Primeira parte de um texto que mostra que aprender não é educar, nem ser ensinado, e que implica sempre a participação activa do sujeito aprendente, mas só raramente implica um "sujeito ensinante".
Aprendizagem espontânea: as primeiras grandes aprendizagens da criança
1. Aprender é aprender — não é
educar, nem ser ensinado! (Parte 1)
1. Introdução: Aprenderversusensinarou ser ensinado
Assisti a imensas conversas e debates[1] cujo tema era a aprendizagem (ou
alguma característicaou componente da dita), querno meio académico e em
conferência científicas, querem actividades empresariais e em reuniões
profissionais, querem reuniões convocadas por fundações,associações, etc.,
interessadas no assunto. Ora,de todas as vezes, mais cedo ou mais tarde,
alguém falava de “ensino”, ou de “educação” e, a partir dessa
altura, ninguém mais voltava a falar de aprendizagem e toda a gente
passava a falar de educação (ou de ensino, ou do que alguns brasileiros
chamam,muito sensatamente, “ensinagem”) como se aprendizagem e ensino
fossem sinónimos. E não são! Aliás, parece haver uma convicção generalizada
de que “aprender” é o resultado de “ser ensinado”. Ora — comoirei tentar
mostrar — essa ideia é completamente errada[2].
E ela pode ser profundamente prejudicialem relaçãoàs aprendizagens, quer
dos jovens em idade escolar, agora e no seu futuro, querdos profissionais
(que têm também se ser sujeitos aprendentes todaa vida[3], mas não
necessária, nem principalmente “frequentando cursos”).Entre os
profissionais merecem destaque os professores universitários que são, em
geral, as pessoas com menor capacidade de aprendizagemque encontrei na
minha vida profissional, quer em relação às alterações conceptuais no seu
domínio específico[4], quer em relação aos processos de aprendizagem.
Há tantos aspectos que podem ser chamados à colação paraprovarestes
pontos, que a dificuldade é não esquecer algum e dar-lhes umaordem
coerente. Tentemos.
2. As primeiras aprendizagens infantis
Quase todas as pessoas com que falei sobre o assunto, se mostrou interessada
nas aprendizagens dos filhos,embora, em muitos casos,se percebesse que
estavam era preocupados com as “notas” e o “bom comportamento” dos
filhos, e não tanto com as aprendizagens sérias e, noutros casos, se
percebesse que a afirmação de interesse era uma fraude,pois, se há pais que
não se interessam sequer com as doenças reais e actuais dos filhos,porque se
deveriam preocupar com as aprendizagens e o futuro deles?
Em qualquer caso,até em virtude da pressão social,todos os pais mostram
interesse nas duas primeiras grandes — e fabulosas — aprendizagens que os
2. filhos fazem: aprender a andar e aprendera falar (a línguacom que os
principais cuidadores falamcom eles[5][6]).
Quando se olha para o fenómeno com olhos de ver, e embora (quase) todas as
crianças o consigam,tem de se reconhecer que é notável que aquele mesmo
recém-nascido,que não tem qualquer coordenação motorae que tem apenas
dois sinais comunicativos — o choro que usa paratudo o que que necessitaou
o perturba e o sorriso com que mostra bem-estar,ou satisfação pela resolução
do problema anterior; essa mesma criança,que nem a cabeça consegue
endireitar sem ajuda,ao fim de cerca de um ano, consegue caminhar pela
casa e começa a dizer palavras e frases significativas,com relação claracom o
que quer obter ou transmitir.
E, coisa curiosa, nem mesmo os pais mais preocupados e mais convictos de
que a principal forma de aprender é ser ensinado, se lembramde colocar os
filhos numa escola, ou de lhe arranjaremum tutor que os ensine a andar e a
falar. Estas duas aprendizagens são feitas espontaneamente pelas crianças,
incentivadas principalmente pelas suas necessidades e pelo desejo de
explorar o real, emborapor vezes sejam incentivadas tambémpelos
cuidadores,por vezes de forma correcta,por vezes procurando “ensinar-
lhes” — o que, muitas vezes, só atrasa a aprendizagem espontâneada língua.
