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LEGISLAÇÃO ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA
Rogério de Andrade Córdova
1.1 A INSTITUIÇÃO
Segundo Cornélius Castoriadis1, a sociedade humana é auto- instituição. Isto quer dizer que a
sociedade, enquanto sociedade humana, diferenciada das demais sociedades animais, é autocriação. E
esta autocriação, ou auto-instituição, se realiza num processo efetivado na e pela posição de
significações. Tais significações são os valores básicos ou fundamentais que dão o sentido, a
orientação básica dessa sociedade, a sua identidade, o amálgama que lhe permite reunir-se e dizer-se.
Ser brasileiro, por exemplo, é diferente de ser argentino ou norte-americano. O que é a “brasilidade”?
É um “magma” de significações sociais, operantes em nosso agir, como um conjunto de representações
da realidade, como um conjunto de afetos, de gostos, de preferências, e de intencionalidades ou
desejos, ou atrações. Cada povo tem suas características, que denominamos “culturais”. Elas são
exatamente isso: as marcas identificadoras e inconfundíveis de cada sociedade. Se pensarmos no
Brasil, apenas, ninguém irá confundir um gaúcho com um carioca, ou um mineiro com um cearense,
por exemplo.
Há traços fundamentais, distintivos, e por isso mesmo identificador. Se a seleção de futebol entra em
campo, a “pátria de chuteiras”, na expressão de Nelson Rodrigues, certas diferenças profundas entre
pessoas, por exemplo, de natureza ideológica, muito provavelmente darão lugar a uma profunda
identificação, e ninguém, em sã consciência, sobretudo se estiver num ambiente coletivo, irá “torcer
contra” ela. Há significações comuns a várias nações ou países. Assim, o capitalismo.
Contemporaneamente, ou desde talvez duzentos anos, ou quinhentos anos, na sociedade ocidental,
europeia, emergiu uma significação nova, na qual e pela qual as atividades econômicas passaram ao
primeiro plano, deixando as questões sociais, culturais, religiosas num plano secundário ou
complementar. Simplificadamente, podemos dizer que o “ter” passou a prevalecer sobre o “ser”. E o
conjunto das relações em sociedade sofreu uma profunda torção. O capitalismo, na acepção de
Castoriadis (IIS: 363), se constituiu, objetivamente, como criação da “empresa como arranjo complexo
de homens e máquinas”, apoiados num sem-número de instituições complementares – máquinas,
Estados nacionais, escolas, ciências exatas e tecnologia, religiões reformadas – e, subjetivamente, ou
seja, no plano da formação das consciências, como “investimento de uma formação específica: uma
entidade em expansão e em proliferação incessantes, tendendo a um auto crescimento contínuo e
mergulhado numa solução nutritiva, um ‘mercado’, onde uma oferta e uma demanda sociais,
anônimas, devem surgir e ser exploradas...” O capitalismo emergiu como uma maneira outra de
“perceber, sentir, pensar e agir”, na qual, por exemplo, novas “necessidades” são continuamente
criadas para, artificialmente, manter um ritmo de “crescimento” dos “negócios”, esgotando-se para
satisfazê-las. E, como todas as significações, são significações, antes de mais nada, “operantes”, ou
seja, que se realizam na nossa prática efetiva, antes de se tornarem objeto de consciência e de reflexão
crítica, a realidade das “significações” nunca é captável em si mesma, mas indiretamente, pelas
“sombras” que projetam no agir efetivo, individual ou coletivo, a partir de seus resultados, de seus
derivados, de suas consequências. (Esta concepção será importante para entendermos por que a
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educação escolar no Brasil se “instituiu” da maneira como veremos, e não de outra, e porque está,
atualmente, “instituída”, formulada, regulamentada, de tal maneira e não de outra).
1.2 O IMAGINÁRIO
Tudo que acabamos de dizer acima, principalmente ao final, caracteriza o que se pode denominar de
“imaginário capitalista”. Que quer dizer imaginário? Neste caso, imaginário quer dizer o conjunto,
(Castoriadis prefere falar em “magma”, para caracterizar o caráter de fluidez dessas significações e a
profunda imbricação existente entre elas, dificultando separar ‘com precisão’ uma dimensão de outra –
pois economia se mescla com política, que se mescla com religião, que se mescla com cultura, e assim
sucessivamente, de sorte que se é possível destacar uma de outra, demarcando-as, é difícil traçar os
limites “precisos” entre uma e outra), das representações, dos gostos, “das preferências”, dos interesses
e desejos que caracterizam uma sociedade em determinado período histórico. Então, em diferentes
momentos, cada sociedade define para si o que é e o que não é, o que pode e o que não pode, o que
vale e o que não vale, o que é certo e o que é errado. (Leiamos, por exemplo, a Carta de Pedro Vaz de
Caminha e observemos, na leitura, o contraste entre as duas culturas, a portuguesa e a autóctone. A
carta é um precioso documento que mostra o contraste que está na nossa origem como “sociedade
brasileira”). Contemporaneamente, o multiculturalismo atualiza essa problemática, num momento em
que o desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação, dos transportes e assim por
diante, tornam o planeta efetivamente globalizado e põe todos os dias, na tela da televisão ou nos
jornais, o contraste entre diferentes culturas ou civilizações. Por que no Irã as mulheres podem ou não
podem fazer determinadas coisas? E no Afeganistão? E na Nigéria? E entre nossos indígenas? Por que
se diferenciam tanto os hábitos alimentares entre nós, sul-americanos? Representações, afetos e
intenções que formam o imaginário efetivo de um povo ou nação ou sociedade. Ele é diferente para
cada sociedade porque, defende Castoriadis, existe o imaginário radical, entendido como capacidade
originária profunda, existente nos indivíduos e nas coletividades, de fazer ser o que não é, de “criar”
efetivamente, de inventar formas, figuras, ou figurações de significações e de sentido.
O que faz um artista ser “criativo” e “original”? A resposta é: “a imaginação radical” que existe nele
como capacidade de representação, afeto e intenção nas profundezas da psique. Capacidade, diga-se de
passagem, que existe em todas as pessoas e que se expressa nas diferentes esferas da vida, nas
diferentes atividades, independente do grau de escolaridade, insista-se. (Se o pensamento tradicional
aceito a ideia de criação para a arte, mas a nega para outras esferas do fazer humano, Castoriadis
amplia esse conceito, afirmando essa capacidade como constitutiva de cada ser humano, ainda que se
expresse de forma diferenciada: uns são músicos, outros pintores, mas outros são inventivos no
vestuário, outros na culinária, todos na criação das suas instituições sociais, nas suas formas de
governo, de realizar a justiça, a educação, e assim por diante).
O que faz um povo, uma sociedade, ou até mesmo comunidades (os mineiros e os cariocas, por
exemplo) serem diferentes entre si? Resposta: o “imaginário social”. Este imaginário social é a
capacidade que tem a sociedade, enquanto coletivo anônimo, instituído, de criar, de inventar, de fazer
serem “significações imaginárias sociais”, ou seja, coletivas, e assumir uma postura instituinte. Por
isso, ainda que inconscientemente, as sociedades também mudam, evoluem (tanto para melhor quanto
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para pior, infelizmente), nunca permanecem exatamente iguais, tanto em detalhes menos importantes
quanto em suas significações centrais. Basta falarmos com nossos pais, tios e avós e ouvirmos
comparações sobre os “seus tempos”, basta observar a forma de sentir, de pensar e de agir de nossos
filhos, ou alunos, e as comparar com as formas do “nosso tempo”, o que nos faz relembrar o filósofo
grego Heráclito, conhecido por ter afirmado coisas como a impossibilidade de nos banharmos duas
vezes nas mesmas águas de um rio. Ou salientando, a situação de conflito permanente na qual
vivemos, lembrando que o conflito – inclusive de significações ou valores – é o pai de todas as
coisas...
Resumindo: viver numa sociedade humana é viver imerso num magma de significações imaginárias
sociais que dão sentido e orientação a nossas vidas enquanto sociedade. Diante delas, cada um de nós
tem de encontrar sentido para sua vida pessoal, construir sua identidade pessoal, constituir-se como
sujeito. E é nesse processo que a educação desempenha uma função fundamental.
1.3 A EDUCAÇÃO
Seguindo na mesma linha de exposição teórica, a educação é um processo pelo qual uma sociedade
“fabrica” ou “modela” os indivíduos que a constituem, assegurando sua reprodução ou continuidade
histórica enquanto tal. Por esse longo processo de “escolarização” que dura a vida toda, a sociedade
repassa a seus membros as suas instituições, ou seja, suas significações imaginárias, os seus valores, os
seus saberes (suas interpretações do mundo, seus conhecimentos, suas “leis”, suas normas), o seu saber
fazer (as suas técnicas).
Mas o que importa, aqui e agora, é rememorarmos a centralidade dos processos educativos na
institucionalização de uma sociedade, na sua preservação, na sua constituição. E importa termos em
conta que todos nós, com ou sem escola, somos “escolarizados” pelo conjunto da sociedade, através de
suas múltiplas organizações. Platão dizia que os muros da cidade educam. E nós abemos da
importância não dos muros, mas dos out-doors, das fachadas luminosas, da televisão, das rádios, e da
própria configuração urbanística da cidade. Crescemos ouvindo falar de, e vivenciando, uma cidade
instituída como “centro” e “periferia”, como áreas mais nobres e áreas menos nobres (no caso
brasiliense, em Plano Piloto e cidades-satélites), entre “cidade” e “morro”, entre conjuntos
habitacionais e favelas.
Em resumo: as formas como as sociedades estão materialmente estabelecidas, presentificam as
significações imaginárias nas quais e pelas quais a sociedade se auto institui, se auto-organiza. O
“concreto” é o resultado, a sombra de tais significações, derivam delas como suas consequências
materializadas. E é nestas e por estas realizações concretas que aquelas existem. As instituições são
redes simbólicas materializadas nas organizações. Basta nos perguntarmos por que todas as escolas são
tão iguais, mundo afora, e porquê todas têm as mesmas salas de aula e cada sala de aula tem
exatamente, ou quase exatamente, a mesma configuração espacial. E pensarmos nas dificuldades
imensas que um educador ou uma educadora têm quando, por exemplo, procuram implantar outra
metodologia (baseada, por exemplo, em C. Freinet ou Paulo Freire).
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Nascidos, então, numa dada sociedade, somos “modelados” por ela através da introjeção, em nossa
psique, das instituições, das significações imaginárias que a constituem, e que nos “ensinaram” o que é
e o que não é, o que pode e o que não pode, o que vale e o que não vale, o que é certo e o que é errado.
A partir daí constituímos nossa identidade, individual e coletiva, fomos obrigados a investir tais
instituições e as respectivas significações num longo processo de sublimação. Encontramos os nossos
“lugares” sociais, inclusive. E, ao realizá-lo, mantemos a sociedade em seus pilares fundamentais,
reproduzindo suas categorias sociais, seus tipos sociais, em sua tipicidade e em sua
complementaridade. Numa sociedade capitalista, reproduzem-se as camadas dirigentes e reproduzem-
se as camadas dirigidas.
Como uma sociedade capitalista se conservaria se não reproduzisse os tipos que são fundamentais a
sua sobrevivência enquanto sociedade capitalista, que são os empresários (“os empreendedores”, os
“dirigentes”) e os proletários (os “subordinados”, os “dirigidos”)? Diante disso, coloca-se o desafio:
instituir uma educação “outra”, uma educação que, permitindo a reflexividade e a deliberação sobre as
instituições (significações, valores, leis, regras, normas) vigentes, permita abrir caminho dentro do
instituído para, num processo instituinte, trabalhar na criação ou institucionalização de uma sociedade
“outra”, ou seja, fundamentada em outras significações, em outros valores. Coloca-se o desafio de
fazer de um processo reprodutivista um processo transformador, uma educação para a mudança e não
para a simples e pura reprodução de uma sociedade tal como existe.
1.4 ALIENAÇÃO, AUTONOMIA E CIDADANIA
O processo educativo, pois, dentro da perspectiva assumida, não é neutro. Ao contrário, ele é momento
decisivo da instituição da “polis”, ou seja, da “cidade” ou da sociedade em seu sentido mais amplo e
genérico. Por isso, é um processo intrinsecamente político. E isso acontece com a “maior
naturalidade”. Como diz certa letra musical: “não sei como aconteceu, quando notei, eu já era eu”.
Quando ingressamos na escola primária, já falávamos certa língua, com todo seu vocabulário (que não
escolhemos), cada vocábulo tendo suas significações (que também independem de nós, que as
encontramos prontas). Tudo parece, então, muito “natural”. E não nos damos conta de que tudo isso é
parte da instituição e que, como tal, tudo foi social-historicamente criado, pela espécie humana, por
nós, seres humanos, em nossas relações com o mundo, com a natureza, com nossos semelhantes.
O fato de termos perdido a noção das origens leva a uma naturalização, e até mesmo a uma atribuição
de sua origem a fontes extras sociais, até mesmo divinas, extraterrestres. Nesse caso, que é o mais
comum, ou o habitual, as instituições, os costumes, “autonomizam-se”, como se tivessem vida própria.
Perdendo a noção de sua origem “real” (de fato: o imaginário radical), mantemos com elas uma relação
“imaginária” (aqui no sentido de equivocada, nascida de uma fonte que não a nossa real capacidade
imaginária). Eis aí a origem mais ampla e profunda de todas as alienações: o estranhamento, o não
reconhecimento das coisas construídas socialmente como criações nossas. E, se nós, nos desencontros
da vida, não gostamos da forma como a sociedade está organizada, isto é, instituída, no caso presente,
como dilacerada entre ricos e pobres, proprietários e despossuídos, e queremos uma outra sociedade,
podemos assumir diante da educação uma nova postura: a da indagação crítica sobre os fundamentos
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das instituições que trazemos dentro de nós e dentro das quais vivemos. Neste caso, passamos de uma
postura de educadores reprodutores e mistificadores a uma postura crítica, de educadores que
estimulam, explicitamente, a reflexão sobre as instituições, e estimula, igualmente, o desenvolvimento
da capacidade deliberativa dos educandos sobre as instituições atuais.
A começar pelas próprias instituições escolares nas quais trabalhamos e convivemos, que “nos
educaram e continuam nos educando”, ou seja, nos “modelaram e modelam” para a aceitação acrítica
do instituído, ou, ao contrário, optar por uma postura reativa e afirmativamente instituinte de outra
educação preparatória de outra sociedade, moldada segundo outro projeto, fundada em outras
significações, e operando o mais possível segundo essas outras significações. Nesse caso, a alienação,
postura ou condição de quem vê as instituições fora do seu alcance, alheia a seu poder e sua vontade,
dá passagem à autonomia, que é uma postura ou uma atitude de apropriação crítica das instituições.
Esta apropriação pode resultar ora numa aceitação positiva das leis que considerarmos válidas (é ótimo
que nossos filhos e netos nasçam numa sociedade com leis que humanizem o trânsito, por exemplo, e
que condenem a prostituição, sobretudo a infantil), ora na rejeição das leis e sua substituição por
outras, quando considerarmos inadequadas, ou inaceitáveis, ou injustas. E, neste caso, ascendemos,
como educadores, e ajudamos aos nossos educandos a ascenderem, à cidadania. Então, cidadania deixa
de ser um termo esvaziado e mistificador, e recupera seu conteúdo político efetivo e pleno. Temos uma
educação que avança para uma postura emancipadora. E nos encontramos, de então em diante, na
senda aberta por educadores como Celestin Freinet e Paulo Freire, para citar apenas dois, dentre os
grandes pedagogos que criaram as pedagogias para a autonomia e a emancipação individual e coletiva.
Na história da humanidade, que se instituiu assimetricamente, emergiu a autonomia como uma
significação constatadora da heteronômica. E, desde então, se constituiu num projeto que se tem
expressado social-his- toricamente como “movimento democratizante”, um projeto sempre tênue (“a
democracia, diz Castoriadis, é um regime trágico, pois sempre exposto a ser democraticamente
comprometido...”). A história da constituição dos sistemas de educação escolarizada no Brasil quer no
plano macro, da formulação das grandes políticas, quer no plano micro, da definição do modo de
operar na esfera pedagógica, na esfera do trabalho educativo propriamente dito, certamente acompanha
e expressa o vaivém desse movimento e dele depende a sorte do projeto de instituição de uma
sociedade autônoma, com cidadãos emancipados e solidários.
2 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NO BRASIL
Missionários de Cristo na Terra dos Papagaios Este subtítulo foi inspirado no título de um livro recente
de um historiador brasileiro3. Aparentemente jocoso, o teor do título nos alerta para uma significação
importante, presente no “descobrimento”. É importante registrar, entretanto, que quando os
portugueses chegaram ao Brasil, não encontraram um território vazio, nem apenas papagaios. O
território era ocupado por saudáveis habitantes cuja “formosura” e “pureza” encantou os marinheiros
adventícios (é interessante retornar à Carta de Pero Vaz de Caminha). E, desde então, os viajantes e
missionários passaram a relatar os costumes, as crenças, os valores, em suma, a cultura ou o
“imaginário efetivo” dos povos da terra recém encontrada.
2.1 Educando os curumins e as cunhatãs
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Florestan Fernandes, grande sociólogo, educador e militante político brasileiro, elaborou, com base em
tais relatos, uma interessante reconstituição do imaginário e do processo educativo através dos quais os
tupinambás se perpetuavam. De tal leitura (e de outras que o (a) formando (a) interessado (a) poderá
fazer), vale destacar as seguintes características:
a) Os processos de transmissão da cultura, (tratava-se, no caso, de uma sociedade “tradicionalista”,
“sagrada” e “fechada”) procediam por via oral, através de contatos primários, do face a face, segundo
as próprias circunstâncias produzidas pelas rotinas da vida diária. Todos aprendiam algo em qualquer
tipo de relação social, fazendo de qualquer indivíduo um agente de educação tribal, projetando os
papéis de “adestradores” ou de “mestres” em todas as posições da estrutura social. O valor da tradição
se impunha, era sagrado, um saber “puro”, capaz de orientar as ações e decisões dos homens em
qualquer circunstância, reproduzindo a experiência dos “ancestrais”. Ela definia os mínimos morais e
os graus de honorabilidade das ações e do caráter dos seres humanos. O que contava era o valor da
ação e o valor do exemplo. Aprendia-se fazendo, parece ter sido a máxima da “filosofia educacional”
entre eles. Os adultos envolviam os menores nas atividades e os estimulavam a repetir situações
determinadas, iniciando-os nas atitudes, nos valores, nos comportamentos adequados. O adestramento
dos menores não se separava da realização das obrigações. E cada qual devia considerar suas ações
como modelo para os demais. Todos eram “mestres” pelo “exemplo”, o comportamento manifesto
devia traduzir fielmente o sentido do legado dos antepassados, o conteúdo prático das tradições. A
imitação era o processo educativo básico.
b) Quanto às condições de transmissão da cultura, havia variações importantes segundo o sexo e a
idade dos envolvidos. Até começar a andar, todos dependiam da mãe, esta jamais se afastava dos
pequenos, de modo a poder socorrer-lhes em caso de necessidade. Os curumins (meninos) aprendiam a
fazer arco e flecha, furavam os lábios entre quatro e seis anos, folgavam com os companheiros,
aprendiam cantos e danças, e, mais tarde, com os pais, aprendiam a caçar, a pescar, a buscar comida
para o grupo doméstico. A partir dos quinze anos tornavam-se “unidades produtivas da economia
doméstica”, trabalhando arduamente em todos os setores de atividades masculinas. Eram remadores
nas expedições, fabricantes de flechas, pescadores, prestadores de serviços nas reuniões dos mais
velhos. A partir dos vinte e cinco anos tornavam-se guerreiros, sacrificavam a primeira vítima,
renomavam-se, casavam, entravam no círculo dos adultos, aprendiam as tradições, as instituições,
junto aos mais velhos. Já as cunhatãs (meninas) não se afastavam das mães até aos sete anos.
Aprendiam a fiar para tecer as redes e a modelar para fazer vasilhames de barro. Entre sete e quinze
anos ficavam apegadas às mães, e aprendiam os serviços caseiros, a fiação, o enodamento das redes, a
semeadura e o plantio das roças, a preparação do cauim e dos outros alimentos. O grande
acontecimento era a iniciação, após a primeira menstruação, seguindo-se a perda da virgindade. A
partir dos quinze anos de idade, preparavam-se para o matrimônio dominando as prendas domésticas.
