1. O CANÁRIO E A ANDORINHA
Um dia uma andorinha veio construir o ninho no beiral de um palácio.
Em baixo, no alpendre, penduravam todos os dias ao sol a gaiola doirada de um canário
lindíssimo.
O pobre encarcerado na sua casinha de palmo e meio, cantava, cantava, todo o dia e toda a
noite.
A andorinha, no seu modesto ninho de barro de penas e por ela construído, escutava-o
deliciada, espreitando-a da sua pequenina janela deitando a cabecita de fora de vez em quando.
Uma vez vieram à fala.
- Bom dia, disse de cima a andorinha.
- Ora viva, minha vizinha.
- Estou encantada a ouvi-lo, tem uma voz do céu…
- Favores que eu não mereço.
- O que é pena é viver numa casa tão apertadinha, sem poder sair nunca…
- Estou habituado; depois … como as subsistências estão caras…
- Realmente a vida custa, em todo o caso prefiro as canseiras à clausura.
- Tem razão, mas que hei-de fazer para me livrar daqui?
- Não cante, já não fazem caso de si …
- Vou seguir o seu conselho.
***
Passaram dias e o canário, nem pio …
Reuniram-se à volta dele todos os da casa.
- Com certeza o pobre passarinho tem alguma angina…
- É melhor chamar-se o médico, alvitrou uma das meninas.
- Aves destas, quando deixam de cantar, têm os dias contados.
- Não me digas tal, Deus me livre desse desgosto …
- Antes quero que ele vá acabar os dias longe daqui. Amanhã deixo a gaiola aberta.
***
Ao vê-las afastar o canário deu dois saltos delirante.
- Ouviu, minha amiga? Perguntou para cima.
- Muito bem. Logo que esteja cá fora emigramos para os países quentes, respondeu a
moradora do telhado. Aqui não se pode passar o inverno.
O cantor apoiou a ideia satisfeitíssimo.
***
No dia seguinte a dona da casa veio abrir a portinha da gaiola dizendo comovidíssima: Deus vá
contigo e te livre da goela de algum gato guloso.
2. Quando o belo cativo a viu desaparecer, foi
para o limiar da prisão a certificar-se, se de facto
seria verdade estar livre; depois, radiante, atirou-
se vertiginosamente pelo espaço num anseio
louco de liberdade, trinando as mais lindas
canções.
No beiral, as andorinhas olhavam-no
admiradas. Não tardou que viesse agradecer
pessoalmente à vizinha do andar de cima o seu
acertado conselho.
- O amigo não está habituado a grandes viagens nem a pequenas, lembrou a sábia
conselheira. É melhor embarcarmos. Souberam por um pardal que morava ao lado, que no dia
imediato partia para a Índia o Adamastor.
Combinaram seguir para o Tejo mal despontasse a aurora. Acomodaram-se cautelosamente
na verga do navio sem ninguém dar por eles.
Daí a pouco saíam a barra.
- Que soberbo panorama, exclamou o canário deslumbrado. Meteram para Sul, cortaram o
Algarve, passaram o estreito de Gibraltar e entraram o Mediterrâneo muito azul. Viram as costas de
África iluminadas por um sol esplendoroso.
- A andorinha mãe pediu ao canário para dar umas lições de canto às filhas.
Quando os marinheiros ouviram em pleno mar tais gorjeios, ficaram maravilhados.
Toda a oficialidade veio para o convés ouvir o extraordinário canto.
Desde essa hora a passarada teve mesa lauta.
Traziam-lhe as melhores iguarias.
Pararam no Cairo.
A andorinha mãe propôs uma visita aos túmulos dos faraós. Para não se cansarem
aproveitaram o dorso do camelo em que ia o comandante.
No dia seguinte atravessaram o canal do Suez.
Navegaram em pleno mas da Índia.
Quando ouviram que estava à vista Goa, ficaram entusiasmados.
Não se contiveram e abalaram num voo arrojado.
Arranjaram casa numa velha palmeira.
O canário passados poucos dias pediu em casamento uma filha dos seus amigos.
Resolveu fixar ali residência.
A cerimónia foi simples mas muito alegre.
O novo casal viveu largos anos na maior harmonia e consta que dessa união nasceram os
primeiros canários com penas escuras…
In O Raul – Contos, Sarah Beirão