O documento relata as dificuldades enfrentadas por uma mulher ao tentar denunciar uma agressão sofrida pelo namorado. Ela recebeu tratamento discriminatório e desrespeitoso por parte dos policiais, que minimizaram o caso e tentaram dissuadi-la de prestar queixa. Sua família também culpou-a pelo ocorrido. Além disso, o sistema de atendimento na delegacia da mulher era lento e constrangedor. A vítima precisou lutar contra sentimentos negativos e o próprio sistema para buscar seus direitos
AS DIFICULDADES DE UMA MULHER AO RELATAR UMA AGRESSÃO
1. AS DIFICULDADES DE UMA MULHER AO RELATAR UMA AGRESSÃO
PERGUNTEI O QUE HAVIA ACONTECIDO,
ELA ME RESPONDEU EM LAGRIMAS:
Com o auxílio de um amigo advogado
resolvi escrever o relato que presenciei,
pensávamos em compartilhar o caso
na tentativa de ajudar uma amiga, no
fim ela decidiu que não iria denunciar,
talvez os obstáculos para conseguir
relatar a agressão tenham sido um dos
motivos, o que infelizmente acontece
com muitas mulheres.
Foi a primeira vez que presenciei uma
situação de agressão, foram momentos
horríveis, não imagino o quão seja para
as vítimas, torço para que as mulheres
que infelizmente sofrem agressões
tenham forças, e que possam encontrar
uma mão amiga.
Ao terminar a leitura talvez você se
identifique, ou pense em uma forma de
ajudar as vítimas.
Era uma noite de sábado, participando de
uma reunião habitual, recebi diversas
ligações de uma amiga.
Achei estranho visto que, a essa hora, ela
estava ciente do meu compromisso, porém
preocupada, retornei à ligação, e para
minha surpresa, ela atendeu desesperada,
chorando e pedindo ajuda. Fora agredida
fisicamente por seu namorado há poucos
minutos.
O pesadelo começou. Rapidamente pedi
um motorista de aplicativo e fui até sua
casa.
Não sabia o que ia encontrar, ou pior,
quem encontraria. Aflita, decidi mandar
mensagem para um amigo advogado, que
me orientou em como eu deveria agir.
Quando cheguei ela estava chorando na
sala, tentando fazer seu filho de 1 ano de
idade dormir.
Reprimi ao máximo meu choro e
desespero. Haviam marcas em seus braços,
algumas mordidas, seus lábios estavam
inchados e com sangue seco, sua pele
vermelha e olhos marejados de lagrimas.
“Meu namorado me chamou para sair,
arrumei o bebê e desci. Quando entrei
no carro estava tudo bem, até que em
vez de irmos até a lanchonete ele me
levou em uma rua escura, na região
industrial próxima, parou o carro e
começou a me bater. Eu estava com meu
filho no colo, entrei em pânico, ele
começou a me dar socos, mordeu meu
braço e puxou a criança.
Voltou para o banco da frente, puxando
meus cabelos na tentativa de me tirar do
carro, não tive forças para continuar, ao
sair ele voltou a me dar socos, enquanto
ameaçava a mim e meu filho, dizia que
iria nos matar. A rua era monitorada e ao
escutar meus gritos um guarda apareceu,
vi que ele anotou a placa do carro, e ao
perceber isso meu namorado me jogou
para dentro do carro e fomos embora,
me deixou em casa e saiu. Desesperada,
só consegui pensar em pedir ajuda para
você.”
PESSOAS QUE SOFREM
AGRESSÃO PRECISAM ACIMA
DE TUDO DE APOIO.
2. "O APARTAMENTO É SEU?
VOCÊ TRABALHA?
QUAL A SUA FORMAÇÃO?"
Perguntei para ele como essas questões
estavam relacionadas a agressão, não me
contive e disse:
“Se ela fosse dona de casa, poderia
apanhar? Seria diferente o tratamento?
Ele ignorou meu comentário e perguntou
o que tinha acontecido, ela explicou o
mesmo que me contara, após isso ele
disse:
“- Ele trabalha?
- Sim.
- Qual a profissão?
- Programador de máquina CNC.
- Tem certeza de que quer prender um
homem trabalhador? Você só apanhou
uma vez, como vou prender um homem
de família, vou tirar o emprego de
alguém.”
Ambas estavam em choque, não
tínhamos muitas esperanças quanto ao
tratamento da polícia, mas não esperava
que seria tão ruim ao ponto de fazer
sentir-me um lixo, ali percebi que éramos
apenas nós duas contra um sistema
preconceituoso, quem deveria nos
proteger fora o primeiro a nos atacar,
suas palavras carregadas de machismo e
desdém eram como facas nos
dilacerando.
Pedi que ele nos levasse ao hospital, minha
amiga precisava de um laudo médico.
“- O carro está complicado." Foram suas
palavras.
- Vou contratar um motorista e você vai
nos escoltar, chegando no hospital vai
dizer que minha amiga precisa de
atendimento.
O local era próximo, ao chegar ele
informou a recepção nossa situação.
Enquanto minha amiga era atendida pela
recepcionista, perguntei a ele qual seria o
próximo passo, pois queríamos fazer um
boletim naquela noite.
Ele disse: "Sua amiga não quis ir à casa
dele quando perguntei, agora não dá mais
pra prendê-lo."
- Você perguntou somente se queríamos ir
e não explicou o motivo.