As jovens eram introduzidas, paulatinamente, nos papéis e na concepção de mundo das mulheres. A
cada fase da vida correspondiam novos papéis e atribuições. Aos “professores” cabia ensinar pela
prática, executando com perfeição as coisas para poder bem ensiná-las. Não havia formalismo
pedagógico, nem dissociação entre prática e teoria.
c) Os conteúdos da educação afetavam todas as esferas da vida social organizada.
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d) As funções sociais da educação, remetiam às relações e aos controles sociais do ambiente natural, a
transmissão da tecnologia levava em conta sexo e idade. O corpo humano era o grande instrumento
tecnológico, tratava-se de explorar suas possibilidades, trabalhando com o machado de pedra e
recursos técnicos correspondentes. O mutirão era importante. “O homem era o principal ‘meio’ do
próprio homem” (Florestan:162). Nas relações interpessoais, aprendiam-se as regras de tratamento
assimétrico (por idade ou sexo), o companheirismo, a solidariedade, a reciprocidade, os cerimoniais
complexos, os ritos, a guerra, a caça, a unidade tribal. Nas relações com o sagrado, aprendiam o
conhecimento dos mitos, das técnicas mágico-religiosas, dos ritos (de passagem, de sacrifícios), o
xamanismo. Em síntese, a educação entre os autóctones era informal e assistemática,
comparativamente aos padrões europeus, mas era eficaz e efetiva. Assegurava a perpetuação da
“herança social” recebida dos antepassados, perpetuando o “imaginário” tribal e suas significações,
ainda que sem técnicas de educação sistemática e sem criação de situações caracteristicamente
pedagógicas (Florestan:153).
2.2 A sociedade mercantilista
Os homens que chegaram ao novo mundo, chegaram em caravelas, e não em canoas. Traziam armas de
fogo, não usavam arco e flecha. Cobriam seus corpos com vestimentas. Bebiam algo muito diferente
do cauim. Utilizavam muitos equipamentos, sofisticadíssimos comparativamente à rusticidade dos
locais. Eram representantes da mais avançada sociedade europeia da época, sua tecnologia era de ponta
e tão desenvolvida que lhes permitia aventurar-se nas navegações mar afora, como cinco séculos
depois outras nações navegaram pelo espaço sideral. E eram homens que viajavam em busca de
mercadorias. A Europa vivia o mercantilismo, que, segundo o Aurélio, significa “tendência para
subordinar tudo ao comércio, ao interesse, ao lucro, ao ganho”, ou ainda, “predominância do interesse
ou do espírito mercantil”. Em outras palavras, a Europa estava criando outro tipo de sociedade,
fundamentada em outros valores, em outras significações, que virá a ser conhecida ou batizada como
“capitalismo”. Esse é um tipo de sociedade em que o econômico prevalece e, a partir dele, tudo tende a
ser transformado em “mercadoria”, a assumir a forma mercadoria. E, como tal, a ser elemento de troca.
Nossos aborígenes faziam prisioneiros nas suas guerras, que eram motivadas pela necessidade de
buscar novos territórios, havendo um esgotamento relativo dos territórios anteriormente ocupados. Os
prisioneiros eram sacrificados em rituais próprios, carregados de significações. Mas não eram
vendidos. Esta significação não existia entre eles. Com os portugueses, chega o espírito mercantil, a
venda, a exploração mercantil dos recursos naturais (o pau brasil foi devastado, e assim começou a
devastação da Mata Atlântica...), pessoas eram feitas prisioneiras e transformadas em mercadorias:
escravos eram mercadorias, vendidas e compradas no mercado de escravos...(Há um outro livro
interessante e recomendável: trata-se de A Nação Mercantilista, de Jorge Caldeira5). Havia uma
significação imaginária, operante e pesada, que se expressava como reificação das relações. Segundo
C. Castoriadis, é a captação de uma categoria de homens (e mulheres) como assimilável, em todos os
sentidos práticos, a animais ou coisas, fazendo deles escravos (no caso dos indígenas) ou mercadorias
(ou ambas as coisas) homens se vêem e agem, uns em relação aos outros, “não como aliados para
ajudar, rivais para dominar, inimigos para exterminar ou mesmo comer, mas como objetos para
possuir”(IIS:185).
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A instituição antagônica e assimétrica das sociedades indígenas, onde havia escravidão e canibalismo,
conhece outra forma de desumanização: a reificação mercantilista, que se realiza no anonimato da
sociedade. Mais do que a troca de homens por objetos, o que está presente é a “transformação dos
homens ‘em objetos’”. E, assim, outra pedagogia se instaura.
2.3 A ratio studiorum nos trópicos
Evidentemente, os contatos estabelecidos instauraram um novo processo educativo, ou re-educativo.
Os autóctones foram aprendendo novas formas de ser, de se relacionar, de agir, de pensar. A educação
sistemática, porém, irá começar com os jesuítas. A ocupação sistemática do novo mundo vai requerer a
inculcação de nova maneira de ser, de pensar e de agir entre os nativos. O processo dito civilizatório
visava “dilatar a fé e o império”. Em resumo: visava fazer viger outra civilização, um outro imaginário.
De lá para cá, sabemos o que aconteceu, pois somos herdeiros desse processo dito civilizatório.
Processo civilizatório de inspiração cristã, católica, ibérica e capitalista, no qual se reitera, de forma
renovada, um sistema de poder e de riqueza profundamente assimétrico, no qual, adverte Caldeira (p.7
e s.), “a formulação de política econômica era deliberadamente pensada como modo de excluir os
interesses da maioria dos agentes e satisfazer uma minoria (pouco interessada no progresso). Uma
cultura e uma política de exclusão, na qual a maioria dos agentes não deveria aparecer como sujeitos
de desejos próprios que devessem ser levados em consideração”.
Pois bem, nossos primeiros educadores formalmente designados como tal, valendo-se de uma
pedagogia específica, elaborada, formalizada, foram os jesuítas. Eles marcaram sua presença
educacional no Brasil de 1549 a 1759. Serão 210 anos de influência religiosa: inculcação dos novos
valores, do novo sagrado.
Na Bahia, criaram as Confrarias dos Meninos de Jesus, que mantinham os Colégios dos Meninos de
Jesus, onde ensinavam aos filhos dos “principais da terra” e, inicialmente, aos filhos dos caciques
indígenas, com os quais interessava manter bons contatos. O sistema era financiado pela redízima,
norma segundo a qual um percentual de dez por cento do quanto ia como tributação ao reino.
Econômica e politicamente, instituiu-se a escolarização como extensão do Estado português. Sendo
privado, era financiado com recursos públicos. Pedagogicamente, em sentido estrito, apoiava-se na
ratio-studiorum, que eram as disposições da Companhia de Jesus, ordem religiosa recém-criada para
contrapor-se ao protestantismo reformista e assegurar a defesa da ortodoxia católica. Esta determinava,
além do elementar “ensinar a ler, escrever e contar”, o ensino das Humanidades (Gramática, Literatura
(Humanidades) e Retórica), das Artes (Filosofia: Lógica, Metafísica e Filosofia Moral) e da Teologia
(Ciências Sagradas). Sua base curricular eram o trivium (Gramática, Retórica e Dialética) e o
quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia), herança medieval de inspiração escolástica
e aristotélica, esta profundamente torcionada pelo tomismo. A língua oficial era latim ou grego. A
novidade, no Brasil, foi a introdução da língua portuguesa e da própria língua tupi para facilitar a
comunicação com os nativos. Mas o interesse maior, senão exclusivo, era o de formar os próprios
quadros clericais e os amanuenses para o comércio da época. Ao final do período, estima-se que
haveria uma “rede” profissionalizante com cerca de três mil alunos, espalhados pelo Brasil, seguindo
as trilhas do processo evangelizador. O que não seria, talvez, de pouca importância se nos lembrarmos
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do que foi o trabalho “civilizador” dos jesuítas espanhóis que instituíram os Sete Povos das Missões,
no noroeste do que hoje é o Rio Grande do Sul, a “região missioneira”. Como quer que seja,
igualmente, o ensino superior que foi ensaiado pelos jesuítas na Bahia, foi impedido de continuar,
ainda no século XVI.
2.4 As vozes da África
Os portugueses, tendo viajado muito pela África, conheciam os mouros do norte e os negros do interior
do continente. Muitos desses negros viviam em Lisboa. Por isso, quando chegaram ao Brasil,
chamaram os índios de negros da terra. Por serem diferentes dos europeus, estes os achavam inferiores.
Para que tivessem algum valor para os europeus, era preciso que se tornassem idênticos a eles. Era
preciso catequiza r os indígenas, convertendo-os a qualquer custo ao cristianismo. E era preciso
ensiná-los a viver em aldeias como as da Europa e trabalhar como os europeus. Como não estavam
acostumados a viver e trabalhar desse modo, era preciso obrigá-los a trabalhar e viver assim. Era
preciso transformá-los em escravos dos colonos brancos portugueses.
Nos primeiros tempos, a plantação da cana-de-açúcar foi tocada assim, com o trabalho dos índios
escravizados. Os bandeirantes, que saíam pelo sertão afora para procurar ouro e pedras preciosas,
também buscavam indígenas para apresar e trazer para o trabalho nas plantações. Mas os indígenas,
que não estavam acostumados a esse modo de vida, rendiam pouco como mão-de-obra nos engenhos
de cana. E, depois, os padres jesuítas, que tinham por missão convertê-los à religião dos colonizadores,
não se conformavam com essas práticas dos bandeirantes, porque era um péssimo exemplo da
civilização dos brancos cristãos. Foi por isso que os portugueses donos dos engenhos de cana
resolveram buscar outra gente para trabalhar em suas terras. Se os negros da terra não serviam, era
melhor ir buscar os negros da África. E é aqui que começa a história da presença dos africanos negros
no Brasil.
Nossos antepassados negros eram pessoas muito diferentes umas das outras, tal como os indígenas que
viviam no Brasil na época do descobrimento. Aqui não havia índios, simplesmente, mas muitos povos
indígenas de várias nações, que falavam línguas diferentes e viviam de muitas maneiras diversas. E o
mesmo aconteceu com os escravos vindos da África. Eles não eram simplesmente negros africanos
escravos, mas povos que pertenciam a muitas nações. Os primeiros africanos que foram trazidos como
escravos para o Brasil vinham da costa da África ocidental. Eram povos que aqui ficaram conhecidos
como negros minas, congos, angolas, guinés, cabindas, rebolos, benguelas, Moçambique e muitos
outros nomes, e todos eles pertenciam ao grupo dos povos bantos e sudaneses. Os países da África que
hoje se chamam Angola, Congo, Moçambique ou Guiné receberam esses nomes por causa desses
povos que lá viviam há muito tempo e foi dessas regiões que vieram os primeiros escravos. Depois,
também vieram como escravos os povos de cultura ioruba, da Nigéria e do Benin, e também eles
formavam nações distintas, dos nagôs, dos geges, dos ijexás. Muitos deles viviam em civilizações
altamente desenvolvidas, como no reino de Oyó, onde havia grandes cidades. Ali, reis poderosos
exibiam o luxo de suas cortes e tinham uma cultura muito refinada. Os artesãos sabiam trabalhar os
metais como ninguém e em sua arte as esculturas de ferro e de madeira entalhada eram maravilhosas.
Cada um desses povos tinha um modo de vida próprio, com costumes diferentes e crenças religiosas
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muito elaboradas. Entre os povos bantos, cada grupo de famílias cultuava seus antepassados, pois
acreditavam que vinha deles a força que sustentava a vida de todos os membros do grupo. Os deuses
dos iorubás eram os orixás, ligados aos elementos e às forças da natureza. Havia divindades do fogo e
do ar, da água e da terra. Havia deuses e deusas das matas e dos rios, da chuva, da tempestade, dos
raios, do trovão, do arco-íris. Havia um deus dos metais, da agricultura e das armas de guerra e outro
que protegia as pessoas das doenças. Mas, apesar disso tudo, para os brancos europeus eles eram
apenas negros que, como os índios da América, era preciso civilizar. Os negros eram capturados na
África e depois vendidos aos comerciantes de escravos. De lá, eram embarcados nos navios chamados
negreiros e uma enorme quantidade deles morria na travessia do oceano Atlântico, por causa das
doenças e dos maus tratos que sofriam. Às vezes, mesmo antes de embarcar, eles eram batizados,
recebendo um nome cristão, e isso bastava para que fossem considerados “convertidos” à fé dos seus
senhores. Outras vezes, eram batizados assim que desembarcavam nos portos do Brasil, em
Pernambuco e na Bahia, antes de serem levados ao mercado de escravos.
Os escravos que eram comprados nos mercados de Recife ou Salvador iam trabalhar nas plantações de
cana-de-açúcar do litoral ou nas fazendas de gado do interior. Como a cana não se adaptou bem na
capitania de São Vicente, nas terras do litoral de São Paulo, a lavoura ali não foi para frente. Mas ela se
deu muito bem com o litoral ensolarado de Pernambuco e da Bahia, e foi aí que se instalaram os
grandes engenhos de açúcar. E depois, quando o povoamento português entrou pelas terras do sertão,
foram surgindo as grandes fazendas de gado.
Na casa-grande do engenho ou da fazenda, os escravos faziam todo tipo de serviços. Era preciso
plantar e limpar a cana, depois cortar a cana do pé, moer cada uma e ferver o caldo, para fazer o açúcar
que seria vendido lá fora, o melado e a rapadura para fazer os doces e adoçar os bolos na casa de
fazenda. Os escravos faziam as peças da moenda e cuidavam dos bois que faziam a moenda girar.
Plantava a mandioca, o milho, o feijão e a abóbora que todos comiam. Nas fazendas do sertão,
cuidavam do gado no pasto e o recolhiam ao curral e davam para ele comer o bagaço da cana quando
havia por perto um engenho. Cuidavam das crias e aproveitavam o leite das vacas para fazer queijo.
Quando o gado já tinha engordado bem no pasto, eles matavam os bois, salgavam e secavam sua carne
no sol, para fazer o charque. Era essa carne seca que os escravos levavam para vender nos engenhos e
nas cidades do litoral. No terreiro dos engenhos e das fazendas, as escravas criavam os frangos que
matavam na hora, quando chegava uma visita ou para fazer o caldo que a senhora do engenho tomava,
quando estava de resguardo, depois do nascimento de uma criança. Eram elas que engordavam os
porcos e com sua carne faziam linguiça e chouriço, guardando a banha para temperar a comida.
Cuidavam do fogão de lenha, do forno de barro, faziam os doces e assavam as broas de milho e os
bolos de mandioca que todos comiam na casa-grande. Muitas teciam no tear o pano de suas roupas,
que elas próprias costuravam. Também cuidavam da roupa de cama que todos usavam na casa grande.
E ainda, como mucamas, tinham de cuidar da sinhá. Era preciso lavar, engomar e passar suas roupas,
cuidar de seus sapatos, pentear seus cabelos.
As escravas também cuidavam dos filhos pequenos da sinhá. Eram elas que amamentavam as crianças,
que davam banho nelas, que cuidavam de suas roupinhas e preparavam sua comida. Mas o filho da
escrava já nascia escravo. Assim que crescia um pouco mais, o moleque ia ajudar na plantação ou na
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lida do gado e fazia todo tipo de pequenos serviços na casa. E quando o sinhô ou a sinhá quisesse,
podia vender o moleque, ou dá-lo de presente a algum conhecido, sem se importar com sua mãe
escrava, que ficava com a família do senhor para cuidar dos filhos dele.
Os senhores-de-engenho ou das fazendas de gado também costumavam ter uma casa na cidade. Então,
era ali que os escravos iam cuidar da família de seus senhores, nos grandes sobrados de Recife, Olinda
e Salvador. E também na cidade faziam todos os serviços: vendiam, pela rua, frutas, doces, a água que
se tomava nas casas. Levavam as pesadas barricas de madeira onde todo dia se despejava a urina e as
fezes dos moradores das casas, para esvaziá-las no rio ou no mar. E na cidade também aprendiam todo
tipo de ofício. Eram ferreiros, barbeiros, carpinteiros. Aprendiam a construir casas e igrejas, e
aprendiam também a entalhar na madeira os altares das igrejas, suas colunas, aprendiam a esculpir no
barro ou na madeira as imagens dos santos, a pintar de ouro suas roupas. Toda a arte nesse período f oi
feita com a contribuição do seu trabalho. Era assim a vida dos escravos negros vindos da África, desde
os primeiros tempos em que a colonização portuguesa se dedicou ao cultivo da cana, no final do século
XVI. Foi nos engenhos e nas fazendas que os escravos africanos construíram a riqueza do Brasil por
todo o século XVII. Mas continuavam a ser desprezados e maltratados pelos senhores brancos, porque
eram negros e escravos. O sofrimento dos escravos começava na África e continuava depois no Brasil.
Às vezes, eram capturados na África todos os membros de uma família, mas eles eram separados uns
dos outros para serem vendidos como escravos no Brasil. Também os que falavam a mesma língua e
vinham de uma mesma região, como os congos, angolas, benguelas ou guinés, por exemplo, eram
separados na hora da venda. Isso porque os donos dos engenhos tinham medo. Pois, se eles pudessem
se entender uns com os outros e ficassem todos juntos, talvez quisessem defender os parentes e os
amigos contra os castigos e maus-tratos que sofriam e poderiam organizar uma revolta.
E sobravam motivos para revoltas, porque maus-tratos não faltavam. Os escravos moravam
amontoados nas senzalas e o feitor, que os vigiava por conta do senhor-de-engenho, por qualquer coisa
dava a eles todo tipo de castigo. Eram presos no tronco, uma grande peça de madeira com buracos
onde enfiavam seus pés e suas mãos. Quando andavam de um lugar para outro, iam amarrados juntos
por uma comprida corrente, chamada libambo. Às vezes tinham que carregar no ombro ou apoiada na
cabeça uma pesada peça de madeira, o cepo, que era preso no seu tornozelo com uma corrente, para
impedir que eles pudessem correr e fugir. Outras vezes, o senhor punha no pescoço do escravo a
gargalheira, um pesado colar de ferro com três pontas bem altas para impedir que ele virasse a cabeça,
mal podia andar assim. Outras vezes, ainda, os escravos eram castigados com a palmatória, uma
prancha de madeira cheia de furos que o feitor batia com força na sua mão. Mesmo nas crianças se
batia com a palmatória e suas mãozinhas ficavam inchadas e cheias de marcas. Por isso as revoltas
eram constantes. E, apesar da vigilância do senhor e do feitor, muitos conseguiam fugir dos engenhos
de açúcar e das fazendas. O senhor mandava atrás deles o capitão do mato e, quando eram apanhados e
trazidos de volta, sofriam ainda maiores castigos. Por isso os escravos precisavam fugir cada vez mais
para longe, para lugares onde não pudessem ser alcançados. E, quando conseguiam se reunir nesses
lugares, precisavam se organizar muito bem para se defender dos brancos, caso eles chegassem até lá.
Essas comunidades criadas pelos negros eram chamadas quilombos e os que ali viviam eram
conhecidos como quilombolas. O quilombo mais importante que existiu no Brasil foi Palmares, que se
organizou no atual Estado de Alagoas por volta de 1597. Palmares conseguiu resistir aos brancos por
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quase 100 anos e, no período mais importante de sua história, durante 30 anos, conseguiu manter
vivendo ali cerca de 30 mil pessoas. Os líderes de Palmares que se tornaram mais conhecidos foram
Ganga-Zumba e Zumbi e é por causa da resistência heroica dos escravos daquele quilombo que o dia
da morte de Zumbi, 20 de novembro, passou a ser comemorado no Brasil desde 1978 como o Dia da
Consciência Negra. O quilombo dos Palmares foi destruído em 1694 por um bandeirante paulista,
Domingos Jorge Velho. E são os bandeirantes e os quilombos que nos fazem chegar mais perto da
origem dos atuais remanescentes dos quilombos, espalhados por diferentes cantos do território
brasileiro, a exemplo do povo Kalunga, em Goiás, território que também foi um quilombo, surgido na
época em que os bandeirantes paulistas chegaram até às terras de Goiás.
2.5 As reformas pombalinas
A “rede” jesuíta de ensino, este embrião de “sistema de ensino”, cujas características estão
sumariamente reproduzidas, foram eliminadas em 1759 pelo Marquês de Pombal. Era o “Iluminismo”
chegando ao Brasil e, entre outras razões de natureza política e econômica, declarando a necessidade
de lutar contra o atraso filosófico, o aristotelismo, defendo a incorporação de novos ideais filosóficos e
científicos, um novo sentido de educação que deveria ser implantado por intermédio da escola (nesta
época as escolas começavam igualmente a serem criadas na Europa8). O Estado português reassume o
protagonismo, antes em poder da Igreja, em matéria educacional. Mas obtém resultados desastrosos.
