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Assobiando à vontade, Mário Dionísio Página 1
ASSOBIANDO À VONTADE, Mário Dionísio
Àquela hora o trânsito complicava-se. As lojas, os escritórios, algumas oficinas, atiravam para a rua
centenas de pessoas. E as ruas, as praças, as paragens dos elétricos, que tinham sido planeadas quando não havia
nas lojas, nos escritórios e nas oficinas tanta gente, ficavam repletas dum momento para o outro. Nos largos
passeios das grandes praças havia encontrões. As pessoas de aprumo tinham de fechar os olhos àquele desacato e
não viam remédio senão receber e dar encontrões também e praguejar algumas vezes. Os elétricos apinhavam-se na
linha à frente uns dos outros. Seguiam morosamente, carregados até aos estribos e por fora dos estribos, atrás, no
salva-vidas, com as tais centenas de pessoas que saltavam àquela hora apressadamente das lojas, dos escritórios,
das oficinas. Além disso, nos dias bonitos como aquele, as ruas da Baixa enchiam-se de elegantes que iam dar a sua
volta, às cinco horas, pelas lojas de novidades e pelas casas de chá, para matar o tempo de qualquer maneira, ver
caras conhecidas, cumprimentar e ser cumprimentadas, e só voltavam a casa à hora do jantar.
A multidão propunha uma confraternização à força. Era preciso pedir desculpa ao marçano que se acabava
de pisar, implorar às pessoas penduradas no elétrico que se apertassem um pouco mais para se poder arrumar um
pé, nada mais que um pé, num cantinho do estribo, muitas vezes sorrir para gente que nunca se tinha visto antes e
apetecia insultar. Os elegantes e as elegantes achavam naturalmente tudo isto muito aborrecido. Sobretudo a
necessidade absoluta de seguir naquelas plataformas repletas em que não viajavam só cavalheiros, mas muitos
homenzinhos pouco corretos e onde esses mesmos homenzinhos e mulheres vulgares deitavam um cheiro
insuportável. Que fazer, no entanto, senão atirar-se uma pessoa também para aquele mar de gente que empurrava,
furava, pisava e barafustava até chegar ao carro? Que fazer senão empurrar, furar, pisar e barafustar também?
O carro seguia morosamente e repleto como os outros. Felizmente, ainda havia alguns homens corretos na
cidade e algumas mulherezinhas que conheciam o seu lugar. Só graças a isso as senhoras que tinham arriscado os
seus sapatos e os seus chapéus naquela refrega e alguns cavalheiros respeitáveis conseguiam sentar-se.
Nos primeiros momentos de viagem, as pessoas voltavam-se nos bancos, preocupadas, tentando ver se o
marido, uma amiga, um filho, não teriam ficado em terra. Os que seguiam de pé ousavam dar um passo no interior
do carro, a ver se teria ficado algum lugar vago por acaso. Havia logo protestos na plataforma. Depois as pessoas
acomodavam-se o melhor que podiam, punham os braços no ar para livrar os embrulhos do aperto, fechavam bem
os casacos e as malas onde levavam o dinheiro, o condutor puxava energicamente o cordão da campainha muitas
vezes, lotação completa, e o carro arrastava-se em silêncio.
Os senhores respeitáveis, com compreensível e muda zanga dos companheiros do lado, começavam a
desdobrar os jornais da tarde e a ler as notícias por alto. As senhoras, visivelmente mal dispostas, compunham os
chapéus e as golas dos casacos. Tiravam os espelhinhos da mala e passavam tudo em revista: o chapéu, os cabelos,
os olhos, os lábios. Era incrível. Uma tinha ficado com o chapéu completamente de banda, outra perdera uma luva
na confusão. Depois guardavam os espelhos, acomodavam-se melhor, percorriam com os dedos os anéis duma mão
e da outra, para ver se estavam no lugar, se estavam todos. Olhavam umas para as outras, muito sérias, como quem
não repara em nada. Recuperavam pouco a pouco a dignidade que aquele despropósito da subida para o carro
evaporara.
Nas curvas, as rodas chiavam nas calhas, debaixo do grande peso. Silêncio enfim — embora de vez em
quando cortado pela campainha, quando alguém tinha a triste ideia de querer descer, pelo desdobrar dos jornais,
pela voz dos populares, encaixados na plataforma da frente.
