHC) no dia 4 de Mar-
ço de 1974. Era completamente
diferente, não havia o mínimo
de condições na farmácia hos-
pitalar.Valeu-nos o 25 de Abril e
a minha nomeação para o Con-
selho de Administração do CHC.
Vesti aquela camisola a sério du-
rante 20 anos”.
Algumas divergências com
o então Presidente do Conselho
de Administração, Dr. João An-
dré Moreno, precipitaram a sua
saída para os Hospitais da Uni-
versidade de Coimbra (HUC),
no dia 10 de Outubro de 1995,
onde esteve até terminar a sua
carreira, a 25 de Abril último.
E MÉRITO RECONHECIDO
Foram 45 anos dedicados
às Ciências Farmacêuticas, que
lhe valeram o reconhecimento
de amigos, colegas e do pró-
prio Ministério da Saúde, que a
agraciou com a Medalha de Ser-
viços Distintos de Grau Ouro. A
estadistinção,viujuntar-seuma
placa de homenagem nos servi-
ços farmacêuticos dos HUC e
um jantar comemorativo que
juntou dezenas de pessoas.
Faz questão de atribuir res-
ponsabilidades no seu êxito pro-
fissional, reconhecido em múl-
tiplas ocasiões, às equipas que
chefiava: “Desta Medalha eu só
tenho dez por cento. Os restantes
noventa por cento são de todos
aqueles que me aturaram estes
anos, a quem a ofereci com todo
o meu coração. Ninguém faz
nada sozinho”.
Agora que finda um ciclo,
outro começa. Até porque Ode-
te Isabel pretende ter o tempo
tão ocupado como antes: “Vou
ligar-me aos aspectos humanís-
ticos porque há alguma desilu-
são com a Política. Vou dedicar-
me a tudo o que seja ligado a
questões de homens e mulheres
livres e bons,à Humanidade.São
os meus padrões de vida.A partir
de agora só quero ajudar”.
Uma vida de batalhas, tra-
vadas sempre com garra, sendo
que a mais difícil foi contra um
cancro de mama, tinha 49 anos,
“não só pelo aspecto físico, mas
também pelo psicológico. Sou
uma mulher vaidosa mas tenho,
como dizia minha mãe,uma ca-
racterística assinalável. Se a Ser-
ra do Buçaco me caísse em cima,
eu haveria de arranjar maneira
de sair de lá de baixo.E assim foi.
Quandoaadversidademeataca,
eu reajo e procuro sempre encon-
trar um caminho de saída”.
Quando
a determinação
se faz gente
B.I. Maria Odete Isabel nasceu a 14 de Julho de 1940, “numa aldeia esquecida da Freguesia
dos Covões, Concelho de Cantanhede, chamada Montouro”. É gandaresa nas origens, mas bairradina
no coração: “Muito cedo fui para a Mealhada, pois os meus pais, numa ânsia de melhorarem as
condições de vida (eram comerciantes de peixe, naquela altura quase almocreves), ali se decidiram
fixar. Hoje considero-me uma pessoa do Montouro mas, fundamentalmente, mealhadense”.
Foi eleita Presidente da Câmara Municipal da
Mealhada, logo após o 25 de Abril, uma das primeiras
mulheres no País a liderar um executivo municipal
FILIPA DO CARMO
filipadocarmo@aurinegra.com

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Guardo a imagem de, em muito tenra ida- de, talvez com quatro anos, ter sido castigada por ela. Roubei- lhe milho cozido, de uma enor- me panela de ferro, milho esse destinado aos porcos”. Com ou sem castigos (me- recidos, segundo nos faz saber), foram tempos felizes partilha- dos com a irmã, em que rece- beram ensinamentos preciosos. “Os meus pais tinham muitas terras mas, naquela altura, não havia dinheiro. A maior riqueza deles eram três coisas: andar na rua sempre de cara levantada, usar a verdade e entender o tra- balho como meio de se conseguir qualquer objectivo. São estes três vectores que norteiam, ainda hoje, a minha vida”. Embarga- se-lhe a voz e assomam-lhe aos olhos teimosas lágrimas, que a coberto do tom íntimo da con- versaláconseguiramvingar.De- terminação não é sinónimo de insensibilidade, e emoção não revela fraqueza: “Gostava muito que os meus pais estivessem co- migo nesta fase maravilhosa da minha vida”. ESPÍRITO LIVRE ENJAULADO Onegóciodefamíliaprospe- rava e Manuel, o pai, imaginava o futuro das filhas seguindo as suaspisadas.JáLaurinda,amãe, tinha outros planos. Queria que estudassem, para que escolhes- sem o seu próprio destino: “O meu pai queria braços para o ajudarem mas a minha mãe di- zia-lhe ‘deixa ir as meninas’. Ele acedeu, mas só até à 4.