Apenas treze anos depois da expulsão dos jesuítas foi criado o “subsídio literário”, para financiar o
ensino elementar e de humanidades, que constaria de “aulas régias”, isto é, aulas “avulsas”, de latim,
grego ou retórica para evitar a simples e pura ausência de escola.
A população beirava os “três milhões” de habitantes. Sociedade rígida e escravocrata, nela não poderia
haver nem tipografias nem manufaturas, nem sequer oficinas de ourivesaria. Os “professores”
passaram a ser improvisados, sem a formação dos jesuítas, que era notável. (Talvez daí decorra a
expressão de “professor leigo”, associando o despreparo ao fato de serem não “religiosos”, como até
então).
Vale lembrar algumas premissas da reforma pombalina, tal como expressas por Antônio Nunes Ribeiro
Sanches (amigo de Luiz Antônio Verney, autor de O Verdadeiro Método de Estudar, inspirador
filosófico da reforma), o mentor político das mudanças: no ensino primário, afastar das escolas de ler e
escrever os filhos dos pobres e das pessoas do campo, porque se estes se alfabetizassem, deixaria o
campo, ou quereriam ser outra coisa que não roceiros pescadores ou ocupar ofícios humildes como
seus pais. Para evitar isso, deveriam ser eliminadas as escolas, públicas ou particulares, nas aldeias e
pequenos vilarejos. Quanto às colônias, no caso o Brasil, dever-se-ia ter presente que seu único objeto
deveria ser “a agricultura e o comércio”, não podendo nelas existirem instrução, cultura, elevação
científica. Pois fariam frutificar honras, cargos, dinheiro e valores humanos que só deveriam frutificar
na metrópole. Isso só poderia beneficiar pessoas das Colônias “se frutificassem na corte”. Eram
proibidas as escolas de latim (ensino médio), pelas mesmas razões. Era importante cultivar
expressamente a dependência da colônia em relação à capital, o reino. No Brasil, da nova proposta,
apenas no Seminário de Olinda, sob inspiração do bispo D. Azeredo Coutinho, aconteceu alguma coisa
de tal reforma do ensino médio, que consistiu em incluir no currículo o estudo das ciências
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matemáticas, físicas e naturais, complementando as matérias tradicionais. E o Seminário de Olinda é
considerado um centro importante de renovação do pensamento filosófico e político no nordeste
brasileiro, com influência decisiva na história de Pernambuco e da Revolução Pernambucana de 1817.
2.6 A educação de D. João VI
Quando a família real chegou ao Brasil, em 1808, praticamente nada havia em matéria de ensino. Era
um total vazio. Ao monarca coube várias iniciativas no campo cultural, tais como a criação da
Imprensa Régia, do Jardim botânico, da Biblioteca, do Museu Nacional. Os interesses do Estado aqui
implantado requeria médicos, engenheiros, oficiais militares. Daí a criação da Escola de Cirurgia na
Bahia, da cadeira de Ciência Econômica, da Academia de Guardas- Marinha, da cadeira de Medicina
Operatória e Arte Obstétrica, da cadeira de Cálculo Integral, Mecânica e Hidrodinâmica em
Pernambuco, da cadeira de Medicina Clínica no Hospital Real Militar e de Marinha, da Academia Real
Militar, considerada a primeira faculdade brasileira oficialmente criada. Implanta-se o sistema de
ensino no Brasil, começando pelo ensino superior, instituído em forma de ensino profissionalizante em
estabelecimentos ou unidades isoladas.
2.7 O ensino no Império
A situação da educação escolarizada no Brasil não sofrerá grandes alterações ao longo do Império. De
um modo geral, o ensino superior consolida as escolas criadas por D. João VI, acrescentando a elas as
Faculdades de Direito de São Paulo e do Recife, e já no seu final, a Escola de Minas, de Ouro Preto.
No ensino médio, surgem os Liceus, tendo como referência “modelar” o Colégio Pedro I, criado no
Município da Corte, com alguns outros se espalhando pelas províncias.
O setor privado vai construindo também os seus espaços. A grande referência, por exemplo, em Minas
Gerais, é o Colégio Caraça. Entretanto, nada de uma rede pública respeitável. No ensino primário,
então, o panorama é desolador. Com a Independência, a educação do povo se exprime de forma
genérica e superficial. Na Constituição de 1823, o artigo 19 determina “a instrução primária gratuita a
todos os cidadãos”. Em 1826, surge uma primeira reforma do ensino, promovida pelo Cônego Januário
da Cunha Barbosa, propondo a inspeção escolar, e, em 1827, uma lei é promulgada criando as escolas
de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugarejos, e estabelecendo o método Lancaster ou de
ensino mútuo. Nos conventos havia escolas para meninos ou meninas, conforme fosse a congregação
masculina ou feminina. A educação feminina era uma raridade. Em 1834, entretanto, o Ato Adicional,
estabelecendo uma monarquia federativa e descentralizadora, cria as Assembleias Legislativas
Provinciais, e descentraliza também a educação, que fica sob responsabilidade das Províncias, a cujas
Assembleias competiriam legislar “sobre a instrução pública e os estabelecimentos próprios a
promovê-la”. Esta descentralização prosseguirá com a República, retomando em nossos dias a forma
de municipalização do ensino. A escassez de recursos, ou de interesse, deixou o ensino básico a
descoberto. No ensino médio, as reformas seguiram, numa tensão ora estruturante ora desestruturante,
haja vista, por exemplo, o caso da reforma Leôncio de Carvalho, que, em 1879, estabeleceu o “ensino
livre”, ou seja, ampliou para todo o Império as medidas que estabeleceram, no mesmo ano, no
Município da Corte, os exames vagos e o regime d e frequência livre. Agora abria ao setor privado a
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possibilidade de abrir escolas e cursos de todos os tipos e níveis, podendo conceder graus acadêmicos
e vantagens até então concedidos exclusivamente pelos estabelecimentos públicos. A responsabilidade
pública era apenas quanto à inspeção para garantir as condições “de moralidade e higiene”. E é com
esse quadro de precariedade que entramos na República.
2.8 A política educacional na Primeira República
A primeira reforma educacional no período republicano aconteceu em 1890, tendo sido criado o
Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos. Sua ênfase recaiu sobre o ensino médio,
reformando o Colégio Pedro I, destacando o ensino das ciências naturais e exatas. Em 1901 (Epitácio
Pessoa), depois em 1911 (Rivadávia Correia novamente reedita Leôncio de Carvalho desoficializando
e privatizando o ensino público), depois em 1915 (Carlos Maximiliano), depois em 1925 (Luiz
Alves/Rocha Vaz) aconteceram novas “reformas”. Para Otaíza Romanelli, entretanto, “todas essas
reformas não passaram de tentativas frustradas e, mesmo quando aplicadas, representaram o
pensamento isolado e desordenado dos comandos políticos, o que estava muito longe de poder
comparar-se a uma política nacional de educação”.
O mais importante dessa fase da história da sociedade brasileira e da institucionalização da educação
escolarizada é um forte movimento de reforma nascido entre os educadores que em 1924 criaram a
Associação Brasileira de Educação e realizaram várias reformas estaduais, em São Paulo, em Minas
Gerais, no Ceará, no Distrito Federal e na Bahia. Nesse contexto aconteceu o movimento da Escola
Nova e se constituirá o núcleo dos “pioneiros da educação”, que terão muita influência na década
seguinte.
2.9 A educação a partir dos anos 30: as leis “orgânicas”
É a partir dos anos 30 do século X, no bojo de um movimento de sociedade que culmina na Revolução
de 30, que se começará um sistema de ensino público segundo tal política nacional. É a Reforma
Francisco Campos que, em 1931, dá a largada do processo. Este processo vai desaguar na Constituição
de 1934. Nesta, vão se fazer ouvir os ecos do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, que,
assinado por ilustres figuras da vida pública e educacional brasileira, procurara, em 1932, despertar a
nação para a importância da reforma educacional, dirigindo “ao povo e ao governo” uma proposta de
“reconstrução educacional no Brasil”, afirmando a importância e a gravidade do “problema
educacional” dentro da “hierarquia dos problemas nacionais”, afirmando a impossibilidade de
“desenvolver as forças econômicas ou de produção sem o preparo intensivo das politicas- sociais a
solução dos problemas escolares” forças culturais e o desenvolvimento das aptidões à invenção e à
iniciativa que são os fatores fundamentais do acréscimo de riqueza de uma sociedade”. Na avaliação
dos signatários, após 43 anos de República, ainda não se lograra “criar um sistema de organização
escolar”, permanecendo “tudo fragmento e desarticulado” na esfera das iniciativas de política
educacional. Propunha-se, então, uma política com “visão global do problema, em todos os seus
aspectos”. Esse “estado antes de inorganização do que de desorganização do aparelho escolar, (tem sua
causa principal) na falta, em quase todos os planos e iniciativas, da determinação dos fins da educação
(aspecto filosófico e social) e da aplicação (aspecto técnico) dos métodos científicos aos problemas de
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educação”. Propunham um “movimento de renovação educacional” para a reconstrução da área,
buscando “transferir do terreno administrativo para os planos Essa “campanha de renovação
educacional” procurou “formular, em documento público, as bases e diretrizes do movimento”. O
documento apresentava, assim, um programa para uma “nova política educacional”, formulada a partir
de “uma visão global do problema educativo”. E, na sequência, abordaram as finalidades da educação,
o problema dos valores (valores mutáveis e valores permanentes), o papel do Estado em face da
educação, caracterizando a esta como “uma função essencialmente pública”, propondo o “princípio da
escola para todos” – “escola comum ou única” – de sorte a “não admitir dentro do sistema escolar do
Estado, quaisquer classes ou escolas a que só tenha acesso uma minoria, por um privilégio
exclusivamente econômico”.
Afirmam-se, então, os princípios da laicidade, da gratuidade, da obrigatoriedade e da coeducação
(educação conjunta de estudantes de ambos os gêneros), da unidade da função educacional, da sua
autonomia, da descentralização. Discutem-se, ainda, importantes elementos metodológicos
fundamentados o “processo educativo” nos conceitos e fundamentos da “educação nova”. Enfatizava-
se a importância “do estudo científico e experimental da educação” por oposição do “empirismo”
reinante (e é dessa época a criação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira – INEP). Propunha-se um “plano de reconstrução educacional” que representasse uma
“radical transformação da educação pública em todos os seus graus”, compreendo “dos jardins de
infância à Universidade”, passando por uma escola secundária “unificada para se evitar o divórcio
entre os trabalhadores manuais e intelectuais”, tendo “uma sólida base comum de cultura geral”, para
“posterior bifurcação em secção de preponderância intelectual (...) e em secção de preferência manual,
ramificada por sua vez em ciclos, escolas ou cursos destinados à preparação às atividades
profissionais...” Propunha-se uma vigorosa reforma da Universidade, dando-se especial atenção à
formação dos “melhores talentos”, indispensáveis “à formação das elites de pensadores, sábios,
cientistas, técnicos e educadores” indispensáveis para “o estudo e solução” dos diferentes problemas
nacionais.
Finalmente, enfatizava a importância da formação dos professores, em todos os níveis, preconizando
“o princípio da unidade da função educacional” contra a “tradição das hierarquias docentes baseadas
na diferenciação dos graus de ensino”, que diferenciava “mestres, professores e catedráticos”,
fundamental para a “libertação espiritual e econômica do professor, mediante uma formação e
remuneração equivalentes que lhes permita manter, com a eficiência no trabalho, a dignidade e o
prestígio indispensáveis aos educadores”.
Após abordar o “papel da escola na vida e a sua função social”, o documento conclui afirmando “a
disposição obstinada” de enfrentar as dificuldades apontadas, a disposição de lutar “na defesa de
nossos ideais educacionais”, para realizar “uma nova política educacional, com sentido unitário e de
bases científicas”. Tratava-se, para os signatários, de “uma missão a cumprir”, contra a indiferença e a
hostilidade, “em luta aberta contra preconceitos e prevenções enraizadas”, convictos de que “as únicas
revoluções fecundas são as que se fazem ou se consolidam pela educação”. Este era, dentre todos os
deveres do Estado, ”o que exige maior capacidade de dedicação e justifica a maior soma de sacrifícios,
aquele com que não é possível transigir sem a perda irreparável de algumas gerações...”.
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Trata-se de um texto histórico, riquíssimo, que merece ser conhecido em detalhes. Seus efeitos se farão
sentir na Constituição de 1934, que, pela primeira vez, falará em “diretrizes e bases da educação” e
proporá a realização de um plano nacional de educação. E então deslancha um processo de reforma e
estruturação do sistema educacional brasileiro. Esse processo vai prosseguir durante todo o período
Vargas, completando-se em 1946. Na verdade, serão bem quinze anos de reformas, começando com a
do ensino superior, em 1931 (mas que acontecerá de fato na criação da USP em 1934), passará pelas
Leis Orgânicas do Ensino Secundário, Industrial, Comercial e Agrícola entre 1942 e 1943, e terminará
com as Leis Orgânicas do Ensino Primário e do Ensino Normal, em 1946. Registre-se, considerando o
ensino primário, que sua normatização data de 1946, ou seja, tem, no ano de 2001, apenas 5 anos de
vigência. Foi na Constituição de 1934 que a expressão “diretrizes e bases da educação nacional”,
criada pelos pioneiros, se incorporou definitivamente no vocabulário educacional brasileiro, enquanto
expressão que, na realidade, vai se efetivar através das leis orgânicas, já mencionadas, e na própria Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, cujo projeto, de 1948, após a Constituição de 1946, foi
aprovada em 1961, para ser reformada em 1971, até chegar à atual Lei 9394/96, sob cuja égide nos
encontramos.
A institucionalização, pois, de um sistema nacional de educação, apoiado numa política nacional
consistente, democraticamente elaborada, tem apenas cerca de 40 anos no Brasil. Pois foi a partir de tal
período, 1961, que, efetivamente, se “organizou” o sistema de forma consistente e coerente. Os
próximos módulos abordarão a forma e os termos em que este sistema se organizou tanto no plano
filosófico, macro político e administrativo, quanto no plano pedagógico propriamente dito, e na esfera
micropolítica, o plano dos estabelecimentos de ensino.
2- CONCEITOS, FINALIDADES E ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NACIONAL
Objetivos específicos
- Analisar os objetivos propostos para cada nível de ensino; - Analisar tais formulações numa
perspectiva filosófico-crítica;
- Identificar a problemática fundamental da organização do sistema de ensino em seus diferentes níveis
e modalidades;
1 Conceito, finalidades, objetivos e macro organização
Considerando a institucionalização da educação como parte do processo de instituição da sociedade, e
sendo a sociedade auto instituição, seu destino depende de nós. Dito de outra forma, a sociedade não é
algo pronto, acabado de uma vez por todas. Ao contrário, é algo que se faz e se refaz
permanentemente. É algo por ser, por-fazer. E que cabe aos cidadãos definirem o rumo que deve
tomar, antecipando o tipo de sociedade que querem ter, querem construir, projetando, isto é,
antecipando o futuro que desejam. Daí a sociedade poder ser considerada um projeto: algo a ser
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construído segundo nossos interesses, desejos e necessidades. Como se fora nossa casa. Ou talvez,
nosso barco comum, na travessia da vida.
Dentro de tal perspectiva é que vamos recuperar as disposições das leis que regeram nossa educação.
São elas, principalmente, as leis nº 4024 (de dezembro de 1961), nº 5692 (de agosto de 1971) e nº
9394/96 (de dezembro de 1996).
1.1 O conceito de educação
A Lei 9394/96 começa situando a educação escolar dentro de um quadro no qual aparece a educação
como fenômeno antropológico fundamental que se desenvolve “na vida familiar, na convivência
humana, no trabalho”, nos movimentos sociais, nas organizações da sociedade civil, nas manifestações
culturais (art.1º). E, por isso, dispõe que a educação escolar deva estar vinculada ao mundo do trabalho
e à prática escolar (§ 2º).
1.2 As finalidades da educação escolar
Os últimos cinquenta anos da educação escolar brasileira (pois o projeto da LDB apareceu em 1948)
assim apresentam as finalidades educacionais. Na Lei n.º 4024/61, nós as encontramos assim
formuladas:
“Art.1º: A educação nacional, inspirada nos ideais de liberdade e nos ideais de solidariedade
humana, tem por fim:
a) a compreensão dos direitos e dos deveres da pessoa humana, do cidadão, do estado, da família e
dos demais grupos que compõem a comunidade;
b) o respeito à dignidade e às liberdades fundamentais do homem;
c) o fortalecimento da unidade nacional e da solidariedade internacional;
d) o desenvolvimento integral da personalidade humana e a sua participação na obra do bem comum;
e) o preparo do indivíduo e da sociedade para o domínio dos recursos científicos e tecnológicos que
lhes permitam utilizar as possibilidades e vencer as dificuldades do meio;
f) a preservação e expansão do patrimônio cultural;
g) a condenação a qualquer tratamento desigual por motivo de convicção filosófica, política ou
religiosa, bem como a quaisquer preconceitos de classe ou raça.
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O ensino primário, por sua parte, deveria “ter por fim o desenvolvimento do raciocínio e das atividades
de expressão da criança, e a sua integração no meio físico e social”. Já a educação de grau médio, “em
prosseguimento à ministrada na escola primária, destina-se à formação do adolescente”. E ao falar de
educação da criança e, logo a seguir, do adolescente, o texto explicita um importante elemento: o da
consideração do desenvolvimento humano, bio-psicosociológico.
Em agosto de 1971, surge a Lei nº 5692. Estamos novamente em plena ditadura, o Brasil sendo
governado pelo General Emílio G. Médici, no período mais difícil do último regime militar. E o que
encontramos? Primeiramente, temos a Constituição outorgada pelos militares em 1969, cujo artigo 176
dispõe que “a educação, inspirada no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e
solidariedade humana, é direito de todos e dever do Estado, e será ministrada no lar e na escola”. São
mantidos praticamente na íntegra os Títulos I a V da lei 4024/61. E se lhes acrescenta o seguinte
objetivo geral:
“O ensino de 1º e 2º graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando a formação necessária ao
desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto-realização, qualificação para o
trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania” (Lei 5692, art.1º.)
A finalidade da educação, de acordo com a Lei 9394/96, é “o pleno desenvolvimento do educando, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (art. 2º).
1.3 A educação como direito e dever
Apresentada a grande declaração de intenções, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, n.º
4.024, de dezembro de 1961, passa a tratar do direito à educação, do conceito de liberdade do ensino.
Este último item certamente foi o mais polêmico, pois definia a participação do Estado e dos setores
privados e, mais que isso, privatistas.
De acordo com a Lei 9394/96, entre os princípios a serem observados no ensino cabe destacar aqueles
que dispõem sobre “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, o da “garantia do
padrão de qualidade”, a “valorização da experiência extra-escolar” e a “vinculação entre a educação
escolar, o trabalho e as práticas sociais” (art. 3º). No artigo 4º cabe destacar, entre os indicadores de
cumprimento do dever do Estado para com a educação escolar pública, a garantia de “oferta de ensino
noturno regular adequado às condições do educando” (inciso VI), “ a oferta de educação escolar
regular para jovens e adultos, com características e modalidades adequadas às suas necessidades e
disponibilidades, garantindo-se aos que forem trabalhadores as condições de acesso e permanência na
escola” (inciso VII).
1.4 As atribuições institucionais
Pela Lei 4024/61, o item referente à administração do ensino destacava serem do MEC as atribuições
do Poder Público em matéria de educação e constituía o Conselho Federal de Educação. Definia os
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sistemas de ensino, destacando o papel da União, dos Estados e do Distrito Federal na organização dos
mesmos. Registrese, aqui, o aparecimento explícito da competência dos Estados e do Distrito Federal
para autorizar o funcionamento dos estabelecimentos de ensino primário e médio (quando não
pertencentes à União), bem como a competência de reconhecê-los e inspecionálos. A Lei 5692/71
pouco se detém sobre a questão da organização político-administrativa em nível macro.
