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CASE STUDY JOSÉ MOURINHO
UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE O FENÓMENO DA LIDERANÇA E A
OPERACIONALIZAÇÃO DA PERSPECTIVA PARADIGMÁTICA DA COMPLEXIDADE
Dissertação Apresentada para Obtenção do Grau de Mestre em Ciências da Comunicação,
Organização e Novas Tecnologias
Por Luís Manuel Guerreiro Dias Alves Lourenço
Sob orientação do Prof. Doutor Fernando Ilharco
RESUMO
A investigação que se apresenta tem como objecto o case study José Mourinho,
especificamente na sua dimensão de liderança. Trata-se de uma abordagem interpretivista que
analisa o trabalho e a liderança de José Mourinho à luz de desenvolvimentos teóricosvários,
tendo como primeiro fundamento a perspectiva paradigmática da complexidade,essencialmente
tal como ela é entendida na obra de Edgar Morin.
Apresentamos José Mourinho enquanto líder e treinador de futebol, dando a conhecer a
sua trajectória profissional desde o anonimato até ao estrelato onde actualmente se move. Esta
investigação apela a um corpus teórico diversificado e relevante para a compreensão do
fenómeno da liderança, especificamente da eficácia da liderança de José Mourinho. Assim,sob
a perspectiva paradigmática da complexidade, moldando o progresso da investigação e
estabelecendo as relações entre os diversos blocos teóricos, utilizamos para a análise do nosso
objecto de estudo a teoria da inteligência emocional, um conjunto importante deinvestigações
sobre a constituição e dinâmicas de grupo, bem como um leque importante de teorias
consagradas sobre o fenómeno da liderança ± desde a teoria do grande homem às teorias neo-
carismáticas, passando pelas análises comportamentais e contingenciais, entre outras.
Apresentamos também uma revisão da investigação em curso sobre o fenómeno daliderança no
que respeita ao relacionamento entre complexidade e liderança e entre complexidade e emoções.
A análise que fazemos do trabalho e da liderança de José Mourinho é precedida por
duas entrevistas, uma ao próprio José Mourinho e a outra a Rui Faria, técnico-adjunto de
Mourinho no Chelsea. Na análise que apresentamos no Capítulo 9, e que ocupa uma parte
importante da dissertação, propomos entendimentos, noções e conceitos que nos parecem
pertinentes para a compreensão da liderança de José Mourinho e da sua eficácia.
Entre esses aspectos, e a título de exemplo, propomos uma articulação teórica da
operacionalização da complexidade na liderança, tal como é levada a cabo por JoséMourinho;
identificamos e caracterizamos a noção de globalidade da acção profissional como uma
consequência da aplicação da perspectiva da complexidade; analisamos a noção de dominante,
introduzida pelo próprio Mourinho, propondo um enquadramento conceptual complexo;
sugerimos, e exploramos, o conceito à líder como indicador de um tipo de comportamento
necessário para a liderança e cuja genuinidade é importante; avaliamos a acção concreta de José
Mourinho à luz das diversas teorias introduzidas sobre liderança, e não esquecendo o seu
enquadramento paradigmático na complexidade, sugerimos que os modelos com os quais ele
tem mais afinidades são o carismático e o transformacional. Por fim, consideramos, com a
devida modéstia, que esta investigação pode também abrir caminhos para novos
desenvolvimentos, nomeadamente no que respeita à transferibilidade da prática profissional de
José Mourinho para as organizações em geral.
Introdução
O caso de sucesso que constitui a carreira de José Mourinho, actual treinador do
Chelsea FC, de Londres, para ser compreendido plenamente não pode ser encarado, ou
estudado, apenas na vertente de treinador de futebol. As vitórias que já conquistou ± e foram
muitas num curto espaço de tempo ± colocaram sobre ele os holofotes da fama a nível mundial.
Muitos perguntam hoje quem é José Mourinho, um homem que para além de um bem
sucedido treinador de futebol é igualmente um líder que arrasta e influencia milhões de pessoas
por todo o mundo.
José Mourinho é uma figura pública de expressão mundial. Ele não é apenas o treinador
da equipa de futebol do Chelsea. Ele é o líder que muitos seguem, admiram e respeitam: muitos
jovens ambicionam ser como ele, muitos homens gostariam de ser como ele, muitos
profissionais gostariam de aprender a ser mais como José Mourinho. Mourinho é um líder e os
seus actos e as suas palavras fazem sonhar legiões de admiradores.
Na investigação que a seguir apresentamos propusemo-nos estudar a dimensão da
liderança no trabalho de José Mourinho. Vamos tentar perceber o homem e o profissional,
simultaneamente como treinador de futebol e como líder de profissionais de alto rendimento.
Nesta dissertação mais do que tentar objectivar factos, estabelecer modelos de liderança, ou
determinar relações de causa-efeito, que supostamente nos conduzam a verdades ou a leis
universais, interessa-nos observar atentamente, seguir pistas, descobrir caminhos, estudar
detalhadamente e reflectir teoricamente sobre a complexidade do que encontrarmos.
Interessa-nos compreender melhor o fenómeno que investigamos, o qual, estudado
desde há muito, não temos dúvidas que é imensamente complexo, subtil e de enormes desafios.
Nesta investigação interessa-nos, também, promover o desenvolvimento de um tipo de
conhecimento que aceita a complexidade do mundo e a mudança em que a acção humana
sempre está envolvida e se envolve.
Deste ponto de vista interpretivista, procuramos descrever e entender a eficácia da
liderança de José Mourinho a partir de teorias e perspectivas várias, capazes de nos
proporcionarem um entendimento coerente, profundo e detalhado do fenómeno em causa.
Desta forma, conforme à prática estabelecida nas ciências sociais e humanas, optámos
por levar a cabo uma investigação interpretivista, assente num corpo teórico considerado
apropriado para o objecto em estudo e numa recolha qualitativa de dados, fundamentalmente
constituída ± mas não apenas ± pelas entrevistas apresentadas nos capítulos 7 e 8.
A presente dissertação está organizada em nove capítulos. No Capítulo 1 faremos uma
apresentação de José Mourinho. Traçaremos o seu percurso e mostraremos Mourinho através de
Mourinho, ou seja, pelas suas acções e pelas suas palavras iremos oferecer uma imagem global
daquilo que fez de Mourinho aquilo que ele é hoje e que justifica a sua ascensão ao mais alto
patamar do mundo do futebol e que, por simpatia, acabou por fazer dele um homem conhecido
em todo o planeta.
No Capítulo 2 iniciaremos a fase teórica da dissertação. O objecto desta investigação é a
liderança de José Mourinho. A perspectiva de fundo que modelará o nosso trabalho é a da
complexidade. É também esta perspectiva paradigmática que há muitos anos influencia o
trabalho de José Mourinho. Assim, referiremos várias teorias e noções no seio da perspectiva da
complexidade, nomeadamente, os estudos desenvolvidos por Edgar Morin e por Ilie Prigogine.
Tentaremos ir um pouco mais além, apresentando trabalho de outros pensadores,
filósofos e teóricos sociais, que tanto tiveram influência no estudo e no trabalho de Mourinho,
como é o caso Manuel Sérgio, como recorrentemente têm tido influência em estudos de ciências
sociais sobre a perspectiva da complexidade, como, por exemplo, é o caso do alemão Martin
Heidegger (1889-1976).
O projecto do mapeamento do genoma humano servir-nos-á como ilustração da
necessidade de um pensamento complexo para o estudo do homem, bem como das implicações
da acção humana. Procuramos nesta dissertação apresentar um texto integrado ± na sequência
do nosso propósito de realizar um estudo integrado ± onde desde o seu inicio, e à medida que
formos apresentando as teorias que iremos utilizar, faremos aproximações ilustrativas ao
trabalho de Mourinho. Trata-se de uma prática que iremos seguir ao longo do nosso estudo.
O Capítulo 3 apresenta um dos blocos de teorias que constituirá um dos fundamentos da
análise do trabalho de José Mourinho. Trata-se da teoria da inteligência emocional, tal como foi
desenvolvida e proposta por Daniel Goleman. Nesse capítulo faremos uma primeira
aproximação a Mourinho como líder emocionalmente inteligente.
No Capítulo 4 apresentaremos uma revisão sobre a investigação levada a cabo nas
últimas décadas sobre o fenómeno dos grupos. Pode, de resto, dizer-se que não é possível falar
da perspectiva da complexidade sem se falar no todo, como um grupo constituído por partes.
O trabalho de José Mourinho decorre no seio de um grupo de profissionais de alta
competição que ele lidera. É desta forma que neste capítulo iremos introduzir o conceito de
grupo e rever a investigação que sobre ele tem recaído numa perspectiva de ciênciassociais.
Apresentaremos os fundamentos do conceito de grupo, bem como noções sobre o seu
desenvolvimento e maturidade, as formas como nasce, se desenvolve e se mantém, eainda
diversas tipologias que têm sido propostas para o seu estudo.
No Capítulo 5 focaremos as teorias que descrevem e explicam o fenómeno da liderança.
Será um olhar simultaneamente histórico e evolutivo, já que iremos apresentar as diversas
teorias sobre a liderança desde os primeiros estudos propostos, em meados do séculopassado,
até aos dias de hoje, sob critérios que se prendem com o seu próprio desenvolvimento, na
medida em que aqueles estudos se foram tornando relevantes erespondendo às necessidades da
sociedade.
No Capítulo 6 procuramos apresentar um ponto de situação em termos da investigação
actual sobre o fenómeno da liderança. Porque José Mourinho assenta o seu trabalho e a sua
liderança nas teorias da complexidade, com um forte apelo à inteligência emocional,
procurámos essencialmente papers recentes que ligassem a liderança à complexidade, bem
como a liderança às emoções.
