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Introdução à Esquizoanálise
Gregório Baremblitt
Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Félix Guattari, 2003, 138p
2.edição
Baremblitt, Gregório [2003]. Introdução à Esquizoanálise 2.ed, Belo Horizonte:
Biblioteca Instituto Félix Guattari, 2003, 138p
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Apresentação – 2.a
Edição
É com gratidão e satisfação que o Instituto Felix Guattari de Belo Horizonte apresenta
a segunda edição do "Introdução à Esquizoanálise" de Gregorio F. Baremblitt.
Os exemplares da primeira edição se esgotaram com uma rapidez que não
esperávamos, e os leitores, especialmente alunos universitários, os de nossos cursos e
outros interessados na obra de Deleuze e Guattari nos solicitaram uma ampliação da
mesma. Essa estimulante demanda fez com que a presente edição seja de um nÚmero
limitado de exemplares e possa ser considerada como preliminar de uma terceira,
muito mais extensa, que está no prelo.
O autor considerou necessário acrescentar a essa segunda edição um apêndice no qual
se trata de temas, preferencialmente incluídos em "Mil Platôs", que foram pouco
desenvolvidos na primeira.
Fazemos presente aqui nosso agradecimento ao staff do Instituto Felix Guattari pela
eficiente e generosa colaboração nas tarefas de tradução, correção e montagem do
presente texto, assim como por valiosas sugestões recebidas para o conteÚdo do
mesmo: Oalva A . Lima, Érika Rianni, Irene Ferreira do A . Oliveira, Luciana Tonelli,
Neuza Beatriz H. G. Pereira e Patrícia Ayer de Noronha.
9
In Memoriam de Felix Guattari*
Este evento é especialmente emocionante para mim por vános motivos. Ele é
emocionante no sentido das emoções entusiásticas, porque as idéias de Guattari têm
sido fundamentais em minha formação e, como pretendo explicar, também em minha
vida cotidiana, pessoal.
Mas também é um momento duplamente triste porque estarnos reunidos para
prestar homenagem a uma figura que faleceu em uma idade e com uma vitalidade que,
fazia-nos pensar, poderíamos aguardar muito ainda de sua capacidade produtiva. Por
outro lado, uma grande amiga nossa, Sonízia Maria de Castro Máximo, que foi a
gestora de todo esse encontro, também faleceu, de forma ãbsolutamente inesperada,
vítima de um acidente de trânsito: Sendo assim, hoje estou aqui para falar a vocês no
marco da perda de dois grandes amigos, e tentaremos transformar esta situação de luto
em, pelo menos, um encontro produtivo, que nos permita superar essa tristeza.
Felix Guattari, em uma vida relativamente breve, conseguiu desenvolver
tantas atividades, produzir tanto, criar tanto, que falar acerca desta vida, em um tempo
curto, é uma tarefa quase impossível. Mas faço questão de falar de todas e de cada
uma das coisas que ele fez, embora apenas mencionando-as, enumerando-as. Eu acho
que, entre todos os méritos que Guattari tem ou teve, o fundamental é o de fazer ver
ao mundo, este mundo um tanto cético, um tanto decepcionado no qual nós vivemos,
este mundo utilitarista, pragmatista (no mal sentido da palavra), este mundo, em
muitos sentidos, medíocre e cínico, que é possível viver de uma maneira produtiva, de
uma maneira brilhante, de uma maneira heróica. Não dentro das modalidades do
heroísmo revolucionário clássico, mas abrindo a perspectiva de um novo tipo de
heroísmo... um heroísmo mais amoroso, mais moderado, como Guattari mesmo o
chamou, em algum livro, "uma nova suavidade". Então, parece-me importante
detalhar tudo o que Guattari fez, porque uma das queixas que eu formulo, e que sei
que muitas pessoas formulam em nosso meio, é de que "não têm tempo" para fazer
grandes coisas. É interessante poder
Conferência proferida por Gregorio F. Barcmblitt na Aliança Francesa em 26/1 0/92,
como homenagem póstuma a Felix Guattari.
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exaltar, poder examinar a vida de uma pessoa que tinha tanto ou menos . tempo que
nós. E, sem dúvida, foi capaz de fazer uma quantidade de coisas que deixaram o
mundo diferente depois de ele ter passado por onde passou.
Guattari faleceu aos sessenta e dois anos de idade, na noite de 28 de agosto
passado, no hospital onde ele trabalhava muitos anos, desempenhando tarefas
clínicas. Ele nasceu em trinta de abril de mil novecentos e trinta, em Colombes,
França. Sua escolaridade foi muito irregular e difícil. Estudou farmácia e filosofia,
mas não conseguiu formar-se em nenhum desses dois cursos. Na Segunda Guerra
Mundial participou de um movimento destinado a construir albergues juvenis,
moradias para os refugiados de guelTa. Dentro de suas tarefas políticas, ele teve
contato com muitas figuras intelectuais da França, e se encontrou com duas
especialmente importantes. Uma, a do trabalhador em saúde mental de orientação
anarquista e libertária, François Tosquelles, que tinha imigrado da Catalunha, no
tempo da guerra civil. E com Jean Oury, um grande psiquiatra francês. Por outro
lado, Guattari tinha descoberto as idéias de outro grande psiquiatra, Franz Fannon,
um psiquiatra argelino, que posteriormente chegou a ser Ministro da Saúde Pública
da Argélia, autor daquele grande livro "Os Condenados da Terra".
Jean Oury, Guattari e outros acharam um castelo em ruínas e, fazendo
uma reforma do mesmo, construíram uma célebre clínica psicoterapêutica e
psiquiátrica denominada "La Borde", que se transformou em um verdadeiro campo
experimental para uma série de propostas psiquiátricas modernas, alternativas e até
revolucionárias, que continua existindo e sendo uma fonte de inspiração para todos
os movimentos alternativos psiquiátricos do mundo.
Guattari militou na Juventude Comunista, mas foi expulso por sua
oposição aos acontecimentos de Budapeste e à política do Partido Comunista na
Argélia. Participou na organização de ajuda à "Frente de Libertação Nacional
Argelina". Escreveu para um periódico comunista relacionado com a Liga
Comunista e com as organizações marxistas e anarquistas. Interessou-se p-ela
Psicanálise e se analisou com o professor Jacques Lacan durante sete anos.
Pertenceu à Escola Freudiana de Paris, que, como veremos mais para a frente, teve
vários dissidentes, mas nenhum destes chegou a questionar a razão da existência
dessa escola,
11
ou seja, a Psicanálise em si mesma. Guattari fundou a Federação de Grupos de Estudo
e Pesquisa Institucional, ou seja, uma enorme corrente que reunia experts de diferentes
disciplinas, antropólogos, sociólogos, economistas, etc., que se ocupavam em estudar
as instituições. Guattari fundou também a revista "Recherche", que teve um papel
importantíssimo na, divulgação das idéias institucionalistas. Em 1966, organizou um
jornal e um grande agrupamento que se denominou "Oposição de Esquerda".
Participou também da redação das novas teses da "Oposição de Esquerda", propondo
uma ética militante que reunia os descontentes de todos os partidos políticos de
esquerda, particularmente da Liga Trotskista e do Partido Comunista Francês.
Participou na operação de ajuda ao povo do Vietnã na guerra contra os Estados
Unidos. Em 1967 foi um dos fundadores da Organização de Solidariedade com a
Revolução Latino-americana, organização esta do intelectual Régis Debray, que
estava preso na Bolívia. Em maio de 1968, Guattari associou-se a vários setores
protagonistas desse impQrtantíssimo fato histórico e participou, pessoalmente, de uma
das manobras táticas que foi a ocupação do teatro Odeon. Fundou o CEPFI – Centro
de Estudos e Pesquisas de Formação Institucional, centro esse que publicou obras tais
como "Genealogia dos Equipamentos Coletivos", "O ideal militante", etc. Dentre suas
publicações na Revista "Recherche", uma em particular se referia aos movimentos
homossexuais, o que motivou sua prisão, tendo sido anistiado por Giscard d'Estaign.
A partir de 1970, militou ativamente pela implantação da rede de rádios livres, a
primeira das quais se chamou "Alice". Fundou o CINEL – Comitê de Iniciativa pelos
Novos Espaços da Liberdade, organização que defendeu os extremistas autônomos
italianos e que lutou pela libertação do intelectual italiano Tony Neri, preso ná Itália,
por sua. vinculação com as Brigade Rose. Em 1981 foi um dos artífices da
candidatura do célebre cômico francês Coluche. Foi membro ativíssimo de uma
grande organização ecológica chamada "Geração Ecológica" e, finalmente, fundador
da Rede de Alternativa Psiquiátrica, um Movimento com propostas psiquiátricas
críticas que se estendeu pelo mundo inteiro.
Bem, tudo isto fala acerca da militância ativa de Guattari no campo, não
apenas da cultura, mas dos fatos políticos concretos, os principais que agitaram a
História durante o período de sua juventude e de sua maturidade. Por outro lado,
Guattari escreveu os seguintes livros:
12
"Psicanálise e Transversalidade", que pertence ao período em que ainda era
psicanalista; "A Revolução Molecular", um belo livro que resume suas propostas de
militância política; "O Inconsciente Maquínico", onde expõe a reformulação que fez
da idéia do inconsciente freudiano; posteriormente escreveu com Gilles Deleuze, o
grande filósofo e seu amigo pessoal, "O Anti-Édipo", um livro que foi expressivo do
movimento político e cultural de maio de 68. Fez um estudo com Deleuze sobre o
escritor Kafka, a quem eles consideram uma das maiores expressões de um gênero
que seria "uma literatura menor"; depois, escreveu, também com Deleuze, "Mil
Platôs", que é algo assim como o segundo tomo de "O Anti-Édipo". MaIs
recentemente ele publicou um livro chamado "Caosmose", e imediatamente antes
deste, um belo livro sobre Ecologia, chamado "As Três Ecologias", e depois, com
Gilles Deleuze, "Que é Filosofia?". Isso sem mencionar inúmeros artigos publicados
em todos estes órgãos que acabamos de expor. Por outra parte, publicou, em
português, em colaboração com S. Rolnick,o livro "Cartografias do Desejo", e, na
mesma língua, foi editado um pequeno volume de suas conversas com Lula.
Então, encontramo-nos aqui evocando a figura de um intelectual,
praticamente autodidata, que não chegou a cumprir a burocracia de nenhum título
universitário, que produziu uma quantidade assombrosa de textos, que conseguiu
relacionar-se de forma produtiva com as figuras mais importantes das últimas duas ou
três décadas, que militou política e ativamente, tanto nas organizações tradicionais,
como na maioria das alternativas importantes deste período, e, além do mais, foi
criador de uma série de movimentos, fundador de uma série de dispositivos políticos
que tiveram um papel importantíssimo nas tentativas de transformação do que é o
mundo moderno e pós-moderno. Eu acho que uma figura deste tipo, desta magnitude,
desta transcendência, estamos acostumados a descrever e a encontrar antes de 1920,
de 1930. Estas são figuras do porte de um Trotsky, de um Marx, de uma Rosa de
Luxemburgo, ou um Gramsci, que, desde a Segunda Guerra Mundial, pareciam ter-se
extinguido. Como também parece ter-se extinguido, de nossas vidas cotidianas, todo o
impulso – firme, ambicioso, entusiasta para a construção de uma existência
decididamente mais digna. Por isso, creio que ao se falar neste homem, Guattari, não
se trata de destacar um ideal, porque a obra de Guattari está toda encaminhada a
demonstrar que os ideais não
13
existem, que os ideais são "idéias puras", que ninguém tem por que reproduzir ou
copiar. Por este motivo, não diríamos que Guattari é um ideal, não diríamos que
Guattari é um modelo, mas sim, diríamos que Guattari é um exemplo de como se
pode viver de forma que a vida seja a realização de um bem, de uma forma de criação
e de inspiração, que a vida pós-moderna parece ter proscrito completamente de nosso
cotidiano.
Bem, se só fazer este detalhamento da militância política, da produção
bibliográfica, da atividade científico-societária de Guattari já toma tanto tempo, e
espero ter dado pelo menos uma imagem panorâmica, como é que nós podemos
sintetizar essa fulgurante produção teórica de Guattari, difícil de dissociar da sua
produção unida a Gilles Deleuze? Essa união produtiva com Gilles Deleuze já
configura uma espécie de milagre intelectual que é absolutamente insólito na História
da Cultura. Um comentarista francês, um jornalista, afirma que essa obra é uma
"filosofia a duas cabeças", fórmula que não me parece afortunada. Para começar, creio
que a obra de Deleuze e Guattari não é uma filosofia. E, por outro lado, justamente o
fantástico, o assombroso, é que essas obras escritas pelos dois já não são de "duas
cabeças". Para quem estuda cuidadosamente "O Anti-Édipo", "Mil Platôs", "Que é a
Filosofia?" (este, o último livro que publicaram), é impossível saber de quem são as
idéias, se de um ou de outro. Então, é muito mais que criar uma filosofia a duas
cabeças, é criar um conhecimento, um saber, que faz os dois, não devir um, mas devir
muitos. É a transformação de um dueto em um enorme coral, em que não apenas não
se sabe se isto foi escrito por Deleuze e aquilo por Guattari, mas também que neste
coral cantam as vozes mais revoluciomirias, mais críticas, mais escolhidas de nosso
século.
Como se poderia qualificar essa obra? É muito complexo, porque essa obra
inclui as ciências formais, a matemática, a geometria, a lógica; contém as ciências
naturais, a física, a química, a biologia; contém as ciências humanas, a antropologia, a
história, a economia política, a semiótica, a psicanálise, e contém também muitos
elementos da literatura, da pintura, da música; contém as melhores idéias de toda a
tradição filosófica do ocidente, preferencialmente um ramo da filosofia representada
fundamentalmente pelas idéias dos estóicos, de Espinoza, de Nietzsche, de Bergson,
de Hume. E até contém alguns momentos do discurso cotidiano, do saber popular, do
senso comum. Então – para
14
quem pretende expô-lo em meia hora –, o que é isto? Se nós a chamamos de filosofia,
é um pouco injusto e limitativo, a não ser que a comparemos com a ética de Espinoza,
que é uma filosofia declaradamente feita para se aprender a viver de acordo com ela. É
uma disciplina? Não é. Porque serve para ser aplicada em qualquer lugar, por qualquer
pessoa, e com qualquer motivo, sempre que este motivo inclua uma proposta de
produção, de criação, de invenção, de felicidade, de transformação do mundo. Então,
o que diremos? Que é uma proposta política? Claro que é uma proposta política.
Fundamentalmente micropolítica. Mas é uma proposta política que pode ser utilizada
por um indivíduo, ou por um grupo, por um movimento, em um partido, em uma
igreja, em um jogo de futebol, em qualquer lugar. Então, não é um discurso
propriamente político, mas sim, é politicamente utilizável em qualquer de suas
dimensões. O que resta para dizer é que essas idéias são, segundo a velha fórmula,
uma concepção do mundo, uma weltanschauung, como diziam os alemães. Eu não
gostaria de dizer isso na presença de algum guattariano ou deleuziano assumido,
porque seguramente não estaria de acordo. Uma concepção do mundo é uma série de
idéias, de crenças, de convicções acerca de como o mundo é e de como devemos nos
comportar nele. E esta obra de Deleuze e Guattari, embora esteja feita com
representações, pois está escrita com palavras, não é uma ideologia. Não é um
pensamento discursivo, mas segundo a própria definição deles, é uma máquina
fundamentalmente energética, destinada a vibrar e a fazer vibrar aqueles que dela se
aproximam e a engajá-los em um movimento produtivo, que não passa exatamente
pelas idéias nem pelas palavras, passa pelos afetos. Por afetar e ser afetado. Passa pela
capacidade de vibrar em consonância, passa pela capacidade de despertar o
entusiasmo, a vontade de viver, a vontade de criar. E é curioso que isto que eu acabei
de dizer, costuma-se dizer, por exemplo, sobre os discursos religiosos ou sobre os
discursos ideológicos. E não se pode dizer que a obra de Deleuze e Guattari não tenha,
em certo sentido, uma vocação religiosa. Mas religiosa na melhor definição de re-
ligare, de unir novamente os homens, sobretudo os homens que a merecem, ou as
partes dos homens que são capazes de unir-se para gerar produtos novos e dignos.
Esse discurso, como vocês seguramente poderão apreciar, se são leitores de Deleuze e
Guattari, é um discurso incrivelmente erudito, de um rigor e de uma seriedade, de uma
literalidade nas citações, que
15
chega a ser um tanto desesperador. Porque a gente não consegue saber como é que
dois intelectuais conseguem ler tantas coisas, entendê-las tão bem e extrair delas
estritamente aquela parte que eles podem integrar no discurso próprio, com essa
vocação revolucionária e produtiva. Mas toda essa erudição, toda essa severa lógica,
toda essa ortodoxia no discurso acadêmico não é o mais importante dessa obra. O
mais importante é aquilo que fervilha por baixo, sob o discurso. É essa capacidade de
capturar o leitor e de ir integrando-o a um mundo que, aparentemente mágico, um
mundo aparentemente de ficção, é infinitamente mais real que os discursos
acadêmicos. que os discursos filosóficos especulativos, que as prédicas religiosas, ou
que as promessas políticas. É importante destacar essas características dos textos e dos
discursos de Deleuze e Guattari, porque eles estão sempre integrados a um tipo
particular de militância. Eles sempre têm um "pé" numa ação concreta que se exprime
e se inspira nesses escritos, dentro da famosa idéia de práxis, ultimamente tão
esquecida. A proposta de uma micropolítica é a ação política que acompanha a
proposta analítica desses autores, que se chama "Esquizoanálise". A Esquizoanálise é
uma leitura do mundo, praticamente de "tudo" o que acontece no mundo, como diz
Guattari em seu livro sobre as ecologias, sendo uma espécie de Ecosofia, uma
"episteme" que compreende um saber sobre a natureza, um saber sobre a indústria, um
saber sobre a sociedade e um saber acerca da mente. Mas um saber que tem por
objetivo a vida, no seu sentido mais amplo: o incremento, o crescimento, a
diversificação, a potenciação da vida. É importante saber que essa micropol ítica não
está instrumentada por partidos políticos, embora não seja proibido exercê-la dentro
deles. Não toma, como lugar privilegiado de atuação, a academia, com suas produções
ortodoxas e rígidas. Não propõe a formação de uma igreja, mais ou menos despótica.
Não necessita atuar dentro dos âmbitos do Estado, apesar de não se negar a fazê-lo.
Não precisa dos partidos políticos tradicionais, nem dos sindicatos, especialmente se
eles são corporativos. Não define um campo de esquerda mais ou menos global, que
seria melhor do que o de direita. A proposta é a de uma polític que se pode fazer em
todo e qualquer pequeno, médio ou grande âmbito em que transcorre a vida humana, a
política dos movimentos singulares, dos movimentos que exprimem idiossincrasias, a
política feminista, a política dos movimentos homossexuais, a política das minorias
raciais, a política
16
dos imigrantes, a política dos sem-terra, a política de todos aqueles que sofrem a
exploração, a dominação, a mistificação do mundo atual, mas que não pertencem
necessariamente aos organismos, às entidades molares respeitadas e consagradas pelo
mundo em que vi vemos, e que são responsáveis pelo mundo estar como está. É uma
política baseada em uma proposta básica que diz que a essência da realidade é a
imanência do desejo e da produção. O desejo, aquele descobrimento de Freud, o
desejo inconsciente, dito no sentido não apenas de um espaço do psiquismo, de uma
força do psiquismo, mas dito no sentido da essência, da substância de tudo aquilo que
existe. Ele tem, dizem Deleuze e Guattari, o mesmo processo de funcionamento que
Freud descreve no inconsciente psíquico, particularmente em seu processo primário.
E, por outro lado, esse mesmo processo é um processo substancialmente produtivo, é a
permanente criação do diferente, a geração constante do novo. Então, quando Deleuze
e Guattari dizem que o processo último da realidade é produtivo e desejante, eles
introduzem a idéia de desejo na materialidade produtiva, e a idéia de produção neste
processo criativo que é o desejo, e que habitualmente se atribui ou apenas ao campo
do psíquico ou às esferas mais ou menos ultraterrenas do metafísico. Esta proposta da
substância da realidade como repetição do diferente, do diferente radical, esta,
chamemo-la assim, ontologia de Deleuze e Guattari, é o pilar de sua proposta ética.
Porque é uma afirmação acerca da realidade, que diz que esta, em si mesma, é uma
fonte inesgotável de criação, é uma potência incoercível de transformação. Não existe,
na realidade, nenhuma força definitória que equivalha a essa famosa "pulsão de
morte" freudiana ou a qualquer processo entrópico como os físicos o descrevem nos
sistemas fechados. É uma ontologia, uma teoria do devir que, desde a base (se isto se
pode chamar "base"), propõe um tipo de vida que confie nisto, que acredite que somos
portadores de uma energia criativa que nos faz formar parte de um mundo que é
simultaneamente físico, natural, humano e maquínico. As separações que se
estabelecem neste mundo, e as hierarquias que se postulam nessas relações são
produto de uma concepção autoritária do universo, que sempre tem que ter algum
setor da realidade que seja mais respeitáv.el, mais temível, mais poderoso que o outro.
Deleuze e Guattari dizem que em tudo que existe há uma imanência que faz com que
cada um dos campos seja igualmente importante.
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Não descrevem a natureza como aquele campo da realidade que existe para
ser dominado pelo homem, não descrevem as máquinas como criações do homem que
devem servi-lo, descrevem tudo isso em um nível de interpenetração, de igualdade
hierárquica, em que cada segmento desse real deve combinar-se com o outro,
procurando o crescimento harmônico de todos esses setores ao mesmo tempo. Por
outro lado, atribuem a esta conexão de potências uma natureza produtiva, que não
precisa fazer-nos acreditar que somos resultado de uma criação falida de alguma
entidade sobrenatural ou transcendente. E também não precisa fazer-nos acreditar que
somos um produto monstruoso de alguma natureza que funciona exclusivamente
guiada por leis mais ou menos fascistas. Este saber e este afazer que estas duas figuras
têm criado e promovido através de suas vidas militantes e de suas produções teóricas,
são feitos por um procedimento epistemológico, digamos assim, que os autores
assumem valente e quase humoristicamente.
Eles postulam o procedimento do "roubo", eles "roubam", eles
pegam de cada teoria, de cada práxis, aquela parte que lhes parece mais inspirada,
aquela engrenagem que eles poderão colocar no interior de sua máquina teórica e
militante, sem interessar-se por completo pelo rótulo geral que possa ter essa
disciplina da qual pinçaram e "roubaram" um conceito.
Assim como para eles não existe hierarquia entre o mundo natural, o mundo
subjetivo e o mundo maquínico e social, assim também não existem discursos
consagrados, textos adoráveis e discursos insignificantes.
Um dos conceitos essenciais desta teoria, o conceito de "Corpo sem Órgãos",
foi tomado simultaneamente de um poema de um literato louco, Antonin Artaud, de
um mito dos Índios Dógons e de um mito das religiões orientais que se chama "o Ovo
Cósmico". Acontece que esta categoria, "Corpo sem Órgãos", criada tomando
elementos de um discurso "psicótico", de um mito indígena e de um ideologema de
uma religião oriental, é um conceito que acaba dizendo uma coisa muitíssimo
parecida com o que diz a física quântica atual, com o que diz a teoria dos fractais, a
teoria das catástrofes de René Thom, o que tem de mais evoluído na físico-química
atual. Estas coincidem. Por outro lado, o discurso do texto de Deleuze e Guattari é
feito da mesma maneira utilizada pelos artistas primitivos para fazerem seus quadros e
obras de
18
arte cotidianas. Eles se declaram bricoleurs, juntadores de idéias, sobretudo
juntadores de elementos cuja característica em comum é não ter nada em comum.