Em compensação, a Lei 9394/96, elaborada num contexto mais democrático e de maior debate e
participação, amplia consideravelmente este tópico. O assunto é tratado no Título IV, cujo título é
exatamente Da Organização da Educação Nacional. E começa falando das atribuições da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que devem “em regime de colaboração, organizar os
respectivos sistemas de ensino”. A constituição de tais sistemas é apresentada nos artigos 16, 17 e 18, e
compreendem as respectivas instituições de ensino (estabelecimentos escolares) e os órgãos (instâncias
gestoras) de educação. À União cabe “a coordenação (grifo meu) da política nacional de educação,
articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo a função normativa, redistributiva e supletiva
em relação às demais instâncias educacionais”. Mas os sistemas de ensino, respeitadas as diretrizes da
lei, terão liberdade para organizar-se. No artigo 9º detalha as atribuições da União, cabendo destacar a
de elaborar o Plano Nacional de Educação, prestar assistência técnica e financeira às demais instâncias,
estabelecer diretrizes para as diferentes modalidades de ensino, manter um sistema de informações
sobre a educação, assegurar um processo nacional de avaliação do rendimento escolar em todos os
níveis de ensino, entre outras. Aos Estados (artigo 10) cabe a responsabilidade de “organizar, manter e
desenvolver os órgãos e instituições oficiais de seus sistemas de ensino”, definir juntamente com os
municípios as formas de cooperação para oferta do ensino fundamental distribuindo as
responsabilidades de forma proporcional, considerando o tamanho da população e a disponibilidade de
recursos financeiros disponíveis em cada esfera, “elaborar e executar políticas e planos educacionais,
levando em conta as diretrizes nacionais e buscando integrar suas ações com as dos municípios...”. É
explicitamente atribuído aos Estados a responsabilidade por “assegurar o ensino fundamental e
oferecer, com prioridade, o ensino médio”. Aos Municípios (artigo 1) cabe a incumbência de cuidar
dos órgãos e instituições oficiais de seu sistema de ensino, integrando-se às políticas e planos
formulados pela União e pelos Estados, baixar as normas complementares necessárias ao sistema
municipal, “exercer a ação redistributiva em relação às suas escolas”, e “oferecer a educação infantil
em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental, permitida a atuação em outros
níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de
competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à
manutenção e desenvolvimento do ensino”. Registre-se a possibilidade aberta de municípios optarem
por se integrar ao sistema estadual, compondo “um sistema único de educação básica”. E quanto ao
Distrito Federal? “Ao Distrito Federal aplicar-se-ão as competências referentes aos Estados e
Municípios”, diz o parágrafo único do artigo 10.
Novidade importante na atual lei da educação nacional é a consideração, entre os atores do ensino, dos
“estabelecimentos de ensino” (artigo 12) e, principalmente, dos “docentes” (artigo 13). Relativamente
aos estabelecimentos de ensino, cabe-lhes (sempre respeitadas as normas comuns e as de seu sistema)
“elaborar e executar sua proposta pedagógica”; “administrar seu pessoal e seus recursos materiais e
financeiros”; “assegurar o cumprimento dos dias letivos e horas-aula estabelecidos”; “velar pelo
20
cumprimento do plano de trabalho de cada docente”; “prover meios para a recuperação dos alunos de
menor rendimento”; “articular-se com as famílias e a comunidade, criando processos de integração da
sociedade com a escola”; “informar os pais e responsáveis sobre a frequência e o rendimento dos
alunos, bem como sobre a execução de sua proposta pedagógica”.
Quanto aos docentes, nos termos legais, “incumbir-se-ão de:
i) participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino;
ii) elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino;
iii) zelar pela aprendizagem dos alunos;
iv) estabelecer estratégias de recuperação para os alunos de menor rendimento;
v) ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidas, além de participar integralmente dos períodos
dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional;
vi) colaborar com as atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade”.
Trata-se, certamente, ainda que se possam imaginar outras formas de apresentar o papel dos
estabelecimentos e dos docentes, de um reconhecimento de tais atores, institucional e coletivo, e
individualizados, como sujeitos do processo, resgatando em parte o ideário dos Pioneiros, no
Manifesto de 1932. E certamente condizente, em boa parte, com a constituição dos movimentos
docentes nos diferentes níveis de ensino, associados em sindicatos e outras formas de
representatividade e participação.
Nessa linha deve-se entender o espaço (entre)aberto para a gestão democrática “do ensino público na
educação básica” (e não na superior), ainda que “de acordo com as suas peculiaridades” e“conforme os
princípios” de participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da
escola e da participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes
(artigo 14, incisos I e I). Na mesma direção afirma-se que “os sistemas de ensino assegurarão às
unidades escolares públicas de educação básica que os integram progressivos graus de autonomia
pedagógica e administrativa e de gestão financeira, observadas as normas gerais de direito financeiro
público”(artigo 15).
São as marcas do “movimento democrático”, da dinâmica social-histórica pela realização do projeto de
autonomia abrindo brechas e caminhos por entre as formas instituídas de formular as políticas
educativas e gerir as organizações correspondentes.
A velha e inicial diferenciação entre público e privado, que tanta celeuma provocou quando da
discussão da lei 4024/61, nos anos sessenta, permanece intacta. O artigo 19 contempla uma
21
classificação das instituições de ensino, nos diferentes níveis, entre “públicas” (“assim entendidas as
criadas ou incorporadas, mantidas e administradas pelo Poder Público”), e “privadas” (“assim
entendidas as mantidas e administradas por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado”). As
privadas, por sua vez, (de acordo com o artigo 20, incisos I a IV) se enquadram em diferentes
categorias: i) particulares em sentido estrito (aquelas instituídas e mantidas por uma ou mais pessoas
jurídicas de direito privado); i) comunitárias (“instituídas por grupos de pessoas físicas ou por uma ou
mais pessoas jurídicas, inclusive cooperativa de professores e alunos que incluam na sua entidade
mantenedora representantes da comunidade”); i) confessionais (“instituídas por grupos de pessoas
físicas ou por uma ou mais pessoas jurídicas que atendem a orientação confessional e ideologia
específicas”, além de atenderem ao disposto no inciso anterior, ou seja, incluírem representantes da
comunidade em sua entidade mantenedora); iv) filantrópicas (na forma da lei).
As instituições privadas, entretanto, integram os sistemas de ensino. As de ensino superior estão
compreendidas no Sistema Federal de Ensino; as de ensino fundamental e médio, aos sistemas de
ensino dos Estados e do Distrito Federal; as de educação infantil, aos sistemas municipais. Como quer
que seja, ao final do século X definem-se as responsabilidades institucionais em matéria de educação,
pelo menos no plano político-administrativo. Lembremos que apenas com a proclamação da República
foi criado o Ministério da Instrução, correios e Telégrafos, de curta duração, tendo os assuntos da
educação passado ao Ministério da Justiça. Apenas em 1930 vai ser recriado, como Ministério da
Educação e Saúde, desvinculando-se deste apenas depois de 1950, tendo passado por um sem-número
de reformas, associando-se ora à Cultura, ora ao Desporto. Resta ver quem paga a conta!
1.5 O financiamento da educação
Ideias generosas ficam no papel se não são acompanhadas de efetiva decisão política. E esta
efetividade materializa-se no orçamento: sem dinheiro, nada acontece. Ou muito pouco, pois como
adverte um economista muito conhecido, “não há almoço de graça”, muito menos se estrutura uma
rede escolar sem fundos financeiros.
A educação escolarizada no Brasil começou privatizada, sob responsabilidade dos jesuítas, com
recursos providos pelo Rei de Portugal. De início era a redízima, ou uma décima parte dos dízimos, ou
impostos, que iam para a Corte. Segundo João Monlevade14, tais recursos logo começaram a faltar,
mas os padres da Companhia de Jesus já haviam constituído um patrimônio para a ordem, em terras,
gados e produção, que fez dela uma importante companhia comercial, representando cerca de 25 por
cento do PIB colonial no século XVIII, segundo historiadores de nossa economia. A Companhia,
portanto, era capaz de sustentar-se enquanto ordem, como as “dezenas de escolas de primeiras letras”
que funcionavam para atender populações de periferias e as missões indígenas (constituindo uma rede
por todo o território) e os Colégios principais: Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo. Nosso “sistema
educacional” começou privatizatema em constituição e, lembremos sempre, as reduções jesuíticas das
Missões, nos dão uma amostra da qualidade de tal formação.
Com a reforma pombalina, apenas nos anos de 1770, é implantado o “subsídio literário” que deverá
financiar as famosas “aulas régias”, denominação pomposa para designar “aulas avulsas”, ou seja, o
22
financiamento de professores “leigos”, figura já comentada, que vai abrir classes nos desvãos das
igrejas e salões, ensinando a nha terra, em Santa Catarina, havia remanescentes dessa categoria,
deslocando-se pelas fazendas da região serrana para ensinar aos fazendeiros e seus filhos. Meus
antepassados todos foram “escolarizados” (?!) dessa forma.)
No Império, também já o vimos, o governo Central cuidava do ensino superior e do Colégio Pedro I,
situado no município da Corte. Tudo o mais era responsabilidade das províncias, equivalendo a dizer
que nas mais ricas estruturou-se um embrião de sistema, enquanto nas mais pobres praticamente não se
estruturou sistema nenhum à míngua de recursos, dando início às “disparidades regionais” tão bem
conhecidas contemporaneamente. Na Primeira República, nada de relevante aconteceu. É nos anos
1930, a partir do movimento dos educadores congregados na Associação Brasileira de Educação
(ABE) – movimento de que o Manifesto é uma das expressões, pois houve várias Conferências
realizadas sob sua égide –, que se busca definir uma política de financiamento, propondo-se a criação
de “fundos” especiais para a educação, “para a manutenção e o desenvolvimento dos sistemas
educacionais”. Começam a surgir as propostas de instituição de índices fixos para tal finalidade.
Assim, a Constituição de 1934 vai determinar que a União e os municípios deveriam reservar um
mínimo de 10% do orçamento anual para a educação, devendo os Estados e o Distrito Federal
reservarem 20%. A Constituição ditatorial de 1937, porém, faz disso letra morta, ao desconsiderar o
assunto. Ele será retomado na Constituição de 1946, dispondo (artigo 169) que a União aplicaria
“nunca menos de 10% , e os Estados, o Distrito Federal e os municípios nunca menos de 20% da renda
resultante dos impostos...”. O texto da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
aprovada em 1961, reitera essa responsabilidade, aumentando, porém, para 12% a contribuição da
União (artigo 92). Este é um capítulo importante na história da política educacional brasileira, cheio de
idas e vindas. De 1961 até 1988, data da última Constituinte, outras iniciativas têm ocorrido. Em 1964,
foi criado o “salário-educação” (Lei nº 4.420) e, em novembro de 1968, a Lei nº 5.537 cria o Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), destinado a captar recursos financeiros para o
financiamento de projetos de ensino e pesquisa, incluindo alimentação escolar e bolsas de ensino. Seus
recursos viriam do orçamento da União, de incentivos fiscais, do Fundo Especial da Loteria Esportiva
(20%), do salário-educação, e outras fontes. Destaque-se ainda, no período, a instituição da Emenda
Calmon, remetendo ao nome de seu autor, o Senador João Calmon, que lutou bravamente, a fim de
ampliar os valores para 18%, no caso da União, e 25% nos demais casos. Isso como teto mínimo, pois
há Estados e municípios que recolhem mais que isso. A atual LDB (Lei nº 9.394/96) dedica dez artigos
ao tema do financiamento, desdobrando o que está contido na Constituição vigente. Assim, há: i)
recursos provenientes dos impostos próprios a cada esfera administrativa (União, Estados, Distrito
Federal e Municípios); i) receitas de transferências constitucionais que a União faz às demais
instâncias; i) receitas do salário-educação e de outras contribuições sociais; iv) outros recursos
previstos em lei.
Sem nos determos, por ora, nos detalhes das transações financeiras da movimentação dos recursos (que
não é nada trivial), é fundamental estar atento ao que se pode, ou não, considerar como “despesas de
ensino”. O artigo 70 explicita o que se considera como “manutenção e desenvolvimento do ensino”
(em todos os níveis): “I) remuneração e aperfeiçoamento do pessoal docente e demais profissionais da
educação; I) aquisição, manutenção, construção e conservação de instalações e equipamentos
23
necessários ao ensino; I) uso e manutenção de bens e serviços vinculados ao ensino; IV) levantamentos
estatísticos, estudos e pesquisas visando precipuamente ao aprimoramento da qualidade e à expansão
do ensino; V) realização de atividades-meio necessárias ao funcionamento dos sistemas de ensino; VI)
concessão de bolsas de estudo a alunos de escolas públicas e privadas; VII) amortização e custeio de
operações de crédito destinadas a atender ao disposto neste artigo (manutenção e desenvolvimento do
ensino!!); VIII) aquisição de material didático-escolar e manutenção de programas de transporte
escolar”. Esta foi uma definição importante, pois até então a Lei 5692 falava em aplicação
“preferencialmente na manutenção e desenvolvimento do ensino oficial”, deixando margem aos mais
estapafúrdios usos dos recursos públicos destinados à educação, em todos os níveis administrativos.
Por isso, é igualmente importante a definição, contida no artigo 71, daquilo que “não constitui
despesas de manutenção e desenvolvimento do ensino”:
“I) pesquisa, quando não vinculada às instituições de ensino, ou, quando efetivadas fora dos sistemas
de ensino, que não vise, precipuamente, ao aprimoramento de sua qualidade ou à sua expansão;
II) subvenção a instituições públicas ou privadas de caráter assistencial, desportivo ou cultural;
III) formação de quadros especiais para a administração pública, sejam militares ou civis, inclusive
diplomáticos;
IV) programas suplementares de alimentação, assistência médico-odontológica, farmacêutica e
psicológica, e outras formas de assistência social;
V) obras de infra-estrutura, ainda que realizada para beneficiar direta ou indiretamente a rede
escolar;
VI) pessoal docente e demais trabalhadores da educação, quando em desvio de função ou em
atividade alheia à manutenção e desenvolvimento do ensino”.
Resta, pois, cumprir as determinações dos artigos 72 e 73, acompanhando os balanços do Poder
Público, fiscalizando as prestações de conta, acompanhando o estabelecimento dos “padrões mínimos
de oportunidades educacionais para o ensino fundamental, baseado no cálculo do custo mínimo por
aluno, capaz de assegurar ensino de qualidade”. Da mesma forma, define-se a responsabilidade
redistributiva da União e dos Estados, cabendo a eles exercer uma “ação supletiva e redistributiva (...)
de modo a corrigir, progressivamente, as disparidades de acesso e garantir o padrão mínimo de
qualidade de ensino”, valendo-se esta ação de uma “fórmula de domínio público” que deve incluir a
capacidade de atendimento e a medida do “esforço fiscal” das instâncias administrativas envolvidas.
Quase coincidindo com a promulgação da Lei nº 9394/96, foi promulgada a lei nº 9.424/96, que,
viabilizada pela emenda constitucional 14/96, criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do
Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF). Com a criação do Fundo abre-se para
cada Estado e município uma conta especial, a ser utilizada exclusivamente nas finalidades
24
mencionadas: manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental. Deixando também de lado, por
ora, todo o complicado processo contábil de operacionalização do FUNDEF, cumpre destacar:
i) a exigência de criação, em cada esfera de governo, de um Conselho responsável pelo
acompanhamento e controle social sobre a repartição, transferência e aplicação dos recursos do
Fundo (deveriam ter sido criados até 30 de julho de 1997);
ii) a exigência de um novo (?!) Plano de Carreira e Remuneração do Magistério igualmente em cada
esfera de governo e dentro do mesmo prazo.
Tais recursos devem estar depositados em “conta bancária específica”, junto ao Banco do Brasil, cada
esfera de governo deve “comprovar” o cumprimento da aplicação mínima (25% dos recursos previstos
na Constituição), deve apresentar o Plano de Carreira e Remuneração do magistério, deve fornecer
informações solicitadas pelo Censo Educacional. Quanto à aplicação, 60% dos recursos, “pelo menos”,
devem ser aplicados “na remuneração dos profissionais do Magistério em efetivo exercício de suas
atividades no ensino fundamental público” (parte poderia ser aplicado na formação de professores
leigos nos cinco primeiros anos a partir de 1º de janeiro de 1997, ou seja, até 31 de dezembro de 2001),
e os restantes 40% devem ser aplicados “na manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental”,
nos termos da Lei, conforme visto acima.
Registra-se a importância do controle social do Fundo, através de Conselhos, de composição variável
de acordo com a esfera de governo, incluindo, no caso da União, representante do Poder Executivo, do
Conselho Nacional de Educação, do Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED), da
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), da União dos dirigentes Municipais
de Educação (UNDIME) e de pais de alunos e de professores das escolas públicas do ensino
fundamental. Na esfera Estadual (e do Distrito Federal), além da representação dos poderes executivos
estadual e municipais, do Conselho de Educação, das respectivas seccionais da UNDIME e da CNTE,
igualmente de pais e alunos e represente do MEC, através da Delegacia no Estado. Na esfera
municipal, fazem parte representante da Secretaria Municipal de Educação, professores e diretores das
escolas públicas, pais de alunos e servidores das escolas, além do conselho Municipal, onde houver.
Tais Conselhos têm a competência de acompanhar e controlar a repartição, transferência e aplicação
dos recursos do fundo, verificar os registros contábeis e demonstrativos gerenciais mensais e
atualizados, além de supervisionar o Censo Educacional Anual. E, além disso, deve haver uma outra
fiscalização da aplicação dos recursos através de órgãos do respectivo sistema de ensino e dos
Tribunais de Conta respectivos. Ao Ministério da Educação cabe realizar avaliação periódica dos
resultados da Lei, tendo em vista a adoção de medidas operacionais e político-educacionais. O
acompanhamento da imprensa diária mostra que este acompanhamento tem sido também
administrativo e jurídico, desencadeando processos de cassação de autoridades responsabilizadas por
malversação de tais recursos.
Enfim, no plano das disposições legais, houve um avanço inequívoco. Isto não significa, entretanto,
que se tenha alcançado a perfeição quer no plano conceitual, quer no plano operacional. No primeiro,
critica-se a exclusão da educação infantil e de jovens e adultos, provocando profundas distorções nas
25
redes, em alguns casos. No segundo, a não definição dos critérios para escolha dos representantes,
pode deixar os executivos à vontade para indicar exclusivamente pessoas “de confiança” dos
dirigentes, anulando a intenção da legislação. Além disso, há quem critique o plano em seu conjunto,
por ter operado apenas um remanejamento dos recursos disponíveis, penalizando as unidades mais
ricas em benefício de outras menos aquinhoadas, sem se haver preocupado em criar novos recursos.
Situação que pode ser sintetizada na expressão popular, “despe-se um santo para vestir outro”,
nivelando-se os sistemas “por baixo”. Daí a existência de projetos alternativos, tramitando no
Congresso Nacional, como o do FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação
Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), propondo mudanças para seu
aperfeiçoamento.
Finalmente, cabe um registro: se a educação escolarizada no Brasil foi instituída como um sistema
privado, a atualização do sistema tem pagado sempre um tributo a essa condição, numa sociedade que,
além de ser capitalista, é igualmente estamental e patrimonialista. Assim, o artigo 7 da LDB estabelece
que “os recursos públicos são destinados às escolas públicas, (mas!) podendo ser dirigidos a escolas
comunitárias, confessionais ou filantrópicas que:
I) comprovem finalidade não-lucrativa e não distribuam seus resultados, dividendos, bonificações,
participações ou parcela de seu patrimônio sob nenhuma forma ou pretexto;
II) apliquem seus excedentes financeiros em educação;
III) assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional,
ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades;
IV) prestem contas ao Poder Público dos recursos recebidos”. Tais recursos podem ser aplicados, ainda
nos termos da lei, em bolsas de estudo para a educação básica para quem demonstre insuficiência de
recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública de domicílio do educando,
ou, ainda, em atividades universitárias de pesquisa e extensão. Uma importante janela permanece
aberta ao setor privado. Como quer que seja, o texto da lei é resultado patente de um embate vivo e
constante entre duas forças em movimento: de um lado, os defensores da escola pública, na esteira de
Anísio Teixeira, de Florestan Fernandes e dos Pioneiros da Educação Nova; de outro, os arautos da
escola privada, da educação livre, que vem dos jesuítas, dos outros educadores privados, de Leôncio de
Carvalho no Império, de Rivadávia Correia na Primeira República, da concepção liberal, que persiste
entre nós atualizada em sua forma de neo-liberalismo, consentânea com uma sociedade capitalista que
faz profissão de fé da “livre iniciativa” e da liberdade de escolha da educação a ser ministrada aos
filhos. Um debate aberto e em pleno movimento.
Um capítulo igualmente importante da institucionalização da educação escolarizada é o referente à
definição dos níveis e das modalidades de educação e de ensino. É o que consideraremos na próxima
seção.