ª classe. A minha mãe queria mais, aca- bando por fazer um pacto com a minha professora primária, deixando-me estudar até que eu reprovasse. Foi assim que mais tarde cheguei até à Faculdade”. Antes da Faculdade, ainda veio a adolescência. O corpo de criança ia ganhando contor- nos de mulher e a irreverência e frontalidade de Odete Isabel iam-se sublimando. De tal for- ma que os seus pais, impotentes perante tamanho desafio, deci- dem enviá-la para um colégio de freiras em Famalicão: “Inter- na, eu, uma mulher livre desde que me conheço! Não era pos- sível, uma pessoa como eu que gostava de andar descalça na rua, ali com tantas regras, sem poder sair de casa”. Tinha 11 anos quando dei- xou a casa dos pais, rumo a uma nova vida, diferente, que faria sua por seis anos: “Acabei por gostar tanto das freiras que, quando fui para o Porto para a Faculdade, voltei para lá. Neste momento presto-lhes uma ho- menagem, pois penso que foram em grande parte responsáveis, a par dos meus pais, pela minha personalidade”. Foi no colégio que começou a interessar-se pela área das Ciências. Primeiro sonhou ser cirurgiã. Uma combinação de preconceitos em relação à mu- lher e conselhos contrários de um médico amigo da família, fi- zeram-na acordar. De uma reu- nião para decidir o seu futuro saiu, finalmente, fumo branco: seguiria Farmácia. Malas feitas rumo ao Porto, onde se cumpre mais um capítulo da história de Odete Isabel. PERCURSO INVEJÁVEL... Durante o curso de Farmá- cia, apaixonou-se pelas análises clínicascomamesmaforçacom que rejeitou a“farmácia de ofici- na”, escolha mais comum para quem cursava naquela área. A festa de formatura, na Mealha- da, foi um verdadeiro aconte- cimento, um almoço ao puro estilo bairradino: leitão, batata, vinho, pão e laranja. O futuro, contudo, continuava a não ser na Bairrada, por isso voltam as malas e segue-se Lisboa. Começa a caça ao primeiro emprego, ontem como hoje um processo complexo: “Que pena não ser dactilógrafa, que pena não ser enfermeira, diziam-me. No fundo, que pena eu não ser outra coisa qualquer. Aquilo que eu era, as pessoas não valo- rizavam”. Um encontro fortuito acabaria por ditar a sua sorte. No autocarro revê uma colega de curso que lhe faz esmorecer a paixão pelas análises clínicas, dadas as dificuldades em ar- ranjar emprego na área. Como a melhor forma de curar um desgosto de amor é com nova paixão, a farmácia hospitalar conquista o coração de Odete Isabel. Próxima paragem: Hospital de São José. O factor sorte defi- ne, novamente, o resultado. “A chave fundamental para a mi- nha carreira posterior é que, em vez de entrar pelo sítio que dizia ‘Farmácia’, entrei por onde dizia ‘Administração’. O Administra- dor-Geral achou que eu era tão atrevida que, após um diálogo interessantíssimo, liga para a farmácia do hospital e pergunta se há lugar. No dia seguinte, às nove da manhã, estava a traba- lhar no Hospital de São José”. Osensinamentoseafilosofia detrabalhoquelálheincutiram, foram as traves mestras para os seus futuros projectos. Depois de alguns anos em Lisboa, pas- sa, a convite do então Director- Geral das farmácias hospitala- res, Professor Carlos Silveira, a fazer parte dessa estrutura. A sua função seria supervisionar as farmácias hospitalares da região Norte. “No Porto fiz um trabalho muito bom e, depois disso, chegou a vez de Coimbra. Vim para o Centro Hospitalar de Coimbra (CHC) no dia 4 de Mar- ço de 1974. Era completamente diferente, não havia o mínimo de condições na farmácia hos- pitalar.Valeu-nos o 25 de Abril e a minha nomeação para o Con- selho de Administração do CHC. Vesti aquela camisola a sério du- rante 20 anos”. Algumas divergências com o então Presidente do Conselho de Administração, Dr. João An- dré Moreno, precipitaram a sua saída para os Hospitais da Uni- versidade de Coimbra (HUC), no dia 10 de Outubro de 1995, onde esteve até terminar a sua carreira, a 25 de Abril último. E MÉRITO RECONHECIDO Foram 45 anos dedicados às Ciências Farmacêuticas, que lhe valeram o reconhecimento de amigos, colegas e do pró- prio Ministério da Saúde, que a agraciou com a Medalha de Ser- viços Distintos de Grau Ouro. A estadistinção,viujuntar-seuma placa de homenagem nos servi- ços farmacêuticos dos HUC e um jantar comemorativo que juntou dezenas de pessoas. Faz questão de atribuir res- ponsabilidades no seu êxito pro- fissional, reconhecido em múl- tiplas ocasiões, às equipas que chefiava: “Desta Medalha eu só tenho dez por cento. Os restantes noventa por cento são de todos aqueles que me aturaram estes anos, a quem a ofereci com todo o meu coração. Ninguém faz nada sozinho”. Agora que finda um ciclo, outro começa. Até porque Ode- te Isabel pretende ter o tempo tão ocupado como antes: “Vou ligar-me aos aspectos humanís- ticos porque há alguma desilu- são com a Política. Vou dedicar- me a tudo o que seja ligado a questões de homens e mulheres livres e bons,à Humanidade.São os meus padrões de vida.A partir de agora só quero ajudar”. Uma vida de batalhas, tra- vadas sempre com garra, sendo que a mais difícil foi contra um cancro de mama, tinha 49 anos, “não só pelo aspecto físico, mas também pelo psicológico. Sou uma mulher vaidosa mas tenho, como dizia minha mãe,uma ca- racterística assinalável. 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