Isto, à primeira vista, poderia fazer supor que encontraremos uma salada de
palavras. E não é uma salada de palavras o que se encontra nestes textos, mas um
discurso fulgurante, como eu dizia, revelador, crítico e, sobretudo, incrivelmente
inventivo. Então, esses ladrões bricoleurs fazem depender essa criatividade
justamente da sua irreverência. Porque, apesar de fazerem citações com uma precisão
assombrosa e com um cuidado bibliográfico surpreendente, eles conseguem fazer
com que aquilo que roubaram diga alguma coisa nova, de tal forma que, se o autor
que foi vítima do roubo chegasse a lê-lo, não se reconheceria nele. Há uma passagem
no livro de Deleuze que se chama "Diálogos", onde o autor define seu método de
criação teórica de uma maneira metafórica ou alegórica, dizendo que se trata de
aproximar-se sigilosamente de um autor, pelas costas, e fazer-lhe um filho
monstruoso, onde ele não se reconheceria. Só que monstruoso, neste caso, não quer
dizer teratológico, não quer dizer ridículo, absurdo, disforme. Quer dizer maravilhoso,
quer dizer absolutamente impensável para o próprio autor deste conceito.
Sem poder ir mais além nesta introdução e supondo que haverá algum
período destinado ao diálogo entre este amável público e eu gostaria de concluir
referindo-me a uma das tantas relações que estes textos de Deleuze e Guattari
estabelecem, e que é interessante: a relação com a Psicanálise. Eu a escolho quase
que por um vício profissional, porque eu sou psicanalista, e a escolho também por
ter uma certa suspeita da presença de vários especialistas na matéria, aqui, no
público. Mas poderia falar também da relação crítica da Esquizoanálise com o
Materialismo Histórico. Ou poderia falar da relação crítica da Esquizoanálise com a
Lingüística estruturalista, com a Antropologia estruturalista, ou com as concepções
capitalistas da Economia. Mas vou escolher provisoriamente a relação com a
Psicanálise.
Os textos de Deleuze e Guattari, a meu modo de ver, pelo menos para a
minha leitura, vêm tendo uma modificação no percurso do tempo, com relação à
Psicanálise. Quando, por exemplo, Guattari escreve "Psicanálise e
Transversalidade", é um analisado de Lacan, e assina embaixo da teoria do
significante, da concepção estrutural do psiquismo,
19
etc. Mas manifesta uma franca preocupação política e social, que, como se sabe,
estava ausente na obra de Lacan e na da maioria de seus continuadores. Já quando
Guattari escreve, junto com Deleuze, "O Anti-Édipo", faz neste livro uma crítica
radical à Psicanálise, que se pode resumir da seguinte maneira: a Psicanálise seria a
ciência que dá conta de um modo de produção do sujeito psíquico. E este modo de
produção do sujeito psíquico é, sem dúvida, o modo de produção edipiano. É no seio
da estrutura edipiana, que todos os psicanalistas consideram única, eterna e universal,
que se gera "o sujeito psíquico". Toda outra forma é considerada incompleta e
aberrante. Deleuze e Guattari, no que dizem acerca do sujeito psíquico, afirmam que
não existe um modo de produção deste que seja universal e eterno. Mas sim, que
existe um modo historicamente dominante de produção do sujeito psíquico que,
obviamente, é o edipiano. E se pode dizer que o modo edipiano de produção do
psiquismo – vamos dizê-lo de uma maneira um tanto vulgar – é a produção de homens
narcisistas, egoístas, ciumentos, invejosos, petulantes, facilmente decepcionáveis,
majoritariamente heterossexuais, enfim, o que constitui o psiquismo habitual do nosso
modo de ser, que é universal. Mas não é universal no sentido de que seja o único. Não
é universal no sentido de que sempre tenha sido assim, e não é universal no sentido de
que continuará sendo assim. Mas é universal no sentido de que é um modo de
produção do sujeito psíquico que teve sucesso em sua capacidade de impor-se aos
outros, e até na sua capacidade de produzir uma teoria que seja própria para descrevê-l
o tal como ele é: a Psicanálise. Mas também é universal no sentido de que ele tem sido
capaz de produzir elementos teóricos que lhe permitem fazer sua autocrítica. E
descobrir que não é eterno, descobrir que não é o único possível, e descobrir que essa
dominação que ele impõe sobre os outros é um imperialismo, como existe o
imperialismo político, o imperialismo ideológico, o imperialismo econômico e até um
imperialismo ecológico. Em "O Anti-Edipo", então, o psicanalista é qualificado de
algo assim como um mecânico especialista na restauração, na reparação de um
aparelhinho eletrodoméstico que cumpre uma função pobre, mas muito difundida.
No percurso das obras posteriores, esta severa crítica inclui, além do mais,
uma reformulação completa do que é o inconsciente (porque Deleuze e Guattari
dizem que o inconsciente da Psicanálise ou é um teatro antigo, com Édipo, Jocasta,
Laio e companhia, ou está
20
estruturado como uma linguagem, e então parece um jogo de palavras cruzadas,
dessas que saem nos suplementos de jornal aos domingos), que nunca foi pensado
como uma fábrica, como um lugar de produção, pura e exclusivamente de produção,
de uma produção desejante, de uma produção que ao mesmo tempo que cria, goza. E
que só é abafada, só sofre, só entra em conflito com aquelas estruturas sócio-
econômicopolíticas e psíquicas que vivem da reprodução e não toleram a produção do
novo.
Nota-se também uma espécie de maior compatibilidade ou tolerância em
relação à Psicanálise em "Caosmose", de Guattari, e no livro "O que é a Filosofia?"
Nestas duas obras está colocado, com toda a clareza, que a teoria, o método, a técnica
e o campo clínico psicanalítico são uma espécie de "valor do nosso mundo", da nossa
cultura, e que o fato de que tenha sido enfatizada nele toda uma ética de resignação,
de castração, de falta, de morte, não impede que, na prática cotidiana, os aspectos
vitais, os aspectos produtivos, os aspectos revolucionários que todo psicanalista tem,
apesar de ser psicanalista, se conectem, se articulem com aquilo que seu paciente tem
de vivo, de produtivo, de revolucionário e gerem curas que, uma vez analisadas com a
metapsicologia freudiana, são entendidas de uma maneira diferente daquela que as fez
acontecer. Mas isso não importa. O que importa é que é um espaço social onde duas
pessoas se encontram mais ou menos abrigadas, mais ou menos a salvo das formas
mais grosseiras de repressão do sistema. E onde, dependendo do poder criativo de
seus desejos, podem dar origem a um bom encontro, que deixe os dois realizados em
uma dimensão que nada tem a ver com os axiomas do procedimento.
Bom, eu não posso estender-me muito mais, porque não quero cansá-los e
porque aguardo sempre, com expectativa, a participação do público. Mas queria
concluir dizendo que Guattari veio ao Brasil pela primeira vez, trazido por uma
instituição que eu fundei, junto com outros, o IBRAPSI – Instituto Brasileiro de
Psicanálise, Grupos e Instituições que no ano de 1978 fez um congresso no Rio de
Janeiro, no qual estiveram presentes, junto com Guattari, as máximas figuras da
psiquiatria alternativa do mundo. Esteve Basaglia, esteve Castel, esteve Thomas
Szasz, esteve Goffman, esteve Beker, enfim... E também, os colegas desta orientação
do Brasil e da América Latina. Posteriormente a essa vinda de Guattari, eu tive
ocasião de conviver e conversar com ele
21
em várias oportunidades, quando o IBRAPSI o trouxe novamente e quando outras
organizações o trouxeram. Guattari tinha uma particular simpatia pelo Brasil e parece
que o Brasil, também, pelas idéias de Guattari. Penso que as idéias de Guattari nunca
encontraram um campo tão fértil como aqui no Brasil. Devo dizer que, nessa
convivência, eu tive umas tantas discordâncias com ele. Tivemos polêmicas públicas,
em alguns congressos, porque tínhamos algumas divergências no que se refere à
estratégia e à tática no processo de transformação do panorama da saúde mental. Mas,
transcorrido o tempo, eu tive a oportunidade de constatar que minhas opiniões a
respeito eram aparentemente mais realistas que as de Guattari. Eu prognostiquei, em
várias ocasiões, para Guattari, que as transformações que ele propunha e que pareciam
estar se realizando aqui no Brasil, particularmente no campo da saúde mental, e que
outros companheiros haviam trazido com igual energia, por exemplo, Basaglia, não se
iam realizar tão rápida e facilmente como eles pensavam. Bom, isso já tem uns doze a
treze anos. E quando examinamos o panorama da saúde mental aqui, o que se vê
ainda é uma dominância da proposta psiquiátrica clássica, da administração excessiva
de psicodrogas, da terapia biológica com choques e insulina, um tratamento carcerário
feito ao doente mental. E vê-se que os movimentos deflagrados por Guattari e por
Basaglia, por Castel, Foucault e por nós mesmos não têm tido o sucesso que se
esperava. Aliás, eu faço questão de insistir em que, pode ser que eu tenha tido razão
quando adverti que a coisa não iria ser tão fácil, porque junto com essa permanência
da Psiquiatria clássica, também vemos a proliferação de um tipo de Psicanálise que,
justamente, Deleuze e Guattari criticaram de maneira irrefutável. Mas devo confessar
que não sinto nenhuma satisfação em ter tido razão. Pelo contrário, devo a Guattari
uma força, um entusiasmo, uma vontade e um desejo, que realmente se despertaram
em mim com a leitura de sua obra e com meu conhecimento pessoal dele, e que todas
as dificuldades passadas não conseguiram apagar por completo. Nesse sentido estou
muito grato a meu amigo, e prometo, publicamente, e peço a quem se interesse por
isto que me acompanhe, porque não abandonaremos a luta. Pode-se fazer a crítica da
organização, pode-se fazer a crítica dos resultados, como disse Guattari, mas não se
pode fazer a crítica do desejo. E este desejo é o que Guattari fez viver em muitos e
que continuará vivendo. Muito obrigado.
22
Debate
Pergunta: Qual é a proposta da Ecosofia?
Baremblitt: A relação entre o gênero humano e esse campo denominado
natureza é uma relação que tem sido pensada e tem sido atuada, executada, quase
sempre de forma assimétrica e hierárquica. Quer dizer, supõe-se que o homem não é,
ou pelo menos não é exclusivamente um ser natural. E que ele deve relacionar-se
com a natureza submetendoa, colocando-a a seu serviço, e utilizando-a, segundo um
conhecimento ditado pela razão – por UMA razão, sobretudo a razão ocidental, que
seria sinônimo de verdade, sinônimo de eficiência e sinônimo de justiça. Acontece
que tem havido pensadores, tem havido povos, tem havido modos de analisar a vida
que não aceitam essas premissas. Que consideram que o homem é um ser natural e
que sua relação com a natureza não deve ser uma relação de domínio, deve ser uma
relação de acompanhamento, de harmonia, em que o homem não pode impor sua
forma à natureza com a suposição de que essa forma racional é sinônimo de verdade
indiscutível. Mas ele pode aprender da natureza, porque a natureza contém um saber
que não é racional, mas que é mais propício para a vida que a organização que os
homens se deram em nome da razão. Então, isso se pode dizer para qualquer modo de
produção, para qualquer organização social, mas se pode dizer especialmente para o
capitalismo. Porque o capitalismo é um modo de organização das relações humanas
que está baseado na exploração do homem pelo homem, na dominação do homem
pelo homem, na mistificação do homem pelo homem. E uma concepção assim, se faz
isso com o homem, como não iria fazer o mesmo com a natureza? A conclusão é que
esse sistema, que contém em sua estrutura, em sua essência, a racionalidade, o saber
científico, a consciência, tem conduzido o mundo a uma situação como a atual, em
que, dentro do gênero humano, a riqueza, o peso da miséria, são distribuídos de
forma cada vez pior. No mundo atual temos cada vez mais miseráveis, cada vez mais
analfabetos, cada vez mais enfermos, cada vez mais deserdados. E temos levado a
natureza a um ponto tal, que até essa soberba da cientificidade e do produtivismo
capitalista teve que parar para examinar como as coisas estão, porque corremos o
risco de perder o lugar em que vivemos, sejamos pobres, ricos
23
ou como for. E por outro lado, o mundo da máquina é um mundo que já tem sido
acusado, em diversos graus, de demoníaco, ou tem sido idealizado como a salvação
do universo. Deleuze e Guattari dizem que o mundo das máquinas é um mundo que
tem muito para ensinar-nos também. Mas que é um mundo que não pode ser isolado
dos interesses da humanidade em seu conjunto e não pode ser utilizado na
exploração destrutiva da natureza, que é imanente com a vida humana.
Então, a Ecosofia de Guattari propõe um saber acerca do mundo da
sociedade, do mundo da natureza e do mundo da mente, incluindo no mundo da
sociedade a vida maquínica, o mundo das máquinas. É uma espécie de democracia
nosológica: tudo tem o mesmo nível de valor, tudo é forma de vida, tudo é produtivo
e tudo pode ser encaminhado no sentido de uma harmonia crescente. Mas esse
trabalho de conhecer e de transformar não pode ser feito em nome de nenhuma
entidade que seja considerada superior às outras, de nenhuma tirania, de nenhuma
transcendência. Esta é mais ou menos uma forma de resumir essa questão.
P.: Eu queria saber o que você pensa a respeito da questão do caos. Guattari
fala muito sobre o caos que é inerente como forma de criar novas formas de
conhecimento.
B.: Bom, nessa observação que fiz anteriormente, mostro que a obra de
Deleuze e Guattari tem um componente muito importante de Ontologia, ou seja, de
Teoria do Ser, de como as coisas são. Essa Ontologia afirma que a essência última é
produção desejante – os processos da mesma são aqueles segundo os quais o mais
substancial do existente funciona ao acaso. Ou seja, a realidade é constitutivamente
desordenada, é constitutivamente imprevisível, é constitutivamente caótica, coisa que
já diziam alguns filósofos, e coisa que hoje a microfísica e a macrofísica certificam.
O que a ciência tinha estudado e aquilo no qual a política se baseia é o estudo da
regularidade de pequenas ilhotas de ordem que se dão tanto no campo da natureza,
como no campo da vida social, e no campo do psiquismo. Pequenas ilhotas em que o
que predomina é uma repetição, uma regularidade, que a ciência estuda e que
formaliza em leis. Mas, a rigor, toda a potência produtiva da realidade em qualquer
âmbito de que se trate depende mais dessa natureza caótica, dos encontros ao acaso,
das pequenas partículas (como diziam os estóicos, ou Demócrito), mais do que desse
planejamento racional e
24
exploratório que se faz daquelas áreas de regularidade sujeitas a leis. O que Guattari
propõe, tanto como tema de investigação, de pesquisa, como forma de atuação ética,
como forma de militância política, é a construção de dispositivos que tenham em
conta essa potência produtiva do caos, do acaso, e elaborem estratégias e técnicas
destinadas a produzir forrmações complexas no seio do acaso. Isto quer dizer
formações mais ou menos ordenadas, mas com uma ordem elástica, com uma ordem
fraca, que permita o efeito produtivo, que permita a emergência do caos criador. Nesse
sentido, politicamente, e este talvez seja o tema da discussão, Deleuze e Guattari têm
muito a ver com a tradição anarquista e com a tradição autogestiva de todos os
movimentos históricos dessa característica. Mas esta afirmação é feita não apenas
desde uma leitura política, mas também de uma leitura das afirmações da física das
nebulosas, ou da física do comportamento das partículas atômicas, ou de certa
característica das combinatórias biológicas, pelas proteínas alostéricas, ou dos
sistemas tipo cadeia de Markoff ou da matemática de Riemann, enfim, de todos
aqueles campos do saber em que se tem descoberto isto mesmo: a natureza caótica do
ser e a importância de construir dispositivos que não sejam rigidamente ordenados,
mas sim que dêem possibilidade da emergência criativa do caos. Deleuze havia
produzido o termo Caosmos, que é essa combinação de cosmos com caos. Isto não
quer dizer que seja a hegemonia de uma ordem constituída e mantida rigidamente.
Guattari acrescenta CAOSMOSE. Eu suponho que não se refere tanto a esse universo
caótico e ao mesmo tempo cosmótico, mas sim ao procedimento pelo qual se pode
viver e produzir dentro dele. Existe a palavra osmose, então, eu imagino que é uma
metáfora tomada daí – caos e cosmos articulados e propostos como procedimento.
P.: Quando ele fala dessa ordem em um movimento de desordem – que é
uma ordem que não quer dizer normativização, o que se faz com a angústia que a
gente sente perante a perda da certeza e da segurança que é dada pelo Instituído?
B.: Nas características que apresentam certas propostas da f'ilosofia
socrática, platônica; ou de certas correntes psicanalíticas atuais, que têm uma enorme
influência de Heidegger, de Kierkegaard, nós vemos que a angústia é atribuída a uma
característica essencial do sujeito psíquico. Quer dizer, das três teorias freudianas da
angústia, a que
25
predomina, nestas leituras, é a de que a angústia é uma espécie de percepção da ação
da pulsão de morte. Entretanto, em Freud, encontramos uma primeira teoria da
angústia que era produto do recalque, do impedimento de que a libido se realizasse em
encontros criativos e prazerosos. Desde logo, nestas duas posturas, existe uma
filosofia por detrás. Então, se nós pensamos que a angústia é a percepção de uma força
no nosso interior, que é a pulsão de morte, e que é constitutiva da realidade no mesmo
nível, na mesma hierarquia que a de vida, logo, naturalmente, a angústia adquire um
estatuto, adquire uma respeitabilidade, a angústia é promovida como necessária, como
inevitável e como "atendível", no sentido de que uma certa dose de angústia é um
elemento indicador para levar-nos a um comportamento adequado, apropriado. Na
concepção de Deleuze e Guattari, a angústia é produto da antiprodução, que o mundo
do instituído e do organizado exerce sobre nossas forças físicas, psíquicas e sociais.
Em conseqüência, é um efeito indesejável e contornável. Agora, não há receita contra
a angústia. Mas, se sabemos que essa angústia exprime um mal-estar perante a
possibilidade da perda e da destruição de coisas que não nos fazem bem, a receita
contra a angústia é o entusiasmo, e, como dizia Espinoza, as "paixões alegres". É a
plena certeza de que o que está sendo libidinalmente feito vai ser melhor, porque é
novo. Não é que se desconheça, nessa teoria, a existência da angústia, mas eu acho
que se poderia resumir dizendo que esta teoria se nega a fazer-lhe propaganda, porque
considera que "a propaganda é a alma do negócio".
P.: O senhor trouxe para nós um Guattari de final de análise, e nesse ponto
eu acredito que a ética que ele traz é de um desejo decidido e não vejo como essa ética
de um desejo decidido de final de análise faça contraposição ou entre em contradição
com a ética da Psicanálise a partir de Lacan. Porque me parece que a partir dé Lacan,
esse termo, ciência do real, que está descrito no L'étourd, em Lacan, essa proposição
dele do real como algo que é impossível, como algo que escapa, que é sempre novo –
isso está em Lacan. Acredito que Guattari traz esse final de análise, esse entusiasmo
do final de análise, de um sujeito que produz e que traz um desejo decidido por algo
que é totalmente novo. Então, por que essa contraposição com relação ao que o senhor
estava dizendo? Que a ética da Psicanálise seria uma ética da resignação, da falta, da
morte... Será que ainda não seria uma leitura de Freud, ainda, talvez, com
26
pressupostos anteriores aos que Lacan trouxe para nós depois desse retomo a Freud?
Onde justamente ele resgata, no texto freudiano, essa radical idade do novo na
estrutura? Eu gostaria que o senhor falasse, porque me parece que Guattari é fruto de
uma análise, ele traz esse entusiasmo próprio de alguém que pôde chegar ao seu final
de análise e trabalhar e viver e produzir... Gostaria que o senhor falasse um
pouquinho sobre isto.
B.: Eu acho uma observação interessante e não muito fácil de responder.
Porque, por exemplo, Reich também é fruto de uma análise e, sem dúvida, ele
produziu uma teoria do psiquismo, uma teoria das pulsões, uma proposta de
articulação entre a técnica psicanalítica e a militância política, que é radicalmente
diferente de todo "retomo a Freud", e particularmente do kleiniano e do lacaniano.
Tausk, por exemplo, também foi analisado, e ficou psicótico e se suicidou. Otto
Rank,também. Jung, que também foi bem analisado, foi qualificado, por Freud, de
profeta, ironicamente, porque teria abandonado a Psicanálise. Toda a Psicanálise
anglo-saxônica, e particularmente a norte-americana, é qualificada por Lacan,
depreciativamente, de human engineering, para significar que é uma análise que só
serve para a "adaptação", e que o único retomo verdadeiro a Freud é o de Lacan.
Então, esse problema de atribuir os méritos produtivos de Guattari ao fim de uma boa
análise, pelo menos, é discutível.
P.: Estou me referindo à ética que o senhor traz de Guattari, de um desejo
novo. Ela me faz lembrar os conceitos, inclusive, de algo que se produz em um final
de análise – é um desejo desse tipo, que é fundamentalmente novo. Então, eu não vejo
aí nenhuma contradição.
B.: Eu sei, mas esse é o ponto seguinte. O primeiro ponto é se Guattari foi o
que foi como resultado de uma análise. Eu não afirmo o contrário, mas, pelo menos,
eu deixaria em aberto. Agora vou passar aos pressupostos. Em princípio, digamos,
deixemos entre parênteses o resultado de um procedimento. Porque, por exemplo,
Deleuze, que provavelmente é responsável por cinqüenta por cento desta obra, jamais
se analisou. Isso, deixamos entre parênteses. Mas, com respeito aos pressupostos, isso
é mais complexo de explicar. Fazendo um resumo injusto, eu acho que se pode fazer
passar a questão por isto que você mencionou. Por exemplo, na teoria dos três
registros, para Lacan, o Real é impossível. Esse real impossível é o que exige uma
produção
27
imaginária, que, por sua vez, subordinada ao simbólico, vai ser o pré-requisito de toda
a produção do novo. Justamente, a famosa ética do analista consiste em colocar-se em
um lugar de suporte da transferência e da não resposta à demanda, para que o
mecanismo imaginário dispare, e para poder pontuá-lo impondo o simbólico. Para
Deleuze e Guattari, no real "tudo" é possível, porque o sujeito é parte do real. Não
existe essa diferença entre o mundo da subjetividade, que é o mundo de
negatividades, na linguagem pensada, por exemplo, como "a morte da coisa", não
existe o pré-requisito da castração, não existe a submissão à lei, não existe a
identificação com a metáfora paterna; o que existe é o funcionamento do psíquico que
tem a mesma essência do real. Então, a proposta não é a de uma repetição diferencial,
como em Lacan, mas a proposta é a de uma pura diferença, de uma multiplicação
diferencial incoercível. Não se precisa de um procedimento que nos convença de que
o real é impossível, e que, por esse motivo, nós poderemos "primeiro" imaginá-lo,
"depois" simbolizá-lo. Isso implica uma teoria da linguagem, isso implica uma teoria
do Real, em geral, e isso se adere a toda uma linha filosófica que é a que enfatiza o
Ser como falta, ou a falta constitutiva do Ser. Para Guattari e Deleuze, isso não existe,
a não ser no molar. Para estes autores nada é mais absurdo do que afirmar que houve
um retomo "verdadeiro" a Freud. A Freud, houve milhares de retornos. E o que há é
um retomo de moda, ultimamente. Mas, utilizando Freud como matéria-prima teórica,
pode-se fundamentar a proposta de um desejo como produção e não de um desejo
como insistência em reeditar um objeto perdido e jamais tido. Ou seja, o fundamental
aí é o estatuto do nada, da ausência, da falta, e a ética não é a ética heideggeriana, não
é a ética do ser para o nada, mas é a ética de Nietzsche, é a ética de um ser para a luta,
de um ser para a vida, que lhe vai permitir uma superação da dificuldade, não a de um
ser para a resignação.
