Telma amava profundamente Jorge, mas ele acabou se apaixonando e casando com a irmã dela, Sílvia. Apesar de ter ajudado os dois a ficarem juntos, Telma sofre intensamente com o abandono e a solidão, lembrando-se do amor não correspondido por Jorge.
1. Diário
Sílvia e Jorge casaram ontem. Uma voz dentro de mim dizia-me
há muito já que isto tinha de acontecer mais tarde ou mais cedo.
Questão de intuição. No entanto... sofro.
Sílvia... Pequena, rosada, muito loira e muito frágil, a minha irmã
era realmente um encanto, um amor de rapariga.
Quem a vê, assim, a sorrir, de estrelas nos olhos e cerejas na boca,
não será capaz de acreditá-la caprichosa e triste.
Mas, eu conheço-a. Estes meus braços substituíram os da nossa
mãe e neles encontrou Sílvia todo o meu amor, toda esta dedicação
profundamente grande... Conheço-a e quero-lhe tanto, apesar
daquela festa de ontem... desta certeza que desceu sobre mim de
que o sol não voltará a brilhar na minha vida...
Querida irmã! Recordo... Sinto a alma vazia de tanto recordar!...
Saltitante, alegre, muito loira e frágil, caminhava a meu lado,
equilibrando-se na berma do passeio, cantarolando uma canção de
Amor... E eu olhava-a, fascinada de tanta beleza e graciosidade.
Éramos as irmãs mais felizes, diziam. Na esquina da rua
encontrámos o Jorge. O Jorge... Conheceste-o? Não era o que se
chama um perfeito rapaz, mas eu gostava dele, sabia-o senhor de
uma alma grande, boa transparente. Conheci-o num serão em casa
dos Veigas. Depois, mais tarde, quando me empreguei na secção de
decoradores, fui encontrá-lo ao lado de outros empregados.
Reconhecemo-nos e ficamos amigos. Era um poeta, o Jorge.
Lembro-me bem do dia em que descobri que o amava mais que a
Sílvia, mais que a vida... Dobrava uns papéis, toda inclinada na
minha mesa... De repente, ele exclamou estendendo um braço até
me tocar:
- Não te mexas, Telma! Que maravilhosos reflexos tem o teu
cabelo!
Quando se é nova, principalmente quando se é tímida e feia, os
elogios são pérolas encontradas na poeira... E eu, ruborizada,
atónita, profundamente admirada com a atitude inesperada de
Jorge, apanhei a pérola e guardei-a cá dentro, onde ele morava já há
longos meses. E fiquei à espera que ele pudesse descobrir...
Num desses passeios que dava, na esperança de o encontrar, levei
Sílvia comigo. Pus o vestido azul... Não me dizia o Jorge que o azul
ficava bem à minha pobre cor dos trigais!?
2. Encontrámo-lo ao dobrar da esquina...
- Jorge, a minha irmã Sílvia!
Olhou-me risonho, e estendendo-lhe as mãos abertas, exclamou:
- Não me tinhas dito que tinhas uma irmã tão encantadora! ...
Sílvia riu. Riu muito, naquele jeito seu de rir, docemente,
lentamente, como se acariciasse uma criança... E Jorge viu nela a
imagem do Amor!
No entanto, para mim, esse encontro não contou. Estava tão
certa do Amor de Jorge apesar do silêncio!...
Depois... as pessoas do nosso bairro passaram a ver-nos aos
domingos de tarde; de braço dado, alegres, confiantes, ciosos de
viver! Como éramos felizes, meu Deus! A verdade é que Jorge vivia
mais perto de mim... Quantas vezes o surpreendi a fitar-me
longamente, como ensaiando uma conversa diferente? Nesses
momentos um caudal de emoção deslizava dentro de mim e a
timidez emudecia-me. Sílvia e Jorge entendiam-se
maravilhosamente. A infantilidade da minha irmã divertia-o. A
minha placidez fazia-o serenar. Quando os via brincar como
garotos, gritava-lhes:
- Como sois crianças!
Eles sorriam muito... de mãos dadas... e eu parecia ler nos olhos
de Jorge...
Sílvia, uma tarde, falou-me na enorme admiração que Jorge
nutria por mim, na nossa amizade, no nosso profundo
entendimento... Brinquei, receosa que os meus olhos deixassem
transparecer o meu segredo. Respondeu-me: - Tenho a certeza de
que o Jorge seria para ti o marido ideal...
Comoveu-me a seriedade com que acompanhou tal afirmação e
olhei-a subitamente. Sorria-me de olhos brilhantes. Sosseguei.
Tolices! Era tão nova...
Até que um dia...
- O Jorge telefonou. Espera-nos no jardim...