26
ATIVIDADE COMPLEMENTAR PARA SER ENTREGUE NA PRÓXIMA AULA
1- A propósito do conceito de “educação”, reveja suas anotações de outras disciplinas,
notadamente de Filosofia, Psicologia e Sociologia, confronte-as e faça seus comentários,
destacando os pontos de convergência e divergência.
2. Ou faça a mesma coisa a propósito do conceito de “alienação” e “autonomia”.
3. Faça uma resenha dos capítulos iniciais de O Paradigma Perdido: a natureza Humana, de
Edgar Morin. Comente as passagens que mais diretamente abordam a função educativa na
constituição da humanidade, no processo de hominização.
4. Leia e resenhe o texto Psicanálise e Política, de Cornelius Castoriadis, destacando tudo
quanto se aplica à pedagogia e à educação.
5. Leia (ou releia) o livro Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire, e comente-o à luz dos
conceitos apresentados neste texto.
6-Em função de seu interesse particular selecione um artigo em 500 Anos de Educação no
Brasil e comente-o, levando em conta os conceitos da primeira parte do módulo. Procure
entrar em contato com a Fundação Cultural Palmares. .
7- Estude e compare a evolução da questão educacional nas diferentes Constituições
brasileiras. Interprete as mudanças em função dos conceitos apresentados como
fundamentação. Complemente com outras leituras e teorias, se o desejar.

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Educação brasileira e organização social

  • 1. 1 LEGISLAÇÃO ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA Rogério de Andrade Córdova 1.1 A INSTITUIÇÃO Segundo Cornélius Castoriadis1, a sociedade humana é auto- instituição. Isto quer dizer que a sociedade, enquanto sociedade humana, diferenciada das demais sociedades animais, é autocriação. E esta autocriação, ou auto-instituição, se realiza num processo efetivado na e pela posição de significações. Tais significações são os valores básicos ou fundamentais que dão o sentido, a orientação básica dessa sociedade, a sua identidade, o amálgama que lhe permite reunir-se e dizer-se. Ser brasileiro, por exemplo, é diferente de ser argentino ou norte-americano. O que é a “brasilidade”? É um “magma” de significações sociais, operantes em nosso agir, como um conjunto de representações da realidade, como um conjunto de afetos, de gostos, de preferências, e de intencionalidades ou desejos, ou atrações. Cada povo tem suas características, que denominamos “culturais”. Elas são exatamente isso: as marcas identificadoras e inconfundíveis de cada sociedade. Se pensarmos no Brasil, apenas, ninguém irá confundir um gaúcho com um carioca, ou um mineiro com um cearense, por exemplo. Há traços fundamentais, distintivos, e por isso mesmo identificador. Se a seleção de futebol entra em campo, a “pátria de chuteiras”, na expressão de Nelson Rodrigues, certas diferenças profundas entre pessoas, por exemplo, de natureza ideológica, muito provavelmente darão lugar a uma profunda identificação, e ninguém, em sã consciência, sobretudo se estiver num ambiente coletivo, irá “torcer contra” ela. Há significações comuns a várias nações ou países. Assim, o capitalismo. Contemporaneamente, ou desde talvez duzentos anos, ou quinhentos anos, na sociedade ocidental, europeia, emergiu uma significação nova, na qual e pela qual as atividades econômicas passaram ao primeiro plano, deixando as questões sociais, culturais, religiosas num plano secundário ou complementar. Simplificadamente, podemos dizer que o “ter” passou a prevalecer sobre o “ser”. E o conjunto das relações em sociedade sofreu uma profunda torção. O capitalismo, na acepção de Castoriadis (IIS: 363), se constituiu, objetivamente, como criação da “empresa como arranjo complexo de homens e máquinas”, apoiados num sem-número de instituições complementares – máquinas, Estados nacionais, escolas, ciências exatas e tecnologia, religiões reformadas – e, subjetivamente, ou seja, no plano da formação das consciências, como “investimento de uma formação específica: uma entidade em expansão e em proliferação incessantes, tendendo a um auto crescimento contínuo e mergulhado numa solução nutritiva, um ‘mercado’, onde uma oferta e uma demanda sociais, anônimas, devem surgir e ser exploradas...” O capitalismo emergiu como uma maneira outra de “perceber, sentir, pensar e agir”, na qual, por exemplo, novas “necessidades” são continuamente criadas para, artificialmente, manter um ritmo de “crescimento” dos “negócios”, esgotando-se para satisfazê-las. E, como todas as significações, são significações, antes de mais nada, “operantes”, ou seja, que se realizam na nossa prática efetiva, antes de se tornarem objeto de consciência e de reflexão crítica, a realidade das “significações” nunca é captável em si mesma, mas indiretamente, pelas “sombras” que projetam no agir efetivo, individual ou coletivo, a partir de seus resultados, de seus derivados, de suas consequências. (Esta concepção será importante para entendermos por que a
  • 2. 2 educação escolar no Brasil se “instituiu” da maneira como veremos, e não de outra, e porque está, atualmente, “instituída”, formulada, regulamentada, de tal maneira e não de outra). 1.2 O IMAGINÁRIO Tudo que acabamos de dizer acima, principalmente ao final, caracteriza o que se pode denominar de “imaginário capitalista”. Que quer dizer imaginário? Neste caso, imaginário quer dizer o conjunto, (Castoriadis prefere falar em “magma”, para caracterizar o caráter de fluidez dessas significações e a profunda imbricação existente entre elas, dificultando separar ‘com precisão’ uma dimensão de outra – pois economia se mescla com política, que se mescla com religião, que se mescla com cultura, e assim sucessivamente, de sorte que se é possível destacar uma de outra, demarcando-as, é difícil traçar os limites “precisos” entre uma e outra), das representações, dos gostos, “das preferências”, dos interesses e desejos que caracterizam uma sociedade em determinado período histórico. Então, em diferentes momentos, cada sociedade define para si o que é e o que não é, o que pode e o que não pode, o que vale e o que não vale, o que é certo e o que é errado. (Leiamos, por exemplo, a Carta de Pedro Vaz de Caminha e observemos, na leitura, o contraste entre as duas culturas, a portuguesa e a autóctone. A carta é um precioso documento que mostra o contraste que está na nossa origem como “sociedade brasileira”). Contemporaneamente, o multiculturalismo atualiza essa problemática, num momento em que o desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação, dos transportes e assim por diante, tornam o planeta efetivamente globalizado e põe todos os dias, na tela da televisão ou nos jornais, o contraste entre diferentes culturas ou civilizações. Por que no Irã as mulheres podem ou não podem fazer determinadas coisas? E no Afeganistão? E na Nigéria? E entre nossos indígenas? Por que se diferenciam tanto os hábitos alimentares entre nós, sul-americanos? Representações, afetos e intenções que formam o imaginário efetivo de um povo ou nação ou sociedade. Ele é diferente para cada sociedade porque, defende Castoriadis, existe o imaginário radical, entendido como capacidade originária profunda, existente nos indivíduos e nas coletividades, de fazer ser o que não é, de “criar” efetivamente, de inventar formas, figuras, ou figurações de significações e de sentido. O que faz um artista ser “criativo” e “original”? A resposta é: “a imaginação radical” que existe nele como capacidade de representação, afeto e intenção nas profundezas da psique. Capacidade, diga-se de passagem, que existe em todas as pessoas e que se expressa nas diferentes esferas da vida, nas diferentes atividades, independente do grau de escolaridade, insista-se. (Se o pensamento tradicional aceito a ideia de criação para a arte, mas a nega para outras esferas do fazer humano, Castoriadis amplia esse conceito, afirmando essa capacidade como constitutiva de cada ser humano, ainda que se expresse de forma diferenciada: uns são músicos, outros pintores, mas outros são inventivos no vestuário, outros na culinária, todos na criação das suas instituições sociais, nas suas formas de governo, de realizar a justiça, a educação, e assim por diante). O que faz um povo, uma sociedade, ou até mesmo comunidades (os mineiros e os cariocas, por exemplo) serem diferentes entre si? Resposta: o “imaginário social”. Este imaginário social é a capacidade que tem a sociedade, enquanto coletivo anônimo, instituído, de criar, de inventar, de fazer serem “significações imaginárias sociais”, ou seja, coletivas, e assumir uma postura instituinte. Por isso, ainda que inconscientemente, as sociedades também mudam, evoluem (tanto para melhor quanto
  • 3. 3 para pior, infelizmente), nunca permanecem exatamente iguais, tanto em detalhes menos importantes quanto em suas significações centrais. Basta falarmos com nossos pais, tios e avós e ouvirmos comparações sobre os “seus tempos”, basta observar a forma de sentir, de pensar e de agir de nossos filhos, ou alunos, e as comparar com as formas do “nosso tempo”, o que nos faz relembrar o filósofo grego Heráclito, conhecido por ter afirmado coisas como a impossibilidade de nos banharmos duas vezes nas mesmas águas de um rio. Ou salientando, a situação de conflito permanente na qual vivemos, lembrando que o conflito – inclusive de significações ou valores – é o pai de todas as coisas... Resumindo: viver numa sociedade humana é viver imerso num magma de significações imaginárias sociais que dão sentido e orientação a nossas vidas enquanto sociedade. Diante delas, cada um de nós tem de encontrar sentido para sua vida pessoal, construir sua identidade pessoal, constituir-se como sujeito. E é nesse processo que a educação desempenha uma função fundamental. 1.3 A EDUCAÇÃO Seguindo na mesma linha de exposição teórica, a educação é um processo pelo qual uma sociedade “fabrica” ou “modela” os indivíduos que a constituem, assegurando sua reprodução ou continuidade histórica enquanto tal. Por esse longo processo de “escolarização” que dura a vida toda, a sociedade repassa a seus membros as suas instituições, ou seja, suas significações imaginárias, os seus valores, os seus saberes (suas interpretações do mundo, seus conhecimentos, suas “leis”, suas normas), o seu saber fazer (as suas técnicas). Mas o que importa, aqui e agora, é rememorarmos a centralidade dos processos educativos na institucionalização de uma sociedade, na sua preservação, na sua constituição. E importa termos em conta que todos nós, com ou sem escola, somos “escolarizados” pelo conjunto da sociedade, através de suas múltiplas organizações. Platão dizia que os muros da cidade educam. E nós abemos da importância não dos muros, mas dos out-doors, das fachadas luminosas, da televisão, das rádios, e da própria configuração urbanística da cidade. Crescemos ouvindo falar de, e vivenciando, uma cidade instituída como “centro” e “periferia”, como áreas mais nobres e áreas menos nobres (no caso brasiliense, em Plano Piloto e cidades-satélites), entre “cidade” e “morro”, entre conjuntos habitacionais e favelas. Em resumo: as formas como as sociedades estão materialmente estabelecidas, presentificam as significações imaginárias nas quais e pelas quais a sociedade se auto institui, se auto-organiza. O “concreto” é o resultado, a sombra de tais significações, derivam delas como suas consequências materializadas. E é nestas e por estas realizações concretas que aquelas existem. As instituições são redes simbólicas materializadas nas organizações. Basta nos perguntarmos por que todas as escolas são tão iguais, mundo afora, e porquê todas têm as mesmas salas de aula e cada sala de aula tem exatamente, ou quase exatamente, a mesma configuração espacial. E pensarmos nas dificuldades imensas que um educador ou uma educadora têm quando, por exemplo, procuram implantar outra metodologia (baseada, por exemplo, em C. Freinet ou Paulo Freire).
  • 4. 4 Nascidos, então, numa dada sociedade, somos “modelados” por ela através da introjeção, em nossa psique, das instituições, das significações imaginárias que a constituem, e que nos “ensinaram” o que é e o que não é, o que pode e o que não pode, o que vale e o que não vale, o que é certo e o que é errado. A partir daí constituímos nossa identidade, individual e coletiva, fomos obrigados a investir tais instituições e as respectivas significações num longo processo de sublimação. Encontramos os nossos “lugares” sociais, inclusive. E, ao realizá-lo, mantemos a sociedade em seus pilares fundamentais, reproduzindo suas categorias sociais, seus tipos sociais, em sua tipicidade e em sua complementaridade. Numa sociedade capitalista, reproduzem-se as camadas dirigentes e reproduzem- se as camadas dirigidas. Como uma sociedade capitalista se conservaria se não reproduzisse os tipos que são fundamentais a sua sobrevivência enquanto sociedade capitalista, que são os empresários (“os empreendedores”, os “dirigentes”) e os proletários (os “subordinados”, os “dirigidos”)? Diante disso, coloca-se o desafio: instituir uma educação “outra”, uma educação que, permitindo a reflexividade e a deliberação sobre as instituições (significações, valores, leis, regras, normas) vigentes, permita abrir caminho dentro do instituído para, num processo instituinte, trabalhar na criação ou institucionalização de uma sociedade “outra”, ou seja, fundamentada em outras significações, em outros valores. Coloca-se o desafio de fazer de um processo reprodutivista um processo transformador, uma educação para a mudança e não para a simples e pura reprodução de uma sociedade tal como existe. 1.4 ALIENAÇÃO, AUTONOMIA E CIDADANIA O processo educativo, pois, dentro da perspectiva assumida, não é neutro. Ao contrário, ele é momento decisivo da instituição da “polis”, ou seja, da “cidade” ou da sociedade em seu sentido mais amplo e genérico. Por isso, é um processo intrinsecamente político. E isso acontece com a “maior naturalidade”. Como diz certa letra musical: “não sei como aconteceu, quando notei, eu já era eu”. Quando ingressamos na escola primária, já falávamos certa língua, com todo seu vocabulário (que não escolhemos), cada vocábulo tendo suas significações (que também independem de nós, que as encontramos prontas). Tudo parece, então, muito “natural”. E não nos damos conta de que tudo isso é parte da instituição e que, como tal, tudo foi social-historicamente criado, pela espécie humana, por nós, seres humanos, em nossas relações com o mundo, com a natureza, com nossos semelhantes. O fato de termos perdido a noção das origens leva a uma naturalização, e até mesmo a uma atribuição de sua origem a fontes extras sociais, até mesmo divinas, extraterrestres. Nesse caso, que é o mais comum, ou o habitual, as instituições, os costumes, “autonomizam-se”, como se tivessem vida própria. Perdendo a noção de sua origem “real” (de fato: o imaginário radical), mantemos com elas uma relação “imaginária” (aqui no sentido de equivocada, nascida de uma fonte que não a nossa real capacidade imaginária). Eis aí a origem mais ampla e profunda de todas as alienações: o estranhamento, o não reconhecimento das coisas construídas socialmente como criações nossas. E, se nós, nos desencontros da vida, não gostamos da forma como a sociedade está organizada, isto é, instituída, no caso presente, como dilacerada entre ricos e pobres, proprietários e despossuídos, e queremos uma outra sociedade, podemos assumir diante da educação uma nova postura: a da indagação crítica sobre os fundamentos
  • 5. 5 das instituições que trazemos dentro de nós e dentro das quais vivemos. Neste caso, passamos de uma postura de educadores reprodutores e mistificadores a uma postura crítica, de educadores que estimulam, explicitamente, a reflexão sobre as instituições, e estimula, igualmente, o desenvolvimento da capacidade deliberativa dos educandos sobre as instituições atuais. A começar pelas próprias instituições escolares nas quais trabalhamos e convivemos, que “nos educaram e continuam nos educando”, ou seja, nos “modelaram e modelam” para a aceitação acrítica do instituído, ou, ao contrário, optar por uma postura reativa e afirmativamente instituinte de outra educação preparatória de outra sociedade, moldada segundo outro projeto, fundada em outras significações, e operando o mais possível segundo essas outras significações. Nesse caso, a alienação, postura ou condição de quem vê as instituições fora do seu alcance, alheia a seu poder e sua vontade, dá passagem à autonomia, que é uma postura ou uma atitude de apropriação crítica das instituições. Esta apropriação pode resultar ora numa aceitação positiva das leis que considerarmos válidas (é ótimo que nossos filhos e netos nasçam numa sociedade com leis que humanizem o trânsito, por exemplo, e que condenem a prostituição, sobretudo a infantil), ora na rejeição das leis e sua substituição por outras, quando considerarmos inadequadas, ou inaceitáveis, ou injustas. E, neste caso, ascendemos, como educadores, e ajudamos aos nossos educandos a ascenderem, à cidadania. Então, cidadania deixa de ser um termo esvaziado e mistificador, e recupera seu conteúdo político efetivo e pleno. Temos uma educação que avança para uma postura emancipadora. E nos encontramos, de então em diante, na senda aberta por educadores como Celestin Freinet e Paulo Freire, para citar apenas dois, dentre os grandes pedagogos que criaram as pedagogias para a autonomia e a emancipação individual e coletiva. Na história da humanidade, que se instituiu assimetricamente, emergiu a autonomia como uma significação constatadora da heteronômica. E, desde então, se constituiu num projeto que se tem expressado social-his- toricamente como “movimento democratizante”, um projeto sempre tênue (“a democracia, diz Castoriadis, é um regime trágico, pois sempre exposto a ser democraticamente comprometido...”). A história da constituição dos sistemas de educação escolarizada no Brasil quer no plano macro, da formulação das grandes políticas, quer no plano micro, da definição do modo de operar na esfera pedagógica, na esfera do trabalho educativo propriamente dito, certamente acompanha e expressa o vaivém desse movimento e dele depende a sorte do projeto de instituição de uma sociedade autônoma, com cidadãos emancipados e solidários. 2 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NO BRASIL Missionários de Cristo na Terra dos Papagaios Este subtítulo foi inspirado no título de um livro recente de um historiador brasileiro3. Aparentemente jocoso, o teor do título nos alerta para uma significação importante, presente no “descobrimento”. É importante registrar, entretanto, que quando os portugueses chegaram ao Brasil, não encontraram um território vazio, nem apenas papagaios. O território era ocupado por saudáveis habitantes cuja “formosura” e “pureza” encantou os marinheiros adventícios (é interessante retornar à Carta de Pero Vaz de Caminha). E, desde então, os viajantes e missionários passaram a relatar os costumes, as crenças, os valores, em suma, a cultura ou o “imaginário efetivo” dos povos da terra recém encontrada. 2.1 Educando os curumins e as cunhatãs
  • 6. 6 Florestan Fernandes, grande sociólogo, educador e militante político brasileiro, elaborou, com base em tais relatos, uma interessante reconstituição do imaginário e do processo educativo através dos quais os tupinambás se perpetuavam. De tal leitura (e de outras que o (a) formando (a) interessado (a) poderá fazer), vale destacar as seguintes características: a) Os processos de transmissão da cultura, (tratava-se, no caso, de uma sociedade “tradicionalista”, “sagrada” e “fechada”) procediam por via oral, através de contatos primários, do face a face, segundo as próprias circunstâncias produzidas pelas rotinas da vida diária. Todos aprendiam algo em qualquer tipo de relação social, fazendo de qualquer indivíduo um agente de educação tribal, projetando os papéis de “adestradores” ou de “mestres” em todas as posições da estrutura social. O valor da tradição se impunha, era sagrado, um saber “puro”, capaz de orientar as ações e decisões dos homens em qualquer circunstância, reproduzindo a experiência dos “ancestrais”. Ela definia os mínimos morais e os graus de honorabilidade das ações e do caráter dos seres humanos. O que contava era o valor da ação e o valor do exemplo. Aprendia-se fazendo, parece ter sido a máxima da “filosofia educacional” entre eles. Os adultos envolviam os menores nas atividades e os estimulavam a repetir situações determinadas, iniciando-os nas atitudes, nos valores, nos comportamentos adequados. O adestramento dos menores não se separava da realização das obrigações. E cada qual devia considerar suas ações como modelo para os demais. Todos eram “mestres” pelo “exemplo”, o comportamento manifesto devia traduzir fielmente o sentido do legado dos antepassados, o conteúdo prático das tradições. A imitação era o processo educativo básico. b) Quanto às condições de transmissão da cultura, havia variações importantes segundo o sexo e a idade dos envolvidos. Até começar a andar, todos dependiam da mãe, esta jamais se afastava dos pequenos, de modo a poder socorrer-lhes em caso de necessidade. Os curumins (meninos) aprendiam a fazer arco e flecha, furavam os lábios entre quatro e seis anos, folgavam com os companheiros, aprendiam cantos e danças, e, mais tarde, com os pais, aprendiam a caçar, a pescar, a buscar comida para o grupo doméstico. A partir dos quinze anos tornavam-se “unidades produtivas da economia doméstica”, trabalhando arduamente em todos os setores de atividades masculinas. Eram remadores nas expedições, fabricantes de flechas, pescadores, prestadores de serviços nas reuniões dos mais velhos. A partir dos vinte e cinco anos tornavam-se guerreiros, sacrificavam a primeira vítima, renomavam-se, casavam, entravam no círculo dos adultos, aprendiam as tradições, as instituições, junto aos mais velhos. Já as cunhatãs (meninas) não se afastavam das mães até aos sete anos. Aprendiam a fiar para tecer as redes e a modelar para fazer vasilhames de barro. Entre sete e quinze anos ficavam apegadas às mães, e aprendiam os serviços caseiros, a fiação, o enodamento das redes, a semeadura e o plantio das roças, a preparação do cauim e dos outros alimentos. O grande acontecimento era a iniciação, após a primeira menstruação, seguindo-se a perda da virgindade. A partir dos quinze anos de idade, preparavam-se para o matrimônio dominando as prendas domésticas. As jovens eram introduzidas, paulatinamente, nos papéis e na concepção de mundo das mulheres. A cada fase da vida correspondiam novos papéis e atribuições. Aos “professores” cabia ensinar pela prática, executando com perfeição as coisas para poder bem ensiná-las. Não havia formalismo pedagógico, nem dissociação entre prática e teoria. c) Os conteúdos da educação afetavam todas as esferas da vida social organizada.