P.: No final do seminário onze, Lacan fala, quando trata dos quatro
conceitos fundamentais, desse desejo como uma diferença pura. Desse desejo como
pura diferença – no final, ele define desejo nesse sentido. Estou insistindo nisso,
porque Lacan, nesse seminário, lá pelos anos setenta, faz uma retificação nestes
conceitos de Real, Simbólico e Imaginário, e ele dá uma prevalência ao conceito de
Real, dizendo que, quando afirmou que o "inconsciente era estruturado como uma
28
linguagem", ele não havia dito que o inconsciente era uma linguagem. Ele disse
apenas que o inconsciente era estruturado COMO uma linguagem. E daí ele vai
extrair toda uma ciência do Real, vai estabelecer uma lógica, que vai desestimular os
falsos maternas, e vai trazer toda uma concepção do real. A rigor, a estrutura vai ser
Real. Então, ele vai fazer um corte aí nessa primeira leitura dele, anterior, e vai
privilegiar o registro do real.
B.: Mas acontece que esse é um Lacan para o qual o Real é estrutura. Para
Deleuze e Guattari, a estrutura é uma dessas "ilhotas de ordem", de regularidade, das
quais a ciência produz as leis. Mas a essência do Real, o que é verdadeiramente
produti vo, não são as estruturas, são os fluxos, são o reverso da estrutura. Então,
falam de dois reais totalmente diferentes, distintos. O problema é que, quando Lacan
formula as estruturas, em realidade, ele é , digamos assim, mais platônico que nunca.
Porque você se lembra da famosa farmácia de Platão, a famosa tentativa de ordenar o
mundo todo em espécie, gênero, etc., ou seja, o método da divisão. A proposta
lacaniana é uma forma matêmica, de fazer a mesma coisa. Então, o que Deleuze e
Guattari dizem é que, quando um sujeito é produzido, quando é produzida uma
subjetivação, ela é produzida como componente de um acontecimento. E não existe
uma forma estrutural que dê conta desse sujeito. Porque esse sujeito não é uma
variação de uma forma, pelo contrário, é uma forma radicalmente nova. Então, não
tem comparação possível. São dois reais diferentes.
P.: Como Guattari poderia se entusiasmar com a situação ética do Brasil
noventa e dois?
B.: Bom, eu não sei como poderia não se entusiasmar, eu apenas sei como
foi que me entusiasmou a mim. Guattari disse, textualmente, uma vez, que
considerava o Brasil como um imenso laboratório social, de onde podiam surgir os
mais incríveis inventos. É claro que a gente sabe que é um laboratório onde alguns ou
muitos dos experimentos acabam em resultados socialmente trágicos. Mas ao mesmo
tempo eu acho que talvez se trate simplesmente de comparar, por exemplo, o Brasil
com a Comunidade Européia, ou com os Estados Unidos na atualidade. Eu acho que
(bom, é uma .opinião pessoal) mas eu acho que, nesse momento, as possibilidades de
uma desordem produtiva no Japão, ou no Mercado Comum Europeu, ou nos Estados
Unidos, são, no mínimo, menos prováveis que na América Latina. Eu viajo
29
freqüentemente para a Europa e vejo que, neste momento, a luta política convencional
na Europa, na Espanha, suponhamos, que tem Partido Anarquista, Partido Comunista,
Partido Social-Democrata, Partido Democrático Cristão – a luta política convencional
– consiste em que, nessas eleições, os anarquistas perdem um vereador e os
democratas cristãos ganham um. E na próxima vez acontece o contrário, e mais ou
menos nisso consiste o movimento político, digamos, clássico, visível. Bom, até desde
este ponto de vista, um país como o Brasil, que sofreu uma ditadura de mais de vinte
anos e que, em pouquíssimo tempo, consegue, digamos assim, uma eleição direta, tem
a desgraça de perder o presidente que escolheu, inicia um novo processo eleitoral e
escolhe errado, mas escolhe errado por cinco milhões de votos, sobre um parque
eleitoral de setenta milhões; que consegue, de uma forma ou outra, visualizar seu eno
e, através de seus representantes, duvidosos ou não, afastar seu presidente do cargo –
além disso, ainda existe um partido político que não tem similar em nenhum outro
lugar na América Latina... eu acho que é um país interessante. Eu não digo que seja
para ser otimista, mas pelo menos entusiasta se pode ser.
P.: Eu gostaria que o senhor colocasse um pouco a questão do paradigma
estético. Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre os significados desse
paradigma estético.
B.: Acho que esta será nossa última troca. Eu acho que essa questão do
paradigma estético está prefigurada em toda a obra de Deleuze e Guattari, na medida
em que eles consideram que o discurso, por exemplo, musical, e nesse sentido seguem
Nietzsche claramente, que diz que as verdades, ou o novo, o transformador, isso vem
de qualquer tipo de produção. E particularmente da produção artística. Em diversas
passagens da obra eles fazem questão de tomar contribuições literárias, musicais,
pictóricas, estéticas, como lógicas que inteligibilizam o processo do real e propiciam
as mudanças com muito maior antecipação do que outros paradigmas. Então, como
críticos que são do paradigma científico, que é característico da modernidade, essa
proposta de adotar um paradigma estético tem a ver com essa potência que eles
atribuem à produção artística.
P.: Como antecipadora?
B.: Como antecipadora e como preservadora da criação, da vida, da
harmonia. E também como receptora da desordem criativa, como se
30
vê, por exemplo, na música moderna, na música abstrata... enfim, a arte sempre está
além de qualquer descobrimento praticado com outra metodologia em outro campo.
Provavelmente o único campo a que eles atribuem a mesma capacidade de gerar esse
famoso pensamento do fora, como dizia Foucault, é a loucura.
Bom, agradeço muitíssimo a atenção de vocês e espero que, em alguma outra
ocasião menos triste, nos encontremos outra vez. Muito obrigado.
Livros de autoria de Felix Guattari:
 Psicanálise e Transversalidade
 Revolução Molecular: Pulsações Políticas do Desejo
 Inconsciente Maquínico
 Cartographies Schizoanalitiques
 As Três Ecologias
 Caosmose. Um Novo Paradigma Estético
Em colaboração com Gilles Deleuze:
 Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia
 Poli tique et Psychanalyse
 Kafka. Por uma Literatura Menor
 Mil Platôs
 O que é a Filosofia?
Em colaboração com Suely Rolnik:
 Micropolítica – Cartografias do Desejo
Em colaboração com Antonio Negri:
 Novos Espaços de Liberdade
Outros:
 Felix Guattari entrevista Lula
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A Última Viagem do Capitão Guattari*
Nos últimos dias de agosto, faleceu durante o expediente de trabalho no
Hospital La Borde, em Paris, o militante político, psicanalista e intelectual francês,
Felix Guattari.
A notícia deixou terrivelmente penalizados todos aqueles que de uma ou de
outra maneira foram seus amigos, companheiros de percurso e beneficiários de suas
extraordinárias idéias e iniciativas.
A cultura mundial perdeu um dos mais originais e produtivos expoentes nos
últimos quarenta anos.
Ainda é prematuro avaliar a estatura de Guattari, da qual é difícil falar sem
associá-la à de seu inseparável companheiro, o filósofo Gilles Deleuze (co-autor de
boa parte de sua obra), apesar da projeção quase planetária que lhe atribuímos.
Guattari morreu aos 62 anos de idade, de forma súbita e no pleno uso de uma
formidável vitalidade física, bem como de uma inteligência tão vigorosa quanto
esplêndida.
Outro importante pensador recentemente desaparecido, Michel Foucault,
disse em certa ocasião, referindo-se à obra de Gilles Deleuze, uma frase que se tomou
célebre: – "O século será deleuziano". Por extensão, e guardada a devida distância que
separa Foucault deste que escreve estas linhas, permito-me afirmar que todas as práxis
libertárias das próximas décadas serão, assim denominadas ou não, guattarianas.
Não é exagerado afirmar que a "singularidade" Guattari é de um tal porte
que, seguramente, o toma membro relevante de uma família (ou melhor dizendo, de
uma filiação intensiva) que inclui entre seus membros, arbitrariamente mencionados,
Sartre, Fanon, Basaglia e outros. Esses "outros" são, ao mesmo tempo, poucos
escolhidos... e infinitamente numerosos, de cuja vida e morte nada se saberá
publicamente, Guattarianos de fato.
É literalmente impossível listar aqui os textos escritos por Guattari, bem
como os que publicou com Gilles Deleuze, Tony Neri e outras relevantes figuras
intelectuais (algumas delas brasileiras), porém,
* Artigo publicado no Jornal do Movimento lnstituinte de Belo Horizonte, 1993.
32
cabe ressaltar que toda sua obra contém certas características, que é imperioso
pontuar.
Em primeiro lugar, todos e cada um desses escritos estão ligados a
movimentos e ações concretas de transformação do mundo, no sentido do combate a
qualquer forma de exploração, dominação e desinformação ou mistificação do homem
pelo homem.
Em segundo lugar, nunca se reduzem a um gênero que possa ser enquadrado
em uma especificidade acadêmica ou profissional consagrada e que permita qualificá-
las de científicos, literários, ideológicos... ainda que contenham elementos do que de
melhor há em cada um destes campos do saber.
Em terceiro plano, nada do que Guattari escreveu ou instituiu e desenvolveu
é repetição, continuação, ampliação ou comentário do discurso ou da escola de algum
mandarim teórico da moda, por mais ilustre e exitoso que este seja considerado.
Invariavelmente, as idéias do extinto amigo são autênticas invenções, em que o
essencial é a novidade radical, surpreendente, isólita, audaz, produto de uma erudição
e de um rigor assombrosos, porém empregados com força, leveza e entusiasmo plenos
de inspiração e refratários a qualquer pretensão de sistematicidade doutrinária
destinada a formar igrejas, partidos, corporações ou sociedades multinacionais de
epígonos, adeptos ou iniciados.
Por último, convém admirar-se de que a profunda modéstia, assim como o
humor que percorrem seus textos (o que o levou a qualificá-los de "proposições
descartáveis") não impedem que os mesmos se postulem espinozianamente como
proposições de vida ou para a vida, e se coloquem, incondicionalmente, a serviço de
todo aquele que deles queira se apropriar, sem qualquer ritual de iniciação para
adquiri-las e sem dívida nenhuma a pagar pela "paternidade" dos conceitos. Seu único
motivo é o incremento da Produção e do Desejo em todos os domínios da realidade e
para todos "os homens de boa vontade", que, como dizia Nietzsche, somente pode ser
a Vontade de Potência.
O capitão Guattari empreendeu sua última aventura de exploração de
mundos desconhecidos. Os que viajaram com ele em várias de suas expedições não
tiveram a .sorte de receber as cartas de navegação deste último itinerário.
33
Mas as fascinantes cartografias que produziu até agora estão à disposição das
novas gerações que anseiam por planejar trajetórias intrépidas para metamorfosear o
sinistro universo que o Capitalismo Planetário Integrado lhes tem destinado.
Os amantes do Poder, do Lucro e do Prestígio, os politiqueiros engomados,
os "homens cinzentos" (segundo o terrível diagnóstico de D.H. Lawrence, um dos
favoritos de Felix) ficam dispensados da leitura das memórias do Capitão Guattari.
Porém nunca dormirão tranqüilos... a Revolução Molecular está em marcha.
34
35
In Memoriam de Gilles Deleuze*
Filósofo Nômade
Senhoras e Senhores,
Desejo começar essa conversação agradecendo ao Movimento Instituinte de
Belo Horizonte e às entidades que colaboraram na organização desse evento, por
haverem-me dado a honra de dissertar acerca da obra e da figura de Gilles Deleuze.
Igualmente sou grato ao auditório por sua presença.
Essa homenagem deveria ser muito mais ampliada e reiterada no mundo
inteiro, e não sabemos se haverá de sê-lo. Por isso nossa contribuição nesse sentido
nos parece tão discreta quanto necessária e insuficiente.
Como uma aclaração, antes de entrar no tema, creio obrigatório pontuar o
seguinte: supõe-se que, para falar acerca de um autor dessa envergadura, e em
circunstâncias tão solenes como a presente, é preciso conhecê-lo integralmente.
Por razões que, segundo espero, ficarão explícitas no curso dessa
conferência, devo reconhecer que não tenho esse privilégio. Meu domínio desse
monumento do saber é limitado, e questiona meu direito a ocupar hoje este lugar de
expositor. Não obstante, tenho o consolo de crer que, se bem existem muitos que têm
estudado Deleuze mais e melhor que eu, ninguém pode estar seguro de ser capaz de
um trânsito exaustivo por esse pensamento, que, por sua própria natureza, é
inesgotável.
Resulta tão pouco original quanto inevitável começar esse breve percurso
com a famosa sentença pronunciada pelo talento de Michel Foucault. É sabido que
esse formidável intelectual disse: "O SÉCULO SERÁ DELEUZIANO".
Os comentários acerca dessa frase, que encantou somente uns poucos e
escandalizou muitos, poderiam ocupar toda essa conferência.
Que pretendia dizer Foucault com tal afirmação?
* Palestra organizada pelo Movimento Instituinte de Belo Horizonte em dezembro de 1995
36
O mesmo Deleuze, consultado sobre o assunto, e com a modéstia que
sempre lhe foi própria, lhe atribuiu um sentido ao mesmo tempo carinhoso e
humorístico.
Sem descartar esses significados, tratarei de reduzi-los a dois, formulados,
por minha vez, como interrogações:
Trata-se de prognosticar que a cultura dos anos que virão chegará a
reconhecer a obra de Deleuze como a máxima expressão do século XX? Ou, talvez,
trata-se de manifestar a esperança de que o período que falta para completar este
século, ou, quem sabe, todo o curso do século XXI, será, em sua realidade, expressão
concreta das idéias de Deleuze?
Permito-me sustentar que a primeira interpretação é altamente provável, e a
isso me referirei a seguir, dentro das limitações dessa dissertação. Creio sinceramente
que a obra de Deleuze é, senão a única, uma das mais perfeitas do nosso tempo.
E quanto à segunda compreensão, temo que não tenhamos a menor
segurança sobre o assunto. Assim como nosso século vai mal, e como o próximo nos
antecipa, não apenas não podemos dizer que será deleuziano, senão que nem sequer
sabemos se será, de maneira alguma. O certo é que tentar sintetizar, em uma breve
exposição, a obra e a figura desse pensador, que, segundo Foucault, dará seu nome à
história de nossa época, é uma tarefa árdua.
Devemos, inclusive, registrar outra peculiaridade que contribui para essas
dificuldades: é a extraordinária co-autoria de Deleuze e Felix Guattari, seu dileto
amigo, também recentemente falecido.
Se bem a publicação a dois não seja uma novidade absoluta (basta recordar
os textos de Marx e Engels ou de Freud e Bullit), a colaboração entre Deleuze e
Guattari provavelmente é a única em seu gênero, dado que a mesma é a prova
coerente de toda uma teoria assumida não-autoral da escrita.
Ainda que possa resultar um pouco pesado, devido à fabulosa e prolífica
obra desse autor, é nosso dever começar por uma mínima biografia e por uma sucinta
enumeração da bibliografia deleuziana.
Deleuze nasceu em Paris em 18 de janeiro de 1925. Graduou-se em Filosofia
em 1948, tendo sido aluno de Ferdinand Alquie e Georges Canguilhelm. Ensinou
Filosofia em um liceu e freqüentou as aulas e conferências de Jacques Lacan, Pierre
Klossowsky, Michel Butor e Jean
37
Paulhan. Em 1957 obteve o título de professor assistente na Sorbonne; em 1960, o de
agregado de pesquisas no CNRS (Conselho Nacional de Pesquisas Sociais).
A partir de 1964 deu aulas por vários anos na Universidade de Lyon, e de
1969 a 1987 foi professor na Universidade de Vincennes em Paris VIII. Em 1987 se
aposentou.
Segundo Deleuze, dois encontros foram fundamentais em sua vida
intelectual. O primeiro com Michel Foucault, em 1962, e o segundo com Felix
Guattari, em 1969.
Sintetizando humoristicamente suas tiradas, Deleuze disse algo que talvez se
possa traduzir assim: "Viajando por aí, jamais aderi ao Partido Comunista, jamais fui
fenomenólogo ou heideggeriano, nunca renunciei a Marx, nem jamais repudiei Maio
de 68". (Le Magazine Littéraire, Setembro de 1988).
Essa oração despretensiosa resume algumas das singularidades do Mestre, às
quais, tomando a liberdade de falar em primeira pessoa, eu poderia, figuradamente,
acrescentar:
"Nunca me preocupei em estar na moda, nem a dos círculos políticos, nem a
dos acadêmicos. Nunca venerei filosoficamente a Parmênides, nem a Sócrates, nem a
Platão, nem a Aristóteles, nem aos neo-platônicos, nem a Descartes, nem a Kant, nem
a Hegel, nem aos positivistas... assim como nunca fui propriamente existencialista,
nem estruturalista, nem materialista dialético. O mesmo me aconteceu científica e
artisticamente com Euclides, Newton, Freud, Saussure, Weber, Wittgenstein, Lacan,
Lévi-Strauss ou Toynbee... ainda que me empenhe a conhecê-los tanto como a
Sófocles, Leonardo ou Shakespeare.
Meus personagens filosóficos favoritos têm sido, sem dúvida, ou bem
estranhos, ou pouco exitosos, ou pouco freqüentados, ou quase francamente
marginais. Heráclito, Demócrito, Arquimedes, os sofistas, os estóicos, os epicuristas,
os hedonistas, tanto quanto Duns Escotto, Espinoza, Leibniz, Hume, Nietzsche e
Bergson, assim como Pierce, Hejmlev, Clastres, Riemann, Chatelet, ou bem Reich,
Kafka, Artaud, Carroll, Beckett, Proust, Miller, Canetti, Bacon, Kleist, Duchamps... e
tantos outros".
Essa larga e incompleta enumeração tenta apenas ilustrar, em primeiro termo,
a fabulosa erudição e versatilidade de Deleuze e, em
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segundo lugar, dois tipos de relação heurística com as obras e com seus criadores.
Ao primeiro grupo citado, aplica-se a proposta que Deleuze enunciava como
seu projeto juvenil: "Acercar-me sigilosamente a um autor pelas costas e fazer-lhe um
filho monstruoso, em que não se possa reconhecer". Mas com a ressalva de que "para
fazer isso com o dito por esse autor, teria de estar absolutamente seguro de que o
havia efetivamente dito". Aqui, "monstruoso" deve entender-se de acordo com o que
Deleuze aprendeu de seu mestre Canguilhem... ou seja, como o anômalo, aquilo que
está nos limites, ou até mais além de sua própria espécie. Por outra parte, esse afã de
certeza é o que explica a insuportável precisão das citações nos escritos deleuzianos.
Ao segundo grupo mencionado, corresponde uma apropriação menos crítica,
muito mais empática, mas tampouco integralmente fiel, nem literal, típica dos
comentários e teses acadêmicas que Deleuze detestava.
Essa capacidade de Deleuze, compartilhada por seu amigo Guattari, de
conhecer e circular pela Filosofia, pelas Ciências, pelas Artes, pela Política e até pelo
saber popular, é plenamente demonstrada pela lista de seus quase trinta livros
editados, cuja extensão prodigiosa pode resultar, nesse contexto, tão esmagadora
como indispensável:
 Instinto e Instituição
 Empirismo e Subjetividade
 Nietzsche e a Filosofia
 A Filosofia de Kant
 Proust e os Signos
 NÜ::tzsche
 O Bergsonismo
 Apresentação de Sacher-Masoch
 Espinoza e o Problema da Expressão
 A Lógica do Sentido _
 Diferença e Repetição
 Espinoza, Filosofia Prática
 Espinoza e os Signos
 Francis Bacon: Lógica da Sensação
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 Cinema I – A Imagem-Movimento
 CinemaII – A Imagem-Tempo
 Foucault
 Péricles e Verdi. A Filosofia de François Chatelet
 A Dobra – Leibniz e o Barroco
 Conversações
 Crítica e Clínica
Em colaboração com Felix Guattari escreveu:
 O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia
 Kafka. Por uma Literatura Menor
 Mil Platôs
 O que é a Filosofia?
 Politique et Psychanalyse
Em colaboração com Carmelo Bene:
 Superposições
Em colaboração com Claire Parnet:
 Diálogos
Obs: esclarecemos que esta lista não está ordenada cronologicamente
A esta lista devem se somar vários artigos, prólogos e epílogos de outros
textos. Desde logo a literatura acerca da obra de Deleuze já soma outras tantas
publicações. Segundo uma classificação leve e algo ingênua, os livros de Deleuze
podem ser divididos em três grupos.
O primeiro consiste em Teses e Monografias Filosóficas, de formato
aparentemente acadêmico, mas que constituem verdadeiros Cavalos de Tróia.
O segundo se compõe de grandes exposições de enorme abrangência. Mais
adiante me referirei a elas, arriscando para as mesmas uma categorização pessoal.
Momentaneamente peço que se aceite para esses escritos o qualificativo de
"Concepções de Mundo", que, por razões que veremos, é incorreta.
O terceiro conjunto de escritos se refere aparente e prevalentemente às
Ciências e às Artes.
Mas há pelo menos duas razões pelas quais essa classificação panorâmica é
inadequada e insuficiente.
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Por um lado, porque a obra de Deleuze e Guattari é um Rizoma, ou seja, um
sistema anti-sistema, uma espécie de rede móvel de canais, fluxos, remoinhos e
turbulências, de limites internos e externos difusos, do qual se pode entrar e do qual se
pode sair em qualquer ponto, que se pode percorrer em infinitas direções e que é
reinventado a cada viagem e por cada um que o percorre. Apenas apresenta uma
alternância de mesetas de intensidade homogênea em que se pode transitar passando
de uma a outra por saltos, às vezes perceptíveis, às vezes desapercebidos.
Por outro lado, não se pode considerar cada livro como uma unidade isolada,
porque, segundo a própria teoria do pensamento, da escritura, da leitura e da realidade
última a que um livro se acopla, é impossível dissociar a produção bibliográfica do
que a realidade faz fluir nela, nem do que ela faz fluir na realidade na qual se insere.
Para esses autores, um livro é uma máquina engendrada por máquinas heterogêneas,
heteromorfas e heterólogas a ele mesmo, sendo que seu sentido depende de como
atravessa a outras (literárias ou não), ou seja, de como estão funcionando dentro dele,
e ele dentro daquelas.
Assim sendo, como seria viável separar radicalmente um tema bibliográfico
de outro, e dos Mundos com que se conectam, se todos são imanentes entre si?
Finalmente, não cabem separações, porque Deleuze e Guattari dizem que
todo texto ou discurso é pura performance, quer dizer, pura pragmática, que importa
apenas por como afeta e como é afetado. Para ilustrar, por exemplo, as relações entre
os conceitos filosóficos, as funções científicas, as variações artísticas, apelam à teoria
da Música. Cada um dos recursos desses saberes e trabalhos ressoam entre si, nos
espaços da Realidade. Essa ressonância pode ser ouvida em dimensões tais como a
Harmonia, a Desarmonia, a Consonância, a Dissonância, a Fuga, o Contraponto, o
Ritmo, etc... mas nunca desde uma taxonomia dos textos ou discursos estanques. Inútil
confundir essa concepção com alguma que postule deslizamentos de cadeias de
significantes, elos ordenados como anéis, que por sua vez são elos de anéis maiores,
etc. A escrita de Deleuze e Guattari, densa e difícil, é composta de fluxos, pode incluir
paradoxos e aporias, mas não metáforas ou metonímias, e menos ainda adivinhações,
hermetismos ou mistérios.