No Capítulo 7 reentramos no caso de estudo da nossa dissertação. No capítulo 1 fizemos
uma primeira apresentação de José Mourinho e do seu trabalho. Este capítulo éinteiramente
constituído por uma entrevista a José Mourinho, na qual, pretendemos ouvirna primeira pessoa
as razões das suas escolhas e decisões, da sua prática e da sua sistematização. Procurámos
discutir exploratoriamente os principais aspectos do trabalho de Mourinho sobre os quais recai a
nossa investigação: a complexidade e o seu trabalho; a forma como lida emocionalmente com os
seus liderados; a sua noção de grupo e o funcionamento dos seus grupos; e o seu estilo de
liderança.
O Capítulo 8 prossegue a discussão exploratória acima iniciada. Se no capítulo anterior
obtivemos o olhar do líder sobre as questões acima enunciadas, já neste capítulo, seguindo a
mesma metodologia ± a de discutir exploratoriamente os temas referidos ± pretendemos obter
uma visão de liderado, de um dos seguidores de José Mourinho. Apresentamos assim a
entrevista que realizámos a Rui Faria, adjunto no Chelsea FC, o ³braço direito´ de Mourinho na
equipa técnica.
Finalmente no Capítulo 9 apresentamos a nossa análise do fenómeno em estudo: a
liderança de José Mourinho. Sob a perspectiva da complexidade, com base nas teorias
introduzidas, sobre as emoções, o funcionamento dos grupos e a liderança, analisaremos aacção
e o trabalho concreto de José Mourinho, focando principalmente o material introduzido no
capítulo 1 e nas entrevistas apresentadas nos capítulos 7 e 8. Gostaríamos de salientar que sendo
a perspectiva da complexidade a nossa primeira base teórica, a que por isso modela toda a
investigação, termos procurado ao longo da dissertação nada separar em demasia, não separar
perdendo a noção do todo, e tudo pensar em conjunto nassuas relações e complementaridade,
nada por isso descontextualizando.
Desta forma se deverão entender as ligações, as conexões e os enquadramentos que
formos tentando fazer e apontar ao longo da dissertação, porque como adiante mencionaremos,
citando Hegel no contexto da epistemologia em que assentamos esta investigação, ³a verdade é
o todo´.
CAPÍTULO 1
QUEM É JOSÉ MOURINHO: BIOGRAFIA E IMAGEM
PÚBLICA
1.1. Quem é José Mourinho?
Parece ser hoje consensual que José Mourinho, o treinador de futebol do Chelsea FC, se
tornou, num curto espaço de tempo, num case study um pouco por todo o mundo. Com 43 anos
de idade e apenas 6 anos como treinador principal de futebol conta já com umcurrículo
invejável e talvez não menos surpreendente. Nas seis temporadas que já efectuouapenas em
quatro delas escolheu, preparou e conduziu equipas do princípio ao fim daépoca, já que nas
duas primeiras esteve apenas dois meses no Benfica e seis meses na União de Leiria. Nas
restantes quatro épocas liderou as equipas de futebol profissional do FC Porto e do Chelsea FC
e se só estas levarmos em conta, pelos motivos apontados, podeafirmar-se que José Mourinho é
o treinador de maior sucesso da actualidade em todo o mundo. O seu currículo só pode mesmo
ser comparado a alguns treinadores com largos anos de experiência em grandes clubes europeus.
Assim, em termos curriculares ± e não contando aqui com os ínumeros prémios
pessoais já ganhos ± José Mourinho colecciona, na sua sala de troféus, dois Campeonatos
nacionais de Portugal, uma Taça de Portugal, duas Supertaças portuguesas, uma Taça
UEFA e uma Taça da Liga dos Campeões e chegado há duas épocas a Inglaterra já
conquistou a Taça da Liga inglesa e também dois campeonatos. O velho ³mito britânico´
segundo o qual ninguém no primeiro ano naquele país consegue vencer a sua mais
importante prova acabou com José Mourinho.
Vamos, pois, neste capítulo introduzir José Mourinho. Iremos traçar em termos
genéricos o seu percurso enquanto treinador principal de uma equipa de futebol. Como se
lançou e como se afirmou na rota do sucesso são introduções que importa fazer para um
entendimento do que se pretende nesta dissertação: o estudo, de um ponto de vista de
ciências da comunicação, das práticas de interacção grupal e de liderança de JoséMourinho.
O sucesso do actual técnico do Chelsea não passa, defacto, despercebido a ninguém.
Nas televisões é hoje um líder de audiências, os jornais aumentam as tiragens sempre que
Mourinho é noticia de primeira página e os produtos aos quais o treinador empresta a sua
imagem são sucessos de venda. A constatação que, por agora, se faz é que a imagem de
José Mourinho extravasou, em larga escala, o campo desportivo. Ele transformou-se num
fenómeno global a ponto de ser hoje o rosto promocional de várias marcas de nome
mundial, como sejam os casos da Adidas, da American Express e da Samsung, entreoutras.
Portanto, no desporto ou nos negócios, Mourinho é uma referência mundial seja noplano
estrito da liderança seja no campo comunicacional mais vasto.
The million dollar question: a que se deve este impacto comunicacional? Apenas aos
resultados conseguidos nos jogos de futebol? Parece-nos que a resposta terá de ser dada
pela negativa. Tanto mais que se nos afigura pacifico que José Mourinho não é apenasvisto
como um treinador de futebol de sucesso. Eventualmente, será assim no ³mundo do
futebol´ mas fora dele profissionais de todo o mundo têm os olhos postos nos seusmodelos
de interacção, de gestão e de liderança, o que o torna, também, um gestor e umlíder de
sucesso.
Deste modo, Mourinho, é objecto de estudo e de apetência pelas empresasde marketing
e publicidade e a sua imagem é utilizada não apenas como um treinador desucesso mas
como um ³homem de sucesso´. Nos spots publicitários da American Express realça-se a
segurança e a determinação do profissional, bem como a sua capacidade deantecipação; na
campanha publicitária da Samsung compara-se José Mourinho ao famoso agente secreto
James Bond ± 007, sugerindo vertentes comuns no carácter de ambos:homens destemidos,
arrojados e decididos.
Desta forma, parece-nos claro que hoje em dia existe um convencimento geral de que o
sucesso de José Mourinho não se deve apenas aos seus conhecimentos técnicos sobre
futebol. A forma como comanda e gere uma equipa de futebol éconsiderada, igualmente,
determinante para os resultados que vai obtendo. A revistaExame, na sua edição de Abril
de 2005, dedica um artigo a José Mourinho com o título: ³18 Lições de Campeão´. Noante
título podemos ler: ³Pode o modelo de gestão de José Mourinho ser aplicado em empresas
fora do mundo do futebol? Sim. O seu livro tem ensinamentos para todo o tipode gestores´.
Não procurando, por agora, abordar a prática profissional de José Mourinho em toda a
sua extensão, pretendemos neste capítulo introdutório apontar de uma forma clara o que se
considera serem os principais pontos fortes do treinador do Chelsea enquanto líder e
comunicador, ou seja, aquilo que lhe dá força para o exterior bem como a força interior que
consegue transmitir aos seus jogadores. A forma como José Mourinho se relaciona com
estes últimos, enquanto catalizador de motivações, sejam elas de grupo ou individuais, e
como interage emocionalmente, gerindo as fraquezas e os pontos fortes do grupo, são
elementos que têm levado, não poucas vezes, as suas equipas a superarem-se. Emerge aqui
a inteligência emocional de José Mourinho, a qual aliada à sua organização profissional e à
sua eficácia comunicacional tem conduzido a uma conclusão generalizada: Mourinho
consegue transformar jogadores quase banais em super campeões e grupos quase banaisem
super grupos.
1.1.1. Mourinho: Um Caso Mediático
O treinador de futebol José Mourinho é hoje um caso raro de popularidade no mundo
inteiro. A razão que justifica esta constatação assenta nos resultadosatingidos em seis anos
de actividade profissional como treinador principal de futebol, bem como na sua imagemde
liderança. O que Mourinho ganhou catapultou-o para o estrelato e fez dele um dos maiores
protagonistas do futebol da actualidade. Mourinho conseguiu aliar à sua performance
desportiva uma forma diferente de estar no futebol, com uma linguagem diferente e uma
imagem diferente. Os resultados desportivos, a sua acção enquanto líder eo seu discurso
conjugados com o marketing fazem de José Mourinho oque ele é hoje, ou seja, um homem
de sucesso reconhecido internacionalmente.
Como profissional do futebol, Mourinho joga em todos os campos: dentro e fora das
quatro linhas. Joga também de formas diversas: com a razão e com a emoção. Num e noutro
caso José Mourinho utiliza o conhecimento profundo que tem do fenómeno futebolístico e
tenta colmatar os seus pontos fracos e, no caso dos adversários, tenta anular os respectivos
pontos fortes e explorar as suas fraquezas. A chave do seu sucesso tem sido, também,
atribuída à sua capacidade de criar grupos coesos e motivados, capazes de ir buscar forças
aos próprios antagonistas e de descobrir em si forças desconhecidas explorando-as até ao
limite. Também a empatia com todos os que consigo trabalham é algo de muito importante
e com certeza determinante. Desta forma, é fácil de entender que o trabalho de José
Mourinho junto do seu grupo não se resume às componentes físico-tácticas dos atletas.
Mourinho é, também, um condutor de homens e, como tal, um comunicadornato,
um gestor de emoções e um explorador de recursos. O trabalho mental é uma das suas
maiores armas. A comunicação eficaz com o grupo bem como as relações interpessoais
constituem algumas das ferramentas essenciais do seu trabalho.
1.1.2. Em Constante Desafio
José Mourinho era aos 36 anos um profissional bem instalado na vida. Era treinador
adjunto de um dos maiores e mais conceituados clubes do mundo, o Barcelona FC, egozava
de prestígio reconhecido no seu país e em Espanha, o país onde trabalhava. Em grande parte
pela visibilidade que o clube naturalmente lhe dava, Mourinho ia aos poucos sendo
reconhecido na Europa do futebol. No final da temporada de 1999/2000 quase que
abruptamente e com mais um ano de contrato, José Mourinho decidiu rescindir com
Barcelona. Para trás deixava um salário que, pela sua idade e experiência reduzidas, seria
difícil de igualar em qualquer outro clube. Deixava também uma posição cómoda e estável
como treinador adjunto, cujo trabalho sem pressões lhe permitiria continuar adesenvolver
as suas ideias e a sua aprendizagem.
