O documento relata os eventos após a cirurgia da narradora. Ela fica preocupada quando o marido não atende o telefone e deixa a filha com a sogra. Quando conversam, ele revela estar com outra mulher e quer a separação, deixando-a em choque e sem dormir de dor. No dia seguinte, ele continua incomunicável e não aparece no hospital.
1. Meu marido foi embora. E agora?
Valéria Araujo – www.valeriaaraujo.com
2. Meu marido foi embora. E agora?
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CAPÍTULO 1
A CIRURGIA (01/12/2002)
Era quase verão e, no Rio de Janeiro, o calor já estava asfixiante. Minha pele suada
embebia o lençol em que meu corpo repousava. Finalmente chegou a hora...
Eles me deixaram sem nada, até a prótese dentária tive que tirar. Coloquei aquele
avental ridículo, que deixa a gente com tudo de fora e fiquei deitada sobre a maca, no corredor
do hospital, esperando o momento de entrar para a sala de cirurgia. Quando o maqueiro veio me
buscar, Rodrigo abaixou lentamente e beijou-me a testa. Parecia meu pai. Senti vontade de
chorar. Fui levada para a cirurgia e ele seguiu para o aeroporto.
Acordei com a luz do Sol em meu rosto. O sol teimava em invadir o quarto,
atravessando uma pequena fenda na veneziana. Olhei em volta e não vi ninguém. Não havia
ninguém ali. Sozinha, desejei várias vezes estar na enfermaria com outros pacientes.
Já estava acabando o horário de visitas, quando Rodrigo apareceu com a desculpa de
que ficou preso em um engarrafamento enorme e não teve como chegar mais cedo. Estava com
aquela expressão de sempre. Suas atitudes eram de uma pessoa que estava sempre apressada.
Não conseguia ficar sossegado. Mal chegava e parecia que já era hora de ir embora. Ele nunca
teve tantos compromissos como tentava demonstrar, mas se comportava como um executivo
ocupadíssimo. Até desempregado, agia assim. Acho que fazia com que se sentisse mais
importante, porque, na cabeça dele, uma pessoa muito atarefada era, sem dúvida, uma pessoa
importante.
Conversei com ele e disse que estava sentindo muita dor e com medo de ficar sozinha.
Mas ele imediatamente disse que não era possível ficar ali, porque tinha que tomar conta de
Marina, que havia ficado com a empregada de Dona Júlia, mãe dele. Então me conformei e fiz
várias recomendações para cuidar bem de nossa filha:
Não a deixe dormir sem tomar banho! Passe pomada no pescoço dela, pois está
muito calor! Assim que chegar em casa me liga para que eu não fique preocupada!
Tá bom. Pode ficar tranquila, que vou fazer tudo direitinho. Do jeitinho que você
gosta, tá?
Ele foi embora com seu jeito desesperado e apressado.
As horas não passavam e cada vez mais a dor aumentava. Sentia vontade de evacuar e a
enfermeira dizia que era só impressão, que eu estava vazia e que não havia nada que pudesse
querer sair. Mas a vontade continuava. Tive a impressão de terem colocado um tampão em mim
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e pensei: “Como foi aparecer um problema no meu intestino tão inesperadamente a ponto de ter
que operar às pressas?”
Já havia algum tempo que não me sentia bem, tudo o que comia me fazia mal, sentia
enjoos com muita frequência, problemas no fígado e o intestino não funcionava direito. Mas
nunca imaginei que teria que me submeter a uma cirurgia repentina.
Quanto mais as horas avançavam, mais a dor aumentava. Nove horas da noite, dez
horas, onze horas e Rodrigo não havia ligado. Liguei para a telefonista e pedi que fizesse uma
ligação para minha casa. Ela fez e disse:
Ninguém atende.
Poderia tentar novamente? pedi gentilmente.
Ninguém atende ela falou calmamente.