Tudo voltara à normalidade. A marcha do carro, a cobrança dos bilhetes, a separação entre as pessoas, que
rigorosamente não conseguiam separar-se umas das outras um centímetro que fosse. E, assim, morosamente, por
curvas e retas, por ruas e praças, aquele carro cumpria o seu destino de acarretar gente e ser insultado, numa das
Assobiando à vontade, Mário Dionísio Página 2
várias linhas que ligavam o centro da cidade aos bairros relativamente novos, onde a separação entre a chamada
classe média e as camadas mais baixas da população não fora ainda convenientemente estabelecida.
Em dada altura, porém, na plataforma de trás levantou-se burburinho. Protestos. Indignação. Cabeças
voltaram-se no interior do carro. E viu-se um homenzinho a empurrar toda a gente e a dizer que havia lugares à
frente, que o deixassem passar. Em vão lhe asseguravam que não havia lugar nenhum, que não podia passar, que
não fosse bruto. O homem empurrava e teimava que havia lugares à frente. Tanto empurrou que furou. Tanto furou
que conseguiu entrar no interior do elétrico, avançou e foi sentar-se num lugar de lado que estava efetivamente
vago lá à frente, ao lado duma senhora por sinal opulenta.
Foi um espanto geral e silencioso. Ninguém tinha reparado no lugar. E menos que ninguém, como é fácil
de compreender, a própria senhora opulenta. Todos os atrevidos têm sorte.
O homem, que usava um chapéu coçado e um sobretudo castanho bastante lustroso nas bandas, não se
sentou propriamente. Enterrou-se no lugar, com as mãos enfiadas pelas algibeiras dentro. Que sujeito! Devia ser
mais novo do que parecia por causa do cabelo grisalho e da barba por fazer. A senhora opulenta franziu a testa e
remexeu-se no lugar, se assim se pode dizer, como quem procura ocupar menos espaço. Na verdade, apenas se
instalou melhor. A sua intenção era fazer o homenzinho reparar na inconveniência da atitude que tomara. Mas ele
não viu nada disso ou fingiu que não viu. Olhou vagamente as pessoas que tinha na frente, estendeu os lábios e
começou a assobiar. A assobiar muito à vontade no interior do carro!
Primeiro, foi um assobio baixinho, pouco seguro, impercetível quase. Depois, a pouco e pouco, o sujeitinho
entusiasmou-se. E o assobio aumentou de intensidade. Ouvia-se já em todo o elétrico. Os passageiros, que tinham
recuperado com tanto custo a sua dignidade, fingiam que não davam pelo homem nem pelo assobio. E sossegaram
quando o condutor se dirigiu ao recém-vindo. Ia aconselhá-lo a calar-se, com certeza. Mas qual! Com o maço dos
bilhetes na mão e de alicate espetado, limitou-se a dizer: «O senhor?» O passageiro tirou a mão da algibeira e, sem
deixar de assobiar, estendeu-a com a palma voltada para cima. Esperou que lhe levassem a moeda, recebeu o
bilhete e tornou a enfiar a mão pela algibeira dentro. Toda a gente seguia a cena, interessada. Mas, quando o
homem olhou as pessoas, ao acaso, voltaram todas os olhos como se ele afinal não existisse.
O assobio, umas vezes, era baixo, mal se ouvia, outras vezes, alto, muito alto, com trinados ridículos e
irritantes. Ninguém sabia o que ele assobiava. E o homem também não. Qualquer coisa que lhe apetecia que fosse
assim mesmo. Às vezes repetia os sons como um estribilho. Outras vezes, porém, a maior parte das vezes, passava
a novas combinações, ora brandas, ora violentas, sem querer saber para nada das que ficavam para trás.
As pessoas começavam a olhar umas para as outras à socapa. Já se tinha visto coisa assim? Um ou outro
cavalheiro levantava os olhos do jornal, franzia a testa, fitava com dureza o homem do chapéu coçado e sobretudo
castanho, na esperança de que ele, envergonhado, parasse com aquilo. A senhora opulenta, no auge do espanto,
nem se atrevia a olhar para lado nenhum, vexadíssima porque, sem ter culpa nenhuma, se encontrava em plena
zona do escândalo. A que uma pessoa está sujeita!
E, no silêncio do carro, o assobio aumentava de volume. Talvez, no fundo, aquele gorjeio ridículo não fosse
desagradável de todo. Simplesmente, um elétrico não é o local mais próprio para exibições daquelas. Porque não
interferiria o condutor? O condutor era a autoridade do carro. Porque não interferiria? Estava-se a ver. Era tão bom
como ele. A verdade, porém, é que não se conhecia nenhum regulamento que impedisse os passageiros de assobiar.