Só que, a avaliar pela sua decisão, dinheiro e estabilidade não são tudo. Mesmo com
mulher e dois filhos menores ± um deles com menos de um ano de idade± José Mourinho
optou por desafiar o futuro. ³ Não tenho medo nenhum do futuro. Tenho uma grande
confiança em mim e nos meus conhecimentos. Seique posso fazer a diferença e que posso
vencer´ (Mourinho in Lourenço 2004: 25), e destaforma José Mourinho fez as malas e saiu
de Barcelona. Nessa altura a sua mente era dominada por um sentimento único: ser
treinador principal numa equipa de futebol. Mesmo que calculados, correu riscos, mas
estava absolutamente determinado conforme ocomprovam as palavras da altura na sua
biografia autorizada:
³Julgo que é possível, mais tarde ou mais cedo, encontrar um clube de segunda linha. («) Tenho um
projecto para entregar a quem me quiser contratar, tenho ambições e objectivos bem definidos. Levo comigo um
documento orientador que será a garantia do meu trabalho. Por outro lado, se o Barcelona me deu algo ± e muito
me deu, com toda a certeza ± foi visibilidade no meu próprio país. («) Quem me quiser contratar já está
familiarizado com o meu trabalho, pelo que não sou um completo desconhecido. Não fará, pois, uma aposta
totalmente no escuro porque sabe o que eu quero, só não sabe se eu vou ou não conseguir colocar em prática as
minhas ideias. De qualquer forma não quero pensar nisso agora´ (Mourinho in Lourenço 2004: 27).
E desta forma Mourinho entrou para as estatísticas do desemprego em Portugal. De
uma vida de sonho em Barcelona, num ápice, passou a desempregado em Setúbal. Está bom
de ver que a questão económica não se lhe colocava com especial acutilância. Antes, era na
questão profissional que mais e maiores riscos corria. José Mourinho estava, na altura,
longe de ser a figura pública que é hoje. Por outro lado ainda não tinha dado provas a
ninguém de que poderia, com algum sucesso, ser treinador principal numa equipa de
futebol. Por fim, constatando que no mundo do futebol vale bem o ditado ³quem não
aparece esquece´, José Mourinho não se podia dar ao luxo de estar muito tempo afastado.
Pelas razões apontadas, Mourinho correu alguns riscos profissionais. Porém, a sua
forte determinação, não temendo o futuro em nome de algo em que acreditava
profundamente, fizeram-no dar, talvez, o primeiro grande passo para conquistar tudo o que
conquistou até hoje. E de facto, volvidos quatro meses da sua saída de Barcelona, José
Mourinho encontrava-se no relvado do estádio da Luz a treinar, como técnico principal pela
primeira vez na sua vida, o Benfica.
Sobre a forma como José Mourinho encara o futuro, sem receios de maior, uma
outra situação, ocorrida cerca de ano e meio depois de se ter iniciado no Benfica± e que
tanta tinta fez correr nos jornais portugueses ± ajuda a conhecer o seu carácter. Depois de
uma disputa acesa entre Benfica e FC Porto para a sua contratação, em Janeiro de 2002, foi
a equipa do norte que levou a melhor. O FC Porto estava longe dos seus tempos áureos eo
presidente do clube portista, Jorge Nuno Pinto da Costa, tentava devolver ao clube o
passado recente, ou seja, tentava voltar às vitórias. Pinto da Costa optou então por demitiro
treinador, Octávio Machado, que não conseguira mais do que um desesperante 6º lugar ao
iniciar-se a segunda volta do campeonato. Para além disso o clube não conseguia ser
campeão ia para três anos consecutivos, performance de que só havia registo semelhante
nos idos anos 70.
Pela primeira vez, em cerca de 20 anos como dirigente portista, Pinto da Costa
começava também a ser contestado pela massa associativa. Pinto da Costa apostouentão em
José Mourinho, com a certeza de que aquela temporada, em termos de umavitória no
campeonato, estava definitivamente comprometida, mas com a esperança que melhores
épocas viriam.
A debilidade desportiva que o clube vivia na altura pareceu, também, não ter
atemorizado José Mourinho, o novo treinador do clube do Porto. No diade apresentação à
imprensa José Mourinho deixou o país desportivo atónito com ³tanta sobranceria´...
Estávamos, no dia 23 de Janeiro de 2002 quando, numa sala cheia dejornalistas, José
Mourinho disse o seguinte: ³para o ano vamos ser campeões´. O que olevava Mourinho,
logo no primeiro dia no clube, a desafiar os adversários com a ³certeza´ de que o FC Porto
até já podia, com ano e meio de antecedência, encomendar as faixas decampeão? Uma
razão muito simples: tratava-se de comunicar com eficácia para todo o clube, desde os
jogadores aos adeptos.
³José Mourinho quis dar a entender aos portistas, logo no primeiro dia, que estava no clube para ganhar.
(«) Ficou, desta maneira, içada a bandeira portista no mastro principal das Antas e Mourinho quis, desde logo,
toda a nação azul e branca unida à volta da nova bandeira´ (Lourenço 2004: 99).
E no ano seguinte o FC Porto ganhou o Campeonato Nacional, a Taça de Portugal e
a Taça UEFA. Mourinho prometeu menos do que aquilo que conseguiu. Parece claro que
José Mourinho não teme comprometimentos. Parece também correctoafirmar que o faz em
prol do seu grupo de trabalho. Manter um grupo unido, com uma missão de futuro e,
principalmente, sem pressões, parece ser a sua forma de actuação. Nemque para isso tenha
de chamar a si todas as pressões exteriores. Mas José Mourinhotambém gosta disso. Por
exemplo, Mourinho sabia que o seu regresso ao Estádio da Luz, enquanto treinador de uma
equipa adversária do Benfica, justamente o FC Porto, não seria pacífico. Estava agora do
lado do ³inimigo nº1´ e os adeptos benfiquistas não lheperdoavam a ³traição´. Por isso
afirmou:
³[S]abia claramente que quando entrasse em campo teria, aí sim, uma estrondosa recepção« pela negativa, claro
está. Por isso fiz questão de entrar sozinho, antes da equipa. O estádio estava cheio quando pisei a relva da Luz pela
primeira vez no dia 4 de Março de 2003. Faltava ainda cerca de hora e meia para o início do jogo. Foi fantástico.
Vivi uma sensação linda. Nunca fui um jogador de primeiro nível para sentir, por exemplo, o que o Figo sentiu
quando regressou a Barcelona e portanto não tinha bem a noção do que seria 80 mil pessoas a assobiar-me e a
apupar-me. Julgo que quando somos mentalmente fortes o efeito que as pessoas buscam, de intimidar e perturbar,
sai completamente furado. Ao invés, dão força e alento para prosseguir o caminho. Senti-me a pessoa mais
importante do mundo ao ouvir em uníssono o coro de assobios e vaias com que os adeptos benfiquistas me
receberam no Estádio da Luz. Ao mesmo tempo, ao descarregarem em cima de mim, acabaram por poupar a eq uipa,
o que também foi importante´ (Mourinho in Lourenço 2004: 149).
Tal como já referimos, a liderança de José Mourinho não se esgota na vertente
interna da sua organização. Ela passa para o exterior e muitas vezes produz um efeito
boomerang, ou seja, a mensagem é passada para o exterior de forma a muito claramente ser
eficaz no interior.
Atente-se na conferência de imprensa em Barcelona, em Fevereiro de 2005, na
véspera do encontro da primeira-mão dos oitavos de final da Liga dos Campeões Europeus.
Os jornalistas, ingleses e espanhóis, estavam ansiosos por saber qual a equipa que José
Mourinho faria alinhar. O técnico português queria fazer passar a mensagem de que o
Barcelona, para ele, não tinha segredos e isso era uma arma poderosa com que os seus
jogadores poderiam contar. Era uma forma de os motivar ao saberem que o líder tinha tudo
previsto, com base em total informação sobre o seu opositor. Ao mesmo tempo, o
adversário também se desmotivaria ± ou amedrontaria ± ao saber que não poderia contar
com o factor surpresa. Mourinho aproveitou a pergunta dos jornalistas sobre a constituição
da sua equipa para fazer a sua ³jogada´.
A resposta apanhou todos os jornalistas de surpresa de tal modo que ela correu
mundo. José Mourinho nomeou então todos os jogadores do Chelsea que iriam entrar em
campo no dia seguinte frente ao Barcelona. Equando os jornalistas pensaram que a resposta
estava dada, enganaram-se.
Mourinho disselhes ainda que lhes ia poupar trabalho« Sem se deter disse de
imediato a constituição da equipa que Frank Riijkard, treinador do Barcelona, iria fazer
jogar contra si no dia seguinte. E quando os jogadores entraram em campo pôde constatar-
se que nem num só nome José Mourinho se havia enganado.
1.1.3. Só a Vitória Interessa
Nos nossos dias, com especial e compreensível acutilância no mundo do desporto, oinstinto
competitivo é fundamental para se vencer. Um exemplo, de um passado já algodistante,
pode ilustrar o sentido competitivo de José Mourinho, para quem só a vitóriainteressa.
O autor desta dissertação é amigo de José Mourinho desde a infância. Na nossa terra natal,
Setúbal, todos os anos se realiza um torneio de futebol de salão que faz sonhar os jovens
que praticam a modalidade. É o maior e mais visível torneio da cidade e disputa-se em
Junho. Quis o sorteio que, nas meias-finais se defrontassem José Mourinho e eu próprio,
naquela que, consideravam os ³observadores´, seria a final antecipada do torneio. A cinco
minutos do fim do jogo ainda se mantinha o empate a zero. Mourinho ³pega´ então na bola
e arranca num ³sprint´ a alta velocidade. O último dos jogadores adversários, até chegar ao
guarda-redes, era eu, ironia do destino, o seu amigo em campo. José Mourinho em
velocidade ³passou´ por mim, saltando-me por cima das pernas que tentavam cortar a bola.