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Talvez este seja o único ponto dessa exposição no qual m aventurarei a dar
uma opinião pessoal, tão arriscada como segurament pouco compartilhada.
Tudo leva a supor que Gilles Deleuze foi um filósofo, professor de Filosofia e escritor
de livros de Filosofia.
O título mesmo dessa conferência qualifica Deleuze de "filósofo nômade",
aludindo a sua forma errante de viajar por todos os saberes, por itinerários
absolutamente insólitos e sem compromisso algum com Escolas ou Doutrinas.
Um de seus últimos livros, escrito junto com Guattari, leva por título "Que é
a Filosofia?" – e, em suas páginas, a Filosofia é definida com uma precisão e beleza
incomparáveis, como a prática de invenção de Conceitos.
Não obstante, em várias passagens de outras obras, Deleuz havia exposto,
com toda clareza, uma crítica às perguntas com as quais se costuma propor as
questões que se deseja resolver. Nesses parágrafos rechaçava que a fórmula – "que é?"
– fosse um bom enunciado para formular um problema.
Não é nada fácil explicar o porquê dessa impugnação, mas, simplificando
uma vez mais, quando se pergunta "que é?" se interroga acerca do Ser de um Ente, ou
seja, por sua Identidade ou sua Mesmidade – e não por seu Devir, por seu
funcionamento, por sua Diferença em Ato.
De um outro ângulo, quando Deleuze se refere ao pensamento, sustenta que
pensar exige a incessante criação, não apenas de novos conteúdos, nem sequer de
novas maneiras do mesmo Pensamento. Deleuze dá a entender que pensar implica,
nem mais nem menos, que criar novos pensares, ou seja, responder àquilo que "dá a
pensar", o que "faz pensar", com uma multiplicidade de Pensares singulares
diferentes, originais, inéditos.
É por isso que me atrevo a postular que Deleuze, em seu nomadismo, ou
bem acabou não sendo mais um filósofo, ou bem foi um criador de Pensares que, entre
outras coisas, redefiniu a Filosofia, ou bem foi o Demiurgo e o agente de um novo
pensar e um novo fazer que ele e Guattari inventaram... e que se chamou
esquizoanálise ou pragmática universal. Esses dois termos estão definidos
respectivamente, no primeiro e no segundo tomo de seu livro "Capitalismo e
Esquizofrenia". O que estou afirmando é que Deleuze e
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Guattari engendraram algo que é Filosofia mas, que também é Ciência e também é
Arte... e Política... e Saber Espontâneo... e muito mais que tudo isso preexistente.
Por que, então, chamá-los por nomes de "partida" e não pelos de "chegada"?
A rigor, não é nenhuma novidade que os cientistas de uma especialidade
tenham incursionado por pensamentos filosóficos, restritos ou não, às áreas de suas
disciplinas. Basta mencionar, rapidamente, os casos de Pitágoras, Euclides, Averroes,
Cassirer, Jaspers, Russel, Poincaré, Monod e outros tantos.
Tampouco é insólito que grandes literatos tenham sido filósofos (ou o
inverso), como são os exemplos paradigmáticos de Kierkgaard, Novalis ou Goethe.
Igual coisa ocorreu com grandes estadistas e políticos como Demóstenes,
Maquiavel, Hobbes, etc.
Mas meus conhecimentos de história da Filosofia, das ciências e das práticas
sociais em geral (bastante pobres), não me permitem evocar um caso igual ao de
Deleuze e Guattari.
Talvez o mais parecido a isso, que me ocorre, é a figura e a obra de Foucault,
não por casualidade amigo proeminente de Deleuze, de quem se tomou difícil dizer se
era filósofo, historiador, sociólogo, arquivista ou genealogista.
Agora, bem: por razões pedagógicas, o paradoxal é que, se me proponho
introduzir o que alcanço entender como as principais contribuições da Esquizoanálise,
não consigo fazê-lo de outra maneira que abordá-las segundo as clássicas ramificações
com as quais se costuma dividir a Filosofia.
Refiro-me à Ontologia (Teoria do Ser), à Gnoseologia (Teoria do Conhecer)
e à Axiologia (Teoria dos Valores).
Mas como resumir os aportes dos principais trinta livros de Deleuze de uma
maneira suportável para o público em geral?
Apesar de a palavra "impossível" ser uma das mais detestadas por Deleuze e
Guattari, este simples comentarista que lhes fala se sente a ponto de declarar esta
tarefa como irrealizável.
Peço antecipadamente desculpas pelas insuficiências, incorreções e
obscuridades do que se segue. De todo modo, quem não tenta, nada consegue.
43
Na Ontologia, creio que se pode dizer que o Pensar de Deleuze é a
culminação de duas célebres contraposições que percorrem a história da Filosofia
Ocidental.
A primeira é a que opõe o Ser como estático, eterno, invariável, imóvel e
idêntico, do qual só se pode predicar que É (cujo paradigma seria Parmênides), contra
o Ser como dinâmico, variante, móvel e em permanente transformação (cujo
paradigma seria Heráclito, que sustentava que o Ser Devém).
"Que é, e como o Ser Devém?" – que até a declaração da Morte de tais
perguntas ou do Fim da Metafísica... terá suas diversas formulações na Filosofia
Antiga, na Patrística, na Escolástica, no Romantismo e na Filosofia Moderna e
Contemporânea.
O que do ser passa por todos os avatares do Espiritualismo, do Idealismo
Objetivo e Subjetivo, assim como por todos os Realismos, Substancialismos,
Materialismos, Agnosticismos, etc.
O como transcorre pelos inumeráveis avatares da Linearidade, da
Circularidade e da Dialética.
Mas aí é onde entra a segunda oposição, que antagoniza os que afirmam que
o Ser (seja qual seja sua natureza) é diverso do Pensar (digamos, a Metafísica da
Substância e da Essência) contra os que, principalmente desde Descartes, identificam
o Ser com o Pensar (digamos, a Metafísica do Sujeito), seja qual seja o papel que se
atribua à linguagem nessa identidade ou distinção.
Ante essas duas famosas oposições da Ontologia (que, como se vê, são
indissociáveis da Gnoseologia), Deleuze postula:
1) o ser é devir.
2) o devir devém como repetição incessante, infinita e não totalizável da diferença.
3) a essência das diferenças consiste em puras intensidades.
4) por sua posição nos mundos, sua composição interna proteiforme e seus limites
externos difusos, o devir devém como multiplicidades.
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5) pela condição única e irrepetível das diferenças, intensidades, multiplicidades,
estas se expressam como singularidades, tais "proto-realidades" (por assim
chamá-las) são virtuais, pré-ontológicas e, assim sendo, são pré-físicas, pré-
biológicas, pré-sociais, pré-subjetivas, pré-semióticas, pré-reais, pré-possíveis e
pré-impossíveis, até serem atualizadas.
6) o surgimento por atualização das novidades ontólogicas absolutas, assim
entendidas, denomina-se individuações.
7) as individuações resultam do encontro entre complexos de intensidades,
multiplicidades e singularidades sintetizadas como corpos, e a emergência, a
partir desses encontros, de uma dimensão incorporal dos mesmos, denominada
incorporais-sentidos-acontecimentos.
8) as individuações não podem reduzir-se a seres ou entes individuais efetuados por
idéias, substâncias ou essências previamente diferenciáveis em espécies ou
gêneros.
9) as ações e paixões que se exercem ao acaso nos encontros entre corpos e
incorporais-sentidos-acontecimentos que deles surgem, assim como as
individuações resultantes, não se relacionam como causas e efeitos e não
obedecem a leis.
10) a realidade, assim integralmente entendida, compreende três superfícies
imanentes entre si. A primeira, a da produção, que é a que acabamos de
conceitualizar, composta por funcionamentos protagonizados pelas
singularidades intensivas que mencionamos (máquinas desejantes), dispostas
sobre o corpo sem órgãos (que é seu "suporte" e o grau zero das intensidades).
Nela se dá o processo puro de produção de produção. A segunda é a superfície de
registro-controle, em que se distribuem as entidades já identificadas, ordenadas,
determinadas em causas e efeitos, dotadas de funções específicas em que
predominam os processos de reprodução e de antiprodução. A terceira é a
superfície de consumação, em que culminam e/ou consomem a potências das
individuações de toda índole.
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Este imenso "fluxograma" transmutante possibilita a Deleuze e Guattari uma
extraordinária reformulação das definições e das relações dos continentes da Natureza,
da Sociedade, da Subjetividade, das Semióticas e do Parque Maquínico da Realidade,
assim como da História Universal, tanto quanto dos pensares que os pensam e das
práxis que os metamorfoseiam e os destroem.
Em absoluta coerência com essa "Ontologia", a Gnoseologia, a Ética e a
Estética de Deleuze têm como valor supremo a invenção tanto de Conceitos
Filosóficos, como de Funções Científicas, como de Variações Artísticas e de Saberes
Espontâneos. Tal inventiva tem como proposta "Metodológica" sui generis a Intuição,
o uso disjunto das Faculdades, o emprego das técnicas do Cut-up e da Colagem, e a
plena consideração do Acaso para o exercício de Pensares sem Fundamento, sem
Sistemática, sem Meta-Categorias transcendentes. Pensares inexatos, mas rigorosos,
de realidades pluripotenciais e imprevisíveis, cartografias sempre "princeps" de
transmigrações e conjuntos difusos.
Para concluir, a Ética proposta por Deleuze é uma política da avaliação, da
resolução e do ato sempre singulares, criados para cada situação, produtos da Vontade
de Potência e da desconstrução do Valores imperantes, a serviço da inovação
permanente, jamais subordinada a algum Imperativo Categórico Universal ou Eterno,
nem baseado em Princípios Transcendentes.
É nessa produção de pensares, na análise variável de seus "N" componentes
de Produção, Reprodução e Antiprodução, na montagem de dispositivos destinados a
propiciar a Revolução Inventiva dos Processos Produtivos e a neutralizar sua brusca
interrupção, ou sua aceleração ao infinito, dada pelos buracos negros da Reprodução e
da Antiprodução... nisso consiste a esquizoanálise ou pragmática universal.
Mas se por razões pedagógicas optei por essa introdução geral apoiada num
andaime filosófico clássico, como ousar sintetizar aportes mais circunscritos a temas
mais delimitados, que estão implicitamente incluídos no panorama anteriormente
exposto?
Porque a obra de Deleuze e Guattari importa também redefinições críticas e
reinvenções dos Universais mais caros ao saber do
46
Ocidente. Apenas como exemplo, mencionarei as categorias de Tempo e de Espaço,
de Todo e de Partes, de Razão e Desrazão, de Verdade e Falsidade, de Bem e de Mal,
de Potência e de Poder, de Vida e de Morte – e, em um sentido mais específico ainda,
de História, de Sociedade, de Estado, de Economia, de Antropologia, Geologia,
Etologia, de Lingüística-Semiótica, de Ciências Exatas, de Urbanismo, de Tecnologia,
de Literatura, de Cinematografia, Pintura, Escultura, Arquitetura... e assim por diante.
Não pude resistir, ao final desta, por sua vez, pobre e pretensiosa
simplificação, a comentar brevemente a quiçá mais célebre proposta de Deleuze e
Guattari, principalmente exposta em "O Anti-Édipo". Os autores propõem, como a
medula desse livro imortal: "introduzir o desejo na produção e a produção no
desejo". Sem pretender ignorar a larga trajetória desses dois conceitos gigantescos,
não se pode negar que, nas acepções centrais de sua definição, Deleuze e Guattari
partiram basicamente de Freud e Marx. Mas o fizeram para ampliar a idéia de Marx,
não a restringindo à geração de bens materiais indispensáveis para a vida, processo
ligado à força de trabalho, que o criador do Materialismo Histórico atribuía à
infraestrutura dos Modos de Produção. Deleuze e Guattari estenderam essa idéia à
Produção de Produção em "todos" os domínios da Realidade. Igualmente, tomaram a
idéia de Freud, de Libido e Desejo, não como sendo apenas a energia-força que anima
exclusivamente a economia, a dinâmica e a estrutura do Aparato Psíquico freudiano,
cujas características são, como é sabido, em última instância, repetitivas e
conservadoras.
Deleuze e Guattari recriaram e ampliaram esses conceitos-funções, assim
como do Inconsciente e do Id psicanalítico, assumindo plenamente as características
do chamado Processo Primário, dando-lhes uma essência produtivo-revolucionária e
tornando-os imanentes ao processo de produção de produção da realidade inteira.
Devo concluir essa modesta apresentação dizendo algumas poucas palavras
acerca de Gilles Deleuze como "homem".
Ao considerar a figura e a biografia de Deleuze como "ser humano",
encontramo-nos comuma rara ilustração da exigência de que um autor deveria ser uma
fiel expressão de suas idéias.
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Pessoa de uma imensa erudição, de uma formidável dedicação a seu
empreendimento, de uma incrível versatilidade, de uma enorme criatividade, de uma
abertura e de uma falta de preconceitos invejáveis, gozou em vida de um prestígio e de
um reconhecimento mundial, ainda que, a meu entender, ainda insuficientes, e que
levarão décadas para se consumar.
Aliado incondicional de todo movimento das singularidades produtivo-
revolucionárias, particularmente dos das minorias exploradas, dominadas e excluídas,
foi um amante da Liberdade, da Amizade e da Vida.
Há duas sentenças que o encantavam e que caracterizam ilustrativamente seu
pensar e sua existência. A primeira diz: "Os homens têm estado sempre preocupados
com as Idéias Justas, quando, em realidade, precisam procurar justo uma idéia" – a
que é capaz de propor e resolver cada problema.
A segunda diz: "Os grandes homens têm poucas coisas" – quer dizer, não se
interessam por acumular nem por consumir mercadorias.
Humildade, modéstia, generosidade, tenacidade, humor, alegria, coragem
essas foram as singularidades de Deleuze, mais que um "homem"... um devir
bondoso.
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INTRODUÇÃO À ESQUIZOANÁLISE*
Apontamento N° 1
49
A Esquizoanálise é um saber inventado por dois autores: Gilles Deleuze e Felix
Guattari.
Gilles Deleuze é considerado, na atualidade, um dos filósofos mais importantes
do século.
Felix Guattari, recentemente falecido, foi um brilhante psicanalista, analisado e
aluno de Jacques Lacan, um Trabalhador da Saúde Mental, criador da prática
denominada Análise Institucional e um militante político de esquerda, que pertenceu a
numerosos grupos políticos convencionais e os abandonou para fundar ou unir-se a
Movimentos Populares de cunhos os mais diversos.
Gilles Deleuze é autor de numerosos livros, nos quais aborda, de uma maneira
sempre original, a obra de vários filósofos clássicos, mas também escreveu sobre
cinema, política, estética, literatura, pintura, música, história, etc.
Felix Guattari escreveu sobre temas relacionados com a saúde mental, sobre
Psicanálise, sobre cinema, mas, fundamentalmente, sobre a concepção muito peculiar
que tinha sobre a política e a economia, a ecologia e o panorama geral do mundo
atual. Também foi jornalista e músico.
Esses dois autores escreveram juntos vários volumes, em que sua colaboração
adquiriu características muito peculiares, devido às quais é impossível saber, nesses
escritos, a qual dos dois pertence uma ou outra idéia.
Entre esses livros destacam-se: "O Anti-Édipo", "Mil Platôs", "Kafka: Uma
Literatura Menor" e "Que é a Filosofia?".
A obra desses autores é muito difícil de situar em um gênero dos já conhecidos.
Como se pode apreciar por sua trajetória intelectual, e pelos títulos de seus escritos,
trataram de quase todas as "especialidades" importantes, mas sempre de maneira
original, buscando interpenetrações dos campos e dos conhecimentos, mas sem
abandonar nunca um matiz
*Introdução à Esquizoanálise, apontamentos 1, 2 e 3 foram escritos especialmente para um seminário
realizado em Barcelona (1993).
político, que perpassa toda sua produção. A rigor, de acordo com uma terminologia,
para elesjá obsoleta, sua obra poderia ser classiticada como uma "Concepção de
Mundo", mas várias conccitualizações que eles mesmos apartaram, de crítica aos
50
fundamentos desse tipo de denominação, fazem-na incorreta e insuficiente para dar
conta desse monumental trabalho. Desde logo, dentro da lista de textos, podem-se
encontrar alguns que pertencem predominantemente a um tema mais que a outros,
mas sempre haverá uma característica na abordagem que os torna insólitos e não
enquadráveis.
O encontro desses dois autores data, prevalentemente, do famoso maio de
1968, na França. Em certo sentido se pode dizer que suas preocupações e interesses
têm muito a ver com essa revolta, que aspirava a levar, como os lemas da época
sustentavam, "A Imaginação ao Poder", ou que postulavam "Sejamos realistas,
peçamos o impossível". Essa orientação política, de diversas maneiras, segundo seus
entusiastas, rechaçava tanto os vícios da Democracia Burguesa Capitalista como os da
Ditadura do Proletariado vigentes, estes últimos, nos ensaios de transição ao
Socialismo.
Em realidade, pode-se afirmar que a orientação política que mais influenciou
esses autores, apesar de não ser uma referência demasiado explícita em seus escritos, é
o Anarquismo, como aconteceu com uma série de investigadores que integram o que
se denominou Movimento Instituinte Internacional.
Entre os autores mais afins a Deleuze e Guattari, devemos mencionar, em
primeiro lugar, Espinoza, Nietzsche, Bergson e Marx, assim como, entre os
contemporâneos, Foucault. Mas a lista de seus favoritos é interminável, e inclui, em
lugares privilegiados, uma série de artistas que reúnem em si a condição de loucos e
de gênios. O exemplo mais característico é Artaud. Também é notável sua preferência
por certos novelistas anglo-saxônicos, entre eles D.H.Lawrence, Lewis Carrol e Henry
Miller.
O texto mais conhecido e impactante de Deleuze e Guattari é, sem dúvida,
"O Anti-Édipo", publicado em 1972.
Trata-se de um texto de difícil leitura, não porque o estilo seja
particularmente retorcido, senão devido à soma de conhecimentos que é preciso
dominar para entendê-la, posto que o conteúdo que se refere a todos eles é estonteante.
Em um sentido um tanto melodramático, pode
se afirmar que "trata de tudo" . Verdadeiramente, é uma grande reformulação das
relações existentes entre a natureza, a cultura, a sociedade, a economia, a política, a
linguagem, as relações de parentesco, os ritos, os mitos, o psiquismo, a religião, a
51
família, o estado, a história, a tecnologia maquínica, o saber, a verdade, os valores em
geral, a sexualidade, etc.
O título parece centrar-se em uma crítica da concepção psicanalítica
edipiana do Inconsciente, e por certo é um questionamento profundíssimo dos acertos
e dos desacertos da Psicanálise, mas, concretamente, essa reflexão está incluída entre
muilas outras que abarcam todos os campos a que acabo de me referir.
Impossível sintetizar o que os autores pretendem dizer nessa "Ópera Magna",
mas, arriscando-me a ser elementar e esquemático, talvez possa adiantar que
postulam:
- Que todos esses domínios do saber e da realidade, modernamente separados
pela modalidade científica do conhecimen,to, são imanentes (quer dizer, intrínsecos,
consubstanciais entre si).
- Que a Realidade, tal como a conhecemos, configurando esse conjunto
heterogêneo, está composta por três superfícies, que, a rigor, são uma inerente à
outra. A saber, a Superfície de Produção, a Superfície de Registro-Controle e a
Superfície de Consumação. A Superfície de Produção é aquela responsável pela
geração de tudo quanto existe, está formada por elementos constituídos por matérias
ainda não formadas e por energias ainda não orientadas como forças. Esses
elementos ainda não apresentam qualidade nem quantidade, mas se caracterizam
por serem intensidades puras. Cada uma dessas intensidades (nas quais é difícil
pensar porque não estamos acostumados a conceber algo que ainda não tem nem
tempo nem espaço convencionais, nem qualidade nem quantidades diferenciais)
consiste em uma singularidade absolutamente diferente de todas as outras, e o
dizer "todas" é metafórico, porque esse "todo" é infinito, não pode totalizar-se.
Outra abordagem desses elementos os denomina multiplicidades (mas como
substantivos, não como adjetivos). habitualmente se fala de "o um e o múltiplo"...
fórmula essa na qual o múltiplo não
é senão a multiplicação do que é um, ou seja, muitos do mesmo. Multiplicidade se
refere a unidades, cada uma das quais é absolutamente diferente das outras: não
há nenhum um que sirva de base para multiplicar-se nos múltiplos que são suas
52
réplicas.
A rigor, deve-se dizer que esses elementos constitutivos da Superfície de
Produção não são, quer dizer, não têm uma essência, mas consistem em um puro
devir, estão mudando permanentemente. Se se pode falar de uma "natureza" desses
elementos, caberia dizer que se compõem de Desejo e de Produção. Desejo, está
tomado no sentido dado por Freud ao Processo Primário no Inconsciente, em que a
energia "flui livremente pelas representações", onde não há tempo, não há espaços
clássicos e, sobretudo, onde só há positividades, não há noção de ausência, de falta, de
morte, de castração, etc.
Produção, está dito no sentido de Marx, ou seja, um processo pelo qual uma
matéria prima, trabalhada por meios específicos animados por uma força de trabalho,
gera um produto que não preexistia na matéria prima da qual se originou. Deleuze e
Guattari acrescentam a essa definição a afirmação de que a Produção "se produz a si
mesma", seus elementos se produzem ao mesmo tempo em que funcionam, e que,
no caso da Superfície de Produção, fazem-no pelo encontro casual das intensidades,
que são caóticas e imprevisíveis. As duas entidades que integram a Superfície de
Produção são o corpo sem órgãos e as máquinas desejantes. Para não complicar as
coisas, direi a respeito que o Corpo sem Órgãos é uma espécie de rede sobre a qual se
dispõem ao acaso as intensidades... e as intensidades podem ser pensadas como
máquinas inespecíficas e indeterminadas que se conectam de maneira binária em todas
as direções. As máquinas desejantes se dividem em máquinas fonte e máquinas
órgão. Uma máquina fonte gera um fluxo energético, e uma máquina órgão o
corta e o modula. Elas se conectam assim em todas as direções, e esse processo
incoercível é o que gera a produção de tudo quanto existe. Outra característica das
máquinas desejantes é serem infinitamente pequenas, por isso se denominam
moleculares, e elas permanecem como tais no seio das entidades macro, que se
chamam molares, e que são as que estamos
acostumados a reconhecer, seja qual seja a materialidade de que se trate, por exemplo:
um homem, uma planta, uma montanha, um país, uma máquina mecânica, uma
53
instituição, etc.
A Superfície de Registro é a organização que adquire a Superfície de
Produção quando entra na escala das entidades molares. A função da Superfície de
Registro-Controle é, como seu nome antecipa, a de selecionar, aceitar e capturar, ou
bem reprimir e destruir a incoercível geração de novidades da Superfície de Produção
Desejante. A Superfície de Registro está constituída por todas as entidades destinadas
a diferenciar, em um sentido convencional, e a utilizar, tudo o que se produz, para
colocá-lo a serviço da reprodução, da natureza e da sociedade, tal como estão
estruturadas, ou seja, o que tende à reprodução do mesmo e à manutenção do status
quo. A Superfície de Registro e de Controle só aceita aquilo que pode incorporar sem
se transformar radicalmente. Um dos aspectos mais importantes da Superfície de
Controle é o denominado socius, ou seja, a forma que tem adquirido a Sociedade
ordenada em cada civilização, e que é tanto ameaçada quanto nutrida, naquilo
que precisa para evoluir, pelas novidades da superfície de produção.