Colados aos vidros do elétrico, havia papéis que proibiam fumar, cuspir no carro. Era proibido abrir as janelas
durante os meses de inverno. Mas nem uma palavra a respeito de assobios.
De repente, uma criança que ia sentada junto duma janela e já se sentia enfastiada de olhar para a rua
interessou-se pelo homem. Achava-lhe tanta graça, com o seu chapéu coçado, o seu sobretudo castanho, o seu
assobio... Era uma criança muito pálida, de cabelos louros e encaracolados, vestida de azul. Interessou-se tanto pelo
homem que começou a bater palmas. Mas uma senhora nova e bonita, que ia ao lado dela, segurou-lhe as mãos
com gentileza e afastou-lhas. Devia ir calada e quietinha. Era muito feio fazer barulho no elétrico. Uma menina
bonita não fazia barulho. «Que disse eu à minha filha?» No entanto, a senhora nova e bonita não antipatizava com o
Assobiando à vontade, Mário Dionísio Página 3
homem. Olhava os embrulhos de papel vistoso que trazia nos joelhos e pensava: se não pudesse mais e começasse
também a assobiar? No fundo, admirava a sem-cerimónia do homem do chapéu coçado. Não seria adorável ela
própria, uma senhora casada e mãe duma garota de cinco anos, começar a assobiar num elétrico se lhe apetecesse?
Quando era da idade da filha, a senhora bonita ia muitas vezes ao campo vestida com coisas velhas para poder
atirar-se para a relva à vontade. Tinha uma voz muito suave e muito fresca, gostava de fazer precisamente aquilo
que uma menina bonita não deve fazer. Os amigos do pai pegavam-lhe ao colo, atiravam-na ao ar. E ela ria, ria, ria
até ficar sufocada. A mãe dizia: «Pronto, pronto, vamos a ter juízo, não se ri assim dessa maneira.» E, quanto mais
lho diziam, mais lhe apetecia rir, rir, rir.
De vez em quando, um passageiro saía. A plataforma do carro ia-se esvaziando. E, pouco a pouco, os que
ficavam foram-se habituando àquele estúpido assobio. Os cavalheiros tinham esquecido os jornais. Algumas
senhoras sorriam. Já se vira um disparate assim? Principalmente a senhora opulenta não podia mais. Apertava os lá-
bios. Sentada num banco de lado, encontrava os olhos de toda a gente. Era irresistível. E a senhora bonita pensava
em ar livre e nos tempos da infância. Na escola aprendera a assobiar e a lançar o pião. Havia vozes que tinham
ficado dentro dela: «Uma menina a assobiar, Nini?»
Em dada altura, o homem, sem deixar de assobiar, levantou-se e puxou o cordão da campainha. Era um
homenzinho insignificante, ainda novo e já de cabelos grisalhos, chapéu coçado, sobretudo castanho muito lustroso
nas bandas. Mas havia nele uma indiferença soberana pelo elétrico inteiro. Toda a gente o olhava. Com desprezo?
Com ironia? Com inveja? Abriu a porta, fechou-a e saltou com o carro ainda em andamento.
As pessoas voltaram-se então umas para as outras, não resistiram mais e riram mesmo. Que homenzinho
patusco! Desculpavam-se, explicavam-se sem palavras. Entendiam-se. Um minuto de simplicidade e simpatia
iluminou-as. A criança que batera palmas limpou com a mão o vidro embaciado da janela à procura do estranho
passageiro. Viu-o atravessar a rua, seguir pelo passeio agarrado às casas, desaparecer.
Só então a senhora nova e bonita, que era a mãe da criança, abriu os olhos. Ninguém hoje lhe chamava
Nini. Nini era a filha. Ela agora é que dizia à filha: «Uma menina a assobiar, Nini! Uma menina bonita não faz
barulho.»
Ficara nos lábios e nos olhos de todos um sorriso de bondosa ingenuidade. Depois esse sorriso foi-se
apagando. Morreu. As pessoas tomaram consciência da sua momentânea quebra de compostura. Lembraram-se dos
seus embrulhos, dos seus anéis, dos seus jornais. Que patetice! Não havia outra palavra para aquilo. Que patetice!
Os cavalheiros recomeçaram a ler os títulos das notícias. As senhoras deram um toque nas golas dos casacos. A
criança tornou a olhar para a rua.
Tudo voltou, pesadamente, a encher-se de silêncio e dignidade.