Um simples toque tê-lo-ia desequilibrado e feito cair. Teria sido falta, mas não teria
sido como foi ± golo. Só que um simples toque, à velocidade a que Mourinho seguia,
poderia tê-lo magoado seriamente. A minha decisão, instintiva obviamente, foi não fazer
falta, não correndo assim o risco de o lesionar. No final, já depois do banho tomado,
encontrámo-nos para seguir juntos para casa. José Mourinho não perdoou a minha decisão...
Para ele, ali dentro do campo, não havia amigos mas sim adversários. Por uma má decisão
minha, todo um grupo havia sido prejudicado e todo um outro grupo, neste caso o dele,
havia sido beneficiado.
O grupo que foi prejudicado ± o meu ± não tinha nada a ver com as relações entre
nós, argumentava Mourinho. Se a situação ocorrida durante o jogo fosse inversa eleteria
tomado a decisão de fazer falta, confidenciou-me. O caso aconteceu tínhamos ambos 22
anos. Na altura passou-me despercebido... Hoje ajuda-nos a compreender que a
competitividade de Mourinho não nasceuontem«
Passadas cerca de duas décadas a situação, repetiu-se. Mourinho continuou a ser um
dos protagonistas, o outro é que mudou. Nas meias-finais da Taça UEFA, na época de
2002/2003, o FC Porto defrontou a Lazio de Roma, considerado, então, o grandefavorito à
vitória naquela competição. Quis o sorteio que o primeiro jogo fosse no Estádio das Antas,
no Porto. Naquele que Mourinho considerou o ³melhor jogo da época do FC Porto´, a dois
minutos do final os portistas venciam por 4-1, um resultado excelente não fosse o
adversário marcar ainda um golo, o que já não seria tão positivo. Ir a Roma com uma
diferença de três golos seria fantástico, com uma diferença de dois seria apenas bom.
³Faltava um ou dois minutos para o final quando, numa jogada de contra-ataque, a bola sai pela linha lateral
mesmo junto a mim. De imediato o argentino Castroman apanha a bola e prepara-se para servir um companheiro
seu. Estava no enfiamento da linha limite da nossa grande área e apercebi-me do perigo. A nossa defesa estava
descompensada, ou seja, dois avançados italianos para dois defesas meus, pelo que sobrava, de imediato, o
Castroman, que logo se integraria na manobra ofensiva. O 4-1 era um resultado excelente mas o 4-2 já não era
assim tão bom. Ele (Castroman) estava mesmo junto a mim e eu puxei-o para que não fizesse de imediato a
reposição da bola em jogo. O argentino reagiu, o árbitro viu e fez o que tinha de fazer: expulsoume e mostrou um
cartão amarelo ao jogador da Lazio. É evidente que foi feio. Não foi uma situação instintiva da minha parte, por
isso, reconheço a justiça da minha expulsão. Não tive fair play, para além de ter intervido directamente no jogo.
Logo na altura eu pedi desculpa ao Castroman e ele a sorrir respondeu-me apenas:  Mister, é futebol»´ (Mourinho
in Lourenço 2004: 156).
1.1.4. Estrelas e Anónimos: Todos São o Grupo
Uma equipa de futebol da dimensão do Chelsea FC é composta por ínumeras
estrelas. Não há um único jogador do Chelsea± à excepção do guarda-redes suplente, Carlo
Cudiccini ± que não seja internacional pelo seu país. Sob o comando de José Mourinho
estão nomes famosos do futebol mundial como Frank Lampard, John Terry, Didier Drogba,
Michael Ballack ou Andrei Schevschenko, entre outros. Para José Mourinho são nomes
importantes no mundo do futebol, mas o nome mais importante é mesmo Chelsea FC. Só
em torno deste emblema acontece o êxito, justamente, porque para o treinador o importante,
a verdadeira estrela, é mesmo o grupo. E o grupo ± enquanto todo ± vale mais que a soma
das partes. O grupo supera-se na soma de todas as partes. No entanto o grupo não começa
nem acaba nos jogadores da sua equipa. Ele vai muito para além disso. Todos os que fazem
parte da estrutura profissional de futebol constituem o grupo de José Mourinho, e todos
eles, nos seus respectivos lugares, são importantes para o sucesso final do grupo. Esta éuma
imagem que Mourinho não prescinde de fazer passar a todos os que trabalham comele. Não
nos poderemos, pois, admirar com episódio a seguir descrito.
Estávamos no início da temporada de 2004/2005. José Mourinho tinha chegado ao
clube inglês há cerca de um mês. O clube encontrava-se na pré-temporada e os primeiros 30
dias foram de trabalho em Stamford Bridge, o estádio do Chelsea. Cedo o técnico português
percebeu que a relva se encontrava em condições magníficas. Essas condições
permitiramlhe excelentes treinos, que tiveram como prémio a primeira vitória num torneio
realizado nos Estados Unidos, onde o cabeça de cartaz era o AC Milan, recentemente
coroado Campeão Europeu. A taça foi levantada, em campo pelo capitão John Terry, mas o
seu destino já estava traçado. Em reconhecimento ao trabalho do tratador da relva de
Stamford Bridge, pelos treinos proporcionados à equipa, e que José Mourinho considerou
um dos obreiros da vitória, a Taça, uma vez chegada a Londres, foi directa para a casa
daquele profissional do Chelsea. Aquele homem, de quem ninguém, à excepção de
Mourinho, se havia lembrado quando o Chelsea conquistou o troféu, teve nos dias seguintes
os seus merecidos momentos de glória. Os jornais britânicos não deixaram passar em claro
o destino do troféu. Nunca um tratador de relva havia dado tantas entrevistas, havia visto
tantas fotografias suas nos jornais e, muito provavelmente e mais importante, nunca havia
sentido o seu trabalho tão reconhecido.
Estas histórias servem, numa análise necessariamente breve, para que se possa
compreender a dimensão do profissional em questão. Trata-se de episódios escolhidos para
de uma forma abrangente ilustrar o carácter do profissional, evidentemente intimamente
ligado ao carácter do ser humano José Mourinho.
1.1.5. Razão e Emoção
³Os jogadores foram fantásticos e mostraram o grupo que somos, mostraram o
quanto crescemos como organização; os adjuntos são unidos, não háciumeiras, sabem para
quem trabalham e o que devem fazer, têm carácter moldado ao do líder, foram a minha
voz´, disse José Mourinho depois de se ter sagrado campeão inglês, pelo segundo ano
consecutivo ao serviço do Chelsea.1
José Mourinho é um treinador especial, e os seus resultados comprovam isso
mesmo. Enquanto técnico está em permanente actualização, em estudo constante. Como
profissional tem aquilo a que na gíria futebolística se chama ³instinto de treinador´. Além
disso, ou talvez relacionado com isso mesmo, José Mourinho é um excelente comunicadore
um líder eficaz.
Quando concebe de raiz uma equipa, o treinador do Chelsea tem um perfil traçado
para os profissionais que pretende. Quer jogadores jovens, pobres e sem títulos ganhos.
Pretende, desta forma, motivação e ambição.
No conceito de grupo de Mourinho o individual tem pouco valor se não trabalhar
em prol do colectivo. O grupo é o que mais conta e o individual é entendido na perspectiva
de melhorar a actividade do grupo.
Na sua liderança Mourinho é centralizador, mas não dispensa as opiniões dos
diversos elementos do seu grupo de trabalho. É frontal e preconiza a justiça como o
caminho para atingir a lealdade e disciplina nos vários graus hierárquicos.
José Mourinho motiva os membros das suas equipas ao discutir com eles o seu
desempenho; vai de encontro à natural necessidade de afiliação; e informa-os sempre que
toma decisões. Desta forma, Mourinho comunica com eficácia com os jogadores e com os
outros profissionais do seu grupo. Qualquer jogador tem sempre a porta do gabinete deJosé
Mourinho aberta.
A este nível de comunicação interpessoal, José Mourinho é um líderparticularmente
atento. Nos casos de indisciplina José Mourinho parece igualmente gerir oseu grupo com
mestria. Em dois casos, tratou os envolvidos de formas eficazes, mas totalmente diferentes.
Num caso a que adiante nos referiremos com maior detalhe, obenfiquista Maniche, em
2000, foi relegado para a equipa B depois de ter sido expulsonum encontro do campeonato
português e posteriormente ter mostrado um evidente desinteresse nos treinos. Num outro
caso passado com Vítor Baía, guarda-redes do FC Porto, levantou um processo disciplinar e
afastou-o, sumariamente, do grupo depois de uma violenta discussão no balneário, onde
Mourinho achou ter havido desrespeito para com o líder do grupo. A comunicação, no caso
de Maniche, foi informal e, de certa forma, paternal.
No caso de Baía foi autoritária, sem margem para discussões, porque o papel quecada um
desempenha no grupo e as suas próprias personalidades são diferentes e Mourinho sabia
muito bem disso. Contudo, em ambos os casos, ao fim de relativamente pouco tempo,
aqueles jogadores estavam de volta à equipa, e com resultados excepcionais.Servem estes
dois exemplos para apontar a importância e a influência de José Mourinho,quer ao nível do
desempenho do grupo e da motivação individual, quer no plano do exercício da sua
autoridade.
Talvez por estes motivos, José Mourinho só contrata para as suas equipas jogadores
evoluídos culturalmente e com ³opiniões próprias´ (Lourenço 2004: 27), para assim poder
levar a cabo o seu método de treino, aprendizagem e motivação a que chamou ³descoberta
guiada´ e que mais adiante descreveremos com algum detalhe. Importa, por agora, destacar
a importância da comunicação interpessoal e intra-grupal ± a sua coerência e consistência
interna, mesmo na diversidade que muitas vezes apresenta± na forma como José Mourinho
lidera o seu grupo de trabalho.