Deixei passar mais um tempinho e pedi que ligasse mais uma vez, mas não havia
ninguém em casa.
Entrei em pânico e comecei a pensar um monte de coisas: “Será que aconteceu alguma
coisa ruim? Será que eles sofreram um acidente? Meu Deus, o que aconteceu?”
O fato de ter apenas uma filha e não poder ter mais, me deixou um pouco neurótica.
Sempre achava que algo ruim tinha acontecido, estava acontecendo ou poderia acontecer.
E os pensamentos continuavam rondando em minha cabeça: “Será que minha filhinha
está bem? Ah! Por que fui deixá-la na casa de Dona Júlia? Será que a Tica (uma cadela enorme
que vivia na casa de Dona Júlia) a mordeu? Será que Tica a comeu? Ai meu Deus! Por que
ninguém atende?”
Pedi que ligasse para a casa da minha sogra. A telefonista, muito atenciosa, atendeu
meu pedido.
Alô! Dona Júlia, é Helena. Estou ligando para minha casa e ninguém atende.
Rodrigo está aí?
Não. Ele esteve aqui, deixou Marina e saiu.
Deixou a Marina aí? Ué! Ele saiu daqui dizendo que iria buscá-la.
Ele buscou, mas assim que anoiteceu, a trouxe de volta e me pediu que tomasse conta
dela.
Será que aconteceu alguma coisa?! Ele disse que faltaria à faculdade hoje e ficaria
com ela para que não sentisse a minha falta.
Deve ter acontecido alguma coisa inesperada e ele teve que ir.
Ah! Dona Júlia, por favor, não deixe a Tica chegar perto dela! não poderia dizer
para ela o que realmente estava pensando e fui logo completando a frase com uma outra
desculpa. É que ela tem alergia a pelo.
Pode deixar que Tica não ficará perto dela. Ela está no quintal e Marina aqui dentro.
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E como foi de viagem? Tudo bem? perguntei por educação.
Foi tudo normal. E você, está bem?
Não muito. Está doendo demais. Já tomei remédio para dormir e não consigo. Queria,
então, falar com Rodrigo, conversar um pouco, mas ele não está em casa.
Bem, ele deixou a menina aqui e disse que tinha que sair para resolver um problema e
não voltou.
Mas já são onze e vinte e ele ainda não pegou a menina. Ela já tomou banho? Jantou?
E a pomada no pescoço? Ela não pode ficar sem usá-la.
Pode ficar tranquila que ela já está de banho tomado, já jantou e já passei a pomada no
pescoço também. Ela está muito bem. Agora, em relação ao Rodrigo realmente não sei dizer o
que pode ter ocorrido. Já ligou para o celular dele?
Não sei se pode fazer ligação para celular daqui do hospital e meu celular está sem
crédito. Como ele sempre fica furioso quando ligo para ele a cobrar, achei melhor não arriscar
expliquei triste e ressentida.
Vou ligar para ele e pedir que ele ligue para você. Ok?
Não demorou muito, o telefone tocou e uma voz extremamente mal-humorada
perguntou:
O que foi, Helena?
Nossa, que horror! respondi sem entender o que estava acontecendo. É que você
não ligou e eu fiquei preocupada. A Marina está bem?
Está! falou sem paciência.
Sua mãe disse que ela ainda está na casa dela. O que houve? Aconteceu alguma coisa
ruim e você não quer me falar?
Não, não aconteceu nada de ruim. Você é que tem mania de se preocupar com tudo e
sempre achar que aconteceu alguma coisa ruim.
Onde você está?
Estou aqui, em frente à casa da mamãe, dentro do carro disse nervoso.
Ué! E por que não entrou? falei naturalmente.
Ué! Por que não entrei? irritado, repetiu a pergunta Não entrei porque não quis.
Quero ficar aqui. Pensando nos meus problemas.
Problemas!? Então tem algum problema e você não quer me dizer.