Deleuze e Guattari sustentam que a Superfície de Produção tem um
funcionamento que pode ser ilustrado pelo pensamento Esquizofrênico, mas não o
dizem referindo-se à Esquizofrenia entendida como enfermidade mental, senão à
Esquizofrenia como a característica essencial desse processo de produção caótico que
caracteriza a Superfície de Produção, e que tem algo a ver com a "loucura".
Entretanto, a Superfície de Registro tem as peculiaridades que costumamos
ver nas Neuroses, nas Perversões e também na Psicose Paranóica. Desde logo essas
denominações não se referem às entidades clínicas, mas à lógica de funcionamento
que as caracteriza, que aqui se pode aplicar, por exemplo, ao Estado, que é a
Instituição paranóica por excelência, por suas peculiaridades prevalentemente
centralizadoras. repressivas e antiprodutivas.
A Superfície de Consumação é aquela em que o produzido, tanto o admitido
pela Superfície de Registro-Controle, como aquilo da Superfície de Produção que
escapa ao controle e se manifesta como
novidade radical, invenção e revolução... são realizados e/ou consumidos, quer dizer,
usados e gozados pelos agentes históricos.
Toda essa introdução, pelo menos no momento, nos servirá apenas para
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BAREMBLITT, Gregorio. Introdução à Esquizoanálise.pdf

  • 1. Introdução à Esquizoanálise Gregório Baremblitt Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Félix Guattari, 2003, 138p 2.edição Baremblitt, Gregório [2003]. Introdução à Esquizoanálise 2.ed, Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Félix Guattari, 2003, 138p
  • 2. 8 Apresentação – 2.a Edição É com gratidão e satisfação que o Instituto Felix Guattari de Belo Horizonte apresenta a segunda edição do "Introdução à Esquizoanálise" de Gregorio F. Baremblitt. Os exemplares da primeira edição se esgotaram com uma rapidez que não esperávamos, e os leitores, especialmente alunos universitários, os de nossos cursos e outros interessados na obra de Deleuze e Guattari nos solicitaram uma ampliação da mesma. Essa estimulante demanda fez com que a presente edição seja de um nÚmero limitado de exemplares e possa ser considerada como preliminar de uma terceira, muito mais extensa, que está no prelo. O autor considerou necessário acrescentar a essa segunda edição um apêndice no qual se trata de temas, preferencialmente incluídos em "Mil Platôs", que foram pouco desenvolvidos na primeira. Fazemos presente aqui nosso agradecimento ao staff do Instituto Felix Guattari pela eficiente e generosa colaboração nas tarefas de tradução, correção e montagem do presente texto, assim como por valiosas sugestões recebidas para o conteÚdo do mesmo: Oalva A . Lima, Érika Rianni, Irene Ferreira do A . Oliveira, Luciana Tonelli, Neuza Beatriz H. G. Pereira e Patrícia Ayer de Noronha.
  • 3. 9 In Memoriam de Felix Guattari* Este evento é especialmente emocionante para mim por vános motivos. Ele é emocionante no sentido das emoções entusiásticas, porque as idéias de Guattari têm sido fundamentais em minha formação e, como pretendo explicar, também em minha vida cotidiana, pessoal. Mas também é um momento duplamente triste porque estarnos reunidos para prestar homenagem a uma figura que faleceu em uma idade e com uma vitalidade que, fazia-nos pensar, poderíamos aguardar muito ainda de sua capacidade produtiva. Por outro lado, uma grande amiga nossa, Sonízia Maria de Castro Máximo, que foi a gestora de todo esse encontro, também faleceu, de forma ãbsolutamente inesperada, vítima de um acidente de trânsito: Sendo assim, hoje estou aqui para falar a vocês no marco da perda de dois grandes amigos, e tentaremos transformar esta situação de luto em, pelo menos, um encontro produtivo, que nos permita superar essa tristeza. Felix Guattari, em uma vida relativamente breve, conseguiu desenvolver tantas atividades, produzir tanto, criar tanto, que falar acerca desta vida, em um tempo curto, é uma tarefa quase impossível. Mas faço questão de falar de todas e de cada uma das coisas que ele fez, embora apenas mencionando-as, enumerando-as. Eu acho que, entre todos os méritos que Guattari tem ou teve, o fundamental é o de fazer ver ao mundo, este mundo um tanto cético, um tanto decepcionado no qual nós vivemos, este mundo utilitarista, pragmatista (no mal sentido da palavra), este mundo, em muitos sentidos, medíocre e cínico, que é possível viver de uma maneira produtiva, de uma maneira brilhante, de uma maneira heróica. Não dentro das modalidades do heroísmo revolucionário clássico, mas abrindo a perspectiva de um novo tipo de heroísmo... um heroísmo mais amoroso, mais moderado, como Guattari mesmo o chamou, em algum livro, "uma nova suavidade". Então, parece-me importante detalhar tudo o que Guattari fez, porque uma das queixas que eu formulo, e que sei que muitas pessoas formulam em nosso meio, é de que "não têm tempo" para fazer grandes coisas. É interessante poder Conferência proferida por Gregorio F. Barcmblitt na Aliança Francesa em 26/1 0/92, como homenagem póstuma a Felix Guattari.
  • 4. 10 exaltar, poder examinar a vida de uma pessoa que tinha tanto ou menos . tempo que nós. E, sem dúvida, foi capaz de fazer uma quantidade de coisas que deixaram o mundo diferente depois de ele ter passado por onde passou. Guattari faleceu aos sessenta e dois anos de idade, na noite de 28 de agosto passado, no hospital onde ele trabalhava muitos anos, desempenhando tarefas clínicas. Ele nasceu em trinta de abril de mil novecentos e trinta, em Colombes, França. Sua escolaridade foi muito irregular e difícil. Estudou farmácia e filosofia, mas não conseguiu formar-se em nenhum desses dois cursos. Na Segunda Guerra Mundial participou de um movimento destinado a construir albergues juvenis, moradias para os refugiados de guelTa. Dentro de suas tarefas políticas, ele teve contato com muitas figuras intelectuais da França, e se encontrou com duas especialmente importantes. Uma, a do trabalhador em saúde mental de orientação anarquista e libertária, François Tosquelles, que tinha imigrado da Catalunha, no tempo da guerra civil. E com Jean Oury, um grande psiquiatra francês. Por outro lado, Guattari tinha descoberto as idéias de outro grande psiquiatra, Franz Fannon, um psiquiatra argelino, que posteriormente chegou a ser Ministro da Saúde Pública da Argélia, autor daquele grande livro "Os Condenados da Terra". Jean Oury, Guattari e outros acharam um castelo em ruínas e, fazendo uma reforma do mesmo, construíram uma célebre clínica psicoterapêutica e psiquiátrica denominada "La Borde", que se transformou em um verdadeiro campo experimental para uma série de propostas psiquiátricas modernas, alternativas e até revolucionárias, que continua existindo e sendo uma fonte de inspiração para todos os movimentos alternativos psiquiátricos do mundo. Guattari militou na Juventude Comunista, mas foi expulso por sua oposição aos acontecimentos de Budapeste e à política do Partido Comunista na Argélia. Participou na organização de ajuda à "Frente de Libertação Nacional Argelina". Escreveu para um periódico comunista relacionado com a Liga Comunista e com as organizações marxistas e anarquistas. Interessou-se p-ela Psicanálise e se analisou com o professor Jacques Lacan durante sete anos. Pertenceu à Escola Freudiana de Paris, que, como veremos mais para a frente, teve vários dissidentes, mas nenhum destes chegou a questionar a razão da existência dessa escola,
  • 5. 11 ou seja, a Psicanálise em si mesma. Guattari fundou a Federação de Grupos de Estudo e Pesquisa Institucional, ou seja, uma enorme corrente que reunia experts de diferentes disciplinas, antropólogos, sociólogos, economistas, etc., que se ocupavam em estudar as instituições. Guattari fundou também a revista "Recherche", que teve um papel importantíssimo na, divulgação das idéias institucionalistas. Em 1966, organizou um jornal e um grande agrupamento que se denominou "Oposição de Esquerda". Participou também da redação das novas teses da "Oposição de Esquerda", propondo uma ética militante que reunia os descontentes de todos os partidos políticos de esquerda, particularmente da Liga Trotskista e do Partido Comunista Francês. Participou na operação de ajuda ao povo do Vietnã na guerra contra os Estados Unidos. Em 1967 foi um dos fundadores da Organização de Solidariedade com a Revolução Latino-americana, organização esta do intelectual Régis Debray, que estava preso na Bolívia. Em maio de 1968, Guattari associou-se a vários setores protagonistas desse impQrtantíssimo fato histórico e participou, pessoalmente, de uma das manobras táticas que foi a ocupação do teatro Odeon. Fundou o CEPFI – Centro de Estudos e Pesquisas de Formação Institucional, centro esse que publicou obras tais como "Genealogia dos Equipamentos Coletivos", "O ideal militante", etc. Dentre suas publicações na Revista "Recherche", uma em particular se referia aos movimentos homossexuais, o que motivou sua prisão, tendo sido anistiado por Giscard d'Estaign. A partir de 1970, militou ativamente pela implantação da rede de rádios livres, a primeira das quais se chamou "Alice". Fundou o CINEL – Comitê de Iniciativa pelos Novos Espaços da Liberdade, organização que defendeu os extremistas autônomos italianos e que lutou pela libertação do intelectual italiano Tony Neri, preso ná Itália, por sua. vinculação com as Brigade Rose. Em 1981 foi um dos artífices da candidatura do célebre cômico francês Coluche. Foi membro ativíssimo de uma grande organização ecológica chamada "Geração Ecológica" e, finalmente, fundador da Rede de Alternativa Psiquiátrica, um Movimento com propostas psiquiátricas críticas que se estendeu pelo mundo inteiro. Bem, tudo isto fala acerca da militância ativa de Guattari no campo, não apenas da cultura, mas dos fatos políticos concretos, os principais que agitaram a História durante o período de sua juventude e de sua maturidade. Por outro lado, Guattari escreveu os seguintes livros:
  • 6. 12 "Psicanálise e Transversalidade", que pertence ao período em que ainda era psicanalista; "A Revolução Molecular", um belo livro que resume suas propostas de militância política; "O Inconsciente Maquínico", onde expõe a reformulação que fez da idéia do inconsciente freudiano; posteriormente escreveu com Gilles Deleuze, o grande filósofo e seu amigo pessoal, "O Anti-Édipo", um livro que foi expressivo do movimento político e cultural de maio de 68. Fez um estudo com Deleuze sobre o escritor Kafka, a quem eles consideram uma das maiores expressões de um gênero que seria "uma literatura menor"; depois, escreveu, também com Deleuze, "Mil Platôs", que é algo assim como o segundo tomo de "O Anti-Édipo". MaIs recentemente ele publicou um livro chamado "Caosmose", e imediatamente antes deste, um belo livro sobre Ecologia, chamado "As Três Ecologias", e depois, com Gilles Deleuze, "Que é Filosofia?". Isso sem mencionar inúmeros artigos publicados em todos estes órgãos que acabamos de expor. Por outra parte, publicou, em português, em colaboração com S. Rolnick,o livro "Cartografias do Desejo", e, na mesma língua, foi editado um pequeno volume de suas conversas com Lula. Então, encontramo-nos aqui evocando a figura de um intelectual, praticamente autodidata, que não chegou a cumprir a burocracia de nenhum título universitário, que produziu uma quantidade assombrosa de textos, que conseguiu relacionar-se de forma produtiva com as figuras mais importantes das últimas duas ou três décadas, que militou política e ativamente, tanto nas organizações tradicionais, como na maioria das alternativas importantes deste período, e, além do mais, foi criador de uma série de movimentos, fundador de uma série de dispositivos políticos que tiveram um papel importantíssimo nas tentativas de transformação do que é o mundo moderno e pós-moderno. Eu acho que uma figura deste tipo, desta magnitude, desta transcendência, estamos acostumados a descrever e a encontrar antes de 1920, de 1930. Estas são figuras do porte de um Trotsky, de um Marx, de uma Rosa de Luxemburgo, ou um Gramsci, que, desde a Segunda Guerra Mundial, pareciam ter-se extinguido. Como também parece ter-se extinguido, de nossas vidas cotidianas, todo o impulso – firme, ambicioso, entusiasta para a construção de uma existência decididamente mais digna. Por isso, creio que ao se falar neste homem, Guattari, não se trata de destacar um ideal, porque a obra de Guattari está toda encaminhada a demonstrar que os ideais não
  • 7. 13 existem, que os ideais são "idéias puras", que ninguém tem por que reproduzir ou copiar. Por este motivo, não diríamos que Guattari é um ideal, não diríamos que Guattari é um modelo, mas sim, diríamos que Guattari é um exemplo de como se pode viver de forma que a vida seja a realização de um bem, de uma forma de criação e de inspiração, que a vida pós-moderna parece ter proscrito completamente de nosso cotidiano. Bem, se só fazer este detalhamento da militância política, da produção bibliográfica, da atividade científico-societária de Guattari já toma tanto tempo, e espero ter dado pelo menos uma imagem panorâmica, como é que nós podemos sintetizar essa fulgurante produção teórica de Guattari, difícil de dissociar da sua produção unida a Gilles Deleuze? Essa união produtiva com Gilles Deleuze já configura uma espécie de milagre intelectual que é absolutamente insólito na História da Cultura. Um comentarista francês, um jornalista, afirma que essa obra é uma "filosofia a duas cabeças", fórmula que não me parece afortunada. Para começar, creio que a obra de Deleuze e Guattari não é uma filosofia. E, por outro lado, justamente o fantástico, o assombroso, é que essas obras escritas pelos dois já não são de "duas cabeças". Para quem estuda cuidadosamente "O Anti-Édipo", "Mil Platôs", "Que é a Filosofia?" (este, o último livro que publicaram), é impossível saber de quem são as idéias, se de um ou de outro. Então, é muito mais que criar uma filosofia a duas cabeças, é criar um conhecimento, um saber, que faz os dois, não devir um, mas devir muitos. É a transformação de um dueto em um enorme coral, em que não apenas não se sabe se isto foi escrito por Deleuze e aquilo por Guattari, mas também que neste coral cantam as vozes mais revoluciomirias, mais críticas, mais escolhidas de nosso século. Como se poderia qualificar essa obra? É muito complexo, porque essa obra inclui as ciências formais, a matemática, a geometria, a lógica; contém as ciências naturais, a física, a química, a biologia; contém as ciências humanas, a antropologia, a história, a economia política, a semiótica, a psicanálise, e contém também muitos elementos da literatura, da pintura, da música; contém as melhores idéias de toda a tradição filosófica do ocidente, preferencialmente um ramo da filosofia representada fundamentalmente pelas idéias dos estóicos, de Espinoza, de Nietzsche, de Bergson, de Hume. E até contém alguns momentos do discurso cotidiano, do saber popular, do senso comum. Então – para
  • 8. 14 quem pretende expô-lo em meia hora –, o que é isto? Se nós a chamamos de filosofia, é um pouco injusto e limitativo, a não ser que a comparemos com a ética de Espinoza, que é uma filosofia declaradamente feita para se aprender a viver de acordo com ela. É uma disciplina? Não é. Porque serve para ser aplicada em qualquer lugar, por qualquer pessoa, e com qualquer motivo, sempre que este motivo inclua uma proposta de produção, de criação, de invenção, de felicidade, de transformação do mundo. Então, o que diremos? Que é uma proposta política? Claro que é uma proposta política. Fundamentalmente micropolítica. Mas é uma proposta política que pode ser utilizada por um indivíduo, ou por um grupo, por um movimento, em um partido, em uma igreja, em um jogo de futebol, em qualquer lugar. Então, não é um discurso propriamente político, mas sim, é politicamente utilizável em qualquer de suas dimensões. O que resta para dizer é que essas idéias são, segundo a velha fórmula, uma concepção do mundo, uma weltanschauung, como diziam os alemães. Eu não gostaria de dizer isso na presença de algum guattariano ou deleuziano assumido, porque seguramente não estaria de acordo. Uma concepção do mundo é uma série de idéias, de crenças, de convicções acerca de como o mundo é e de como devemos nos comportar nele. E esta obra de Deleuze e Guattari, embora esteja feita com representações, pois está escrita com palavras, não é uma ideologia. Não é um pensamento discursivo, mas segundo a própria definição deles, é uma máquina fundamentalmente energética, destinada a vibrar e a fazer vibrar aqueles que dela se aproximam e a engajá-los em um movimento produtivo, que não passa exatamente pelas idéias nem pelas palavras, passa pelos afetos. Por afetar e ser afetado. Passa pela capacidade de vibrar em consonância, passa pela capacidade de despertar o entusiasmo, a vontade de viver, a vontade de criar. E é curioso que isto que eu acabei de dizer, costuma-se dizer, por exemplo, sobre os discursos religiosos ou sobre os discursos ideológicos. E não se pode dizer que a obra de Deleuze e Guattari não tenha, em certo sentido, uma vocação religiosa. Mas religiosa na melhor definição de re- ligare, de unir novamente os homens, sobretudo os homens que a merecem, ou as partes dos homens que são capazes de unir-se para gerar produtos novos e dignos. Esse discurso, como vocês seguramente poderão apreciar, se são leitores de Deleuze e Guattari, é um discurso incrivelmente erudito, de um rigor e de uma seriedade, de uma literalidade nas citações, que
  • 9. 15 chega a ser um tanto desesperador. Porque a gente não consegue saber como é que dois intelectuais conseguem ler tantas coisas, entendê-las tão bem e extrair delas estritamente aquela parte que eles podem integrar no discurso próprio, com essa vocação revolucionária e produtiva. Mas toda essa erudição, toda essa severa lógica, toda essa ortodoxia no discurso acadêmico não é o mais importante dessa obra. O mais importante é aquilo que fervilha por baixo, sob o discurso. É essa capacidade de capturar o leitor e de ir integrando-o a um mundo que, aparentemente mágico, um mundo aparentemente de ficção, é infinitamente mais real que os discursos acadêmicos. que os discursos filosóficos especulativos, que as prédicas religiosas, ou que as promessas políticas. É importante destacar essas características dos textos e dos discursos de Deleuze e Guattari, porque eles estão sempre integrados a um tipo particular de militância. Eles sempre têm um "pé" numa ação concreta que se exprime e se inspira nesses escritos, dentro da famosa idéia de práxis, ultimamente tão esquecida. A proposta de uma micropolítica é a ação política que acompanha a proposta analítica desses autores, que se chama "Esquizoanálise". A Esquizoanálise é uma leitura do mundo, praticamente de "tudo" o que acontece no mundo, como diz Guattari em seu livro sobre as ecologias, sendo uma espécie de Ecosofia, uma "episteme" que compreende um saber sobre a natureza, um saber sobre a indústria, um saber sobre a sociedade e um saber acerca da mente. Mas um saber que tem por objetivo a vida, no seu sentido mais amplo: o incremento, o crescimento, a diversificação, a potenciação da vida. É importante saber que essa micropol ítica não está instrumentada por partidos políticos, embora não seja proibido exercê-la dentro deles. Não toma, como lugar privilegiado de atuação, a academia, com suas produções ortodoxas e rígidas. Não propõe a formação de uma igreja, mais ou menos despótica. Não necessita atuar dentro dos âmbitos do Estado, apesar de não se negar a fazê-lo. Não precisa dos partidos políticos tradicionais, nem dos sindicatos, especialmente se eles são corporativos. Não define um campo de esquerda mais ou menos global, que seria melhor do que o de direita. A proposta é a de uma polític que se pode fazer em todo e qualquer pequeno, médio ou grande âmbito em que transcorre a vida humana, a política dos movimentos singulares, dos movimentos que exprimem idiossincrasias, a política feminista, a política dos movimentos homossexuais, a política das minorias raciais, a política
  • 10. 16 dos imigrantes, a política dos sem-terra, a política de todos aqueles que sofrem a exploração, a dominação, a mistificação do mundo atual, mas que não pertencem necessariamente aos organismos, às entidades molares respeitadas e consagradas pelo mundo em que vi vemos, e que são responsáveis pelo mundo estar como está. É uma política baseada em uma proposta básica que diz que a essência da realidade é a imanência do desejo e da produção. O desejo, aquele descobrimento de Freud, o desejo inconsciente, dito no sentido não apenas de um espaço do psiquismo, de uma força do psiquismo, mas dito no sentido da essência, da substância de tudo aquilo que existe. Ele tem, dizem Deleuze e Guattari, o mesmo processo de funcionamento que Freud descreve no inconsciente psíquico, particularmente em seu processo primário. E, por outro lado, esse mesmo processo é um processo substancialmente produtivo, é a permanente criação do diferente, a geração constante do novo. Então, quando Deleuze e Guattari dizem que o processo último da realidade é produtivo e desejante, eles introduzem a idéia de desejo na materialidade produtiva, e a idéia de produção neste processo criativo que é o desejo, e que habitualmente se atribui ou apenas ao campo do psíquico ou às esferas mais ou menos ultraterrenas do metafísico. Esta proposta da substância da realidade como repetição do diferente, do diferente radical, esta, chamemo-la assim, ontologia de Deleuze e Guattari, é o pilar de sua proposta ética. Porque é uma afirmação acerca da realidade, que diz que esta, em si mesma, é uma fonte inesgotável de criação, é uma potência incoercível de transformação. Não existe, na realidade, nenhuma força definitória que equivalha a essa famosa "pulsão de morte" freudiana ou a qualquer processo entrópico como os físicos o descrevem nos sistemas fechados. É uma ontologia, uma teoria do devir que, desde a base (se isto se pode chamar "base"), propõe um tipo de vida que confie nisto, que acredite que somos portadores de uma energia criativa que nos faz formar parte de um mundo que é simultaneamente físico, natural, humano e maquínico. As separações que se estabelecem neste mundo, e as hierarquias que se postulam nessas relações são produto de uma concepção autoritária do universo, que sempre tem que ter algum setor da realidade que seja mais respeitáv.el, mais temível, mais poderoso que o outro. Deleuze e Guattari dizem que em tudo que existe há uma imanência que faz com que cada um dos campos seja igualmente importante.