A maneira como José Mourinho usa a razão para compreender as suas emoções e as
do seu grupo de trabalho, e assim tomar decisões racionais em ambientes muitas vezes
intensamente emocionais, faz com que muitos o apontem como um ³mestre´ na difícil
tarefa de conduzir e motivar um grupo de profissionais. Nos exemplos anteriormente
apontados nota-se a conjugação de uma comunicação constante e frontal com os seus
jogadores, bem como um equilíbrio constante entre razão, isto é, competência e capacidade
de análise, e emoção, isto é, relações humanas e motivação pessoal. Atente-se na carta
escrita por Mourinho, no início da época de 2002/2003, aos jogadores do FC Porto.
³[E]spero que as férias te tenham oferecido o que delas esperavas e que te tenham ¡recarregado» as baterias da
motivação e da ambição. ¡Ser campeões» tem de ser sempre o nosso objectivo. Um objectivo diário, uma motivação
consistente e permanente uma luz que tem de guiar o nosso trajecto a partir de agora. (¡ ) A nossa relação pessoal,
não tenho dúvidas, vai crescer rapidamente e a nossa equipa vai continuar a evoluir. («) Eu e a Administração
acreditamos em ti. É precisamente por isso que aqui estás. («) Ser titular nunca será uma palavra correcta, porque
o equilíbrio qualitativo é enorme. Preciso de todos porque o trabalho é longo e difícil. Todos serão opção e todos
serão um contributo para a equipa. Todos vós precisam unsdos outros. Somos uma EQUIPA. «Só há espírito de
equipa», diz o André numa frase que considero fantástica, «quando um atleta não convocado está a ver o jogo no
camarote e não aceita que alguém critique um colega seu». Eu acrescento: motivação + ambição + espírito de
equipa = sucesso´ (Lourenço 2003: 128).
Por estas palavras se pode entender a preparação psicológica que José Mourinho exerce
sobre os seus jogadores logo desdeo primeiro dia de trabalho. Também se entende
facilmente o rumo do seu pensamento ao fazer depender o sucesso da conjugação de três
premissas: motivação, ambição e espírito de equipa. Sublinha-se ainda a interdependência
dos elementos perante o grupo (incluindo-se aqui a ele próprio) quando afirma que todos
os elementos dependem uns dos outros. Por fim deixa bem vincada a sua liderança, ainda
que duma forma indirecta, ao dizer que acredita no jogador, por isso ele faz parte do grupo
³por si escolhido´.
Para além de recursos humanos, Mourinho gere também de uma forma muito
interessante a sua imagem. Quer para dentro do grupo quer para a opinião pública, o tipo de
comunicação que efectua obriga à reacção. Para o exterior Mourinho passa a imagem de
arrogante, ³compra´ ou provoca ³guerras´ e em caso algum se atemoriza. José Mourinho
aprendeu que a indiferença dos outros não lhe é útil. Desta forma é um estudioso das
reacções humanas e procura nos outros forças para si mesmo e para o seu grupo.
Desencadeada esta espécie de processo de guerrilha, Mourinho controla as suas emoções e
explora as do adversário em seu proveito. Pode bem dizer-se que transforma fraquezas
alheias em forças suas. Além disso, e como amigo de longa data do treinador actual do
Chelsea ± e conforme ao espírito descritivo deste capítulo ± devemos acrescentar que desde
há muito é para mim pacifico que José Mourinho tem uma especial, e talvez rara,
capacidade para lidar com apressão.
Será mesmo talvez de dizer, possivelmente sem exagerar por aí além, que a pressão
exterior não o atinge; que 80 mil pessoas vaiando-o no Estádio da Luz, antes do encontro
com o Benfica, não só não o incomodaram como o motivaram e fizeram-no entrar em
campo primeiro que os seus jogadores, poupando-os assim ao ruído ensurdecedor das
primeiras vaias dos adeptos benfiquistas.
Mourinho utiliza o conhecimento profundo que tem dos seus jogadores, gere as suas
emoções e utiliza-as em proveito do grupo. Busca, de igual modo, toda a informação
possível sobre os seus adversários, através de um estudo exaustivo, transmite-a ao grupo e
com a colaboração dos que consigo trabalham estuda as melhores formas de anular os
pontos fortes e explorar as fraquezas dos adversários. Mourinho é muito mais do que um
técnico de futebol. Se o é, então como Manuel Sérgio referiu (in Lourenço 2004: prefácio),
ele é um novo treinador e não apenas um treinador novo. Ele é um líder, um visionário, e
um comunicador nato. Sabe qual o caminho a seguir para fazer a diferença. Enquantogestor
de pessoas, de emoções, de afectos e interacções, o cunho pessoal de Mourinhoparece de
facto ter um lugar único no mundo do futebol.
1.1.6. José Mourinho, O Carismático
A revista Visão, edição de 4 de Abril de 2005, escrevia como subtítulo de uma reportagem
sobre o treinador do Chelsea: ³À beira de ser campeão, no primeiro ano em Inglaterra, Sir
Mourinho tem o mundo a seus pés. Em Londres é amado e odiado. Seja pelas vitórias do
Chelsea, a arrogância, o sobretudo ou a barba de três dias´. É assim José Mourinho, uma
figura pública que não deixa ninguém indiferente. Para isso o treinador reúne várias
características que o tornam único na sua profissão.
19
Na sociedade mediática em que vivemos, cada vez mais os membros das diversas
comunidades tendem a identificar-se, a seguir e até a apaixonar-se por aqueles que se
apresentam como líderes, nos mais diversos sectores das sociedades. Aliás, esta linha de
identificação e de paixão com e pelo líder, foi há muito indicada por Sigmund Freud
(1856-1939), como o substrato mais profundo do fenómeno grupal.
O carisma, lato sensu, pode indicar-se como uma atracção irracional, isto é, sem
necessidade de uma explicação racional, por parte das massas por alguém que lhes inspira
poder e confiança, amor ou ódio. Ora José Mourinho é hojeum homem carismático, gostese
ou não dele. Ele gera sonhos, imitações e inspirações, provoca ódios e paixões como
poucos. Seja pelas suas vitórias, pela sua arrogância aparente, pela barba± geralmente com
3 dias por fazer... ± ou pelo seu sobretudo cinzento ± que tanta tinta fez correr nos jornais
ingleses ±, pelas suas declarações frontais e por vezes provocatórias, Mourinho está sempre
nas luzes da ribalta. ³José´ como é conhecido em Inglaterra é, em tantos cantos do mundo,
o homem que adolescentes e adultos gostariam de ser. Porquê? Talvez porque conseguiu
um sucesso mundial aos 40 anos de idade, porque é famoso, porque tem bom porte, uma
personalidade vincada e porque sabe o que quer e para onde vai. Depois, desde a sua
imagem às suas palavras e actos, Mourinho comunica de uma forma ímpar todo este
manancial de virtudes para o mundo exterior.
Desta forma, parece-nos apropriado fechar esta subsecção com a história que, por ventura,
mais celebrizou José Mourinho em todo o mundo. A história que o baptizou como The
Special One. No dia da sua apresentação como treinador do Chelsea FC, José Mourinho
compareceu aos jornalistas ingleses, em Londres, para a habitual conferência de imprensa.
Todos queriam saber como é que um português de 41 anos iria gerir, comandar e treinar
uma das maiores e mais mediáticas equipas de futebol do mundo. Quem era José
Mourinho? Como chegara ali? O que pretendia? Como iria adaptar-se a uma realidade
nova e seguramente difícil? Como reagiria à pressão? Enfim, muitas e pertinentes questões
teriam de ser colocadas a este português com fama de arrogante, aparentemente muito
seguro de si, mas que sem dúvida pouco ou nada conhecia da realidade britânica. Todas as
perguntas foram feitas e uma resposta teve dimensão mundial: ³Because I¶m a Special
One´. Esta resposta foi dada por José Mourinho com base nos resultados conseguidos pelo
FC Porto, sob o seu comando, nas duas temporadas anteriores, conquistando a Taça UEFA
e a Liga dos Campeões. José Mourinho afirmou, então, que se o futebolinglês, o Chelsea e
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os seus jogadores eram especiais, ele, com toda a certeza também o era, por aquilo que
tinha ganho, pela forma como tinha ganho e, acima de tudo, no clube onde tinha ganho,
seguramente, um clube com pouca dimensão económica quando comparado com os
grandes da Europa. Ainda assim, em dois anos seguidos, ele rivalizou com os ³grandes´ da
Europa e ganhou. Isso tornava-o diferente, special, de tal forma que não teve qualquer
hesitação em admiti-lo perante uma plateia de jornalistas ingleses. No dia seguinte as
primeiras páginas dos jornais britânicos fizeram-se em uníssono: ³I¶m a Special One´.
Hoje, em toda a Inglaterra e, provavelmente, grande parte do mundo± pelo menos
desportivo ±, quando se fala no The Special One todos sabem que se está a falar de José
Mourinho.
1.2. José Mourinho: a Imagem Pública
Entramos assim na sua segunda parte deste capítulo, dedicada à imagem pública de José
Mourinho. Caracterizado que está ± ainda que em traços largos ± o percurso e o sucesso de
José Mourinho, passamos agora a outra fase deste capítulo. Procuraremos nas páginas
seguintes enquadrar José Mourinho face ao que dele se comenta com mais regularidade.
Ao olharmos os jornais, ao vermos a televisão, ao ouvirmos a rádio, ou até mesmo nas
conversas de rua, quando se fala de Mourinho existem sempre algumas ideias que se
sobrepõem e que são, de certa forma, consensuais para a generalidade das pessoas, quer se
goste ou não da figura em causa. Da nossa experiência pessoal, e como biógrafo de José
Mourinho, recolhemos aqui alguns dos traços que geralmente lhe são atribuídos.