Minha amiga escutou nossa conversa e
começou a chorar, veio até nós e disse
pra ele:
- Vocês não ajudam em nada, só estou
me sentindo pior com isso tudo.
- Você está muito nervosinha, não vou
falar com você agora, eu disse que
deveria ir à delegacia da mulher lá eles
falam com jeitinho, vão terça que elas te
escutam.
Falei para minha amiga ir fazer seu
exame e depois íamos resolver aquela
situação, enquanto isso meu amigo
advogado me aconselhou a ligar para o
180, onde poderíamos iniciar nossa
denúncia, a atendente estava
preenchendo algumas informações no
telefone e nesse tempo questionei
novamente o policial porque queria que
ele nos ajudasse com o B.O na delegacia
comum.
- Se você for vai ser a mesma coisa, já
disse vai na terça lá vocês serão bem
tratadas.
- Está escutando isso? O tratamento que
estamos recebendo?
Disse para a policial que estava em
ligação comigo.
Ao escutar tudo tive mais certeza de que
de devíamos denunciá-lo, fiquei muito
aflita e pedi que um outro amigo fizesse a
ligação para a polícia informando nossa
situação e localização. Haviam curiosos ao
redor o que deixava tudo mais difícil, um
dos policiais nem se deu ao trabalho de
sair do carro.
O interrogatório tinha começado e as
perguntas eram totalmente irrelevantes e
discriminatórias:
3. TIVE A SENSAÇÃO DE QUE
ESTÁVAMOS ABANDONADAS,
ERA COMO SE NINGUÉM SE
IMPORTASSE.
O médico nos informou que poderíamos
pedir uma cópia do laudo, após isso ela
precisou responder algumas perguntas no
setor administrativo.
Era quase meia noite, contratei um
motorista de aplicativo e voltamos para
casa, naquela noite conseguimos apenas
um protocolo feito por telefone e a cópia
do laudo médico.
Minha amiga estava mais abatida do que
antes. Além da humilhação recebida pelos
policiais, existia uma outra situação, sua
família.
Imaginei que eles a dariam o apoio que ela
tanto precisava, mas escutei de suas irmãs:
“- É SUA CULPA FICAR COM BOY
LIXO.”
“- VOCÊ TEM DEDO PODRE PRA
HOMEM.”
Antes de ir embora, conversei com ela
sobre esses comentários cruéis, reforcei
que a culpa não era dela e que isso
poderia acontecer com qualquer pessoa,
não existe justificativa para agressão, o
culpado quem deveria ser julgado e não a
vítima.
Combinamos que ela compareceria na
delegacia da mulher na terça, visto que
não funciona nos feriados.
Estava com dúvidas se ela realmente iria,
mandei mensagem para saber como
estava, ela me disse que não tinha mais
certeza de que estava fazendo o certo, não
queria que ele fosse preso, a família dele
tinha ligado e informado de que ele iria
embora e que ela não o denunciasse, o
próprio também ligou dizendo estar
arrependido.
Expliquei para ela que ele poderia sim
estar arrependido, mas temos que
responder por nossos atos, e quem iria
garantir que ele não tentaria algo contra
ela, ou faria isso com outra pessoa.
Em seu trabalho minha amiga pediu a
sua supervisora e dona da empresa que
a liberasse mais cedo para irmos na
delegacia, ela escutou:
Chegamos por volta das 15:15. Para ser
atendida precisamos ir até o balcão e
explicar a situação, havia uma fita de
proteção ao redor do balcão, uma de mais
ou menos um metro, era impossível não
falar praticamente gritando o que tornava
constrangedor, visto que não estávamos
sozinhas. Eram 17:00 e não tínhamos sido
atendidas, e ainda existiam 3 mulheres que
estavam na nossa frente. Minha amiga
precisava cuidar dos filhos que sairiam da
escola, tentamos encontrar alguém que
pudesse ficar com as crianças, porém não
fomos bem-sucedidas.
Conseguimos ir na quarta feira, minha
amiga tentou ao máximo adiantar o
serviço e saímos por volta das 14:40.
Antes também havia informado ao meu
supervisor de que precisaria sair mais
cedo e expliquei o motivo, ele me disse:
“– Você vai se colocar em risco?” Falei da
importância de ir com minha amiga
mesmo sentindo-me enojada por tanto
machismo.
“- ISSO ACONTECE, O QUE NÃO
PODE ACONTECER É VOCÊ DEIXAR
20 PESSOAS SEM SEREM
ENTREVISTADAS HOJE.”
Quando parei de falar ele se retirou disse
que iria ficar no estacionamento,
passaram -se uns 40 minutos quando
minha amiga apareceu. Fui procurar os
policiais no estacionamento e descobri
que tinham ido embora, não avisaram
ninguém, simplesmente nos deixaram ali.
4. Ainda assim,
não desistam
do seu
direito,
seu direito
de viver
e ser feliz.
NUNCA IMAGINEI AS
DIFICULDADES DA
MULHER AO RELATAR
UMA AGRESSÃO.
B i a n c a M a b e l
Ela me prometera que tentaria
novamente voltar a delegacia mais cedo
no outro dia. Voltamos para casa um
tanto desanimadas.
Nossa tentativa de denuncia durou
exatos 05 dias.
Minha amiga precisou lutar contra ela
mesma, sentimentos negativos,
tristeza, insegurança, dores físicas e
emocionais.
Humilhação e machismo vindos dos
policiais, de sua própria família e local
de trabalho e as dificuldades com o
sistema de atendimento na delegacia.