  • 11. 17 Não descrevem a natureza como aquele campo da realidade que existe para ser dominado pelo homem, não descrevem as máquinas como criações do homem que devem servi-lo, descrevem tudo isso em um nível de interpenetração, de igualdade hierárquica, em que cada segmento desse real deve combinar-se com o outro, procurando o crescimento harmônico de todos esses setores ao mesmo tempo. Por outro lado, atribuem a esta conexão de potências uma natureza produtiva, que não precisa fazer-nos acreditar que somos resultado de uma criação falida de alguma entidade sobrenatural ou transcendente. E também não precisa fazer-nos acreditar que somos um produto monstruoso de alguma natureza que funciona exclusivamente guiada por leis mais ou menos fascistas. Este saber e este afazer que estas duas figuras têm criado e promovido através de suas vidas militantes e de suas produções teóricas, são feitos por um procedimento epistemológico, digamos assim, que os autores assumem valente e quase humoristicamente. Eles postulam o procedimento do "roubo", eles "roubam", eles pegam de cada teoria, de cada práxis, aquela parte que lhes parece mais inspirada, aquela engrenagem que eles poderão colocar no interior de sua máquina teórica e militante, sem interessar-se por completo pelo rótulo geral que possa ter essa disciplina da qual pinçaram e "roubaram" um conceito. Assim como para eles não existe hierarquia entre o mundo natural, o mundo subjetivo e o mundo maquínico e social, assim também não existem discursos consagrados, textos adoráveis e discursos insignificantes. Um dos conceitos essenciais desta teoria, o conceito de "Corpo sem Órgãos", foi tomado simultaneamente de um poema de um literato louco, Antonin Artaud, de um mito dos Índios Dógons e de um mito das religiões orientais que se chama "o Ovo Cósmico". Acontece que esta categoria, "Corpo sem Órgãos", criada tomando elementos de um discurso "psicótico", de um mito indígena e de um ideologema de uma religião oriental, é um conceito que acaba dizendo uma coisa muitíssimo parecida com o que diz a física quântica atual, com o que diz a teoria dos fractais, a teoria das catástrofes de René Thom, o que tem de mais evoluído na físico-química atual. Estas coincidem. Por outro lado, o discurso do texto de Deleuze e Guattari é feito da mesma maneira utilizada pelos artistas primitivos para fazerem seus quadros e obras de
  • 12. 18 arte cotidianas. Eles se declaram bricoleurs, juntadores de idéias, sobretudo juntadores de elementos cuja característica em comum é não ter nada em comum. Isto, à primeira vista, poderia fazer supor que encontraremos uma salada de palavras. E não é uma salada de palavras o que se encontra nestes textos, mas um discurso fulgurante, como eu dizia, revelador, crítico e, sobretudo, incrivelmente inventivo. Então, esses ladrões bricoleurs fazem depender essa criatividade justamente da sua irreverência. Porque, apesar de fazerem citações com uma precisão assombrosa e com um cuidado bibliográfico surpreendente, eles conseguem fazer com que aquilo que roubaram diga alguma coisa nova, de tal forma que, se o autor que foi vítima do roubo chegasse a lê-lo, não se reconheceria nele. Há uma passagem no livro de Deleuze que se chama "Diálogos", onde o autor define seu método de criação teórica de uma maneira metafórica ou alegórica, dizendo que se trata de aproximar-se sigilosamente de um autor, pelas costas, e fazer-lhe um filho monstruoso, onde ele não se reconheceria. Só que monstruoso, neste caso, não quer dizer teratológico, não quer dizer ridículo, absurdo, disforme. Quer dizer maravilhoso, quer dizer absolutamente impensável para o próprio autor deste conceito. Sem poder ir mais além nesta introdução e supondo que haverá algum período destinado ao diálogo entre este amável público e eu gostaria de concluir referindo-me a uma das tantas relações que estes textos de Deleuze e Guattari estabelecem, e que é interessante: a relação com a Psicanálise. Eu a escolho quase que por um vício profissional, porque eu sou psicanalista, e a escolho também por ter uma certa suspeita da presença de vários especialistas na matéria, aqui, no público. Mas poderia falar também da relação crítica da Esquizoanálise com o Materialismo Histórico. Ou poderia falar da relação crítica da Esquizoanálise com a Lingüística estruturalista, com a Antropologia estruturalista, ou com as concepções capitalistas da Economia. Mas vou escolher provisoriamente a relação com a Psicanálise. Os textos de Deleuze e Guattari, a meu modo de ver, pelo menos para a minha leitura, vêm tendo uma modificação no percurso do tempo, com relação à Psicanálise. Quando, por exemplo, Guattari escreve "Psicanálise e Transversalidade", é um analisado de Lacan, e assina embaixo da teoria do significante, da concepção estrutural do psiquismo,
  • 13. 19 etc. Mas manifesta uma franca preocupação política e social, que, como se sabe, estava ausente na obra de Lacan e na da maioria de seus continuadores. Já quando Guattari escreve, junto com Deleuze, "O Anti-Édipo", faz neste livro uma crítica radical à Psicanálise, que se pode resumir da seguinte maneira: a Psicanálise seria a ciência que dá conta de um modo de produção do sujeito psíquico. E este modo de produção do sujeito psíquico é, sem dúvida, o modo de produção edipiano. É no seio da estrutura edipiana, que todos os psicanalistas consideram única, eterna e universal, que se gera "o sujeito psíquico". Toda outra forma é considerada incompleta e aberrante. Deleuze e Guattari, no que dizem acerca do sujeito psíquico, afirmam que não existe um modo de produção deste que seja universal e eterno. Mas sim, que existe um modo historicamente dominante de produção do sujeito psíquico que, obviamente, é o edipiano. E se pode dizer que o modo edipiano de produção do psiquismo – vamos dizê-lo de uma maneira um tanto vulgar – é a produção de homens narcisistas, egoístas, ciumentos, invejosos, petulantes, facilmente decepcionáveis, majoritariamente heterossexuais, enfim, o que constitui o psiquismo habitual do nosso modo de ser, que é universal. Mas não é universal no sentido de que seja o único. Não é universal no sentido de que sempre tenha sido assim, e não é universal no sentido de que continuará sendo assim. Mas é universal no sentido de que é um modo de produção do sujeito psíquico que teve sucesso em sua capacidade de impor-se aos outros, e até na sua capacidade de produzir uma teoria que seja própria para descrevê-l o tal como ele é: a Psicanálise. Mas também é universal no sentido de que ele tem sido capaz de produzir elementos teóricos que lhe permitem fazer sua autocrítica. E descobrir que não é eterno, descobrir que não é o único possível, e descobrir que essa dominação que ele impõe sobre os outros é um imperialismo, como existe o imperialismo político, o imperialismo ideológico, o imperialismo econômico e até um imperialismo ecológico. Em "O Anti-Edipo", então, o psicanalista é qualificado de algo assim como um mecânico especialista na restauração, na reparação de um aparelhinho eletrodoméstico que cumpre uma função pobre, mas muito difundida. No percurso das obras posteriores, esta severa crítica inclui, além do mais, uma reformulação completa do que é o inconsciente (porque Deleuze e Guattari dizem que o inconsciente da Psicanálise ou é um teatro antigo, com Édipo, Jocasta, Laio e companhia, ou está
  • 14. 20 estruturado como uma linguagem, e então parece um jogo de palavras cruzadas, dessas que saem nos suplementos de jornal aos domingos), que nunca foi pensado como uma fábrica, como um lugar de produção, pura e exclusivamente de produção, de uma produção desejante, de uma produção que ao mesmo tempo que cria, goza. E que só é abafada, só sofre, só entra em conflito com aquelas estruturas sócio- econômicopolíticas e psíquicas que vivem da reprodução e não toleram a produção do novo. Nota-se também uma espécie de maior compatibilidade ou tolerância em relação à Psicanálise em "Caosmose", de Guattari, e no livro "O que é a Filosofia?" Nestas duas obras está colocado, com toda a clareza, que a teoria, o método, a técnica e o campo clínico psicanalítico são uma espécie de "valor do nosso mundo", da nossa cultura, e que o fato de que tenha sido enfatizada nele toda uma ética de resignação, de castração, de falta, de morte, não impede que, na prática cotidiana, os aspectos vitais, os aspectos produtivos, os aspectos revolucionários que todo psicanalista tem, apesar de ser psicanalista, se conectem, se articulem com aquilo que seu paciente tem de vivo, de produtivo, de revolucionário e gerem curas que, uma vez analisadas com a metapsicologia freudiana, são entendidas de uma maneira diferente daquela que as fez acontecer. Mas isso não importa. O que importa é que é um espaço social onde duas pessoas se encontram mais ou menos abrigadas, mais ou menos a salvo das formas mais grosseiras de repressão do sistema. E onde, dependendo do poder criativo de seus desejos, podem dar origem a um bom encontro, que deixe os dois realizados em uma dimensão que nada tem a ver com os axiomas do procedimento. Bom, eu não posso estender-me muito mais, porque não quero cansá-los e porque aguardo sempre, com expectativa, a participação do público. Mas queria concluir dizendo que Guattari veio ao Brasil pela primeira vez, trazido por uma instituição que eu fundei, junto com outros, o IBRAPSI – Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições que no ano de 1978 fez um congresso no Rio de Janeiro, no qual estiveram presentes, junto com Guattari, as máximas figuras da psiquiatria alternativa do mundo. Esteve Basaglia, esteve Castel, esteve Thomas Szasz, esteve Goffman, esteve Beker, enfim... E também, os colegas desta orientação do Brasil e da América Latina. Posteriormente a essa vinda de Guattari, eu tive ocasião de conviver e conversar com ele
  • 15. 21 em várias oportunidades, quando o IBRAPSI o trouxe novamente e quando outras organizações o trouxeram. Guattari tinha uma particular simpatia pelo Brasil e parece que o Brasil, também, pelas idéias de Guattari. Penso que as idéias de Guattari nunca encontraram um campo tão fértil como aqui no Brasil. Devo dizer que, nessa convivência, eu tive umas tantas discordâncias com ele. Tivemos polêmicas públicas, em alguns congressos, porque tínhamos algumas divergências no que se refere à estratégia e à tática no processo de transformação do panorama da saúde mental. Mas, transcorrido o tempo, eu tive a oportunidade de constatar que minhas opiniões a respeito eram aparentemente mais realistas que as de Guattari. Eu prognostiquei, em várias ocasiões, para Guattari, que as transformações que ele propunha e que pareciam estar se realizando aqui no Brasil, particularmente no campo da saúde mental, e que outros companheiros haviam trazido com igual energia, por exemplo, Basaglia, não se iam realizar tão rápida e facilmente como eles pensavam. Bom, isso já tem uns doze a treze anos. E quando examinamos o panorama da saúde mental aqui, o que se vê ainda é uma dominância da proposta psiquiátrica clássica, da administração excessiva de psicodrogas, da terapia biológica com choques e insulina, um tratamento carcerário feito ao doente mental. E vê-se que os movimentos deflagrados por Guattari e por Basaglia, por Castel, Foucault e por nós mesmos não têm tido o sucesso que se esperava. Aliás, eu faço questão de insistir em que, pode ser que eu tenha tido razão quando adverti que a coisa não iria ser tão fácil, porque junto com essa permanência da Psiquiatria clássica, também vemos a proliferação de um tipo de Psicanálise que, justamente, Deleuze e Guattari criticaram de maneira irrefutável. Mas devo confessar que não sinto nenhuma satisfação em ter tido razão. Pelo contrário, devo a Guattari uma força, um entusiasmo, uma vontade e um desejo, que realmente se despertaram em mim com a leitura de sua obra e com meu conhecimento pessoal dele, e que todas as dificuldades passadas não conseguiram apagar por completo. Nesse sentido estou muito grato a meu amigo, e prometo, publicamente, e peço a quem se interesse por isto que me acompanhe, porque não abandonaremos a luta. Pode-se fazer a crítica da organização, pode-se fazer a crítica dos resultados, como disse Guattari, mas não se pode fazer a crítica do desejo. E este desejo é o que Guattari fez viver em muitos e que continuará vivendo. Muito obrigado.
  • 16. 22 Debate Pergunta: Qual é a proposta da Ecosofia? Baremblitt: A relação entre o gênero humano e esse campo denominado natureza é uma relação que tem sido pensada e tem sido atuada, executada, quase sempre de forma assimétrica e hierárquica. Quer dizer, supõe-se que o homem não é, ou pelo menos não é exclusivamente um ser natural. E que ele deve relacionar-se com a natureza submetendoa, colocando-a a seu serviço, e utilizando-a, segundo um conhecimento ditado pela razão – por UMA razão, sobretudo a razão ocidental, que seria sinônimo de verdade, sinônimo de eficiência e sinônimo de justiça. Acontece que tem havido pensadores, tem havido povos, tem havido modos de analisar a vida que não aceitam essas premissas. Que consideram que o homem é um ser natural e que sua relação com a natureza não deve ser uma relação de domínio, deve ser uma relação de acompanhamento, de harmonia, em que o homem não pode impor sua forma à natureza com a suposição de que essa forma racional é sinônimo de verdade indiscutível. Mas ele pode aprender da natureza, porque a natureza contém um saber que não é racional, mas que é mais propício para a vida que a organização que os homens se deram em nome da razão. Então, isso se pode dizer para qualquer modo de produção, para qualquer organização social, mas se pode dizer especialmente para o capitalismo. Porque o capitalismo é um modo de organização das relações humanas que está baseado na exploração do homem pelo homem, na dominação do homem pelo homem, na mistificação do homem pelo homem. E uma concepção assim, se faz isso com o homem, como não iria fazer o mesmo com a natureza? A conclusão é que esse sistema, que contém em sua estrutura, em sua essência, a racionalidade, o saber científico, a consciência, tem conduzido o mundo a uma situação como a atual, em que, dentro do gênero humano, a riqueza, o peso da miséria, são distribuídos de forma cada vez pior. No mundo atual temos cada vez mais miseráveis, cada vez mais analfabetos, cada vez mais enfermos, cada vez mais deserdados. E temos levado a natureza a um ponto tal, que até essa soberba da cientificidade e do produtivismo capitalista teve que parar para examinar como as coisas estão, porque corremos o risco de perder o lugar em que vivemos, sejamos pobres, ricos
  • 17. 23 ou como for. E por outro lado, o mundo da máquina é um mundo que já tem sido acusado, em diversos graus, de demoníaco, ou tem sido idealizado como a salvação do universo. Deleuze e Guattari dizem que o mundo das máquinas é um mundo que tem muito para ensinar-nos também. Mas que é um mundo que não pode ser isolado dos interesses da humanidade em seu conjunto e não pode ser utilizado na exploração destrutiva da natureza, que é imanente com a vida humana. Então, a Ecosofia de Guattari propõe um saber acerca do mundo da sociedade, do mundo da natureza e do mundo da mente, incluindo no mundo da sociedade a vida maquínica, o mundo das máquinas. É uma espécie de democracia nosológica: tudo tem o mesmo nível de valor, tudo é forma de vida, tudo é produtivo e tudo pode ser encaminhado no sentido de uma harmonia crescente. Mas esse trabalho de conhecer e de transformar não pode ser feito em nome de nenhuma entidade que seja considerada superior às outras, de nenhuma tirania, de nenhuma transcendência. Esta é mais ou menos uma forma de resumir essa questão. P.: Eu queria saber o que você pensa a respeito da questão do caos. Guattari fala muito sobre o caos que é inerente como forma de criar novas formas de conhecimento. B.: Bom, nessa observação que fiz anteriormente, mostro que a obra de Deleuze e Guattari tem um componente muito importante de Ontologia, ou seja, de Teoria do Ser, de como as coisas são. Essa Ontologia afirma que a essência última é produção desejante – os processos da mesma são aqueles segundo os quais o mais substancial do existente funciona ao acaso. Ou seja, a realidade é constitutivamente desordenada, é constitutivamente imprevisível, é constitutivamente caótica, coisa que já diziam alguns filósofos, e coisa que hoje a microfísica e a macrofísica certificam. O que a ciência tinha estudado e aquilo no qual a política se baseia é o estudo da regularidade de pequenas ilhotas de ordem que se dão tanto no campo da natureza, como no campo da vida social, e no campo do psiquismo. Pequenas ilhotas em que o que predomina é uma repetição, uma regularidade, que a ciência estuda e que formaliza em leis. Mas, a rigor, toda a potência produtiva da realidade em qualquer âmbito de que se trate depende mais dessa natureza caótica, dos encontros ao acaso, das pequenas partículas (como diziam os estóicos, ou Demócrito), mais do que desse planejamento racional e
  • 18. 24 exploratório que se faz daquelas áreas de regularidade sujeitas a leis. O que Guattari propõe, tanto como tema de investigação, de pesquisa, como forma de atuação ética, como forma de militância política, é a construção de dispositivos que tenham em conta essa potência produtiva do caos, do acaso, e elaborem estratégias e técnicas destinadas a produzir forrmações complexas no seio do acaso. Isto quer dizer formações mais ou menos ordenadas, mas com uma ordem elástica, com uma ordem fraca, que permita o efeito produtivo, que permita a emergência do caos criador. Nesse sentido, politicamente, e este talvez seja o tema da discussão, Deleuze e Guattari têm muito a ver com a tradição anarquista e com a tradição autogestiva de todos os movimentos históricos dessa característica. Mas esta afirmação é feita não apenas desde uma leitura política, mas também de uma leitura das afirmações da física das nebulosas, ou da física do comportamento das partículas atômicas, ou de certa característica das combinatórias biológicas, pelas proteínas alostéricas, ou dos sistemas tipo cadeia de Markoff ou da matemática de Riemann, enfim, de todos aqueles campos do saber em que se tem descoberto isto mesmo: a natureza caótica do ser e a importância de construir dispositivos que não sejam rigidamente ordenados, mas sim que dêem possibilidade da emergência criativa do caos. Deleuze havia produzido o termo Caosmos, que é essa combinação de cosmos com caos. Isto não quer dizer que seja a hegemonia de uma ordem constituída e mantida rigidamente. Guattari acrescenta CAOSMOSE. Eu suponho que não se refere tanto a esse universo caótico e ao mesmo tempo cosmótico, mas sim ao procedimento pelo qual se pode viver e produzir dentro dele. Existe a palavra osmose, então, eu imagino que é uma metáfora tomada daí – caos e cosmos articulados e propostos como procedimento. P.: Quando ele fala dessa ordem em um movimento de desordem – que é uma ordem que não quer dizer normativização, o que se faz com a angústia que a gente sente perante a perda da certeza e da segurança que é dada pelo Instituído? B.: Nas características que apresentam certas propostas da f'ilosofia socrática, platônica; ou de certas correntes psicanalíticas atuais, que têm uma enorme influência de Heidegger, de Kierkegaard, nós vemos que a angústia é atribuída a uma característica essencial do sujeito psíquico. Quer dizer, das três teorias freudianas da angústia, a que
  • 19. 25 predomina, nestas leituras, é a de que a angústia é uma espécie de percepção da ação da pulsão de morte. Entretanto, em Freud, encontramos uma primeira teoria da angústia que era produto do recalque, do impedimento de que a libido se realizasse em encontros criativos e prazerosos. Desde logo, nestas duas posturas, existe uma filosofia por detrás. Então, se nós pensamos que a angústia é a percepção de uma força no nosso interior, que é a pulsão de morte, e que é constitutiva da realidade no mesmo nível, na mesma hierarquia que a de vida, logo, naturalmente, a angústia adquire um estatuto, adquire uma respeitabilidade, a angústia é promovida como necessária, como inevitável e como "atendível", no sentido de que uma certa dose de angústia é um elemento indicador para levar-nos a um comportamento adequado, apropriado. Na concepção de Deleuze e Guattari, a angústia é produto da antiprodução, que o mundo do instituído e do organizado exerce sobre nossas forças físicas, psíquicas e sociais. Em conseqüência, é um efeito indesejável e contornável. Agora, não há receita contra a angústia. Mas, se sabemos que essa angústia exprime um mal-estar perante a possibilidade da perda e da destruição de coisas que não nos fazem bem, a receita contra a angústia é o entusiasmo, e, como dizia Espinoza, as "paixões alegres". É a plena certeza de que o que está sendo libidinalmente feito vai ser melhor, porque é novo. Não é que se desconheça, nessa teoria, a existência da angústia, mas eu acho que se poderia resumir dizendo que esta teoria se nega a fazer-lhe propaganda, porque considera que "a propaganda é a alma do negócio". P.: O senhor trouxe para nós um Guattari de final de análise, e nesse ponto eu acredito que a ética que ele traz é de um desejo decidido e não vejo como essa ética de um desejo decidido de final de análise faça contraposição ou entre em contradição com a ética da Psicanálise a partir de Lacan. Porque me parece que a partir dé Lacan, esse termo, ciência do real, que está descrito no L'étourd, em Lacan, essa proposição dele do real como algo que é impossível, como algo que escapa, que é sempre novo – isso está em Lacan. Acredito que Guattari traz esse final de análise, esse entusiasmo do final de análise, de um sujeito que produz e que traz um desejo decidido por algo que é totalmente novo. Então, por que essa contraposição com relação ao que o senhor estava dizendo? Que a ética da Psicanálise seria uma ética da resignação, da falta, da morte... Será que ainda não seria uma leitura de Freud, ainda, talvez, com
  • 20. 26 pressupostos anteriores aos que Lacan trouxe para nós depois desse retomo a Freud? Onde justamente ele resgata, no texto freudiano, essa radical idade do novo na estrutura? Eu gostaria que o senhor falasse, porque me parece que Guattari é fruto de uma análise, ele traz esse entusiasmo próprio de alguém que pôde chegar ao seu final de análise e trabalhar e viver e produzir... Gostaria que o senhor falasse um pouquinho sobre isto. B.: Eu acho uma observação interessante e não muito fácil de responder. Porque, por exemplo, Reich também é fruto de uma análise e, sem dúvida, ele produziu uma teoria do psiquismo, uma teoria das pulsões, uma proposta de articulação entre a técnica psicanalítica e a militância política, que é radicalmente diferente de todo "retomo a Freud", e particularmente do kleiniano e do lacaniano. Tausk, por exemplo, também foi analisado, e ficou psicótico e se suicidou. Otto Rank,também. Jung, que também foi bem analisado, foi qualificado, por Freud, de profeta, ironicamente, porque teria abandonado a Psicanálise. Toda a Psicanálise anglo-saxônica, e particularmente a norte-americana, é qualificada por Lacan, depreciativamente, de human engineering, para significar que é uma análise que só serve para a "adaptação", e que o único retomo verdadeiro a Freud é o de Lacan. Então, esse problema de atribuir os méritos produtivos de Guattari ao fim de uma boa análise, pelo menos, é discutível. P.: Estou me referindo à ética que o senhor traz de Guattari, de um desejo novo. Ela me faz lembrar os conceitos, inclusive, de algo que se produz em um final de análise – é um desejo desse tipo, que é fundamentalmente novo. Então, eu não vejo aí nenhuma contradição. B.: Eu sei, mas esse é o ponto seguinte. O primeiro ponto é se Guattari foi o que foi como resultado de uma análise. Eu não afirmo o contrário, mas, pelo menos, eu deixaria em aberto. Agora vou passar aos pressupostos. Em princípio, digamos, deixemos entre parênteses o resultado de um procedimento. Porque, por exemplo, Deleuze, que provavelmente é responsável por cinqüenta por cento desta obra, jamais se analisou. Isso, deixamos entre parênteses. Mas, com respeito aos pressupostos, isso é mais complexo de explicar. Fazendo um resumo injusto, eu acho que se pode fazer passar a questão por isto que você mencionou. Por exemplo, na teoria dos três registros, para Lacan, o Real é impossível. Esse real impossível é o que exige uma produção