  • 7. 7 d) As funções sociais da educação, remetiam às relações e aos controles sociais do ambiente natural, a transmissão da tecnologia levava em conta sexo e idade. O corpo humano era o grande instrumento tecnológico, tratava-se de explorar suas possibilidades, trabalhando com o machado de pedra e recursos técnicos correspondentes. O mutirão era importante. “O homem era o principal ‘meio’ do próprio homem” (Florestan:162). Nas relações interpessoais, aprendiam-se as regras de tratamento assimétrico (por idade ou sexo), o companheirismo, a solidariedade, a reciprocidade, os cerimoniais complexos, os ritos, a guerra, a caça, a unidade tribal. Nas relações com o sagrado, aprendiam o conhecimento dos mitos, das técnicas mágico-religiosas, dos ritos (de passagem, de sacrifícios), o xamanismo. Em síntese, a educação entre os autóctones era informal e assistemática, comparativamente aos padrões europeus, mas era eficaz e efetiva. Assegurava a perpetuação da “herança social” recebida dos antepassados, perpetuando o “imaginário” tribal e suas significações, ainda que sem técnicas de educação sistemática e sem criação de situações caracteristicamente pedagógicas (Florestan:153). 2.2 A sociedade mercantilista Os homens que chegaram ao novo mundo, chegaram em caravelas, e não em canoas. Traziam armas de fogo, não usavam arco e flecha. Cobriam seus corpos com vestimentas. Bebiam algo muito diferente do cauim. Utilizavam muitos equipamentos, sofisticadíssimos comparativamente à rusticidade dos locais. Eram representantes da mais avançada sociedade europeia da época, sua tecnologia era de ponta e tão desenvolvida que lhes permitia aventurar-se nas navegações mar afora, como cinco séculos depois outras nações navegaram pelo espaço sideral. E eram homens que viajavam em busca de mercadorias. A Europa vivia o mercantilismo, que, segundo o Aurélio, significa “tendência para subordinar tudo ao comércio, ao interesse, ao lucro, ao ganho”, ou ainda, “predominância do interesse ou do espírito mercantil”. Em outras palavras, a Europa estava criando outro tipo de sociedade, fundamentada em outros valores, em outras significações, que virá a ser conhecida ou batizada como “capitalismo”. Esse é um tipo de sociedade em que o econômico prevalece e, a partir dele, tudo tende a ser transformado em “mercadoria”, a assumir a forma mercadoria. E, como tal, a ser elemento de troca. Nossos aborígenes faziam prisioneiros nas suas guerras, que eram motivadas pela necessidade de buscar novos territórios, havendo um esgotamento relativo dos territórios anteriormente ocupados. Os prisioneiros eram sacrificados em rituais próprios, carregados de significações. Mas não eram vendidos. Esta significação não existia entre eles. Com os portugueses, chega o espírito mercantil, a venda, a exploração mercantil dos recursos naturais (o pau brasil foi devastado, e assim começou a devastação da Mata Atlântica...), pessoas eram feitas prisioneiras e transformadas em mercadorias: escravos eram mercadorias, vendidas e compradas no mercado de escravos...(Há um outro livro interessante e recomendável: trata-se de A Nação Mercantilista, de Jorge Caldeira5). Havia uma significação imaginária, operante e pesada, que se expressava como reificação das relações. Segundo C. Castoriadis, é a captação de uma categoria de homens (e mulheres) como assimilável, em todos os sentidos práticos, a animais ou coisas, fazendo deles escravos (no caso dos indígenas) ou mercadorias (ou ambas as coisas) homens se vêem e agem, uns em relação aos outros, “não como aliados para ajudar, rivais para dominar, inimigos para exterminar ou mesmo comer, mas como objetos para possuir”(IIS:185).
  • 8. 8 A instituição antagônica e assimétrica das sociedades indígenas, onde havia escravidão e canibalismo, conhece outra forma de desumanização: a reificação mercantilista, que se realiza no anonimato da sociedade. Mais do que a troca de homens por objetos, o que está presente é a “transformação dos homens ‘em objetos’”. E, assim, outra pedagogia se instaura. 2.3 A ratio studiorum nos trópicos Evidentemente, os contatos estabelecidos instauraram um novo processo educativo, ou re-educativo. Os autóctones foram aprendendo novas formas de ser, de se relacionar, de agir, de pensar. A educação sistemática, porém, irá começar com os jesuítas. A ocupação sistemática do novo mundo vai requerer a inculcação de nova maneira de ser, de pensar e de agir entre os nativos. O processo dito civilizatório visava “dilatar a fé e o império”. Em resumo: visava fazer viger outra civilização, um outro imaginário. De lá para cá, sabemos o que aconteceu, pois somos herdeiros desse processo dito civilizatório. Processo civilizatório de inspiração cristã, católica, ibérica e capitalista, no qual se reitera, de forma renovada, um sistema de poder e de riqueza profundamente assimétrico, no qual, adverte Caldeira (p.7 e s.), “a formulação de política econômica era deliberadamente pensada como modo de excluir os interesses da maioria dos agentes e satisfazer uma minoria (pouco interessada no progresso). Uma cultura e uma política de exclusão, na qual a maioria dos agentes não deveria aparecer como sujeitos de desejos próprios que devessem ser levados em consideração”. Pois bem, nossos primeiros educadores formalmente designados como tal, valendo-se de uma pedagogia específica, elaborada, formalizada, foram os jesuítas. Eles marcaram sua presença educacional no Brasil de 1549 a 1759. Serão 210 anos de influência religiosa: inculcação dos novos valores, do novo sagrado. Na Bahia, criaram as Confrarias dos Meninos de Jesus, que mantinham os Colégios dos Meninos de Jesus, onde ensinavam aos filhos dos “principais da terra” e, inicialmente, aos filhos dos caciques indígenas, com os quais interessava manter bons contatos. O sistema era financiado pela redízima, norma segundo a qual um percentual de dez por cento do quanto ia como tributação ao reino. Econômica e politicamente, instituiu-se a escolarização como extensão do Estado português. Sendo privado, era financiado com recursos públicos. Pedagogicamente, em sentido estrito, apoiava-se na ratio-studiorum, que eram as disposições da Companhia de Jesus, ordem religiosa recém-criada para contrapor-se ao protestantismo reformista e assegurar a defesa da ortodoxia católica. Esta determinava, além do elementar “ensinar a ler, escrever e contar”, o ensino das Humanidades (Gramática, Literatura (Humanidades) e Retórica), das Artes (Filosofia: Lógica, Metafísica e Filosofia Moral) e da Teologia (Ciências Sagradas). Sua base curricular eram o trivium (Gramática, Retórica e Dialética) e o quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia), herança medieval de inspiração escolástica e aristotélica, esta profundamente torcionada pelo tomismo. A língua oficial era latim ou grego. A novidade, no Brasil, foi a introdução da língua portuguesa e da própria língua tupi para facilitar a comunicação com os nativos. Mas o interesse maior, senão exclusivo, era o de formar os próprios quadros clericais e os amanuenses para o comércio da época. Ao final do período, estima-se que haveria uma “rede” profissionalizante com cerca de três mil alunos, espalhados pelo Brasil, seguindo as trilhas do processo evangelizador. O que não seria, talvez, de pouca importância se nos lembrarmos
  • 9. 9 do que foi o trabalho “civilizador” dos jesuítas espanhóis que instituíram os Sete Povos das Missões, no noroeste do que hoje é o Rio Grande do Sul, a “região missioneira”. Como quer que seja, igualmente, o ensino superior que foi ensaiado pelos jesuítas na Bahia, foi impedido de continuar, ainda no século XVI. 2.4 As vozes da África Os portugueses, tendo viajado muito pela África, conheciam os mouros do norte e os negros do interior do continente. Muitos desses negros viviam em Lisboa. Por isso, quando chegaram ao Brasil, chamaram os índios de negros da terra. Por serem diferentes dos europeus, estes os achavam inferiores. Para que tivessem algum valor para os europeus, era preciso que se tornassem idênticos a eles. Era preciso catequiza r os indígenas, convertendo-os a qualquer custo ao cristianismo. E era preciso ensiná-los a viver em aldeias como as da Europa e trabalhar como os europeus. Como não estavam acostumados a viver e trabalhar desse modo, era preciso obrigá-los a trabalhar e viver assim. Era preciso transformá-los em escravos dos colonos brancos portugueses. Nos primeiros tempos, a plantação da cana-de-açúcar foi tocada assim, com o trabalho dos índios escravizados. Os bandeirantes, que saíam pelo sertão afora para procurar ouro e pedras preciosas, também buscavam indígenas para apresar e trazer para o trabalho nas plantações. Mas os indígenas, que não estavam acostumados a esse modo de vida, rendiam pouco como mão-de-obra nos engenhos de cana. E, depois, os padres jesuítas, que tinham por missão convertê-los à religião dos colonizadores, não se conformavam com essas práticas dos bandeirantes, porque era um péssimo exemplo da civilização dos brancos cristãos. Foi por isso que os portugueses donos dos engenhos de cana resolveram buscar outra gente para trabalhar em suas terras. Se os negros da terra não serviam, era melhor ir buscar os negros da África. E é aqui que começa a história da presença dos africanos negros no Brasil. Nossos antepassados negros eram pessoas muito diferentes umas das outras, tal como os indígenas que viviam no Brasil na época do descobrimento. Aqui não havia índios, simplesmente, mas muitos povos indígenas de várias nações, que falavam línguas diferentes e viviam de muitas maneiras diversas. E o mesmo aconteceu com os escravos vindos da África. Eles não eram simplesmente negros africanos escravos, mas povos que pertenciam a muitas nações. Os primeiros africanos que foram trazidos como escravos para o Brasil vinham da costa da África ocidental. Eram povos que aqui ficaram conhecidos como negros minas, congos, angolas, guinés, cabindas, rebolos, benguelas, Moçambique e muitos outros nomes, e todos eles pertenciam ao grupo dos povos bantos e sudaneses. Os países da África que hoje se chamam Angola, Congo, Moçambique ou Guiné receberam esses nomes por causa desses povos que lá viviam há muito tempo e foi dessas regiões que vieram os primeiros escravos. Depois, também vieram como escravos os povos de cultura ioruba, da Nigéria e do Benin, e também eles formavam nações distintas, dos nagôs, dos geges, dos ijexás. Muitos deles viviam em civilizações altamente desenvolvidas, como no reino de Oyó, onde havia grandes cidades. Ali, reis poderosos exibiam o luxo de suas cortes e tinham uma cultura muito refinada. Os artesãos sabiam trabalhar os metais como ninguém e em sua arte as esculturas de ferro e de madeira entalhada eram maravilhosas. Cada um desses povos tinha um modo de vida próprio, com costumes diferentes e crenças religiosas
  • 10. 10 muito elaboradas. Entre os povos bantos, cada grupo de famílias cultuava seus antepassados, pois acreditavam que vinha deles a força que sustentava a vida de todos os membros do grupo. Os deuses dos iorubás eram os orixás, ligados aos elementos e às forças da natureza. Havia divindades do fogo e do ar, da água e da terra. Havia deuses e deusas das matas e dos rios, da chuva, da tempestade, dos raios, do trovão, do arco-íris. Havia um deus dos metais, da agricultura e das armas de guerra e outro que protegia as pessoas das doenças. Mas, apesar disso tudo, para os brancos europeus eles eram apenas negros que, como os índios da América, era preciso civilizar. Os negros eram capturados na África e depois vendidos aos comerciantes de escravos. De lá, eram embarcados nos navios chamados negreiros e uma enorme quantidade deles morria na travessia do oceano Atlântico, por causa das doenças e dos maus tratos que sofriam. Às vezes, mesmo antes de embarcar, eles eram batizados, recebendo um nome cristão, e isso bastava para que fossem considerados “convertidos” à fé dos seus senhores. Outras vezes, eram batizados assim que desembarcavam nos portos do Brasil, em Pernambuco e na Bahia, antes de serem levados ao mercado de escravos. Os escravos que eram comprados nos mercados de Recife ou Salvador iam trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar do litoral ou nas fazendas de gado do interior. Como a cana não se adaptou bem na capitania de São Vicente, nas terras do litoral de São Paulo, a lavoura ali não foi para frente. Mas ela se deu muito bem com o litoral ensolarado de Pernambuco e da Bahia, e foi aí que se instalaram os grandes engenhos de açúcar. E depois, quando o povoamento português entrou pelas terras do sertão, foram surgindo as grandes fazendas de gado. Na casa-grande do engenho ou da fazenda, os escravos faziam todo tipo de serviços. Era preciso plantar e limpar a cana, depois cortar a cana do pé, moer cada uma e ferver o caldo, para fazer o açúcar que seria vendido lá fora, o melado e a rapadura para fazer os doces e adoçar os bolos na casa de fazenda. Os escravos faziam as peças da moenda e cuidavam dos bois que faziam a moenda girar. Plantava a mandioca, o milho, o feijão e a abóbora que todos comiam. Nas fazendas do sertão, cuidavam do gado no pasto e o recolhiam ao curral e davam para ele comer o bagaço da cana quando havia por perto um engenho. Cuidavam das crias e aproveitavam o leite das vacas para fazer queijo. Quando o gado já tinha engordado bem no pasto, eles matavam os bois, salgavam e secavam sua carne no sol, para fazer o charque. Era essa carne seca que os escravos levavam para vender nos engenhos e nas cidades do litoral. No terreiro dos engenhos e das fazendas, as escravas criavam os frangos que matavam na hora, quando chegava uma visita ou para fazer o caldo que a senhora do engenho tomava, quando estava de resguardo, depois do nascimento de uma criança. Eram elas que engordavam os porcos e com sua carne faziam linguiça e chouriço, guardando a banha para temperar a comida. Cuidavam do fogão de lenha, do forno de barro, faziam os doces e assavam as broas de milho e os bolos de mandioca que todos comiam na casa-grande. Muitas teciam no tear o pano de suas roupas, que elas próprias costuravam. Também cuidavam da roupa de cama que todos usavam na casa grande. E ainda, como mucamas, tinham de cuidar da sinhá. Era preciso lavar, engomar e passar suas roupas, cuidar de seus sapatos, pentear seus cabelos. As escravas também cuidavam dos filhos pequenos da sinhá. Eram elas que amamentavam as crianças, que davam banho nelas, que cuidavam de suas roupinhas e preparavam sua comida. Mas o filho da escrava já nascia escravo. Assim que crescia um pouco mais, o moleque ia ajudar na plantação ou na
  • 11. 11 lida do gado e fazia todo tipo de pequenos serviços na casa. E quando o sinhô ou a sinhá quisesse, podia vender o moleque, ou dá-lo de presente a algum conhecido, sem se importar com sua mãe escrava, que ficava com a família do senhor para cuidar dos filhos dele. Os senhores-de-engenho ou das fazendas de gado também costumavam ter uma casa na cidade. Então, era ali que os escravos iam cuidar da família de seus senhores, nos grandes sobrados de Recife, Olinda e Salvador. E também na cidade faziam todos os serviços: vendiam, pela rua, frutas, doces, a água que se tomava nas casas. Levavam as pesadas barricas de madeira onde todo dia se despejava a urina e as fezes dos moradores das casas, para esvaziá-las no rio ou no mar. E na cidade também aprendiam todo tipo de ofício. Eram ferreiros, barbeiros, carpinteiros. Aprendiam a construir casas e igrejas, e aprendiam também a entalhar na madeira os altares das igrejas, suas colunas, aprendiam a esculpir no barro ou na madeira as imagens dos santos, a pintar de ouro suas roupas. Toda a arte nesse período f oi feita com a contribuição do seu trabalho. Era assim a vida dos escravos negros vindos da África, desde os primeiros tempos em que a colonização portuguesa se dedicou ao cultivo da cana, no final do século XVI. Foi nos engenhos e nas fazendas que os escravos africanos construíram a riqueza do Brasil por todo o século XVII. Mas continuavam a ser desprezados e maltratados pelos senhores brancos, porque eram negros e escravos. O sofrimento dos escravos começava na África e continuava depois no Brasil. Às vezes, eram capturados na África todos os membros de uma família, mas eles eram separados uns dos outros para serem vendidos como escravos no Brasil. Também os que falavam a mesma língua e vinham de uma mesma região, como os congos, angolas, benguelas ou guinés, por exemplo, eram separados na hora da venda. Isso porque os donos dos engenhos tinham medo. Pois, se eles pudessem se entender uns com os outros e ficassem todos juntos, talvez quisessem defender os parentes e os amigos contra os castigos e maus-tratos que sofriam e poderiam organizar uma revolta. E sobravam motivos para revoltas, porque maus-tratos não faltavam. Os escravos moravam amontoados nas senzalas e o feitor, que os vigiava por conta do senhor-de-engenho, por qualquer coisa dava a eles todo tipo de castigo. Eram presos no tronco, uma grande peça de madeira com buracos onde enfiavam seus pés e suas mãos. Quando andavam de um lugar para outro, iam amarrados juntos por uma comprida corrente, chamada libambo. Às vezes tinham que carregar no ombro ou apoiada na cabeça uma pesada peça de madeira, o cepo, que era preso no seu tornozelo com uma corrente, para impedir que eles pudessem correr e fugir. Outras vezes, o senhor punha no pescoço do escravo a gargalheira, um pesado colar de ferro com três pontas bem altas para impedir que ele virasse a cabeça, mal podia andar assim. Outras vezes, ainda, os escravos eram castigados com a palmatória, uma prancha de madeira cheia de furos que o feitor batia com força na sua mão. Mesmo nas crianças se batia com a palmatória e suas mãozinhas ficavam inchadas e cheias de marcas. Por isso as revoltas eram constantes. E, apesar da vigilância do senhor e do feitor, muitos conseguiam fugir dos engenhos de açúcar e das fazendas. O senhor mandava atrás deles o capitão do mato e, quando eram apanhados e trazidos de volta, sofriam ainda maiores castigos. Por isso os escravos precisavam fugir cada vez mais para longe, para lugares onde não pudessem ser alcançados. E, quando conseguiam se reunir nesses lugares, precisavam se organizar muito bem para se defender dos brancos, caso eles chegassem até lá. Essas comunidades criadas pelos negros eram chamadas quilombos e os que ali viviam eram conhecidos como quilombolas. O quilombo mais importante que existiu no Brasil foi Palmares, que se organizou no atual Estado de Alagoas por volta de 1597. Palmares conseguiu resistir aos brancos por