Mário Dionísio
in O Dia Cinzento e Outros Contos

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ASSOBIANDO À VONTADE, Mário Dionísio.docx

  • 1. Assobiando à vontade, Mário Dionísio Página 1 ASSOBIANDO À VONTADE, Mário Dionísio Àquela hora o trânsito complicava-se. As lojas, os escritórios, algumas oficinas, atiravam para a rua centenas de pessoas. E as ruas, as praças, as paragens dos elétricos, que tinham sido planeadas quando não havia nas lojas, nos escritórios e nas oficinas tanta gente, ficavam repletas dum momento para o outro. Nos largos passeios das grandes praças havia encontrões. As pessoas de aprumo tinham de fechar os olhos àquele desacato e não viam remédio senão receber e dar encontrões também e praguejar algumas vezes. Os elétricos apinhavam-se na linha à frente uns dos outros. Seguiam morosamente, carregados até aos estribos e por fora dos estribos, atrás, no salva-vidas, com as tais centenas de pessoas que saltavam àquela hora apressadamente das lojas, dos escritórios, das oficinas. Além disso, nos dias bonitos como aquele, as ruas da Baixa enchiam-se de elegantes que iam dar a sua volta, às cinco horas, pelas lojas de novidades e pelas casas de chá, para matar o tempo de qualquer maneira, ver caras conhecidas, cumprimentar e ser cumprimentadas, e só voltavam a casa à hora do jantar. A multidão propunha uma confraternização à força. Era preciso pedir desculpa ao marçano que se acabava de pisar, implorar às pessoas penduradas no elétrico que se apertassem um pouco mais para se poder arrumar um pé, nada mais que um pé, num cantinho do estribo, muitas vezes sorrir para gente que nunca se tinha visto antes e apetecia insultar. Os elegantes e as elegantes achavam naturalmente tudo isto muito aborrecido. Sobretudo a necessidade absoluta de seguir naquelas plataformas repletas em que não viajavam só cavalheiros, mas muitos homenzinhos pouco corretos e onde esses mesmos homenzinhos e mulheres vulgares deitavam um cheiro insuportável. Que fazer, no entanto, senão atirar-se uma pessoa também para aquele mar de gente que empurrava, furava, pisava e barafustava até chegar ao carro? Que fazer senão empurrar, furar, pisar e barafustar também? O carro seguia morosamente e repleto como os outros. Felizmente, ainda havia alguns homens corretos na cidade e algumas mulherezinhas que conheciam o seu lugar. Só graças a isso as senhoras que tinham arriscado os seus sapatos e os seus chapéus naquela refrega e alguns cavalheiros respeitáveis conseguiam sentar-se. Nos primeiros momentos de viagem, as pessoas voltavam-se nos bancos, preocupadas, tentando ver se o marido, uma amiga, um filho, não teriam ficado em terra. Os que seguiam de pé ousavam dar um passo no interior do carro, a ver se teria ficado algum lugar vago por acaso. Havia logo protestos na plataforma. Depois as pessoas acomodavam-se o melhor que podiam, punham os braços no ar para livrar os embrulhos do aperto, fechavam bem os casacos e as malas onde levavam o dinheiro, o condutor puxava energicamente o cordão da campainha muitas vezes, lotação completa, e o carro arrastava-se em silêncio. Os senhores respeitáveis, com compreensível e muda zanga dos companheiros do lado, começavam a desdobrar os jornais da tarde e a ler as notícias por alto. As senhoras, visivelmente mal dispostas, compunham os chapéus e as golas dos casacos. Tiravam os espelhinhos da mala e passavam tudo em revista: o chapéu, os cabelos, os olhos, os lábios. Era incrível. Uma tinha ficado com o chapéu completamente de banda, outra perdera uma luva na confusão. Depois guardavam os espelhos, acomodavam-se melhor, percorriam com os dedos os anéis duma mão e da outra, para ver se estavam no lugar, se estavam todos. Olhavam umas para as outras, muito sérias, como quem não repara em nada. Recuperavam pouco a pouco a dignidade que aquele despropósito da subida para o carro evaporara. Nas curvas, as rodas chiavam nas calhas, debaixo do grande peso. Silêncio enfim — embora de vez em quando cortado pela campainha, quando alguém tinha a triste ideia de querer descer, pelo desdobrar dos jornais, pela voz dos populares, encaixados na plataforma da frente. Tudo voltara à normalidade. A marcha do carro, a cobrança dos bilhetes, a separação entre as pessoas, que rigorosamente não conseguiam separar-se umas das outras um centímetro que fosse. E, assim, morosamente, por curvas e retas, por ruas e praças, aquele carro cumpria o seu destino de acarretar gente e ser insultado, numa das