  • 21. 27 imaginária, que, por sua vez, subordinada ao simbólico, vai ser o pré-requisito de toda a produção do novo. Justamente, a famosa ética do analista consiste em colocar-se em um lugar de suporte da transferência e da não resposta à demanda, para que o mecanismo imaginário dispare, e para poder pontuá-lo impondo o simbólico. Para Deleuze e Guattari, no real "tudo" é possível, porque o sujeito é parte do real. Não existe essa diferença entre o mundo da subjetividade, que é o mundo de negatividades, na linguagem pensada, por exemplo, como "a morte da coisa", não existe o pré-requisito da castração, não existe a submissão à lei, não existe a identificação com a metáfora paterna; o que existe é o funcionamento do psíquico que tem a mesma essência do real. Então, a proposta não é a de uma repetição diferencial, como em Lacan, mas a proposta é a de uma pura diferença, de uma multiplicação diferencial incoercível. Não se precisa de um procedimento que nos convença de que o real é impossível, e que, por esse motivo, nós poderemos "primeiro" imaginá-lo, "depois" simbolizá-lo. Isso implica uma teoria da linguagem, isso implica uma teoria do Real, em geral, e isso se adere a toda uma linha filosófica que é a que enfatiza o Ser como falta, ou a falta constitutiva do Ser. Para Guattari e Deleuze, isso não existe, a não ser no molar. Para estes autores nada é mais absurdo do que afirmar que houve um retomo "verdadeiro" a Freud. A Freud, houve milhares de retornos. E o que há é um retomo de moda, ultimamente. Mas, utilizando Freud como matéria-prima teórica, pode-se fundamentar a proposta de um desejo como produção e não de um desejo como insistência em reeditar um objeto perdido e jamais tido. Ou seja, o fundamental aí é o estatuto do nada, da ausência, da falta, e a ética não é a ética heideggeriana, não é a ética do ser para o nada, mas é a ética de Nietzsche, é a ética de um ser para a luta, de um ser para a vida, que lhe vai permitir uma superação da dificuldade, não a de um ser para a resignação. P.: No final do seminário onze, Lacan fala, quando trata dos quatro conceitos fundamentais, desse desejo como uma diferença pura. Desse desejo como pura diferença – no final, ele define desejo nesse sentido. Estou insistindo nisso, porque Lacan, nesse seminário, lá pelos anos setenta, faz uma retificação nestes conceitos de Real, Simbólico e Imaginário, e ele dá uma prevalência ao conceito de Real, dizendo que, quando afirmou que o "inconsciente era estruturado como uma
  • 22. 28 linguagem", ele não havia dito que o inconsciente era uma linguagem. Ele disse apenas que o inconsciente era estruturado COMO uma linguagem. E daí ele vai extrair toda uma ciência do Real, vai estabelecer uma lógica, que vai desestimular os falsos maternas, e vai trazer toda uma concepção do real. A rigor, a estrutura vai ser Real. Então, ele vai fazer um corte aí nessa primeira leitura dele, anterior, e vai privilegiar o registro do real. B.: Mas acontece que esse é um Lacan para o qual o Real é estrutura. Para Deleuze e Guattari, a estrutura é uma dessas "ilhotas de ordem", de regularidade, das quais a ciência produz as leis. Mas a essência do Real, o que é verdadeiramente produti vo, não são as estruturas, são os fluxos, são o reverso da estrutura. Então, falam de dois reais totalmente diferentes, distintos. O problema é que, quando Lacan formula as estruturas, em realidade, ele é , digamos assim, mais platônico que nunca. Porque você se lembra da famosa farmácia de Platão, a famosa tentativa de ordenar o mundo todo em espécie, gênero, etc., ou seja, o método da divisão. A proposta lacaniana é uma forma matêmica, de fazer a mesma coisa. Então, o que Deleuze e Guattari dizem é que, quando um sujeito é produzido, quando é produzida uma subjetivação, ela é produzida como componente de um acontecimento. E não existe uma forma estrutural que dê conta desse sujeito. Porque esse sujeito não é uma variação de uma forma, pelo contrário, é uma forma radicalmente nova. Então, não tem comparação possível. São dois reais diferentes. P.: Como Guattari poderia se entusiasmar com a situação ética do Brasil noventa e dois? B.: Bom, eu não sei como poderia não se entusiasmar, eu apenas sei como foi que me entusiasmou a mim. Guattari disse, textualmente, uma vez, que considerava o Brasil como um imenso laboratório social, de onde podiam surgir os mais incríveis inventos. É claro que a gente sabe que é um laboratório onde alguns ou muitos dos experimentos acabam em resultados socialmente trágicos. Mas ao mesmo tempo eu acho que talvez se trate simplesmente de comparar, por exemplo, o Brasil com a Comunidade Européia, ou com os Estados Unidos na atualidade. Eu acho que (bom, é uma .opinião pessoal) mas eu acho que, nesse momento, as possibilidades de uma desordem produtiva no Japão, ou no Mercado Comum Europeu, ou nos Estados Unidos, são, no mínimo, menos prováveis que na América Latina. Eu viajo
  • 23. 29 freqüentemente para a Europa e vejo que, neste momento, a luta política convencional na Europa, na Espanha, suponhamos, que tem Partido Anarquista, Partido Comunista, Partido Social-Democrata, Partido Democrático Cristão – a luta política convencional – consiste em que, nessas eleições, os anarquistas perdem um vereador e os democratas cristãos ganham um. E na próxima vez acontece o contrário, e mais ou menos nisso consiste o movimento político, digamos, clássico, visível. Bom, até desde este ponto de vista, um país como o Brasil, que sofreu uma ditadura de mais de vinte anos e que, em pouquíssimo tempo, consegue, digamos assim, uma eleição direta, tem a desgraça de perder o presidente que escolheu, inicia um novo processo eleitoral e escolhe errado, mas escolhe errado por cinco milhões de votos, sobre um parque eleitoral de setenta milhões; que consegue, de uma forma ou outra, visualizar seu eno e, através de seus representantes, duvidosos ou não, afastar seu presidente do cargo – além disso, ainda existe um partido político que não tem similar em nenhum outro lugar na América Latina... eu acho que é um país interessante. Eu não digo que seja para ser otimista, mas pelo menos entusiasta se pode ser. P.: Eu gostaria que o senhor colocasse um pouco a questão do paradigma estético. Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre os significados desse paradigma estético. B.: Acho que esta será nossa última troca. Eu acho que essa questão do paradigma estético está prefigurada em toda a obra de Deleuze e Guattari, na medida em que eles consideram que o discurso, por exemplo, musical, e nesse sentido seguem Nietzsche claramente, que diz que as verdades, ou o novo, o transformador, isso vem de qualquer tipo de produção. E particularmente da produção artística. Em diversas passagens da obra eles fazem questão de tomar contribuições literárias, musicais, pictóricas, estéticas, como lógicas que inteligibilizam o processo do real e propiciam as mudanças com muito maior antecipação do que outros paradigmas. Então, como críticos que são do paradigma científico, que é característico da modernidade, essa proposta de adotar um paradigma estético tem a ver com essa potência que eles atribuem à produção artística. P.: Como antecipadora? B.: Como antecipadora e como preservadora da criação, da vida, da harmonia. E também como receptora da desordem criativa, como se
  • 24. 30 vê, por exemplo, na música moderna, na música abstrata... enfim, a arte sempre está além de qualquer descobrimento praticado com outra metodologia em outro campo. Provavelmente o único campo a que eles atribuem a mesma capacidade de gerar esse famoso pensamento do fora, como dizia Foucault, é a loucura. Bom, agradeço muitíssimo a atenção de vocês e espero que, em alguma outra ocasião menos triste, nos encontremos outra vez. Muito obrigado. Livros de autoria de Felix Guattari:  Psicanálise e Transversalidade  Revolução Molecular: Pulsações Políticas do Desejo  Inconsciente Maquínico  Cartographies Schizoanalitiques  As Três Ecologias  Caosmose. Um Novo Paradigma Estético Em colaboração com Gilles Deleuze:  Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia  Poli tique et Psychanalyse  Kafka. Por uma Literatura Menor  Mil Platôs  O que é a Filosofia? Em colaboração com Suely Rolnik:  Micropolítica – Cartografias do Desejo Em colaboração com Antonio Negri:  Novos Espaços de Liberdade Outros:  Felix Guattari entrevista Lula
  • 25. 31 A Última Viagem do Capitão Guattari* Nos últimos dias de agosto, faleceu durante o expediente de trabalho no Hospital La Borde, em Paris, o militante político, psicanalista e intelectual francês, Felix Guattari. A notícia deixou terrivelmente penalizados todos aqueles que de uma ou de outra maneira foram seus amigos, companheiros de percurso e beneficiários de suas extraordinárias idéias e iniciativas. A cultura mundial perdeu um dos mais originais e produtivos expoentes nos últimos quarenta anos. Ainda é prematuro avaliar a estatura de Guattari, da qual é difícil falar sem associá-la à de seu inseparável companheiro, o filósofo Gilles Deleuze (co-autor de boa parte de sua obra), apesar da projeção quase planetária que lhe atribuímos. Guattari morreu aos 62 anos de idade, de forma súbita e no pleno uso de uma formidável vitalidade física, bem como de uma inteligência tão vigorosa quanto esplêndida. Outro importante pensador recentemente desaparecido, Michel Foucault, disse em certa ocasião, referindo-se à obra de Gilles Deleuze, uma frase que se tomou célebre: – "O século será deleuziano". Por extensão, e guardada a devida distância que separa Foucault deste que escreve estas linhas, permito-me afirmar que todas as práxis libertárias das próximas décadas serão, assim denominadas ou não, guattarianas. Não é exagerado afirmar que a "singularidade" Guattari é de um tal porte que, seguramente, o toma membro relevante de uma família (ou melhor dizendo, de uma filiação intensiva) que inclui entre seus membros, arbitrariamente mencionados, Sartre, Fanon, Basaglia e outros. Esses "outros" são, ao mesmo tempo, poucos escolhidos... e infinitamente numerosos, de cuja vida e morte nada se saberá publicamente, Guattarianos de fato. É literalmente impossível listar aqui os textos escritos por Guattari, bem como os que publicou com Gilles Deleuze, Tony Neri e outras relevantes figuras intelectuais (algumas delas brasileiras), porém, * Artigo publicado no Jornal do Movimento lnstituinte de Belo Horizonte, 1993.
  • 26. 32 cabe ressaltar que toda sua obra contém certas características, que é imperioso pontuar. Em primeiro lugar, todos e cada um desses escritos estão ligados a movimentos e ações concretas de transformação do mundo, no sentido do combate a qualquer forma de exploração, dominação e desinformação ou mistificação do homem pelo homem. Em segundo lugar, nunca se reduzem a um gênero que possa ser enquadrado em uma especificidade acadêmica ou profissional consagrada e que permita qualificá- las de científicos, literários, ideológicos... ainda que contenham elementos do que de melhor há em cada um destes campos do saber. Em terceiro plano, nada do que Guattari escreveu ou instituiu e desenvolveu é repetição, continuação, ampliação ou comentário do discurso ou da escola de algum mandarim teórico da moda, por mais ilustre e exitoso que este seja considerado. Invariavelmente, as idéias do extinto amigo são autênticas invenções, em que o essencial é a novidade radical, surpreendente, isólita, audaz, produto de uma erudição e de um rigor assombrosos, porém empregados com força, leveza e entusiasmo plenos de inspiração e refratários a qualquer pretensão de sistematicidade doutrinária destinada a formar igrejas, partidos, corporações ou sociedades multinacionais de epígonos, adeptos ou iniciados. Por último, convém admirar-se de que a profunda modéstia, assim como o humor que percorrem seus textos (o que o levou a qualificá-los de "proposições descartáveis") não impedem que os mesmos se postulem espinozianamente como proposições de vida ou para a vida, e se coloquem, incondicionalmente, a serviço de todo aquele que deles queira se apropriar, sem qualquer ritual de iniciação para adquiri-las e sem dívida nenhuma a pagar pela "paternidade" dos conceitos. Seu único motivo é o incremento da Produção e do Desejo em todos os domínios da realidade e para todos "os homens de boa vontade", que, como dizia Nietzsche, somente pode ser a Vontade de Potência. O capitão Guattari empreendeu sua última aventura de exploração de mundos desconhecidos. Os que viajaram com ele em várias de suas expedições não tiveram a .sorte de receber as cartas de navegação deste último itinerário.
  • 27. 33 Mas as fascinantes cartografias que produziu até agora estão à disposição das novas gerações que anseiam por planejar trajetórias intrépidas para metamorfosear o sinistro universo que o Capitalismo Planetário Integrado lhes tem destinado. Os amantes do Poder, do Lucro e do Prestígio, os politiqueiros engomados, os "homens cinzentos" (segundo o terrível diagnóstico de D.H. Lawrence, um dos favoritos de Felix) ficam dispensados da leitura das memórias do Capitão Guattari. Porém nunca dormirão tranqüilos... a Revolução Molecular está em marcha.
  • 28. 34
  • 29. 35 In Memoriam de Gilles Deleuze* Filósofo Nômade Senhoras e Senhores, Desejo começar essa conversação agradecendo ao Movimento Instituinte de Belo Horizonte e às entidades que colaboraram na organização desse evento, por haverem-me dado a honra de dissertar acerca da obra e da figura de Gilles Deleuze. Igualmente sou grato ao auditório por sua presença. Essa homenagem deveria ser muito mais ampliada e reiterada no mundo inteiro, e não sabemos se haverá de sê-lo. Por isso nossa contribuição nesse sentido nos parece tão discreta quanto necessária e insuficiente. Como uma aclaração, antes de entrar no tema, creio obrigatório pontuar o seguinte: supõe-se que, para falar acerca de um autor dessa envergadura, e em circunstâncias tão solenes como a presente, é preciso conhecê-lo integralmente. Por razões que, segundo espero, ficarão explícitas no curso dessa conferência, devo reconhecer que não tenho esse privilégio. Meu domínio desse monumento do saber é limitado, e questiona meu direito a ocupar hoje este lugar de expositor. Não obstante, tenho o consolo de crer que, se bem existem muitos que têm estudado Deleuze mais e melhor que eu, ninguém pode estar seguro de ser capaz de um trânsito exaustivo por esse pensamento, que, por sua própria natureza, é inesgotável. Resulta tão pouco original quanto inevitável começar esse breve percurso com a famosa sentença pronunciada pelo talento de Michel Foucault. É sabido que esse formidável intelectual disse: "O SÉCULO SERÁ DELEUZIANO". Os comentários acerca dessa frase, que encantou somente uns poucos e escandalizou muitos, poderiam ocupar toda essa conferência. Que pretendia dizer Foucault com tal afirmação? * Palestra organizada pelo Movimento Instituinte de Belo Horizonte em dezembro de 1995
  • 30. 36 O mesmo Deleuze, consultado sobre o assunto, e com a modéstia que sempre lhe foi própria, lhe atribuiu um sentido ao mesmo tempo carinhoso e humorístico. Sem descartar esses significados, tratarei de reduzi-los a dois, formulados, por minha vez, como interrogações: Trata-se de prognosticar que a cultura dos anos que virão chegará a reconhecer a obra de Deleuze como a máxima expressão do século XX? Ou, talvez, trata-se de manifestar a esperança de que o período que falta para completar este século, ou, quem sabe, todo o curso do século XXI, será, em sua realidade, expressão concreta das idéias de Deleuze? Permito-me sustentar que a primeira interpretação é altamente provável, e a isso me referirei a seguir, dentro das limitações dessa dissertação. Creio sinceramente que a obra de Deleuze é, senão a única, uma das mais perfeitas do nosso tempo. E quanto à segunda compreensão, temo que não tenhamos a menor segurança sobre o assunto. Assim como nosso século vai mal, e como o próximo nos antecipa, não apenas não podemos dizer que será deleuziano, senão que nem sequer sabemos se será, de maneira alguma. O certo é que tentar sintetizar, em uma breve exposição, a obra e a figura desse pensador, que, segundo Foucault, dará seu nome à história de nossa época, é uma tarefa árdua. Devemos, inclusive, registrar outra peculiaridade que contribui para essas dificuldades: é a extraordinária co-autoria de Deleuze e Felix Guattari, seu dileto amigo, também recentemente falecido. Se bem a publicação a dois não seja uma novidade absoluta (basta recordar os textos de Marx e Engels ou de Freud e Bullit), a colaboração entre Deleuze e Guattari provavelmente é a única em seu gênero, dado que a mesma é a prova coerente de toda uma teoria assumida não-autoral da escrita. Ainda que possa resultar um pouco pesado, devido à fabulosa e prolífica obra desse autor, é nosso dever começar por uma mínima biografia e por uma sucinta enumeração da bibliografia deleuziana. Deleuze nasceu em Paris em 18 de janeiro de 1925. Graduou-se em Filosofia em 1948, tendo sido aluno de Ferdinand Alquie e Georges Canguilhelm. Ensinou Filosofia em um liceu e freqüentou as aulas e conferências de Jacques Lacan, Pierre Klossowsky, Michel Butor e Jean
  • 31. 37 Paulhan. Em 1957 obteve o título de professor assistente na Sorbonne; em 1960, o de agregado de pesquisas no CNRS (Conselho Nacional de Pesquisas Sociais). A partir de 1964 deu aulas por vários anos na Universidade de Lyon, e de 1969 a 1987 foi professor na Universidade de Vincennes em Paris VIII. Em 1987 se aposentou. Segundo Deleuze, dois encontros foram fundamentais em sua vida intelectual. O primeiro com Michel Foucault, em 1962, e o segundo com Felix Guattari, em 1969. Sintetizando humoristicamente suas tiradas, Deleuze disse algo que talvez se possa traduzir assim: "Viajando por aí, jamais aderi ao Partido Comunista, jamais fui fenomenólogo ou heideggeriano, nunca renunciei a Marx, nem jamais repudiei Maio de 68". (Le Magazine Littéraire, Setembro de 1988). Essa oração despretensiosa resume algumas das singularidades do Mestre, às quais, tomando a liberdade de falar em primeira pessoa, eu poderia, figuradamente, acrescentar: "Nunca me preocupei em estar na moda, nem a dos círculos políticos, nem a dos acadêmicos. Nunca venerei filosoficamente a Parmênides, nem a Sócrates, nem a Platão, nem a Aristóteles, nem aos neo-platônicos, nem a Descartes, nem a Kant, nem a Hegel, nem aos positivistas... assim como nunca fui propriamente existencialista, nem estruturalista, nem materialista dialético. O mesmo me aconteceu científica e artisticamente com Euclides, Newton, Freud, Saussure, Weber, Wittgenstein, Lacan, Lévi-Strauss ou Toynbee... ainda que me empenhe a conhecê-los tanto como a Sófocles, Leonardo ou Shakespeare. Meus personagens filosóficos favoritos têm sido, sem dúvida, ou bem estranhos, ou pouco exitosos, ou pouco freqüentados, ou quase francamente marginais. Heráclito, Demócrito, Arquimedes, os sofistas, os estóicos, os epicuristas, os hedonistas, tanto quanto Duns Escotto, Espinoza, Leibniz, Hume, Nietzsche e Bergson, assim como Pierce, Hejmlev, Clastres, Riemann, Chatelet, ou bem Reich, Kafka, Artaud, Carroll, Beckett, Proust, Miller, Canetti, Bacon, Kleist, Duchamps... e tantos outros". Essa larga e incompleta enumeração tenta apenas ilustrar, em primeiro termo, a fabulosa erudição e versatilidade de Deleuze e, em
  • 32. 38 segundo lugar, dois tipos de relação heurística com as obras e com seus criadores. Ao primeiro grupo citado, aplica-se a proposta que Deleuze enunciava como seu projeto juvenil: "Acercar-me sigilosamente a um autor pelas costas e fazer-lhe um filho monstruoso, em que não se possa reconhecer". Mas com a ressalva de que "para fazer isso com o dito por esse autor, teria de estar absolutamente seguro de que o havia efetivamente dito". Aqui, "monstruoso" deve entender-se de acordo com o que Deleuze aprendeu de seu mestre Canguilhem... ou seja, como o anômalo, aquilo que está nos limites, ou até mais além de sua própria espécie. Por outra parte, esse afã de certeza é o que explica a insuportável precisão das citações nos escritos deleuzianos. Ao segundo grupo mencionado, corresponde uma apropriação menos crítica, muito mais empática, mas tampouco integralmente fiel, nem literal, típica dos comentários e teses acadêmicas que Deleuze detestava. Essa capacidade de Deleuze, compartilhada por seu amigo Guattari, de conhecer e circular pela Filosofia, pelas Ciências, pelas Artes, pela Política e até pelo saber popular, é plenamente demonstrada pela lista de seus quase trinta livros editados, cuja extensão prodigiosa pode resultar, nesse contexto, tão esmagadora como indispensável:  Instinto e Instituição  Empirismo e Subjetividade  Nietzsche e a Filosofia  A Filosofia de Kant  Proust e os Signos  NÜ::tzsche  O Bergsonismo  Apresentação de Sacher-Masoch  Espinoza e o Problema da Expressão  A Lógica do Sentido _  Diferença e Repetição  Espinoza, Filosofia Prática  Espinoza e os Signos  Francis Bacon: Lógica da Sensação
  • 33. 39  Cinema I – A Imagem-Movimento  CinemaII – A Imagem-Tempo  Foucault  Péricles e Verdi. A Filosofia de François Chatelet  A Dobra – Leibniz e o Barroco  Conversações  Crítica e Clínica Em colaboração com Felix Guattari escreveu:  O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia  Kafka. Por uma Literatura Menor  Mil Platôs  O que é a Filosofia?  Politique et Psychanalyse Em colaboração com Carmelo Bene:  Superposições Em colaboração com Claire Parnet:  Diálogos Obs: esclarecemos que esta lista não está ordenada cronologicamente A esta lista devem se somar vários artigos, prólogos e epílogos de outros textos. Desde logo a literatura acerca da obra de Deleuze já soma outras tantas publicações. Segundo uma classificação leve e algo ingênua, os livros de Deleuze podem ser divididos em três grupos. O primeiro consiste em Teses e Monografias Filosóficas, de formato aparentemente acadêmico, mas que constituem verdadeiros Cavalos de Tróia. O segundo se compõe de grandes exposições de enorme abrangência. Mais adiante me referirei a elas, arriscando para as mesmas uma categorização pessoal. Momentaneamente peço que se aceite para esses escritos o qualificativo de "Concepções de Mundo", que, por razões que veremos, é incorreta. O terceiro conjunto de escritos se refere aparente e prevalentemente às Ciências e às Artes. Mas há pelo menos duas razões pelas quais essa classificação panorâmica é inadequada e insuficiente.
  • 34. 40 Por um lado, porque a obra de Deleuze e Guattari é um Rizoma, ou seja, um sistema anti-sistema, uma espécie de rede móvel de canais, fluxos, remoinhos e turbulências, de limites internos e externos difusos, do qual se pode entrar e do qual se pode sair em qualquer ponto, que se pode percorrer em infinitas direções e que é reinventado a cada viagem e por cada um que o percorre. Apenas apresenta uma alternância de mesetas de intensidade homogênea em que se pode transitar passando de uma a outra por saltos, às vezes perceptíveis, às vezes desapercebidos. Por outro lado, não se pode considerar cada livro como uma unidade isolada, porque, segundo a própria teoria do pensamento, da escritura, da leitura e da realidade última a que um livro se acopla, é impossível dissociar a produção bibliográfica do que a realidade faz fluir nela, nem do que ela faz fluir na realidade na qual se insere. Para esses autores, um livro é uma máquina engendrada por máquinas heterogêneas, heteromorfas e heterólogas a ele mesmo, sendo que seu sentido depende de como atravessa a outras (literárias ou não), ou seja, de como estão funcionando dentro dele, e ele dentro daquelas. Assim sendo, como seria viável separar radicalmente um tema bibliográfico de outro, e dos Mundos com que se conectam, se todos são imanentes entre si? Finalmente, não cabem separações, porque Deleuze e Guattari dizem que todo texto ou discurso é pura performance, quer dizer, pura pragmática, que importa apenas por como afeta e como é afetado. Para ilustrar, por exemplo, as relações entre os conceitos filosóficos, as funções científicas, as variações artísticas, apelam à teoria da Música. Cada um dos recursos desses saberes e trabalhos ressoam entre si, nos espaços da Realidade. Essa ressonância pode ser ouvida em dimensões tais como a Harmonia, a Desarmonia, a Consonância, a Dissonância, a Fuga, o Contraponto, o Ritmo, etc... mas nunca desde uma taxonomia dos textos ou discursos estanques. Inútil confundir essa concepção com alguma que postule deslizamentos de cadeias de significantes, elos ordenados como anéis, que por sua vez são elos de anéis maiores, etc. A escrita de Deleuze e Guattari, densa e difícil, é composta de fluxos, pode incluir paradoxos e aporias, mas não metáforas ou metonímias, e menos ainda adivinhações, hermetismos ou mistérios.