- Não vou, querida. Parece-me que ele quer falar-te em segredo...
Achas que devo ir?
A surpresa entonteceu-me. Ele ia finalmente dizer-me, falar...
Meu Deus! Teria contado os degraus da escada nesse dia? A alegria
cega, sufoca, aprisiona, põe-nos asas na alma e nos pés.
Quando cheguei ao jardim fui encontrá-lo todo inclinado sobre os
canteiros em flor. Olhei-o enternecida.
- Jorge!
3. - Ó Telma! Vieste...
- Sim, vim...
- Sentemo-nos, queres?
- Pois. Mas...
- Sabes... Queres... Quero dizer-te Eu, tu... compreendes...
- ... ...
- É que... Escuta Telma: Sei que Sílvia é uma criança, muito nova,
mas eu amo-a perdidamente. Tenho vivido numa expectativa
tremenda, à espera que descobrisses o meu segredo para me
ajudares, mas tu... enfim... andas preocupada talvez, com os teus
problemas... Prometo-te que a farei feliz... Esperarei dois, três
anos... o tempo que queiras. Leio no teu rosto uma sombra de
inquietação... Não. Telma. Tenho a certeza que a farei feliz...
Ergui-me. Estendi-lhe as mãos num gesto de oferta e consegui
murmurar:
- Ó Jorge! Que surpresa... E... Sílvia?
- Telma, eu... Peço-te que lho digas... Umas vezes creio que me
ama... outras...
- Sim, dir-lhe-ei. Vem comigo.
Atravessamos a rua. Gente risos, sol, e dentro de mim aquele
ruído de cristais a partir... Dor. Desengano. Aniquilamento total.
Subi as escadas lentamente. Sílvia veio receber-me. Parecia
angustiosamente preocupada.
Estendi-lhe os braços, apertei-a contra mim e disse-lhe de rosto
escondido:
- Sílvia... O Jorge espera-te lá em baixo. Sê compreensiva. Ele...
ama-te!
- Oh! Isso não é verdade... O Jorge... Ó Telma! Ó Telma, como
sou feliz!
Soltei-a. Aquela alegria fazia-me mal. Olhou-me rosada, ofegante
como se fosse morrer...
- E eu... eu a pensar que ele gostava de ti, que vós íeis casar... Ó
Telma! Então... então posso ir dizer-lhe... então posso descer e
dizer-lhe que... que... também o amo?
Não sei se lhe respondi. Foi um novelo branco que eu vi deslizar
escadas abaixo em direção aos braços que a reclamavam.
Passaram primaveras de luz e outonos de sombras. Entretanto,
Jorge vinha encher de flores a nossa casa, de esperança o coração de
Sílvia, de dor a minha pobre alma abandonada. Bordei para ela um
enxoval de rendas e para os dois construí uma Felicidade sem par.
4. Vivi dias após dias a realidade de hoje... E ontem, quando os levei à
Igreja, senti dentro de mim a certeza de que a vida será doravante
uma manta de farrapos, onde terei de embrulhar o meu futuro.
Jorge nunca saberá o segredo das minhas horas vazias... Sílvia
nunca encontrará no seu caminho os fantasmas do meu
recolhimento...
Eles... Eles casaram ontem! Fiquei só. Fiquei só com as minhas
recordações, nesta casa enorme de janelas sem cortinas, toda
voltada para o pátio sujo, onde os gritos das crianças da rua são
como brados de gaivotas famintas. Gaivotas famintas!
Terão alma as gaivotas? Como a minha, talvez...
Sofro. Não, eles nunca poderão adivinhar porque... me querem.
Antes de partir vieram abraçar-me. Disse-me a Sílvia:
- Até à volta, querida!
Disse Jorge:
- Adeus, «minha irmã!» Cá levo a «tua filha».
«A tua filha...» Sorri-lhes. Juntei-lhes as mão e articulei:
- Ide. Sede felizes. Deus vos faça felizes!
«Felizes...» Que poderia dizer-lhes? Ó Meu Deus, que poderia
dizer-lhes?
Sílvia e Jorge casaram ontem.
Partiram ao encontro da vida. Se eles voltarem, Senhor, que
venha com eles a certeza duma Felicidade sem nuvens, enorme,
maravilhosa e profunda, que me faça renascer matando em mim
esta amargura! Se eles voltarem; Senhor, que venha com eles a
esperança radiosa dum riso de bebé, capaz de preencher estes meus
braços vazios de tanto dar sem nada receber!...
Maria Helena Amaro
In, «Maria Mãe», 1973, p. 169-172.
Data da conclusão da edição no blogue – 21 novembro de 2014
http://mariahelenaamaro.blogspot.pt