  • 2. Assobiando à vontade, Mário Dionísio Página 2 várias linhas que ligavam o centro da cidade aos bairros relativamente novos, onde a separação entre a chamada classe média e as camadas mais baixas da população não fora ainda convenientemente estabelecida. Em dada altura, porém, na plataforma de trás levantou-se burburinho. Protestos. Indignação. Cabeças voltaram-se no interior do carro. E viu-se um homenzinho a empurrar toda a gente e a dizer que havia lugares à frente, que o deixassem passar. Em vão lhe asseguravam que não havia lugar nenhum, que não podia passar, que não fosse bruto. O homem empurrava e teimava que havia lugares à frente. Tanto empurrou que furou. Tanto furou que conseguiu entrar no interior do elétrico, avançou e foi sentar-se num lugar de lado que estava efetivamente vago lá à frente, ao lado duma senhora por sinal opulenta. Foi um espanto geral e silencioso. Ninguém tinha reparado no lugar. E menos que ninguém, como é fácil de compreender, a própria senhora opulenta. Todos os atrevidos têm sorte. O homem, que usava um chapéu coçado e um sobretudo castanho bastante lustroso nas bandas, não se sentou propriamente. Enterrou-se no lugar, com as mãos enfiadas pelas algibeiras dentro. Que sujeito! Devia ser mais novo do que parecia por causa do cabelo grisalho e da barba por fazer. A senhora opulenta franziu a testa e remexeu-se no lugar, se assim se pode dizer, como quem procura ocupar menos espaço. Na verdade, apenas se instalou melhor. A sua intenção era fazer o homenzinho reparar na inconveniência da atitude que tomara. Mas ele não viu nada disso ou fingiu que não viu. Olhou vagamente as pessoas que tinha na frente, estendeu os lábios e começou a assobiar. A assobiar muito à vontade no interior do carro! Primeiro, foi um assobio baixinho, pouco seguro, impercetível quase. Depois, a pouco e pouco, o sujeitinho entusiasmou-se. E o assobio aumentou de intensidade. Ouvia-se já em todo o elétrico. Os passageiros, que tinham recuperado com tanto custo a sua dignidade, fingiam que não davam pelo homem nem pelo assobio. E sossegaram quando o condutor se dirigiu ao recém-vindo. Ia aconselhá-lo a calar-se, com certeza. Mas qual! Com o maço dos bilhetes na mão e de alicate espetado, limitou-se a dizer: «O senhor?» O passageiro tirou a mão da algibeira e, sem deixar de assobiar, estendeu-a com a palma voltada para cima. Esperou que lhe levassem a moeda, recebeu o bilhete e tornou a enfiar a mão pela algibeira dentro. Toda a gente seguia a cena, interessada. Mas, quando o homem olhou as pessoas, ao acaso, voltaram todas os olhos como se ele afinal não existisse. O assobio, umas vezes, era baixo, mal se ouvia, outras vezes, alto, muito alto, com trinados ridículos e irritantes. Ninguém sabia o que ele assobiava. E o homem também não. Qualquer coisa que lhe apetecia que fosse assim mesmo. Às vezes repetia os sons como um estribilho. Outras vezes, porém, a maior parte das vezes, passava a novas combinações, ora brandas, ora violentas, sem querer saber para nada das que ficavam para trás. As pessoas começavam a olhar umas para as outras à socapa. Já se tinha visto coisa assim? Um ou outro cavalheiro levantava os olhos do jornal, franzia a testa, fitava com dureza o homem do chapéu coçado e sobretudo castanho, na esperança de que ele, envergonhado, parasse com aquilo. A senhora opulenta, no auge do espanto, nem se atrevia a olhar para lado nenhum, vexadíssima porque, sem ter culpa nenhuma, se encontrava em plena zona do escândalo. A que uma pessoa está sujeita! E, no silêncio do carro, o assobio aumentava de volume. Talvez, no fundo, aquele gorjeio ridículo não fosse desagradável de todo. Simplesmente, um elétrico não é o local mais próprio para exibições daquelas. Porque não interferiria o condutor? O condutor