  • 35. 41 Talvez este seja o único ponto dessa exposição no qual m aventurarei a dar uma opinião pessoal, tão arriscada como segurament pouco compartilhada. Tudo leva a supor que Gilles Deleuze foi um filósofo, professor de Filosofia e escritor de livros de Filosofia. O título mesmo dessa conferência qualifica Deleuze de "filósofo nômade", aludindo a sua forma errante de viajar por todos os saberes, por itinerários absolutamente insólitos e sem compromisso algum com Escolas ou Doutrinas. Um de seus últimos livros, escrito junto com Guattari, leva por título "Que é a Filosofia?" – e, em suas páginas, a Filosofia é definida com uma precisão e beleza incomparáveis, como a prática de invenção de Conceitos. Não obstante, em várias passagens de outras obras, Deleuz havia exposto, com toda clareza, uma crítica às perguntas com as quais se costuma propor as questões que se deseja resolver. Nesses parágrafos rechaçava que a fórmula – "que é?" – fosse um bom enunciado para formular um problema. Não é nada fácil explicar o porquê dessa impugnação, mas, simplificando uma vez mais, quando se pergunta "que é?" se interroga acerca do Ser de um Ente, ou seja, por sua Identidade ou sua Mesmidade – e não por seu Devir, por seu funcionamento, por sua Diferença em Ato. De um outro ângulo, quando Deleuze se refere ao pensamento, sustenta que pensar exige a incessante criação, não apenas de novos conteúdos, nem sequer de novas maneiras do mesmo Pensamento. Deleuze dá a entender que pensar implica, nem mais nem menos, que criar novos pensares, ou seja, responder àquilo que "dá a pensar", o que "faz pensar", com uma multiplicidade de Pensares singulares diferentes, originais, inéditos. É por isso que me atrevo a postular que Deleuze, em seu nomadismo, ou bem acabou não sendo mais um filósofo, ou bem foi um criador de Pensares que, entre outras coisas, redefiniu a Filosofia, ou bem foi o Demiurgo e o agente de um novo pensar e um novo fazer que ele e Guattari inventaram... e que se chamou esquizoanálise ou pragmática universal. Esses dois termos estão definidos respectivamente, no primeiro e no segundo tomo de seu livro "Capitalismo e Esquizofrenia". O que estou afirmando é que Deleuze e
  • 36. 42 Guattari engendraram algo que é Filosofia mas, que também é Ciência e também é Arte... e Política... e Saber Espontâneo... e muito mais que tudo isso preexistente. Por que, então, chamá-los por nomes de "partida" e não pelos de "chegada"? A rigor, não é nenhuma novidade que os cientistas de uma especialidade tenham incursionado por pensamentos filosóficos, restritos ou não, às áreas de suas disciplinas. Basta mencionar, rapidamente, os casos de Pitágoras, Euclides, Averroes, Cassirer, Jaspers, Russel, Poincaré, Monod e outros tantos. Tampouco é insólito que grandes literatos tenham sido filósofos (ou o inverso), como são os exemplos paradigmáticos de Kierkgaard, Novalis ou Goethe. Igual coisa ocorreu com grandes estadistas e políticos como Demóstenes, Maquiavel, Hobbes, etc. Mas meus conhecimentos de história da Filosofia, das ciências e das práticas sociais em geral (bastante pobres), não me permitem evocar um caso igual ao de Deleuze e Guattari. Talvez o mais parecido a isso, que me ocorre, é a figura e a obra de Foucault, não por casualidade amigo proeminente de Deleuze, de quem se tomou difícil dizer se era filósofo, historiador, sociólogo, arquivista ou genealogista. Agora, bem: por razões pedagógicas, o paradoxal é que, se me proponho introduzir o que alcanço entender como as principais contribuições da Esquizoanálise, não consigo fazê-lo de outra maneira que abordá-las segundo as clássicas ramificações com as quais se costuma dividir a Filosofia. Refiro-me à Ontologia (Teoria do Ser), à Gnoseologia (Teoria do Conhecer) e à Axiologia (Teoria dos Valores). Mas como resumir os aportes dos principais trinta livros de Deleuze de uma maneira suportável para o público em geral? Apesar de a palavra "impossível" ser uma das mais detestadas por Deleuze e Guattari, este simples comentarista que lhes fala se sente a ponto de declarar esta tarefa como irrealizável. Peço antecipadamente desculpas pelas insuficiências, incorreções e obscuridades do que se segue. De todo modo, quem não tenta, nada consegue.
  • 37. 43 Na Ontologia, creio que se pode dizer que o Pensar de Deleuze é a culminação de duas célebres contraposições que percorrem a história da Filosofia Ocidental. A primeira é a que opõe o Ser como estático, eterno, invariável, imóvel e idêntico, do qual só se pode predicar que É (cujo paradigma seria Parmênides), contra o Ser como dinâmico, variante, móvel e em permanente transformação (cujo paradigma seria Heráclito, que sustentava que o Ser Devém). "Que é, e como o Ser Devém?" – que até a declaração da Morte de tais perguntas ou do Fim da Metafísica... terá suas diversas formulações na Filosofia Antiga, na Patrística, na Escolástica, no Romantismo e na Filosofia Moderna e Contemporânea. O que do ser passa por todos os avatares do Espiritualismo, do Idealismo Objetivo e Subjetivo, assim como por todos os Realismos, Substancialismos, Materialismos, Agnosticismos, etc. O como transcorre pelos inumeráveis avatares da Linearidade, da Circularidade e da Dialética. Mas aí é onde entra a segunda oposição, que antagoniza os que afirmam que o Ser (seja qual seja sua natureza) é diverso do Pensar (digamos, a Metafísica da Substância e da Essência) contra os que, principalmente desde Descartes, identificam o Ser com o Pensar (digamos, a Metafísica do Sujeito), seja qual seja o papel que se atribua à linguagem nessa identidade ou distinção. Ante essas duas famosas oposições da Ontologia (que, como se vê, são indissociáveis da Gnoseologia), Deleuze postula: 1) o ser é devir. 2) o devir devém como repetição incessante, infinita e não totalizável da diferença. 3) a essência das diferenças consiste em puras intensidades. 4) por sua posição nos mundos, sua composição interna proteiforme e seus limites externos difusos, o devir devém como multiplicidades.
  • 38. 44 5) pela condição única e irrepetível das diferenças, intensidades, multiplicidades, estas se expressam como singularidades, tais "proto-realidades" (por assim chamá-las) são virtuais, pré-ontológicas e, assim sendo, são pré-físicas, pré- biológicas, pré-sociais, pré-subjetivas, pré-semióticas, pré-reais, pré-possíveis e pré-impossíveis, até serem atualizadas. 6) o surgimento por atualização das novidades ontólogicas absolutas, assim entendidas, denomina-se individuações. 7) as individuações resultam do encontro entre complexos de intensidades, multiplicidades e singularidades sintetizadas como corpos, e a emergência, a partir desses encontros, de uma dimensão incorporal dos mesmos, denominada incorporais-sentidos-acontecimentos. 8) as individuações não podem reduzir-se a seres ou entes individuais efetuados por idéias, substâncias ou essências previamente diferenciáveis em espécies ou gêneros. 9) as ações e paixões que se exercem ao acaso nos encontros entre corpos e incorporais-sentidos-acontecimentos que deles surgem, assim como as individuações resultantes, não se relacionam como causas e efeitos e não obedecem a leis. 10) a realidade, assim integralmente entendida, compreende três superfícies imanentes entre si. A primeira, a da produção, que é a que acabamos de conceitualizar, composta por funcionamentos protagonizados pelas singularidades intensivas que mencionamos (máquinas desejantes), dispostas sobre o corpo sem órgãos (que é seu "suporte" e o grau zero das intensidades). Nela se dá o processo puro de produção de produção. A segunda é a superfície de registro-controle, em que se distribuem as entidades já identificadas, ordenadas, determinadas em causas e efeitos, dotadas de funções específicas em que predominam os processos de reprodução e de antiprodução. A terceira é a superfície de consumação, em que culminam e/ou consomem a potências das individuações de toda índole.
  • 39. 45 Este imenso "fluxograma" transmutante possibilita a Deleuze e Guattari uma extraordinária reformulação das definições e das relações dos continentes da Natureza, da Sociedade, da Subjetividade, das Semióticas e do Parque Maquínico da Realidade, assim como da História Universal, tanto quanto dos pensares que os pensam e das práxis que os metamorfoseiam e os destroem. Em absoluta coerência com essa "Ontologia", a Gnoseologia, a Ética e a Estética de Deleuze têm como valor supremo a invenção tanto de Conceitos Filosóficos, como de Funções Científicas, como de Variações Artísticas e de Saberes Espontâneos. Tal inventiva tem como proposta "Metodológica" sui generis a Intuição, o uso disjunto das Faculdades, o emprego das técnicas do Cut-up e da Colagem, e a plena consideração do Acaso para o exercício de Pensares sem Fundamento, sem Sistemática, sem Meta-Categorias transcendentes. Pensares inexatos, mas rigorosos, de realidades pluripotenciais e imprevisíveis, cartografias sempre "princeps" de transmigrações e conjuntos difusos. Para concluir, a Ética proposta por Deleuze é uma política da avaliação, da resolução e do ato sempre singulares, criados para cada situação, produtos da Vontade de Potência e da desconstrução do Valores imperantes, a serviço da inovação permanente, jamais subordinada a algum Imperativo Categórico Universal ou Eterno, nem baseado em Princípios Transcendentes. É nessa produção de pensares, na análise variável de seus "N" componentes de Produção, Reprodução e Antiprodução, na montagem de dispositivos destinados a propiciar a Revolução Inventiva dos Processos Produtivos e a neutralizar sua brusca interrupção, ou sua aceleração ao infinito, dada pelos buracos negros da Reprodução e da Antiprodução... nisso consiste a esquizoanálise ou pragmática universal. Mas se por razões pedagógicas optei por essa introdução geral apoiada num andaime filosófico clássico, como ousar sintetizar aportes mais circunscritos a temas mais delimitados, que estão implicitamente incluídos no panorama anteriormente exposto? Porque a obra de Deleuze e Guattari importa também redefinições críticas e reinvenções dos Universais mais caros ao saber do
  • 40. 46 Ocidente. Apenas como exemplo, mencionarei as categorias de Tempo e de Espaço, de Todo e de Partes, de Razão e Desrazão, de Verdade e Falsidade, de Bem e de Mal, de Potência e de Poder, de Vida e de Morte – e, em um sentido mais específico ainda, de História, de Sociedade, de Estado, de Economia, de Antropologia, Geologia, Etologia, de Lingüística-Semiótica, de Ciências Exatas, de Urbanismo, de Tecnologia, de Literatura, de Cinematografia, Pintura, Escultura, Arquitetura... e assim por diante. Não pude resistir, ao final desta, por sua vez, pobre e pretensiosa simplificação, a comentar brevemente a quiçá mais célebre proposta de Deleuze e Guattari, principalmente exposta em "O Anti-Édipo". Os autores propõem, como a medula desse livro imortal: "introduzir o desejo na produção e a produção no desejo". Sem pretender ignorar a larga trajetória desses dois conceitos gigantescos, não se pode negar que, nas acepções centrais de sua definição, Deleuze e Guattari partiram basicamente de Freud e Marx. Mas o fizeram para ampliar a idéia de Marx, não a restringindo à geração de bens materiais indispensáveis para a vida, processo ligado à força de trabalho, que o criador do Materialismo Histórico atribuía à infraestrutura dos Modos de Produção. Deleuze e Guattari estenderam essa idéia à Produção de Produção em "todos" os domínios da Realidade. Igualmente, tomaram a idéia de Freud, de Libido e Desejo, não como sendo apenas a energia-força que anima exclusivamente a economia, a dinâmica e a estrutura do Aparato Psíquico freudiano, cujas características são, como é sabido, em última instância, repetitivas e conservadoras. Deleuze e Guattari recriaram e ampliaram esses conceitos-funções, assim como do Inconsciente e do Id psicanalítico, assumindo plenamente as características do chamado Processo Primário, dando-lhes uma essência produtivo-revolucionária e tornando-os imanentes ao processo de produção de produção da realidade inteira. Devo concluir essa modesta apresentação dizendo algumas poucas palavras acerca de Gilles Deleuze como "homem". Ao considerar a figura e a biografia de Deleuze como "ser humano", encontramo-nos comuma rara ilustração da exigência de que um autor deveria ser uma fiel expressão de suas idéias.
  • 41. 47 Pessoa de uma imensa erudição, de uma formidável dedicação a seu empreendimento, de uma incrível versatilidade, de uma enorme criatividade, de uma abertura e de uma falta de preconceitos invejáveis, gozou em vida de um prestígio e de um reconhecimento mundial, ainda que, a meu entender, ainda insuficientes, e que levarão décadas para se consumar. Aliado incondicional de todo movimento das singularidades produtivo- revolucionárias, particularmente dos das minorias exploradas, dominadas e excluídas, foi um amante da Liberdade, da Amizade e da Vida. Há duas sentenças que o encantavam e que caracterizam ilustrativamente seu pensar e sua existência. A primeira diz: "Os homens têm estado sempre preocupados com as Idéias Justas, quando, em realidade, precisam procurar justo uma idéia" – a que é capaz de propor e resolver cada problema. A segunda diz: "Os grandes homens têm poucas coisas" – quer dizer, não se interessam por acumular nem por consumir mercadorias. Humildade, modéstia, generosidade, tenacidade, humor, alegria, coragem essas foram as singularidades de Deleuze, mais que um "homem"... um devir bondoso.
  • 43. 49 A Esquizoanálise é um saber inventado por dois autores: Gilles Deleuze e Felix Guattari. Gilles Deleuze é considerado, na atualidade, um dos filósofos mais importantes do século. Felix Guattari, recentemente falecido, foi um brilhante psicanalista, analisado e aluno de Jacques Lacan, um Trabalhador da Saúde Mental, criador da prática denominada Análise Institucional e um militante político de esquerda, que pertenceu a numerosos grupos políticos convencionais e os abandonou para fundar ou unir-se a Movimentos Populares de cunhos os mais diversos. Gilles Deleuze é autor de numerosos livros, nos quais aborda, de uma maneira sempre original, a obra de vários filósofos clássicos, mas também escreveu sobre cinema, política, estética, literatura, pintura, música, história, etc. Felix Guattari escreveu sobre temas relacionados com a saúde mental, sobre Psicanálise, sobre cinema, mas, fundamentalmente, sobre a concepção muito peculiar que tinha sobre a política e a economia, a ecologia e o panorama geral do mundo atual. Também foi jornalista e músico. Esses dois autores escreveram juntos vários volumes, em que sua colaboração adquiriu características muito peculiares, devido às quais é impossível saber, nesses escritos, a qual dos dois pertence uma ou outra idéia. Entre esses livros destacam-se: "O Anti-Édipo", "Mil Platôs", "Kafka: Uma Literatura Menor" e "Que é a Filosofia?". A obra desses autores é muito difícil de situar em um gênero dos já conhecidos. Como se pode apreciar por sua trajetória intelectual, e pelos títulos de seus escritos, trataram de quase todas as "especialidades" importantes, mas sempre de maneira original, buscando interpenetrações dos campos e dos conhecimentos, mas sem abandonar nunca um matiz *Introdução à Esquizoanálise, apontamentos 1, 2 e 3 foram escritos especialmente para um seminário realizado em Barcelona (1993). político, que perpassa toda sua produção. A rigor, de acordo com uma terminologia, para elesjá obsoleta, sua obra poderia ser classiticada como uma "Concepção de Mundo", mas várias conccitualizações que eles mesmos apartaram, de crítica aos
  • 44. 50 fundamentos desse tipo de denominação, fazem-na incorreta e insuficiente para dar conta desse monumental trabalho. Desde logo, dentro da lista de textos, podem-se encontrar alguns que pertencem predominantemente a um tema mais que a outros, mas sempre haverá uma característica na abordagem que os torna insólitos e não enquadráveis. O encontro desses dois autores data, prevalentemente, do famoso maio de 1968, na França. Em certo sentido se pode dizer que suas preocupações e interesses têm muito a ver com essa revolta, que aspirava a levar, como os lemas da época sustentavam, "A Imaginação ao Poder", ou que postulavam "Sejamos realistas, peçamos o impossível". Essa orientação política, de diversas maneiras, segundo seus entusiastas, rechaçava tanto os vícios da Democracia Burguesa Capitalista como os da Ditadura do Proletariado vigentes, estes últimos, nos ensaios de transição ao Socialismo. Em realidade, pode-se afirmar que a orientação política que mais influenciou esses autores, apesar de não ser uma referência demasiado explícita em seus escritos, é o Anarquismo, como aconteceu com uma série de investigadores que integram o que se denominou Movimento Instituinte Internacional. Entre os autores mais afins a Deleuze e Guattari, devemos mencionar, em primeiro lugar, Espinoza, Nietzsche, Bergson e Marx, assim como, entre os contemporâneos, Foucault. Mas a lista de seus favoritos é interminável, e inclui, em lugares privilegiados, uma série de artistas que reúnem em si a condição de loucos e de gênios. O exemplo mais característico é Artaud. Também é notável sua preferência por certos novelistas anglo-saxônicos, entre eles D.H.Lawrence, Lewis Carrol e Henry Miller. O texto mais conhecido e impactante de Deleuze e Guattari é, sem dúvida, "O Anti-Édipo", publicado em 1972. Trata-se de um texto de difícil leitura, não porque o estilo seja particularmente retorcido, senão devido à soma de conhecimentos que é preciso dominar para entendê-la, posto que o conteúdo que se refere a todos eles é estonteante. Em um sentido um tanto melodramático, pode se afirmar que "trata de tudo" . Verdadeiramente, é uma grande reformulação das relações existentes entre a natureza, a cultura, a sociedade, a economia, a política, a linguagem, as relações de parentesco, os ritos, os mitos, o psiquismo, a religião, a
  • 45. 51 família, o estado, a história, a tecnologia maquínica, o saber, a verdade, os valores em geral, a sexualidade, etc. O título parece centrar-se em uma crítica da concepção psicanalítica edipiana do Inconsciente, e por certo é um questionamento profundíssimo dos acertos e dos desacertos da Psicanálise, mas, concretamente, essa reflexão está incluída entre muilas outras que abarcam todos os campos a que acabo de me referir. Impossível sintetizar o que os autores pretendem dizer nessa "Ópera Magna", mas, arriscando-me a ser elementar e esquemático, talvez possa adiantar que postulam: - Que todos esses domínios do saber e da realidade, modernamente separados pela modalidade científica do conhecimen,to, são imanentes (quer dizer, intrínsecos, consubstanciais entre si). - Que a Realidade, tal como a conhecemos, configurando esse conjunto heterogêneo, está composta por três superfícies, que, a rigor, são uma inerente à outra. A saber, a Superfície de Produção, a Superfície de Registro-Controle e a Superfície de Consumação. A Superfície de Produção é aquela responsável pela geração de tudo quanto existe, está formada por elementos constituídos por matérias ainda não formadas e por energias ainda não orientadas como forças. Esses elementos ainda não apresentam qualidade nem quantidade, mas se caracterizam por serem intensidades puras. Cada uma dessas intensidades (nas quais é difícil pensar porque não estamos acostumados a conceber algo que ainda não tem nem tempo nem espaço convencionais, nem qualidade nem quantidades diferenciais) consiste em uma singularidade absolutamente diferente de todas as outras, e o dizer "todas" é metafórico, porque esse "todo" é infinito, não pode totalizar-se. Outra abordagem desses elementos os denomina multiplicidades (mas como substantivos, não como adjetivos). habitualmente se fala de "o um e o múltiplo"... fórmula essa na qual o múltiplo não é senão a multiplicação do que é um, ou seja, muitos do mesmo. Multiplicidade se refere a unidades, cada uma das quais é absolutamente diferente das outras: não há nenhum um que sirva de base para multiplicar-se nos múltiplos que são suas
  • 46. 52 réplicas. A rigor, deve-se dizer que esses elementos constitutivos da Superfície de Produção não são, quer dizer, não têm uma essência, mas consistem em um puro devir, estão mudando permanentemente. Se se pode falar de uma "natureza" desses elementos, caberia dizer que se compõem de Desejo e de Produção. Desejo, está tomado no sentido dado por Freud ao Processo Primário no Inconsciente, em que a energia "flui livremente pelas representações", onde não há tempo, não há espaços clássicos e, sobretudo, onde só há positividades, não há noção de ausência, de falta, de morte, de castração, etc. Produção, está dito no sentido de Marx, ou seja, um processo pelo qual uma matéria prima, trabalhada por meios específicos animados por uma força de trabalho, gera um produto que não preexistia na matéria prima da qual se originou. Deleuze e Guattari acrescentam a essa definição a afirmação de que a Produção "se produz a si mesma", seus elementos se produzem ao mesmo tempo em que funcionam, e que, no caso da Superfície de Produção, fazem-no pelo encontro casual das intensidades, que são caóticas e imprevisíveis. As duas entidades que integram a Superfície de Produção são o corpo sem órgãos e as máquinas desejantes. Para não complicar as coisas, direi a respeito que o Corpo sem Órgãos é uma espécie de rede sobre a qual se dispõem ao acaso as intensidades... e as intensidades podem ser pensadas como máquinas inespecíficas e indeterminadas que se conectam de maneira binária em todas as direções. As máquinas desejantes se dividem em máquinas fonte e máquinas órgão. Uma máquina fonte gera um fluxo energético, e uma máquina órgão o corta e o modula. Elas se conectam assim em todas as direções, e esse processo incoercível é o que gera a produção de tudo quanto existe. Outra característica das máquinas desejantes é serem infinitamente pequenas, por isso se denominam moleculares, e elas permanecem como tais no seio das entidades macro, que se chamam molares, e que são as que estamos acostumados a reconhecer, seja qual seja a materialidade de que se trate, por exemplo: um homem, uma planta, uma montanha, um país, uma máquina mecânica, uma
  • 47. 53 instituição, etc. A Superfície de Registro é a organização que adquire a Superfície de Produção quando entra na escala das entidades molares. A função da Superfície de Registro-Controle é, como seu nome antecipa, a de selecionar, aceitar e capturar, ou bem reprimir e destruir a incoercível geração de novidades da Superfície de Produção Desejante. A Superfície de Registro está constituída por todas as entidades destinadas a diferenciar, em um sentido convencional, e a utilizar, tudo o que se produz, para colocá-lo a serviço da reprodução, da natureza e da sociedade, tal como estão estruturadas, ou seja, o que tende à reprodução do mesmo e à manutenção do status quo. A Superfície de Registro e de Controle só aceita aquilo que pode incorporar sem se transformar radicalmente. Um dos aspectos mais importantes da Superfície de Controle é o denominado socius, ou seja, a forma que tem adquirido a Sociedade ordenada em cada civilização, e que é tanto ameaçada quanto nutrida, naquilo que precisa para evoluir, pelas novidades da superfície de produção. Deleuze e Guattari sustentam que a Superfície de Produção tem um funcionamento que pode ser ilustrado pelo pensamento Esquizofrênico, mas não o dizem referindo-se à Esquizofrenia entendida como enfermidade mental, senão à Esquizofrenia como a característica essencial desse processo de produção caótico que caracteriza a Superfície de Produção, e que tem algo a ver com a "loucura". Entretanto, a Superfície de Registro tem as peculiaridades que costumamos ver nas Neuroses, nas Perversões e também na Psicose Paranóica. Desde logo essas denominações não se referem às entidades clínicas, mas à lógica de funcionamento que as caracteriza, que aqui se pode aplicar, por exemplo, ao Estado, que é a Instituição paranóica por excelência, por suas peculiaridades prevalentemente centralizadoras. repressivas e antiprodutivas. A Superfície de Consumação é aquela em que o produzido, tanto o admitido pela Superfície de Registro-Controle, como aquilo da Superfície de Produção que escapa ao controle e se manifesta como novidade radical, invenção e revolução... são realizados e/ou consumidos, quer dizer, usados e gozados pelos agentes históricos. Toda essa introdução, pelo menos no momento, nos servirá apenas para