1. E QUANDO O VÍCIO RASPA A DIGNIDADE?
Naquela repousante neblina que cobria a pequena Mumbuca, povoado quase imperceptível situado no município de Coité do Nóia, interior de Alagoas, e ainda deslumbrado com a beleza natural do lugarejo vou conduzindo-me pelos caminhos esburacados deixados pela chuva que caíra na noite anterior. Adentrando-me pelas lavouras que trazem verde a pequena paisagem sigo em direção até o centro da minha cidade.
Era uma manhã calma e sadia, e caminhando pelas ruas de Coité do Nóia visualizava a grande multidão de comerciantes da feirinha dominical. Todos bem colocados com suas artes, cheios de talento para o marketing. Colaboravam sem dúvida para o avanço da nossa cidade. Uma grande multidão de consumidores em meio a frutas, legumes e verduras compravam alimentos que acabara de sair dessas terras. Em minha mente não consigo deixar de lembrar- me das aulas de História e perceber naquela cena a redescoberta do capitalismo que surgiu durante o desenvolvimento da burguesia.
Apesar de sentir-me encantado com o cenário, meu destino era outro. Entrar no reduto ao lado do ginásio de esportes, naquela barbearia estreita, e repor minha cabeça às mãos casquentas de seu Zé. Um homem de vida alegre, flamenguista de coração e de porte baixo.
Como de costume cumprimento a todos e sinto-me que sou a figura do salão. Ambiente cheio de senhores que interagem uns com os outros e trazem como tema de suas conversas: a vida. Não há lugar que se tenha grandes estórias como um salão de cabelereiro. Não é simplesmente um ambiente que se corta cabelos. É um lugar onde se refaz e respeitam- se identidades. Ambiente agradável, onde se reencontram amigos e inimigos. Sua importância não está apenas em restaurar a beleza, ou raspar as barbas suadas de muitos, mas em ser um passatempo que trás sentido aos domingos daquela cidade interiorana.
A espera foi longa, mas repousei naquela cadeira que trazia luxo ao lugar desde a infância de muitos até a velhice de poucos. Um fardo para alguns. Para ela, o sentimento de servir a vida.
Fico a observar naquela sala empoeirada cabelos de várias formas: loiro, ruivo, liso, crespo e até mesmo pixaim. E há quem diga que as mãos de seu Zé não são abençoadas. Um paradoxo, diante do tratamento dado para todos aqueles tipos de cabelos. Após o término do que poderia chamar de “novo eu” fico abismado diante do espelho, mas recolho-me até o banco ao lado. Dando a vez para o próximo sortudo.
Mesmo chegando ao fim do que buscara naquele lugar, continuo ali, na expectativa de ouvir novas estórias contadas por aqueles senhores. De repente, vi uma criatura torcida de vícios miseráveis, adentrar no salão. A figura trazia pena aos olhos da beleza, da paz e do respeito. Sentando-se ao meu lado, falou:
_ Bom dia a rapaziada! Ei tio! Tem como dá um trato aqui no meu cabelo?
_ Como você quer cortar seu cabelo? Fala Zé ao sujeito.
_ Quero que passe a zero.
_ Tá certo. Sente-se aqui. Responde Zé.
O silêncio, com seu tom desconfiado, inunda aquele minúsculo salão. Era como se todos sentissem a dor daqueles belos fios loiros sendo decapitados da cabeça do rapaz. Ouvia- se apenas o barulho da máquina e viam-se as mãos de seu Zé um pouco trêmulas após ser surpreendido pelo segundo pedido do rapaz: raspar a sobrancelha. Parecia que aquele Ser queria mostrar-se totalmente a margem e distanciado da imagem de “bom rapaz” da sociedade coiteense.
O barulho daquela máquina raspando a dignidade daquele futuro homem e a imagem daquela face sem sobrancelha, que mais parecia um monge budista sem sabedoria, despertou- me o medo. Medo das gerações futuras, da insegurança sobre o mal que o homem criou para saciar seu prazer. O medo da falta de amor, não o amor ao próximo, mas a falta de amor a si mesmo. No fim todos estavam surpreendidos. O sujeito? Aquele que poderia ter tudo pela frente? Saía sorridente, voltando para o vício repugnante da periferia da nossa cidade. Sumindo em meio à feira daquela manhã.
Autor: José Kelvin