era a autoridade do carro. Porque não interferiria? Estava-se a ver. Era tão bom como ele. A verdade, porém, é que não se conhecia nenhum regulamento que impedisse os passageiros de assobiar. Colados aos vidros do elétrico, havia papéis que proibiam fumar, cuspir no carro. Era proibido abrir as janelas durante os meses de inverno. Mas nem uma palavra a respeito de assobios. De repente, uma criança que ia sentada junto duma janela e já se sentia enfastiada de olhar para a rua interessou-se pelo homem. Achava-lhe tanta graça, com o seu chapéu coçado, o seu sobretudo castanho, o seu assobio... Era uma criança muito pálida, de cabelos louros e encaracolados, vestida de azul. Interessou-se tanto pelo homem que começou a bater palmas. Mas uma senhora nova e bonita, que ia ao lado dela, segurou-lhe as mãos com gentileza e afastou-lhas. Devia ir calada e quietinha. Era muito feio fazer barulho no elétrico. Uma menina bonita não fazia barulho. «Que disse eu à minha filha?» No entanto, a senhora nova e bonita não antipatizava com o
  • 3. Assobiando à vontade, Mário Dionísio Página 3 homem. Olhava os embrulhos de papel vistoso que trazia nos joelhos e pensava: se não pudesse mais e começasse também a assobiar? No fundo, admirava a sem-cerimónia do homem do chapéu coçado. Não seria adorável ela própria, uma senhora casada e mãe duma garota de cinco anos, começar a assobiar num elétrico se lhe apetecesse? Quando era da idade da filha, a senhora bonita ia muitas vezes ao campo vestida com coisas velhas para poder atirar-se para a relva à vontade. Tinha uma voz muito suave e muito fresca, gostava de fazer precisamente aquilo que uma menina bonita não deve fazer. Os amigos do pai pegavam-lhe ao colo, atiravam-na ao ar. E ela ria, ria, ria até ficar sufocada. A mãe dizia: «Pronto, pronto, vamos a ter juízo, não se ri assim dessa maneira.» E, quanto mais lho diziam, mais lhe apetecia rir, rir, rir. De vez em quando, um passageiro saía. A plataforma do carro ia-se esvaziando. E, pouco a pouco, os que ficavam foram-se habituando àquele estúpido assobio. Os cavalheiros tinham esquecido os jornais. Algumas senhoras sorriam. Já se vira um disparate assim? Principalmente a senhora opulenta não podia mais. Apertava os lá- bios. Sentada num banco de lado, encontrava os olhos de toda a gente. Era irresistível. E a senhora bonita pensava em ar livre e nos tempos da infância. Na escola aprendera a assobiar e a lançar o pião. Havia vozes que tinham ficado dentro dela: «Uma menina a assobiar, Nini?» Em dada altura, o homem, sem deixar de assobiar, levantou-se e puxou o cordão da campainha. Era um homenzinho insignificante, ainda novo e já de cabelos grisalhos, chapéu coçado, sobretudo castanho muito lustroso nas bandas. Mas havia nele uma indiferença soberana pelo elétrico inteiro. Toda a gente o olhava. Com desprezo? Com ironia? Com inveja? Abriu a porta, fechou-a e saltou com o carro ainda em andamento. As pessoas voltaram-se então umas para as outras, não resistiram mais e riram mesmo. Que homenzinho patusco! Desculpavam-se, explicavam-se sem palavras. Entendiam-se. Um minuto de simplicidade e simpatia iluminou-as. A criança que batera palmas limpou com a mão o vidro embaciado da janela à procura do estranho passageiro. Viu-o atravessar a rua, seguir pelo passeio agarrado às casas, desaparecer. Só então a senhora nova e bonita, que era a mãe da criança, abriu os olhos. Ninguém hoje lhe chamava Nini. Nini era a filha. Ela agora é que dizia à filha: «Uma menina a assobiar, Nini! Uma menina bonita não faz barulho.» Ficara nos lábios e nos olhos de todos um sorriso de bondosa ingenuidade. Depois esse sorriso foi-se apagando. Morreu. As pessoas tomaram consciência da sua momentânea quebra de compostura. Lembraram-se dos seus embrulhos, dos seus anéis, dos seus jornais. Que patetice! Não havia outra palavra para aquilo. Que patetice! Os cavalheiros recomeçaram a ler os títulos das notícias. As senhoras deram um toque nas golas dos casacos. A criança tornou a olhar para a rua. Tudo voltou, pesadamente, a encher-se de silêncio e dignidade. Mário Dionísio in O Dia Cinzento e Outros Contos