1.2.1. Disciplina
Reconhecidamente, José Mourinho conduz os seus grupos de trabalho com mestria. Numa
equipa de futebol, recheada de ³estrelas´, não é fácil gerir ambições, emoções e
motivações, e torna-se problemático resolver conflitos. O treinador português enfrenta-os
com autoridade e disciplina.
Num caso que acima já fizemos referência, quando treinava o Benfica, após Maniche ser
expulso num jogo com o Boavista, e depois de outros incidentes, Mourinho interpelou o
jogador com frontalidade:
21
³Das duas uma: ou tens um problema de cabeça e precisas de o resolver ou tens um
problema físico e precisas, na mesma, de arranjar solução. Por isso vais treinar para a
equipa B e quando achares que ou a cabeça ou o físico já não têm problemas vens ter
comigo´ (Lourenço 2004: 44).
Passados quatro dias Maniche dirigiu-se ao técnico, pediu-lhe desculpas e depois de pagar
uma multa de 1000 euros foi reintegrado na equipa principal do Benfica. Poucas semanas
depois Maniche era o capitão benfiquista e foi, posteriormente, um dos elementos
essenciais na equipa do FC Porto ± com José Mourinho ± e da selecção nacional. Chegou
ainda a jogar pelo Chelsea sob o comando do treinador português.
1.2.2. Autoridade
Depois de passar pelo Benfica, José Mourinho assumiu o comando técnico da União de
Leiria. No estágio de pré-temporada, na localidade de Tábua, quando todos os elementos
do grupo ainda se estavam a conhecer surgiu uma situação que, para os jogadores,
esclareceu cabalmente o papel de cada entidade e de cada profissional na estrutura
leiriense. Num sábado de sol os administradores do clube marcaram um encontro de
futebol com os jornalistas que acompanhavam a equipa. Não tinha acabado o treino da
equipa de Mourinho e já alguns ³patrões´ da União de Leiria realizavam, do outro lado do
campo, exercícios de aquecimento com vista ao ³amigável´ que se seguiria.
³Mourinho parou imediatamente a sessão e, gritando para os ¢
atletas» que iniciavam o
aquecimento, mandou-os abandonar o campo. A surpresa foi geral, tanto de um lado
como de outro. Os jogadores e restante equipa técnica ficaram mudos à espera que a
¢
bronca estalasse». Os elementos da SAD da União de Leiria entreolharam-se sem
acreditar muito bem que estavam a ser expulsos por um seu subordinado. Por mais três
vezes, com voz firme e grossa, José Mourinho gritou para o outro lado do campo a
palavra ¢
RUA». Um deles ainda retorquiu: ¢
Mas porquê Mister? Você está a treinar aí
e nós estamos aqui, qual é o problema?». Mourinho manteve-se inalterável no seu
propósito: ¢
Eu depois explico-vos. Agora, rua!!!». A indecisão deu lugar à obediência
e o campo ficou totalmente livre para a União de Leiria continuar a treinar´ (Lourenço
2004: 82).
Mais tarde Mourinho explicou aos administradores as razões da sua atitude: aquele era, na
altura, um local de trabalho, não de diversão e por esse motivo só o seu grupo de trabalho
22
poderia estar ali; tudo o resto só ajudava à desconcentração, algo que Mourinho não
permite. Deram-lhe razão e prometeram que não se repetiria uma cena idêntica.
1.2.3. Motivação
Ao serviço do FC Porto, em vésperas de um importante Porto/Benfica, José Mourinho
deparou-se com uma entrevista do então Presidente do Benfica, Manuel Vilarinho, na qual
afirmava ter sonhado que a sua equipa iria ganhar, por 3-0, no Estádio das Antas.
³Quando Vilarinho tornou público o seu sonho de imediato pensei: ¢
aí está a
provocação que eu preciso para agitar o orgulho dos meus jogadores. De imediato
mandei fazer uma fotocópia da entrevista do presidente do Benfica e coloquei-a na
parede do balneário das Antas durante toda a semana, para que ninguém se esquecesse
do ³sonho´ de Vilarinho. Aos jornais disse apenas que na nossa casa ninguém nos
ganha por 3-0. E fomos para o jogo de alguma forma espicaçados´ (Lourenço 2004:
105).
A verdade é que o jogo terminou com uma vitória do FC Porto por 3-2.
1.2.4. Determinação
Com apenas dois meses de treinador principal, José Mourinho sentiu que o seu futuro
poderia não passar pelo Benfica. Em início de carreira, a vida no clube da Luz não foi fácil.
Face à a mudança de um presidente que lhe dava toda a confiança (Vale e Azevedo) para
outro que lhe retirava toda a confiança (Manuel Vilarinho), Mourinho não temeu o futuro e
arriscou. Devia ou não continuar no Benfica? Devia ou não definir de uma vez por todas o
seu futuro com a direcção do clube? Devia ou não esperar que o despedissem? Devia ou
não, simplesmente, bater com a porta? A caminho de casa, na auto-estrada que liga Lisboa
a Setúbal, Mourinho tomou a decisão que iria abalar o país desportivo. Agora vai ser o
tudo ou nada», referiu. Manuel Vilarinho recebeu José Mourinho no gabinete presidencial
do Estádio da Luz. O presidente já sabia do que se tratava pelo que não era necessária
qualquer introdução prévia ao assunto. Na reunião valeu o pragmatismo. José Mourinho
não se deixou tentar pelas palavras de Vilarinho. Estava demasiado fragilizado por tudo o
que lhe tinha acontecido até então na Luz. ³Agora ou era preto no branco» ou era nada.
23
E deu nada!´ (Lourenço 2004:64). Nesse mesmo dia José Mourinho rescindiu contrato
com o Benfica e não mais voltou a treinar a equipa da Luz.
1.2.5. Frontalidade
Na gestão de Mourinho não têm lugar jogadas subterrâneas. A comunicação frontal é vista
como algo imprescindível ao bom funcionamento do grupo. Um exemplo de frontalidade é
o caso da dispensa de Maniche da equipa principal do Benfica, acima referido. Nos grupos
de José Mourinho todos devem comunicar entre si e dizer o que têm a dizer, sem
constrangimentos e com total lealdade. Assim, nos minutos que antecederam o seu
primeiro treino ao serviço do Benfica, Mourinho prometeu aos seus jogadores que o mote
era ³olhos nos olhos´: ³ofereci-lhes frontalidade total. Quis, assim, que todos tivessem a
certeza de que quando o treinador tomasse decisões sobre os jogadores do Benfica, fossem
elas quais fossem, eles seriam sempre os primeiros a saber e por meu intermédio´
(Lourenço 2004: 39). Ainda no Benfica um outro exemplo ilustra de forma cabal a
frontalidade da actuação de José Mourinho.
No início do ano de 2001, Mourinho treinava a União de Leiria quando surgiu o interesse
do Benfica em contratá-lo. Toni havia sido despedido e o clube de Lisboa necessitava de
um novo técnico. Mourinho foi o escolhido einiciaram-se as negociações. Existia, no
entanto, um entrave. Jesualdo Ferreira estava no clube como treinador adjunto e Mourinho
não contava com ele na sua equipa de trabalho. Os dirigentes do Benfica insistiam, porém,
na integração do técnico na equipa de adjuntos de Mourinho. Na reunião a posição de José
Mourinho ficou bem clara: ³Das duas uma: ou digo directamente, olhos-nos-olhos, a
Jesualdo Ferreira que não quero trabalhar com ele, para que, claramente, entenda que sou
eu que não quero trabalhar comele, ou então nada feito e não vou para o Benfica
(Mourinho in Lourenço 2004: 93). E por esta e outras razões Mourinho acabou mesmo por
não chegar a acordo com o Benfica.
1.2.6. Risco
José Mourinho não tem medo de desafiar o futuro. Para isso arrisca,provoca e
compromete-se. No ano de 2003, ao serviço do FC Porto, a sua equipa perdeu, em casa,
24
nos quartos de final da Taça UEFA, por 1-0, com o Panathinaikos da Grécia. No final do
encontro, Mourinho viu o treinador adversário, Sérgio Markarian, a festejar como se já
tivesse vencido a eliminatória. Não gostou e de imediato se dirigiu ao seu opositor:
³Não estejas aos saltos que isto ainda não acabou´. Logo de seguida passou pelos
adeptos portistas, nas bancadas do Estádio das Antas e fez-lhes um sinal como que a
dizer µtenham calma, ainda temos uma palavra a dizer... («) Quando chegou aos
balneários, depois de ter visto a festa grega, deparou-se com o inverso. Os seus
jogadores estavam tristes, frustrados e de cabeça baixa. Logo ali José Mourinho quis
deixar as coisas bem claras. £
Isto não acabou e eu disse isso, mesmo agora, ao
treinador deles. Nós vamos lá dar a volta à eliminatória e se alguém aqui não acredita
que é possível ganhar lá e passar às meias-finais que o diga já, porque fica cá e eu vou
para a Grécia com outro» (Lourenço 2004: 151).
Quinze dias depois o FC Porto ganhou o jogo por 2-0, qualificando-se para a meia-final da
Taça UEFA, competição cuja edição desse ano havia de ganhar.
1.2.7. Participação
Para o actual treinador do Chelsea FC todas as opiniões contam. O líder, para ele, só
adquire a liderança de facto e de direito se esta for conquistada racional e emocionalmente.
Daí que nos seus métodos de trabalho todos sejam chamados a participar e todos fiquem
com a certeza de que contribuíram para as decisões finais que envolvem o grupo. Desta
forma, os jogadores são responsabilizados quer pelas vitórias quer pelas derrotas.
³O trabalho táctico que promovo não é um trabalho em que de um lado está o emissor
e do outro o receptor. Eu chamo-lhe a ¤
descoberta guiada», ou seja, eles descobrem
segundo as minhas pistas. Construo situações de treino para os levar por um
determinado caminho. Eles começam a sentir isso, falamos, discutimos e chegamos a
conclusões´ (Mourinho in Lourenço 2004: 26).