NÃO TEM PROBLEMA ALGUM! gritou.
Percebi que estava nervoso e achei melhor mudar de assunto:
Estou com muita dor. A enfermeira já me deu remédio para dormir e eu não consigo.
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Ah! Pelo amor de Deus, você acha que eu vou acreditar que você não está
conseguindo dormir?
É sério. Sério mesmo. Já tomei remédio para dormir e não consigo mesmo. A dor é
muito forte. A enfermeira disse que o remédio sossegaria até um leão, mas em mim não está
fazendo efeito. Também não consigo entender o porquê.
Tá, tá bom. E o que quer que eu faça? Que eu vá até aí para parar de sentir dor?
Não... não é isso... é que eu... é que eu... comecei a chorar.
Ah! Pela mãe do guarda, já vai começar com o drama?
Não, não vou começar drama algum. Só queria ouvir sua voz e dividir minha dor com
você, mas já que não posso contar com você, posso ao menos falar com a minha filha? Você
pode entrar para que eu possa falar com a MINHA FILHA? perguntei demonstrando toda a
minha decepção.
Não.
Não?! Por quê? Você disse que estava em frente à casa da sua mãe, então é só entrar e
passar o telefone para ela.
Agora você vai querer regular cada passo que dou?
Naquele momento ouvi uma voz feminina e percebi que ele não estava sozinho.
Rodrigo, o que está acontecendo? falei palavra por palavra. Eu estou aqui, jogada
em uma cama de hospital, com uma rolha enfiada na bunda, sem poder cagar, morrendo de
dor, ligo para sua mãe e ela me diz que você saiu e deixou minha filha na casa dela, quando o
que combinamos foi algo bem diferente; então eu te ligo e você se comporta desta maneira. O
que está havendo?
Olha! Eu já estou farto de tudo. Quero a separação. Acho que vai ser melhor para
todos! declarou, sem pensar duas vezes.
O quê? perguntei sem acreditar no que estava ouvindo Separação? Você quer a
separação?
É, eu quero a separação. Agora vê se dorme e acaba logo com essa palhaçada.
O quê? Palhaçada...
Ele desligou o telefone na minha cara.
Peguei meu celular e tentei ligar várias vezes para ele, a cobrar, é claro, pois meu
celular não passava de um pai de santo, que só recebia chamadas, nunca tinha crédito suficiente
para fazer uma ligação.
Liguei, mas as inúmeras tentativas foram em vão e o que eu ouvia era: “O número que
você ligou encontra-se fora da área de cobertura ou desligado.” Cansada de ouvir aquela
vozinha irritante, desliguei o celular e comecei a chorar. Primeiro senti um calor saindo das
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minhas entranhas e uma dor no peito tão grande, que acabei esquecendo a dor da cirurgia. Não
conseguia acreditar no que estava acontecendo e dizia: “Não, isto não está acontecendo! É um
pesadelo.” Mas estava acordada e ele realmente me deixou no hospital e estava com outra. Eu
pensava: “Como pode querer terminar um casamento de tantos anos, hoje, agora, neste
momento, que estou aqui jogada em uma cama de hospital? Não, não pode ser verdade.”
Não consegui dormir a noite toda e por isso perturbei a enfermeira a noite inteirinha.
Apertei várias vezes aquele botãozinho que fica bem próximo à cama para chamá-la. Ela foi
bastante compreensiva, acho até que pressentiu o que estava acontecendo.
No dia seguinte, ele não apareceu e seu telefone continuava desligado.
Liguei para Dona Júlia. Ela não mencionou nada sobre separação e Marina ainda estava
na casa dela. Ele não tinha dormido em casa.
Fiquei mais um dia no soro, sem poder comer absolutamente nada.
Minhas irmãs, Maria Flor e Jurema foram me visitar. Não falei nada sobre a separação,
mas elas estranharam o fato de Rodrigo não ter aparecido.