Para uma aprendizagemtão importante como é a da língua maternanão se
dão aulas[7].É o exemplo da comunicação entre os adultos e com a criança
(aprendizagem vicariante),a necessidade de obter certos bens e de, para isso,
os pedir — como vê fazer à sua volta — que propiciam a aprendizagem. O
sujeito activo do processo de aprendizagemé a própria criança,pese embora
o facto de os cuidadores poderemter alguma influência, ensinando uma
palavra que a criançaaindanão conhece, corrigindo umapronúncia, e
noutras pequenas ajudas — ou desajudas…
A criança aprende a língua porque vive num ambiente onde se fala a mesma e
porque percebe ou intui a relação entre o falar dos cuidadores (ou seu) e o
acontecimento de certos factos no mundo real.Em suma,podendo haver
embora ajudados cuidadores,o essencial da aprendizagem dalínguamaterna
é feita por auto-aprendizagem, estimuladapela comunicaçãodos cuidadores
entre si e com a criança. Ou seja,logo na primeira grande aprendizagem
significativado bebé se reconhecem três características que são típicas da
aprendizagem(e que a distinguem radicalmente da “ensinagem”):
a) por um lado, a iniciativa é do sujeito aprendente;
b) por outro, a aprendizagemsó é possível por o sujeito estar envolvido numa
realidade socialcircundante,sem a qual talaprendizagem não existiria;
c) finalmente,essa aprendizagem traduzuma tentativado sujeito em ser
mais eficaz na sua relação com o mundo real,quer social,quer físico(que,
mesmo este, é sempre mediado pelo social).
Acresce que, ao aprender a(s) sua(s) língua(s) nativa(s), a criança está a
aprender muito mais do que a língua,pois aprende também,de forma tácita,
3. um conjunto de práticas e valores que estão implícitos na línguae que lhe são
transmitidas,em muitos casos involuntariamente,por simples socialização.
Várias comunidades linguísticas nos Estados Unidos — e vários filmes sobre
as mesmas — ilustram isso de forma clara.A criançaadquire assim, a par do
inglês e antes dele, um conjunto de conhecimentos tácitos ligados à língua e
aos hábitos e costumes do povo que a fala e em que se integra[8]. E, como
facilmente se reconhece,quanto melhorfor a sua aprendizagem da língua
materna, melhores serão muitas outras aprendizagens futuras que sejam
feitas nessa língua.
Também o aprender a andar,ou seja aprender a locomover-se de forma eficaz
para as suas capacidades,se dá, por um lado, por necessidade de atingiralgo
a que a criança pretende chegar e, por outro, mais tarde,de forma vicariante,
por ver os adultos e crianças mais velhas andarem — ouaté correrem.
Também nesse caso não há aulas para “aprender a andar”…E, se as houvesse,
possivelmente só inibiriam ou atrasariam o processo.
Mas, porque é que professores que também são pais e, portanto,não podem
ignorar estes exemplos, em geral não os aplicam ao seu trabalho e não
percebam que não é preciso, nem útil,fazer “ensinagem”, acreditando que os
conhecimentos passamda bocadeles parao cérebro dos alunos (o que aliás
raramente acontece), e não percebem que os seres humanos são seres
aprendentes por naturezae apenas é necessário criar as condições que
facilitem as aprendizagens dos alunos — como aliás as dos filhos… Ou seja,é
preciso apoiar; mas mesmo não fazernadaé melhor do que “ensinar”. E nada
mais, pois ensinar, mesmo com as melhores intenções e práticas, muitas
vezes mata a curiosidade e o entusiasmo de descobrir que o sujeito
aprendente poderiater na matériaem questão, ou mesmo em todas as
matérias!
Toda a concepção de aprendizagem como “transmissão de conhecimentos” é
falsa no essencial e muito da discussão sobre “métodos de ensino” ou sobre
“tecnologias pararevolucionar o ensino” são identicamente inúteis.Como
José Pacheco poderiadizer: “parem de ensinar; deixemas crianças
aprender”.
(continua)
Referências
Khun, T. S. (1970). The Structureof ScientificRevolutions (3th ed.). The
University of Chicago Press.
UNESCO. (1977). Aprendera ser. (E. Faure, Ed.).Lisboa: Bertrand.
UNESCO. (1978). A Educação do Futuro. Amadora, Portugal: Bertrand.
4. Notas de fim
[1] Primeiro como estudante, depois juntando a isso o facto de ser dirigente
estudantil no IST,depois como Engenheiro de Sistemas da IBM,fazendo
pontualmente formação profissional, querna IBM,quer em clientes dela,
quer no INA; nos últimos anos, como Professor na Universidade de Coimbra
e depois no IST, até me reformar.
[2] Nesse plano, e entre muitas outras experiências inovadoras, penso que,
em Portugal,não é possível deixar de falarda espantosa experiência que fez
José Pacheco, na “Escola(de ensino básico) da Ponte”, onde não há “aulas”,
nem “professores”, mas sim “orientadores de aprendizagens”,e que funciona
há mais de 40 anos, e muito depois de ele se ter afastado,parair montar,no
Brasil e mais tarde tambémem Portugal, experiências, sempre diferentes
umas das outras, mas com a mesma filosofia.