1.2.8. Grupo
Um conceito de grupo coeso e solidário é algo de que José Mourinho não prescinde. A
ideia é de imediato transmitida a todos os seus colaboradores: ninguém está acima do
grupo. Assim, no estágio de pré-temporada do FC Porto, em 2002, ao fim de alguns dias, o
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treinador portista deu, finalmente, uma noite de folga aos seus jogadores. Marcou-lhes a
hora de regresso ao hotel e esperou por eles.
³Fiquei completamente surpreendido, não só por terem aparecido muito antes da hora
marcada, mas também por terem chegado todos ao mesmo tempo. Perguntei, então, ao
Jorge Costa, que ia a passar por mim:
- Jorge, o que é que se passou aqui?
- Fomos todos juntos e temos aqui um grande grupo Mister.
É difícil exprimir o que sente um treinador ao ouvir o capitão falar assim. Vinte e tal
homens que estavam juntos há cinco dias, na sua primeira folga optaram por estar
juntos, jantar juntos e confraternizar juntos. Era o meu grupo que estava a nascer´
(Mourinho in Lourenço 2004: 123).
E nasceu, de tal forma, que nesse ano o FC Porto ganhou tudo o que tinha para ganhar:
Campeonato, Taça de Portugal e Taça UEFA.
1.2.9. Confiança
José Mourinho é naturalmente um homem confiante. Acredita sempre na vitória e faz
questão de passar esse estado de espírito para os que consigotrabalham. Só acreditando na
vitória se pode ganhar.
Na temporada de 2002/2003 o jogo que decidia a vitória portista no campeonato estava
agendado para o Estádio na Luz, com o Benfica. Na preparação do encontro Mourinho,
treinador do Porto, surpreendeu os seus jogadores.
³Para moralizar os meus jogadores não sou um treinador que opte pelos ³gritos de
ordem´ tipo: ¥
vamos a eles, até os comemos, somos os melhores, etc., etc., ». Nada
disso. No que respeita ao jogo com o Benfica fiz passar a mensagem de superioridade
total sobre o adversário. Eu sabia que o Camacho ± treinador benfiquista -, sempre que
estava a perder, trocava o Zahovic pelo Sokota. Ora, quando iniciei os treinos fi-lo
exactamente no sentido de preparar a minha equipa contra as investidas atacantes do
Sokota. Até que um jogador, meio surpreendido me disse: ¥
Mas, Mister, eles não
jogam com o Sokota, jogam com o Zahovic!!!». Era o que eu queria ouvir para de
imediato responder: ¥
Jogam com o Zahovic quando estão a ganhar. Contra nós vão ter
26
de jogar com o Sokota, que é a opção de Camacho quando estão a perder«»´
(Mourinho in Lourenço 2004: 147-8).
O facto é que o FC Porto chegou à Luz e ganhou o encontro por 1-0. Camacho, o treinador
benfiquista, foi mesmo obrigado a colocar Sokota em campo.
1.2.10. Análise
Nada no seu trabalho José Mourinho quer deixar ao acaso. Mourinho não parte para um
jogo sem conhecer ao pormenor o adversário. Saber os terrenos que pisa é essencial ao
bom desempenho do seu grupo. Na final da Liga dos Campeões, contra oMónaco, na
Alemanha, em 2004, a análise do adversário foi mais longe que nunca.
³Na preparação do jogo começámos pelo visionamento de muitos jogos efectuados
pelo nosso adversário. Eu já sabia tudo sobre o Mónaco mas queria que os meus
jogadores também soubessem e sobretudo que eles vissem com os próprios olhos («).
Para além destas informações globais, fizemos algo que nunca tínhamos feito. Cada
jogador ficou com um DVD individualizado para ver e analisar. A título de exemplo
dei ao Paulo Ferreira um DVD com todas as acções individuais e colectivas do
Rothen, que era o ¦
ala» do Mónaco que iria jogar ¦
em cima» dele. Os centrais tinham
informações sobre o Morientes e o Prso. Enfim, cada jogador tinha o seu DVD para
estudar. Depois discutimos em conjunto a informação individual de cada um. Foi desta
forma que ficámos a conhecer o Mónaco e considero que a equipa francesa não tinha
segredos para nós´ (Mourinho in Lourenço 2004: 221).
O FC Porto venceu a final da Liga dos Campeões por 3-0.
1.2.11. Valores
Mourinho tem regras, assentes em valores, permanentemente definidas. Um dos seus
exercícios, quase diário, é não deixar que essas regras ± e por consequência, os valores nos
quais elas assentam ± resvalem por caminhos que poderão desviar o grupo dos objectivos
pretendidos.
27
No final da época de 2002/2003, depois da equipa do FC Porto ter ganho tudo, ou seja, a
Liga portuguesa, a Taça de Portugal e a Taça UEFA, José Mourinho temeu uma mudança
de atitude por parte dos seus jogadores:
³[A]pós o sucesso da primeira época, em que ganhámos tudo o que havia para ganhar,
tive §
medo» da segunda [época]. Tive §
medo» relativamente à abordagem da época
por parte dos jogadores, sobretudo a nível mental, psicológico, ao nível da motivação,
do comportamento, do crescimento no bom ou mau caminho, no estatuto de alguns
jogadores. (§
) Não era com medo que se deitassem mais tarde ou que bebessem mais
copos, era dentro do próprio jogo. (§
) Então decidi que aquela disciplina que nos
caracterizava na primeira época, dentro daquele padrão de jogo, não se podia perder e
que o rigor táctico devia aumentar. (§
) Assim, aproveitei o seu maior rigor em termos
de disciplina táctica, em termos de posições e de funções, para trabalhar muito mais à
volta do 1x4x4x22. Porque esta estrutura, da forma como eu a concebo, é muito mais
táctica que o 1x4x3x33. Muito mais táctica! (§
) É um sistema à partida
desequilibrador (§
) é um sistema que tem coisas más. E, ao obrigar os meus
jogadores a jogar neste sistema táctico, §
obrigo-os» a ser naturalmente disciplinados,
rigorosos e concentrados´ (Mourinho in Oliveira et al 2006: 177-8).
E de seguida ± para melhor se compreender o raciocínio do treinador± Mourinho concluiu:
³ [A]cho que quem sentir que precisa de disciplina na sua equipa, em vez de ir à
procura dos aspectos disciplinares nus e crus (pontualidade, rigor, etc.), deve ir antes
pelo rigor táctico, pela procura de uma determinada disciplina táctica. É assim que eu
consigo uma disciplina global. Lá está, a partir da minha ideia de jogo e da sua
operacionalização, consigo atingir os outros objectivos todos. Contextualizando todas
as minhas preocupações (Mourinho in Oliveira et al 2006: 178).
Nessa temporada, com um modelo de jogo mais rigoroso, mais difícil e de menor
qualidade (pelo menos na opinião de José Mourinho), o FC Porto conquistou a Liga
portuguesa e a Liga dos Campeões Europeus.
2 Esquema táctico utilizado no futebol que traduz a disposição dos jogadores dentro do campo. No caso a
equipa joga com o guarda-redes, 4 defesas, 4 médios e 2 avançados.
3 Aqui a equipa joga estruturada com o guarda-redes, 4 defesas, 3 médios e 3 avançados.
28
1.2.12. Comprometimento
A temporada de 2001/2002 trouxe a José Mourinho uma realidade nova. Pela primeira vez
na sua carreira escolheu e preparou, de início, uma equipa. Foi ela, justamente, a União de
Leiria. Desconhecendo quase por completo a maioria dos seus jogadores tentou, logo na
fase inicial, criar empatia com o seu grupo e ao mesmo tempo motivá-lo. Para atingir os
seus fins comprometeu-se, deixando claro que a sua motivação era elevada: ³Não tenho
dúvidas que mais tarde ou mais cedo eu vou para um grande». Quando eu for, alguns de
vocês vêm comigo´ (Mourinhoin Lourenço 2004: 86). Ficou a promessa e também a
esperança que a todos atingiu, porque a qualquer um poderia tocar.
³Nunca especifiquei quem ia comigo porque dependeria sempre do clube para onde eu
fosse. Sabia, por exemplo, que o Benfica precisava de um defesa esquerdo e, portanto,
o Nuno Valente estava certo que iria comigo. O Benfica precisava igualmente de um
extremo e o Maciel também sabia que se eu fosse para a Luz ele iria comigo, enfim,
eles sabiam que mais tarde iriam comigo. Esta situação constituiu um factor de
motivação para os jogadores e, ao mesmo tempo, criou uma certa cumplicidade entre
nós. Do tipo ¨
vocês ajudam-me a chegar lá que eu depois levarei alguns de vós». Foi
desta forma que eu me comprometi perante o grupo. Assim mesmo¨
´ (Mourinho in
Lourenço 2004: 86-7).
Alguns meses depois Mourinho saiu da União de Leiria para ir treinar um grande», o FC
Porto. No final da época contratou dois jogadores do seu anterior clube: Nuno Valente e
Derlei. Mais tarde foi a vez de Maciel seguir os passos dos seus companheiros.
1.2.13. Workahoolic
José Mourinho só ³desliga´ do trabalho quandoestá em férias. Durante um mês ± em todo
o ano ± não se pensa nem se fala sobre futebol. Sai de férias, desliga o telefone e fica
inacessível. No que toca aos restantes onze meses do ano, José Mourinho só vive para a
sua profissão e só não pensa nela quando dorme... A este respeito, é ilustrativo um
comentário da sua mulher:
³Mesmo em casa ele está sempre a falar ou a pensar no futebol. O jogo nunca lhe sai
da cabeça. Depois dos jogos, nas Antas vamos geralmente os dois jantar fora. No
início do jantar começa por me perguntar como foi o meu dia e o dia dos filhos. A
29
meio do jantar já está a falar de futebol e na sobremesa pega num pedaço de papel e
começa a fazer a equipa e a escrever a táctica para o jogo seguinte. Ele é assim e não
há ©
volta» a dar-lhe. Vai ser sempre assim©
´ (Matilde Mourinho in Lourenço 2004:
166-7).