  • 12. 12 quase 100 anos e, no período mais importante de sua história, durante 30 anos, conseguiu manter vivendo ali cerca de 30 mil pessoas. Os líderes de Palmares que se tornaram mais conhecidos foram Ganga-Zumba e Zumbi e é por causa da resistência heroica dos escravos daquele quilombo que o dia da morte de Zumbi, 20 de novembro, passou a ser comemorado no Brasil desde 1978 como o Dia da Consciência Negra. O quilombo dos Palmares foi destruído em 1694 por um bandeirante paulista, Domingos Jorge Velho. E são os bandeirantes e os quilombos que nos fazem chegar mais perto da origem dos atuais remanescentes dos quilombos, espalhados por diferentes cantos do território brasileiro, a exemplo do povo Kalunga, em Goiás, território que também foi um quilombo, surgido na época em que os bandeirantes paulistas chegaram até às terras de Goiás. 2.5 As reformas pombalinas A “rede” jesuíta de ensino, este embrião de “sistema de ensino”, cujas características estão sumariamente reproduzidas, foram eliminadas em 1759 pelo Marquês de Pombal. Era o “Iluminismo” chegando ao Brasil e, entre outras razões de natureza política e econômica, declarando a necessidade de lutar contra o atraso filosófico, o aristotelismo, defendo a incorporação de novos ideais filosóficos e científicos, um novo sentido de educação que deveria ser implantado por intermédio da escola (nesta época as escolas começavam igualmente a serem criadas na Europa8). O Estado português reassume o protagonismo, antes em poder da Igreja, em matéria educacional. Mas obtém resultados desastrosos. Apenas treze anos depois da expulsão dos jesuítas foi criado o “subsídio literário”, para financiar o ensino elementar e de humanidades, que constaria de “aulas régias”, isto é, aulas “avulsas”, de latim, grego ou retórica para evitar a simples e pura ausência de escola. A população beirava os “três milhões” de habitantes. Sociedade rígida e escravocrata, nela não poderia haver nem tipografias nem manufaturas, nem sequer oficinas de ourivesaria. Os “professores” passaram a ser improvisados, sem a formação dos jesuítas, que era notável. (Talvez daí decorra a expressão de “professor leigo”, associando o despreparo ao fato de serem não “religiosos”, como até então). Vale lembrar algumas premissas da reforma pombalina, tal como expressas por Antônio Nunes Ribeiro Sanches (amigo de Luiz Antônio Verney, autor de O Verdadeiro Método de Estudar, inspirador filosófico da reforma), o mentor político das mudanças: no ensino primário, afastar das escolas de ler e escrever os filhos dos pobres e das pessoas do campo, porque se estes se alfabetizassem, deixaria o campo, ou quereriam ser outra coisa que não roceiros pescadores ou ocupar ofícios humildes como seus pais. Para evitar isso, deveriam ser eliminadas as escolas, públicas ou particulares, nas aldeias e pequenos vilarejos. Quanto às colônias, no caso o Brasil, dever-se-ia ter presente que seu único objeto deveria ser “a agricultura e o comércio”, não podendo nelas existirem instrução, cultura, elevação científica. Pois fariam frutificar honras, cargos, dinheiro e valores humanos que só deveriam frutificar na metrópole. Isso só poderia beneficiar pessoas das Colônias “se frutificassem na corte”. Eram proibidas as escolas de latim (ensino médio), pelas mesmas razões. Era importante cultivar expressamente a dependência da colônia em relação à capital, o reino. No Brasil, da nova proposta, apenas no Seminário de Olinda, sob inspiração do bispo D. Azeredo Coutinho, aconteceu alguma coisa de tal reforma do ensino médio, que consistiu em incluir no currículo o estudo das ciências
  • 13. 13 matemáticas, físicas e naturais, complementando as matérias tradicionais. E o Seminário de Olinda é considerado um centro importante de renovação do pensamento filosófico e político no nordeste brasileiro, com influência decisiva na história de Pernambuco e da Revolução Pernambucana de 1817. 2.6 A educação de D. João VI Quando a família real chegou ao Brasil, em 1808, praticamente nada havia em matéria de ensino. Era um total vazio. Ao monarca coube várias iniciativas no campo cultural, tais como a criação da Imprensa Régia, do Jardim botânico, da Biblioteca, do Museu Nacional. Os interesses do Estado aqui implantado requeria médicos, engenheiros, oficiais militares. Daí a criação da Escola de Cirurgia na Bahia, da cadeira de Ciência Econômica, da Academia de Guardas- Marinha, da cadeira de Medicina Operatória e Arte Obstétrica, da cadeira de Cálculo Integral, Mecânica e Hidrodinâmica em Pernambuco, da cadeira de Medicina Clínica no Hospital Real Militar e de Marinha, da Academia Real Militar, considerada a primeira faculdade brasileira oficialmente criada. Implanta-se o sistema de ensino no Brasil, começando pelo ensino superior, instituído em forma de ensino profissionalizante em estabelecimentos ou unidades isoladas. 2.7 O ensino no Império A situação da educação escolarizada no Brasil não sofrerá grandes alterações ao longo do Império. De um modo geral, o ensino superior consolida as escolas criadas por D. João VI, acrescentando a elas as Faculdades de Direito de São Paulo e do Recife, e já no seu final, a Escola de Minas, de Ouro Preto. No ensino médio, surgem os Liceus, tendo como referência “modelar” o Colégio Pedro I, criado no Município da Corte, com alguns outros se espalhando pelas províncias. O setor privado vai construindo também os seus espaços. A grande referência, por exemplo, em Minas Gerais, é o Colégio Caraça. Entretanto, nada de uma rede pública respeitável. No ensino primário, então, o panorama é desolador. Com a Independência, a educação do povo se exprime de forma genérica e superficial. Na Constituição de 1823, o artigo 19 determina “a instrução primária gratuita a todos os cidadãos”. Em 1826, surge uma primeira reforma do ensino, promovida pelo Cônego Januário da Cunha Barbosa, propondo a inspeção escolar, e, em 1827, uma lei é promulgada criando as escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugarejos, e estabelecendo o método Lancaster ou de ensino mútuo. Nos conventos havia escolas para meninos ou meninas, conforme fosse a congregação masculina ou feminina. A educação feminina era uma raridade. Em 1834, entretanto, o Ato Adicional, estabelecendo uma monarquia federativa e descentralizadora, cria as Assembleias Legislativas Provinciais, e descentraliza também a educação, que fica sob responsabilidade das Províncias, a cujas Assembleias competiriam legislar “sobre a instrução pública e os estabelecimentos próprios a promovê-la”. Esta descentralização prosseguirá com a República, retomando em nossos dias a forma de municipalização do ensino. A escassez de recursos, ou de interesse, deixou o ensino básico a descoberto. No ensino médio, as reformas seguiram, numa tensão ora estruturante ora desestruturante, haja vista, por exemplo, o caso da reforma Leôncio de Carvalho, que, em 1879, estabeleceu o “ensino livre”, ou seja, ampliou para todo o Império as medidas que estabeleceram, no mesmo ano, no Município da Corte, os exames vagos e o regime d e frequência livre. Agora abria ao setor privado a
  • 14. 14 possibilidade de abrir escolas e cursos de todos os tipos e níveis, podendo conceder graus acadêmicos e vantagens até então concedidos exclusivamente pelos estabelecimentos públicos. A responsabilidade pública era apenas quanto à inspeção para garantir as condições “de moralidade e higiene”. E é com esse quadro de precariedade que entramos na República. 2.8 A política educacional na Primeira República A primeira reforma educacional no período republicano aconteceu em 1890, tendo sido criado o Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos. Sua ênfase recaiu sobre o ensino médio, reformando o Colégio Pedro I, destacando o ensino das ciências naturais e exatas. Em 1901 (Epitácio Pessoa), depois em 1911 (Rivadávia Correia novamente reedita Leôncio de Carvalho desoficializando e privatizando o ensino público), depois em 1915 (Carlos Maximiliano), depois em 1925 (Luiz Alves/Rocha Vaz) aconteceram novas “reformas”. Para Otaíza Romanelli, entretanto, “todas essas reformas não passaram de tentativas frustradas e, mesmo quando aplicadas, representaram o pensamento isolado e desordenado dos comandos políticos, o que estava muito longe de poder comparar-se a uma política nacional de educação”. O mais importante dessa fase da história da sociedade brasileira e da institucionalização da educação escolarizada é um forte movimento de reforma nascido entre os educadores que em 1924 criaram a Associação Brasileira de Educação e realizaram várias reformas estaduais, em São Paulo, em Minas Gerais, no Ceará, no Distrito Federal e na Bahia. Nesse contexto aconteceu o movimento da Escola Nova e se constituirá o núcleo dos “pioneiros da educação”, que terão muita influência na década seguinte. 2.9 A educação a partir dos anos 30: as leis “orgânicas” É a partir dos anos 30 do século X, no bojo de um movimento de sociedade que culmina na Revolução de 30, que se começará um sistema de ensino público segundo tal política nacional. É a Reforma Francisco Campos que, em 1931, dá a largada do processo. Este processo vai desaguar na Constituição de 1934. Nesta, vão se fazer ouvir os ecos do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, que, assinado por ilustres figuras da vida pública e educacional brasileira, procurara, em 1932, despertar a nação para a importância da reforma educacional, dirigindo “ao povo e ao governo” uma proposta de “reconstrução educacional no Brasil”, afirmando a importância e a gravidade do “problema educacional” dentro da “hierarquia dos problemas nacionais”, afirmando a impossibilidade de “desenvolver as forças econômicas ou de produção sem o preparo intensivo das politicas- sociais a solução dos problemas escolares” forças culturais e o desenvolvimento das aptidões à invenção e à iniciativa que são os fatores fundamentais do acréscimo de riqueza de uma sociedade”. Na avaliação dos signatários, após 43 anos de República, ainda não se lograra “criar um sistema de organização escolar”, permanecendo “tudo fragmento e desarticulado” na esfera das iniciativas de política educacional. Propunha-se, então, uma política com “visão global do problema, em todos os seus aspectos”. Esse “estado antes de inorganização do que de desorganização do aparelho escolar, (tem sua causa principal) na falta, em quase todos os planos e iniciativas, da determinação dos fins da educação (aspecto filosófico e social) e da aplicação (aspecto técnico) dos métodos científicos aos problemas de
  • 15. 15 educação”. Propunham um “movimento de renovação educacional” para a reconstrução da área, buscando “transferir do terreno administrativo para os planos Essa “campanha de renovação educacional” procurou “formular, em documento público, as bases e diretrizes do movimento”. O documento apresentava, assim, um programa para uma “nova política educacional”, formulada a partir de “uma visão global do problema educativo”. E, na sequência, abordaram as finalidades da educação, o problema dos valores (valores mutáveis e valores permanentes), o papel do Estado em face da educação, caracterizando a esta como “uma função essencialmente pública”, propondo o “princípio da escola para todos” – “escola comum ou única” – de sorte a “não admitir dentro do sistema escolar do Estado, quaisquer classes ou escolas a que só tenha acesso uma minoria, por um privilégio exclusivamente econômico”. Afirmam-se, então, os princípios da laicidade, da gratuidade, da obrigatoriedade e da coeducação (educação conjunta de estudantes de ambos os gêneros), da unidade da função educacional, da sua autonomia, da descentralização. Discutem-se, ainda, importantes elementos metodológicos fundamentados o “processo educativo” nos conceitos e fundamentos da “educação nova”. Enfatizava- se a importância “do estudo científico e experimental da educação” por oposição do “empirismo” reinante (e é dessa época a criação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP). Propunha-se um “plano de reconstrução educacional” que representasse uma “radical transformação da educação pública em todos os seus graus”, compreendo “dos jardins de infância à Universidade”, passando por uma escola secundária “unificada para se evitar o divórcio entre os trabalhadores manuais e intelectuais”, tendo “uma sólida base comum de cultura geral”, para “posterior bifurcação em secção de preponderância intelectual (...) e em secção de preferência manual, ramificada por sua vez em ciclos, escolas ou cursos destinados à preparação às atividades profissionais...” Propunha-se uma vigorosa reforma da Universidade, dando-se especial atenção à formação dos “melhores talentos”, indispensáveis “à formação das elites de pensadores, sábios, cientistas, técnicos e educadores” indispensáveis para “o estudo e solução” dos diferentes problemas nacionais. Finalmente, enfatizava a importância da formação dos professores, em todos os níveis, preconizando “o princípio da unidade da função educacional” contra a “tradição das hierarquias docentes baseadas na diferenciação dos graus de ensino”, que diferenciava “mestres, professores e catedráticos”, fundamental para a “libertação espiritual e econômica do professor, mediante uma formação e remuneração equivalentes que lhes permita manter, com a eficiência no trabalho, a dignidade e o prestígio indispensáveis aos educadores”. Após abordar o “papel da escola na vida e a sua função social”, o documento conclui afirmando “a disposição obstinada” de enfrentar as dificuldades apontadas, a disposição de lutar “na defesa de nossos ideais educacionais”, para realizar “uma nova política educacional, com sentido unitário e de bases científicas”. Tratava-se, para os signatários, de “uma missão a cumprir”, contra a indiferença e a hostilidade, “em luta aberta contra preconceitos e prevenções enraizadas”, convictos de que “as únicas revoluções fecundas são as que se fazem ou se consolidam pela educação”. Este era, dentre todos os deveres do Estado, ”o que exige maior capacidade de dedicação e justifica a maior soma de sacrifícios, aquele com que não é possível transigir sem a perda irreparável de algumas gerações...”.
  • 16. 16 Trata-se de um texto histórico, riquíssimo, que merece ser conhecido em detalhes. Seus efeitos se farão sentir na Constituição de 1934, que, pela primeira vez, falará em “diretrizes e bases da educação” e proporá a realização de um plano nacional de educação. E então deslancha um processo de reforma e estruturação do sistema educacional brasileiro. Esse processo vai prosseguir durante todo o período Vargas, completando-se em 1946. Na verdade, serão bem quinze anos de reformas, começando com a do ensino superior, em 1931 (mas que acontecerá de fato na criação da USP em 1934), passará pelas Leis Orgânicas do Ensino Secundário, Industrial, Comercial e Agrícola entre 1942 e 1943, e terminará com as Leis Orgânicas do Ensino Primário e do Ensino Normal, em 1946. Registre-se, considerando o ensino primário, que sua normatização data de 1946, ou seja, tem, no ano de 2001, apenas 5 anos de vigência. Foi na Constituição de 1934 que a expressão “diretrizes e bases da educação nacional”, criada pelos pioneiros, se incorporou definitivamente no vocabulário educacional brasileiro, enquanto expressão que, na realidade, vai se efetivar através das leis orgânicas, já mencionadas, e na própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, cujo projeto, de 1948, após a Constituição de 1946, foi aprovada em 1961, para ser reformada em 1971, até chegar à atual Lei 9394/96, sob cuja égide nos encontramos. A institucionalização, pois, de um sistema nacional de educação, apoiado numa política nacional consistente, democraticamente elaborada, tem apenas cerca de 40 anos no Brasil. Pois foi a partir de tal período, 1961, que, efetivamente, se “organizou” o sistema de forma consistente e coerente. Os próximos módulos abordarão a forma e os termos em que este sistema se organizou tanto no plano filosófico, macro político e administrativo, quanto no plano pedagógico propriamente dito, e na esfera micropolítica, o plano dos estabelecimentos de ensino. 2- CONCEITOS, FINALIDADES E ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NACIONAL Objetivos específicos - Analisar os objetivos propostos para cada nível de ensino; - Analisar tais formulações numa perspectiva filosófico-crítica; - Identificar a problemática fundamental da organização do sistema de ensino em seus diferentes níveis e modalidades; 1 Conceito, finalidades, objetivos e macro organização Considerando a institucionalização da educação como parte do processo de instituição da sociedade, e sendo a sociedade auto instituição, seu destino depende de nós. Dito de outra forma, a sociedade não é algo pronto, acabado de uma vez por todas. Ao contrário, é algo que se faz e se refaz permanentemente. É algo por ser, por-fazer. E que cabe aos cidadãos definirem o rumo que deve tomar, antecipando o tipo de sociedade que querem ter, querem construir, projetando, isto é, antecipando o futuro que desejam. Daí a sociedade poder ser considerada um projeto: algo a ser
  • 17. 17 construído segundo nossos interesses, desejos e necessidades. Como se fora nossa casa. Ou talvez, nosso barco comum, na travessia da vida. Dentro de tal perspectiva é que vamos recuperar as disposições das leis que regeram nossa educação. São elas, principalmente, as leis nº 4024 (de dezembro de 1961), nº 5692 (de agosto de 1971) e nº 9394/96 (de dezembro de 1996). 1.1 O conceito de educação A Lei 9394/96 começa situando a educação escolar dentro de um quadro no qual aparece a educação como fenômeno antropológico fundamental que se desenvolve “na vida familiar, na convivência humana, no trabalho”, nos movimentos sociais, nas organizações da sociedade civil, nas manifestações culturais (art.1º). E, por isso, dispõe que a educação escolar deva estar vinculada ao mundo do trabalho e à prática escolar (§ 2º). 1.2 As finalidades da educação escolar Os últimos cinquenta anos da educação escolar brasileira (pois o projeto da LDB apareceu em 1948) assim apresentam as finalidades educacionais. Na Lei n.º 4024/61, nós as encontramos assim formuladas: “Art.1º: A educação nacional, inspirada nos ideais de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por fim: a) a compreensão dos direitos e dos deveres da pessoa humana, do cidadão, do estado, da família e dos demais grupos que compõem a comunidade; b) o respeito à dignidade e às liberdades fundamentais do homem; c) o fortalecimento da unidade nacional e da solidariedade internacional; d) o desenvolvimento integral da personalidade humana e a sua participação na obra do bem comum; e) o preparo do indivíduo e da sociedade para o domínio dos recursos científicos e tecnológicos que lhes permitam utilizar as possibilidades e vencer as dificuldades do meio; f) a preservação e expansão do patrimônio cultural; g) a condenação a qualquer tratamento desigual por motivo de convicção filosófica, política ou religiosa, bem como a quaisquer preconceitos de classe ou raça.