[3] (UNESCO, 1977, 1978)
[4] Pelas razões e mecanismos que Khun (Khun,1970) explicou
magistralmente.Aliás, parece-me curioso que este livro seja tão citado,
mesmo, ou talvez até principalmente,por “académicos” que não têm a
formação científicamínimaparaperceberemgrandes partes do texto em
questão!
[5] Até há alguns anos a maioria das crianças tinhapais damesma
nacionalidade e vivia no país dos pais; nas últimas décadas,as situações de
bilinguismo e mesmo de trilinguismo, e até de quadrilinguismo, têm crescido
e constituem um fenómeno muito interessante e que merece análise
aprofundada,que não se fará neste texto.
[6] Conheci em Macau um caso curioso: um casaltinha um filho de cerca de
dois anos; como trabalhavam ambos deixavama criançaem casa com uma
empregadachinesa.Umavez, convidaramum macaense,que falava
português e chinês (cantonês), que ficou na sala com a criança enquanto o
casal faziaas últimas preparações.Quando se sentaram,o convidado disse
que o filho deles tinha um bom desenvolvimento linguístico,o que deixou o
casal surpreendido, e perguntaramporque tinhao amigo dito isso, quando
eles achavam que a criança tinhaum atraso na compreensão do português. E
o amigo comentou: ah,mas eu referia-me ao chinês (cantonês,entenda-se,
não mandarim).Como ele só via os pais à noite, é óbvio com quem, porquê e
como ele tinha aprendido cantonês mais do que português.
[7] É a essa língua que se chama “línguamaterna” e é a única que se espera
que a criança (e depois o adulto) domine de forma perfeita! É curioso que
se uma pessoa, por exemplo italiana,tirar um curso universitário de tradução
de uma língua estrangeira, por exemplo,inglês, aquilo queela faz é
traduzir deinglês para italiano,e não o contrário. Ou seja,ela dominao
5. italiano de forma completaparase exprimirde forma perfeita em
italiano,e domina o inglês de forma apenas suficiente parao perceber,mas
não para se exprimir de forma perfeitanele. Num seminário da IBM,em La
Hulpe, na Bélgica, no finaldos anos 1980, dado em inglês, para clientes de
várias nacionalidades,havia tradução simultâneade inglês paraportuguês,
espanhol, italiano e francês. Mas,quando os clientes, que tinhamouvido na
sua língua, colocavam nessa algumadúvida, os “tradutores em
simultâneo” nãoderam qualquer ajuda,nem pareceram entender
que tal se esperava deles, tendo que ser os participantes da IBM(por
acaso, principalmente, dois portugueses) a fazerem a tradução das várias
línguas para inglês, para os oradores poderemresponder — e os “tradutores”,
então, traduzirem para a única língua que dominavam
perfeitamente,a saber, a quenão tinham aprendido na escola, mas
sim de forma tácita e social.Acho muito curioso que pessoas que
acreditam ferreamente na “ensinagem”não achemanómalo que a língua que
melhor se fala não seja aquela na qual se fez um curso universitário e,
portanto, não tirem disso quaisquer consequências paraoutros domínios.
[8] Deve no entanto referir-se que essa aprendizagem tácita, de hábitos e
valores, que a criança faz com os pais, outros cuidadores e, em geral, todos os
adultos da sua cultura não é sempre positiva.É também por esse mesmo
mecanismo de socialização que a criançaaprende hábitos anacrónicos dos
seus ancestrais, nomeadamente religiosos.É ainda por essa via de
socialização e aprendizagem vicariante que a criançaaprende a mentir,a
roubar, a desrespeitar as mulheres (e estas a desrespeitarem-se) se calharem
numa comunidade com alguns desses esses hábitos. É tambémpor esse
processo que se aprendem hábitos errados de pronúncia ou de sintaxe, se tais
hábitos existirem no ambiente da criança. Aliás,é pela mesma forma, de
mudanças na sonoridade e na sintaxe que, quando falada em
situaçõesmuito diversas,uma única língua se diversifica em duas
(ou mais).Em suma, a aprendizagempor socialização “introjecta” na
criança os hábitos e “valores” da famíliaou comunidade,sem considerar se
estes são certos ou errados, éticos ou não, adequados à vida socialou
prejudiciais a ela.
Aprendizagem
Aprender