  • 18. 18 O ensino primário, por sua parte, deveria “ter por fim o desenvolvimento do raciocínio e das atividades de expressão da criança, e a sua integração no meio físico e social”. Já a educação de grau médio, “em prosseguimento à ministrada na escola primária, destina-se à formação do adolescente”. E ao falar de educação da criança e, logo a seguir, do adolescente, o texto explicita um importante elemento: o da consideração do desenvolvimento humano, bio-psicosociológico. Em agosto de 1971, surge a Lei nº 5692. Estamos novamente em plena ditadura, o Brasil sendo governado pelo General Emílio G. Médici, no período mais difícil do último regime militar. E o que encontramos? Primeiramente, temos a Constituição outorgada pelos militares em 1969, cujo artigo 176 dispõe que “a educação, inspirada no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e solidariedade humana, é direito de todos e dever do Estado, e será ministrada no lar e na escola”. São mantidos praticamente na íntegra os Títulos I a V da lei 4024/61. E se lhes acrescenta o seguinte objetivo geral: “O ensino de 1º e 2º graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto-realização, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania” (Lei 5692, art.1º.) A finalidade da educação, de acordo com a Lei 9394/96, é “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (art. 2º). 1.3 A educação como direito e dever Apresentada a grande declaração de intenções, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, n.º 4.024, de dezembro de 1961, passa a tratar do direito à educação, do conceito de liberdade do ensino. Este último item certamente foi o mais polêmico, pois definia a participação do Estado e dos setores privados e, mais que isso, privatistas. De acordo com a Lei 9394/96, entre os princípios a serem observados no ensino cabe destacar aqueles que dispõem sobre “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, o da “garantia do padrão de qualidade”, a “valorização da experiência extra-escolar” e a “vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais” (art. 3º). No artigo 4º cabe destacar, entre os indicadores de cumprimento do dever do Estado para com a educação escolar pública, a garantia de “oferta de ensino noturno regular adequado às condições do educando” (inciso VI), “ a oferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com características e modalidades adequadas às suas necessidades e disponibilidades, garantindo-se aos que forem trabalhadores as condições de acesso e permanência na escola” (inciso VII). 1.4 As atribuições institucionais Pela Lei 4024/61, o item referente à administração do ensino destacava serem do MEC as atribuições do Poder Público em matéria de educação e constituía o Conselho Federal de Educação. Definia os
  • 19. 19 sistemas de ensino, destacando o papel da União, dos Estados e do Distrito Federal na organização dos mesmos. Registrese, aqui, o aparecimento explícito da competência dos Estados e do Distrito Federal para autorizar o funcionamento dos estabelecimentos de ensino primário e médio (quando não pertencentes à União), bem como a competência de reconhecê-los e inspecionálos. A Lei 5692/71 pouco se detém sobre a questão da organização político-administrativa em nível macro. Em compensação, a Lei 9394/96, elaborada num contexto mais democrático e de maior debate e participação, amplia consideravelmente este tópico. O assunto é tratado no Título IV, cujo título é exatamente Da Organização da Educação Nacional. E começa falando das atribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que devem “em regime de colaboração, organizar os respectivos sistemas de ensino”. A constituição de tais sistemas é apresentada nos artigos 16, 17 e 18, e compreendem as respectivas instituições de ensino (estabelecimentos escolares) e os órgãos (instâncias gestoras) de educação. À União cabe “a coordenação (grifo meu) da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo a função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais”. Mas os sistemas de ensino, respeitadas as diretrizes da lei, terão liberdade para organizar-se. No artigo 9º detalha as atribuições da União, cabendo destacar a de elaborar o Plano Nacional de Educação, prestar assistência técnica e financeira às demais instâncias, estabelecer diretrizes para as diferentes modalidades de ensino, manter um sistema de informações sobre a educação, assegurar um processo nacional de avaliação do rendimento escolar em todos os níveis de ensino, entre outras. Aos Estados (artigo 10) cabe a responsabilidade de “organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais de seus sistemas de ensino”, definir juntamente com os municípios as formas de cooperação para oferta do ensino fundamental distribuindo as responsabilidades de forma proporcional, considerando o tamanho da população e a disponibilidade de recursos financeiros disponíveis em cada esfera, “elaborar e executar políticas e planos educacionais, levando em conta as diretrizes nacionais e buscando integrar suas ações com as dos municípios...”. É explicitamente atribuído aos Estados a responsabilidade por “assegurar o ensino fundamental e oferecer, com prioridade, o ensino médio”. Aos Municípios (artigo 1) cabe a incumbência de cuidar dos órgãos e instituições oficiais de seu sistema de ensino, integrando-se às políticas e planos formulados pela União e pelos Estados, baixar as normas complementares necessárias ao sistema municipal, “exercer a ação redistributiva em relação às suas escolas”, e “oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental, permitida a atuação em outros níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino”. Registre-se a possibilidade aberta de municípios optarem por se integrar ao sistema estadual, compondo “um sistema único de educação básica”. E quanto ao Distrito Federal? “Ao Distrito Federal aplicar-se-ão as competências referentes aos Estados e Municípios”, diz o parágrafo único do artigo 10. Novidade importante na atual lei da educação nacional é a consideração, entre os atores do ensino, dos “estabelecimentos de ensino” (artigo 12) e, principalmente, dos “docentes” (artigo 13). Relativamente aos estabelecimentos de ensino, cabe-lhes (sempre respeitadas as normas comuns e as de seu sistema) “elaborar e executar sua proposta pedagógica”; “administrar seu pessoal e seus recursos materiais e financeiros”; “assegurar o cumprimento dos dias letivos e horas-aula estabelecidos”; “velar pelo
  • 20. 20 cumprimento do plano de trabalho de cada docente”; “prover meios para a recuperação dos alunos de menor rendimento”; “articular-se com as famílias e a comunidade, criando processos de integração da sociedade com a escola”; “informar os pais e responsáveis sobre a frequência e o rendimento dos alunos, bem como sobre a execução de sua proposta pedagógica”. Quanto aos docentes, nos termos legais, “incumbir-se-ão de: i) participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; ii) elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; iii) zelar pela aprendizagem dos alunos; iv) estabelecer estratégias de recuperação para os alunos de menor rendimento; v) ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidas, além de participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional; vi) colaborar com as atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade”. Trata-se, certamente, ainda que se possam imaginar outras formas de apresentar o papel dos estabelecimentos e dos docentes, de um reconhecimento de tais atores, institucional e coletivo, e individualizados, como sujeitos do processo, resgatando em parte o ideário dos Pioneiros, no Manifesto de 1932. E certamente condizente, em boa parte, com a constituição dos movimentos docentes nos diferentes níveis de ensino, associados em sindicatos e outras formas de representatividade e participação. Nessa linha deve-se entender o espaço (entre)aberto para a gestão democrática “do ensino público na educação básica” (e não na superior), ainda que “de acordo com as suas peculiaridades” e“conforme os princípios” de participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola e da participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes (artigo 14, incisos I e I). Na mesma direção afirma-se que “os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educação básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira, observadas as normas gerais de direito financeiro público”(artigo 15). São as marcas do “movimento democrático”, da dinâmica social-histórica pela realização do projeto de autonomia abrindo brechas e caminhos por entre as formas instituídas de formular as políticas educativas e gerir as organizações correspondentes. A velha e inicial diferenciação entre público e privado, que tanta celeuma provocou quando da discussão da lei 4024/61, nos anos sessenta, permanece intacta. O artigo 19 contempla uma
  • 21. 21 classificação das instituições de ensino, nos diferentes níveis, entre “públicas” (“assim entendidas as criadas ou incorporadas, mantidas e administradas pelo Poder Público”), e “privadas” (“assim entendidas as mantidas e administradas por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado”). As privadas, por sua vez, (de acordo com o artigo 20, incisos I a IV) se enquadram em diferentes categorias: i) particulares em sentido estrito (aquelas instituídas e mantidas por uma ou mais pessoas jurídicas de direito privado); i) comunitárias (“instituídas por grupos de pessoas físicas ou por uma ou mais pessoas jurídicas, inclusive cooperativa de professores e alunos que incluam na sua entidade mantenedora representantes da comunidade”); i) confessionais (“instituídas por grupos de pessoas físicas ou por uma ou mais pessoas jurídicas que atendem a orientação confessional e ideologia específicas”, além de atenderem ao disposto no inciso anterior, ou seja, incluírem representantes da comunidade em sua entidade mantenedora); iv) filantrópicas (na forma da lei). As instituições privadas, entretanto, integram os sistemas de ensino. As de ensino superior estão compreendidas no Sistema Federal de Ensino; as de ensino fundamental e médio, aos sistemas de ensino dos Estados e do Distrito Federal; as de educação infantil, aos sistemas municipais. Como quer que seja, ao final do século X definem-se as responsabilidades institucionais em matéria de educação, pelo menos no plano político-administrativo. Lembremos que apenas com a proclamação da República foi criado o Ministério da Instrução, correios e Telégrafos, de curta duração, tendo os assuntos da educação passado ao Ministério da Justiça. Apenas em 1930 vai ser recriado, como Ministério da Educação e Saúde, desvinculando-se deste apenas depois de 1950, tendo passado por um sem-número de reformas, associando-se ora à Cultura, ora ao Desporto. Resta ver quem paga a conta! 1.5 O financiamento da educação Ideias generosas ficam no papel se não são acompanhadas de efetiva decisão política. E esta efetividade materializa-se no orçamento: sem dinheiro, nada acontece. Ou muito pouco, pois como adverte um economista muito conhecido, “não há almoço de graça”, muito menos se estrutura uma rede escolar sem fundos financeiros. A educação escolarizada no Brasil começou privatizada, sob responsabilidade dos jesuítas, com recursos providos pelo Rei de Portugal. De início era a redízima, ou uma décima parte dos dízimos, ou impostos, que iam para a Corte. Segundo João Monlevade14, tais recursos logo começaram a faltar, mas os padres da Companhia de Jesus já haviam constituído um patrimônio para a ordem, em terras, gados e produção, que fez dela uma importante companhia comercial, representando cerca de 25 por cento do PIB colonial no século XVIII, segundo historiadores de nossa economia. A Companhia, portanto, era capaz de sustentar-se enquanto ordem, como as “dezenas de escolas de primeiras letras” que funcionavam para atender populações de periferias e as missões indígenas (constituindo uma rede por todo o território) e os Colégios principais: Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo. Nosso “sistema educacional” começou privatizatema em constituição e, lembremos sempre, as reduções jesuíticas das Missões, nos dão uma amostra da qualidade de tal formação. Com a reforma pombalina, apenas nos anos de 1770, é implantado o “subsídio literário” que deverá financiar as famosas “aulas régias”, denominação pomposa para designar “aulas avulsas”, ou seja, o
  • 22. 22 financiamento de professores “leigos”, figura já comentada, que vai abrir classes nos desvãos das igrejas e salões, ensinando a nha terra, em Santa Catarina, havia remanescentes dessa categoria, deslocando-se pelas fazendas da região serrana para ensinar aos fazendeiros e seus filhos. Meus antepassados todos foram “escolarizados” (?!) dessa forma.) No Império, também já o vimos, o governo Central cuidava do ensino superior e do Colégio Pedro I, situado no município da Corte. Tudo o mais era responsabilidade das províncias, equivalendo a dizer que nas mais ricas estruturou-se um embrião de sistema, enquanto nas mais pobres praticamente não se estruturou sistema nenhum à míngua de recursos, dando início às “disparidades regionais” tão bem conhecidas contemporaneamente. Na Primeira República, nada de relevante aconteceu. É nos anos 1930, a partir do movimento dos educadores congregados na Associação Brasileira de Educação (ABE) – movimento de que o Manifesto é uma das expressões, pois houve várias Conferências realizadas sob sua égide –, que se busca definir uma política de financiamento, propondo-se a criação de “fundos” especiais para a educação, “para a manutenção e o desenvolvimento dos sistemas educacionais”. Começam a surgir as propostas de instituição de índices fixos para tal finalidade. Assim, a Constituição de 1934 vai determinar que a União e os municípios deveriam reservar um mínimo de 10% do orçamento anual para a educação, devendo os Estados e o Distrito Federal reservarem 20%. A Constituição ditatorial de 1937, porém, faz disso letra morta, ao desconsiderar o assunto. Ele será retomado na Constituição de 1946, dispondo (artigo 169) que a União aplicaria “nunca menos de 10% , e os Estados, o Distrito Federal e os municípios nunca menos de 20% da renda resultante dos impostos...”. O texto da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, aprovada em 1961, reitera essa responsabilidade, aumentando, porém, para 12% a contribuição da União (artigo 92). Este é um capítulo importante na história da política educacional brasileira, cheio de idas e vindas. De 1961 até 1988, data da última Constituinte, outras iniciativas têm ocorrido. Em 1964, foi criado o “salário-educação” (Lei nº 4.420) e, em novembro de 1968, a Lei nº 5.537 cria o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), destinado a captar recursos financeiros para o financiamento de projetos de ensino e pesquisa, incluindo alimentação escolar e bolsas de ensino. Seus recursos viriam do orçamento da União, de incentivos fiscais, do Fundo Especial da Loteria Esportiva (20%), do salário-educação, e outras fontes. Destaque-se ainda, no período, a instituição da Emenda Calmon, remetendo ao nome de seu autor, o Senador João Calmon, que lutou bravamente, a fim de ampliar os valores para 18%, no caso da União, e 25% nos demais casos. Isso como teto mínimo, pois há Estados e municípios que recolhem mais que isso. A atual LDB (Lei nº 9.394/96) dedica dez artigos ao tema do financiamento, desdobrando o que está contido na Constituição vigente. Assim, há: i) recursos provenientes dos impostos próprios a cada esfera administrativa (União, Estados, Distrito Federal e Municípios); i) receitas de transferências constitucionais que a União faz às demais instâncias; i) receitas do salário-educação e de outras contribuições sociais; iv) outros recursos previstos em lei. Sem nos determos, por ora, nos detalhes das transações financeiras da movimentação dos recursos (que não é nada trivial), é fundamental estar atento ao que se pode, ou não, considerar como “despesas de ensino”. O artigo 70 explicita o que se considera como “manutenção e desenvolvimento do ensino” (em todos os níveis): “I) remuneração e aperfeiçoamento do pessoal docente e demais profissionais da educação; I) aquisição, manutenção, construção e conservação de instalações e equipamentos
  • 23. 23 necessários ao ensino; I) uso e manutenção de bens e serviços vinculados ao ensino; IV) levantamentos estatísticos, estudos e pesquisas visando precipuamente ao aprimoramento da qualidade e à expansão do ensino; V) realização de atividades-meio necessárias ao funcionamento dos sistemas de ensino; VI) concessão de bolsas de estudo a alunos de escolas públicas e privadas; VII) amortização e custeio de operações de crédito destinadas a atender ao disposto neste artigo (manutenção e desenvolvimento do ensino!!); VIII) aquisição de material didático-escolar e manutenção de programas de transporte escolar”. Esta foi uma definição importante, pois até então a Lei 5692 falava em aplicação “preferencialmente na manutenção e desenvolvimento do ensino oficial”, deixando margem aos mais estapafúrdios usos dos recursos públicos destinados à educação, em todos os níveis administrativos. Por isso, é igualmente importante a definição, contida no artigo 71, daquilo que “não constitui despesas de manutenção e desenvolvimento do ensino”: “I) pesquisa, quando não vinculada às instituições de ensino, ou, quando efetivadas fora dos sistemas de ensino, que não vise, precipuamente, ao aprimoramento de sua qualidade ou à sua expansão; II) subvenção a instituições públicas ou privadas de caráter assistencial, desportivo ou cultural; III) formação de quadros especiais para a administração pública, sejam militares ou civis, inclusive diplomáticos; IV) programas suplementares de alimentação, assistência médico-odontológica, farmacêutica e psicológica, e outras formas de assistência social; V) obras de infra-estrutura, ainda que realizada para beneficiar direta ou indiretamente a rede escolar; VI) pessoal docente e demais trabalhadores da educação, quando em desvio de função ou em atividade alheia à manutenção e desenvolvimento do ensino”. Resta, pois, cumprir as determinações dos artigos 72 e 73, acompanhando os balanços do Poder Público, fiscalizando as prestações de conta, acompanhando o estabelecimento dos “padrões mínimos de oportunidades educacionais para o ensino fundamental, baseado no cálculo do custo mínimo por aluno, capaz de assegurar ensino de qualidade”. Da mesma forma, define-se a responsabilidade redistributiva da União e dos Estados, cabendo a eles exercer uma “ação supletiva e redistributiva (...) de modo a corrigir, progressivamente, as disparidades de acesso e garantir o padrão mínimo de qualidade de ensino”, valendo-se esta ação de uma “fórmula de domínio público” que deve incluir a capacidade de atendimento e a medida do “esforço fiscal” das instâncias administrativas envolvidas. Quase coincidindo com a promulgação da Lei nº 9394/96, foi promulgada a lei nº 9.424/96, que, viabilizada pela emenda constitucional 14/96, criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF). Com a criação do Fundo abre-se para cada Estado e município uma conta especial, a ser utilizada exclusivamente nas finalidades
  • 24. 24 mencionadas: manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental. Deixando também de lado, por ora, todo o complicado processo contábil de operacionalização do FUNDEF, cumpre destacar: i) a exigência de criação, em cada esfera de governo, de um Conselho responsável pelo acompanhamento e controle social sobre a repartição, transferência e aplicação dos recursos do Fundo (deveriam ter sido criados até 30 de julho de 1997); ii) a exigência de um novo (?!) Plano de Carreira e Remuneração do Magistério igualmente em cada esfera de governo e dentro do mesmo prazo. Tais recursos devem estar depositados em “conta bancária específica”, junto ao Banco do Brasil, cada esfera de governo deve “comprovar” o cumprimento da aplicação mínima (25% dos recursos previstos na Constituição), deve apresentar o Plano de Carreira e Remuneração do magistério, deve fornecer informações solicitadas pelo Censo Educacional. Quanto à aplicação, 60% dos recursos, “pelo menos”, devem ser aplicados “na remuneração dos profissionais do Magistério em efetivo exercício de suas atividades no ensino fundamental público” (parte poderia ser aplicado na formação de professores leigos nos cinco primeiros anos a partir de 1º de janeiro de 1997, ou seja, até 31 de dezembro de 2001), e os restantes 40% devem ser aplicados “na manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental”, nos termos da Lei, conforme visto acima. Registra-se a importância do controle social do Fundo, através de Conselhos, de composição variável de acordo com a esfera de governo, incluindo, no caso da União, representante do Poder Executivo, do Conselho Nacional de Educação, do Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED), da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), da União dos dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) e de pais de alunos e de professores das escolas públicas do ensino fundamental. Na esfera Estadual (e do Distrito Federal), além da representação dos poderes executivos estadual e municipais, do Conselho de Educação, das respectivas seccionais da UNDIME e da CNTE, igualmente de pais e alunos e represente do MEC, através da Delegacia no Estado. Na esfera municipal, fazem parte representante da Secretaria Municipal de Educação, professores e diretores das escolas públicas, pais de alunos e servidores das escolas, além do conselho Municipal, onde houver. Tais Conselhos têm a competência de acompanhar e controlar a repartição, transferência e aplicação dos recursos do fundo, verificar os registros contábeis e demonstrativos gerenciais mensais e atualizados, além de supervisionar o Censo Educacional Anual. E, além disso, deve haver uma outra fiscalização da aplicação dos recursos através de órgãos do respectivo sistema de ensino e dos Tribunais de Conta respectivos. Ao Ministério da Educação cabe realizar avaliação periódica dos resultados da Lei, tendo em vista a adoção de medidas operacionais e político-educacionais. O acompanhamento da imprensa diária mostra que este acompanhamento tem sido também administrativo e jurídico, desencadeando processos de cassação de autoridades responsabilizadas por malversação de tais recursos. Enfim, no plano das disposições legais, houve um avanço inequívoco. Isto não significa, entretanto, que se tenha alcançado a perfeição quer no plano conceitual, quer no plano operacional. No primeiro, critica-se a exclusão da educação infantil e de jovens e adultos, provocando profundas distorções nas
  • 25. 25 redes, em alguns casos. No segundo, a não definição dos critérios para escolha dos representantes, pode deixar os executivos à vontade para indicar exclusivamente pessoas “de confiança” dos dirigentes, anulando a intenção da legislação. Além disso, há quem critique o plano em seu conjunto, por ter operado apenas um remanejamento dos recursos disponíveis, penalizando as unidades mais ricas em benefício de outras menos aquinhoadas, sem se haver preocupado em criar novos recursos. Situação que pode ser sintetizada na expressão popular, “despe-se um santo para vestir outro”, nivelando-se os sistemas “por baixo”. Daí a existência de projetos alternativos, tramitando no Congresso Nacional, como o do FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), propondo mudanças para seu aperfeiçoamento. Finalmente, cabe um registro: se a educação escolarizada no Brasil foi instituída como um sistema privado, a atualização do sistema tem pagado sempre um tributo a essa condição, numa sociedade que, além de ser capitalista, é igualmente estamental e patrimonialista. Assim, o artigo 7 da LDB estabelece que “os recursos públicos são destinados às escolas públicas, (mas!) podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas que: I) comprovem finalidade não-lucrativa e não distribuam seus resultados, dividendos, bonificações, participações ou parcela de seu patrimônio sob nenhuma forma ou pretexto; II) apliquem seus excedentes financeiros em educação; III) assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades; IV) prestem contas ao Poder Público dos recursos recebidos”. Tais recursos podem ser aplicados, ainda nos termos da lei, em bolsas de estudo para a educação básica para quem demonstre insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública de domicílio do educando, ou, ainda, em atividades universitárias de pesquisa e extensão. Uma importante janela permanece aberta ao setor privado. Como quer que seja, o texto da lei é resultado patente de um embate vivo e constante entre duas forças em movimento: de um lado, os defensores da escola pública, na esteira de Anísio Teixeira, de Florestan Fernandes e dos Pioneiros da Educação Nova; de outro, os arautos da escola privada, da educação livre, que vem dos jesuítas, dos outros educadores privados, de Leôncio de Carvalho no Império, de Rivadávia Correia na Primeira República, da concepção liberal, que persiste entre nós atualizada em sua forma de neo-liberalismo, consentânea com uma sociedade capitalista que faz profissão de fé da “livre iniciativa” e da liberdade de escolha da educação a ser ministrada aos filhos. Um debate aberto e em pleno movimento. Um capítulo igualmente importante da institucionalização da educação escolarizada é o referente à definição dos níveis e das modalidades de educação e de ensino. É o que consideraremos na próxima seção.
  • 26. 26 ATIVIDADE COMPLEMENTAR PARA SER ENTREGUE NA PRÓXIMA AULA 1- A propósito do conceito de “educação”, reveja suas anotações de outras disciplinas, notadamente de Filosofia, Psicologia e Sociologia, confronte-as e faça seus comentários, destacando os pontos de convergência e divergência. 2. Ou faça a mesma coisa a propósito do conceito de “alienação” e “autonomia”. 3. Faça uma resenha dos capítulos iniciais de O Paradigma Perdido: a natureza Humana, de Edgar Morin. Comente as passagens que mais diretamente abordam a função educativa na constituição da humanidade, no processo de hominização. 4. Leia e resenhe o texto Psicanálise e Política, de Cornelius Castoriadis, destacando tudo quanto se aplica à pedagogia e à educação. 5. Leia (ou releia) o livro Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire, e comente-o à luz dos conceitos apresentados neste texto. 6-Em função de seu interesse particular selecione um artigo em 500 Anos de Educação no Brasil e comente-o, levando em conta os conceitos da primeira parte do módulo. Procure entrar em contato com a Fundação Cultural Palmares. . 7- Estude e compare a evolução da questão educacional nas diferentes Constituições brasileiras. Interprete as mudanças em função dos conceitos apresentados como fundamentação. Complemente com outras leituras e teorias, se o desejar.