1.2.14. Empatia
O mundo do futebol é um mundo de crenças e superstições. Se a crença é positiva o
mesmo já não se poderá dizer da superstição. José Mourinho não é± e não se cansa de o
repetir ± supersticioso. Diz mesmo que a superstição é prejudicial ao ambiente de trabalho
e, por consequência, ao desempenho do grupo. Ao combatê-la não só tenta resolver o
problema em si como pretende ir mais longe. No caso concreto quea seguir se descreve,
José Mourinho criou novas e mais fortes empatias, especialmente com as vítimas da
superstição...
³Tínhamos, então, o embate FC Porto ± Denislizpor para fazer esquecer o Funchal4.
Mas outro desafio esperava o grupo. Vencer Silvino5, o 
pé frio»6. Tratou-se de mais
uma 
provocação» de José Mourinho, tal era a confiança na recuperação da equipa e
num resultado positivo contra a equipa turca. Normalmente Silvino Louro não vai para
o banco a não ser nas competições europeias onde é permitida a presença de mais um
elemento técnico. Assim, Silvino acompanhou muito poucas vezes José Mourinho no
banco, sendo que, nas duas últimas que o tinha feito ± com o Sparta de Praga para a
Liga dos Campeões, em 2001/02 e com o Polónia Varsóvia para a Taça UEFA, já na
temporada 2002/03 ± a equipa perdeu sempre. Silvino ficou logo com a alcunha de

pé frio» e dela custou a livrar-se. No dia antes do jogo o treinador do FC Porto fez o
anúncio: Silvino vai estar no banco a meu lado. Logo algumas 
almas mais tementes»
começaram a 
assobiar para o ar», desconfiadas e assustadas com a reacção que os
deuses do infortúnio poderiam provocar dada a presença do treinador de guarda-redes
do FC Porto no banco. José Mourinho sorriu e manteve-se firme na sua posição: tenho
tanta certeza que vou ganhar amanhã que o 
pé frio» vai para o banco. O próprio
Silvino mostrou-se assustado com a situação, até por saber que existiam pessoas
4 O jogo do Funchal, com o Marítimo, tinha constituído a primeira derrota da época 2002/2003 de José
Mourinho no FC Porto. Quatro dias depois jogaria com a equipa turca do Denislizpor, em jogo referente à
primeira-mão dos oitavos-de-final da Taça UEFA.
5 Treinador de guarda-redes do FC Porto na equipa técnica comandada por José Mourinho.
6 Na gíria futebolística significa ³azarado´.
30

desagradadas» com a ideia. José Mourinho manteve-se inabalável na decisão.

Ganhámos por 6-1 e o pé frio, a cada golo que marcávamos, dava-me toques no
braço e fazia um sorriso sarcástico como que a dizer: vá, agora sempre quero ver quem
é que vai ter coragem de me continuar a chamar pé frio». E a alcunha de Silvino ficou
por aí´ (Lourenço 2004: 145-6).
Silvino Louro mantém-se na equipa técnica de José Mourinho no Chelsea FC.
1.2.15. Envolvimento
A época de 2003/2004 ficou marcada, logo em Outubro, por uma grave lesão de um
jogador recém-chegado às Antas. Tratou-se de César Peixoto que, em França, frente ao
Olympique de Marselha havia contraído a pior lesão que se pode ter enquanto jogador
profissional de futebol7. A única saída, nestes casos, é a sala de operações. Pela
importância do processo, pela união do grupo e± talvez acima de tudo ± pelo ³homem´,
José Mourinho tomou uma atitude inédita na sua vida. Vestiu a bata de médico e foi para a
sala de operações.
³Enchi-me de coragem e estive presente. Achei que, tendo essa oportunidade, era
importante para mim e para o César Peixoto estar presente. Pela minha parte, para
perceber o conteúdo da operação e para poder ter uma acção mais activa na
recuperação. Pela parte do César, porque julgo que é importante para um jogador saber
que tem a seu lado, numa altura muito difícil da sua vida, o treinador. No fundo estar
ali significava dizer-lhe: 
cura-te que estamos à tua espera». (
) Esta intervenção
cirúrgica fez-me entender a dimensão daquele tipo de lesão e ao mesmo tempo acabou
por condicionar algumas das minhas atitudes futuras. Percebi que a pressão que os
treinadores sempre fazem, quer aos jogadores quer aos departamentos médicos dos
clubes, para acelerar as recuperações, afinal, na maior parte das vezes, não faz sentido.
A partir daquele momento passei a ser mais condescendente com as queixas dos
jogadores e com as preocupações dos médicos´ (Mourinhoin Lourenço 2004: 197).
Infelizmente, poucos meses depois e pelo mesmo motivo, Mourinho voltaria à sala de
operações. Desta vez com Derlei8.
7 César Peixoto fez uma ruptura do ligamento cruzado anterior da perna esquerda. Em média este tipo de
lesão demora entre 6 a 8 meses a debelar o que equivale ao jogador não jogar mais na temporada.
8 Avançado do FC Porto na altura.
31
1.2.16. Humor
Pode a sua aparência pública sugerir o contrário, mas para quem o conhece bem, como a
família e os amigos mais chegados, não existem dúvidas de que José Mourinho é um
homem com sentido de humor.Esta sua faceta é espelhada em vários campos da sua vida.
O CD editado no final de 2005, no qual um artista irlandês imita José Mourinho a falar no
balneário aos seus jogadores, terminando com o treinador do Chelsea a cantar, é disso uma
boa prova. José Mourinho não só afirmou publicamente ter gostado do trabalho como fez
questão de conhecer pessoalmente o seu autor para lhe dar os parabéns.
Também no seu grupo José Mourinho aprecia a boa disposição. No final de um encontro
entre a União de Leiria e o Benfica, estando Mourinho ao serviço do clube da cidade do
Liz, o seu adjunto Baltemar Brito foi motivo de muitos risos na viagem de regresso a
Leiria. Mourinho fez questão de contar o episódio na sua biografia:
³No parque automóvel os autocarros dos dois clubes estavam estacionados lado a lado.
Como têm as mesmas cores prestavam-se a confusões. O Brito foi o primeiro a sair
dos balneários e entrou no autocarro que estava mais à mão. Sentou-se logo no lugar
do Jesualdo Ferreira9 e não se fez rogado quanto aos lanches que estavam em cima dos
assentos. Começou a comer o lanche que, por acaso, até devia ser o de Jesualdo
Ferreira quando, de repente, começa a ver entrar a malta do Benfica. Só teve tempo de
baixar a cabeça, pensar 
grande barraca» e abandonar oautocarro em passo acelerado.
É evidente que viemos a rir e a brincar com o Brito de Torres10 até à chegada a Leiria.
Uma das frases era: 
Já queres vir nesse autocarro, é?!! Tem calma Brito, não podes
dar tanto nas vistas»´ (Mourinho in Lourenço 2004: 87).
Alguns meses depois Baltemar Brito e José Mourinho entrariam num outro autocarro para
nele viajar durante dois anos e meio. O autocarro azul e branco do FC Porto.
Neste capítulo procurámos caracterizar e enquadrar o trabalho de José Mourinho, bem
como traçar em termos gerais, consensualmente aceites, a imagem pública do actual
treinador do Chelsea.
9 Ao tempo Jesualdo Ferreira era o treinador principal do Benfica.
10 Na época de 2001/2002 a União de Leiria realizou os jogos em casa emprestada, em Torres N ovas, devido
ao facto de estar a construir um novo estádio em Leiria.
32
CAPÍTULO 2
SOB A PERSPECTIVA DA COMPLEXIDADE
33
Em bom rigor não podemos determinar com exactidão quando começou esta investigação.
O autor desta dissertação conhece José Mourinhodesde a infância, é o seu biógrafo oficial
e tem um profundo conhecimento da sua maneira de ser e de pensar. Daqui resulta que à
partida para esta investigação já conhecíamos, de alguma forma, alguns dos fundamentos
teóricos em que assentava o trabalho deMourinho. De resto, Manuel Sérgio, seu antigo
professor e um dos teóricos que mais influenciou Mourinho no caminho profissional por si
seguido, em conversas prévias, já nos havia alertado para a perspectiva de trabalho que
decidimos adoptar nesta dissertação. Desta forma, de um ponto de vista epistemológico e
metodológico, o principal desafio que nos surgiu passou pelo enquadramento do estudo do
trabalho de José Mourinho na perspectiva da complexidade. Em suma, são duas as razões
que justificam o percurso escolhido e desenvolvido nesta dissertação: (i) a perspectiva da
complexidade, nomeadamente no que respeita à sua aplicação na motricidade humana
(Sérgio 2003, 2004), é o ponto de partida do trabalho desenvolvido por José Mourinho; e
(ii) a nossa intuição, que se foi tornado cada vez mais forte nestes últimos anos, de que a
perspectiva da complexidade seria a melhor forma para explicar o trabalho e o sucesso de
José Mourinho.
2.1. Para um Novo Paradigma do Conhecimento: Complexidade
São vários os pensadores contemporâneos que defendem podermos estar± no final do séc.
XX e início do séc. XXI ± perante e emergência de um novo paradigma científico: a
complexidade ou, se quisermos, o pensamento complexo.
O pensamento científico que dominou o séc. XX± e que encontra no séc. XVII, com
Descartes, o seu fundamento ± assenta em bases reducionistas, ou seja, num esquema de
pensamento que preconiza a separação e a divisão das partes para, a partir do entendimento
detalhado destas e da sua posterior junção, tentar explicar o todo. Edgar Morin (1921- ),
pensador contemporâneo cuja tese sobrepensamento complexo servirá de perspectiva de
fundo a esta investigação, chamou àquele modelo de pensamento oparadigma da
simplicidade. Para Morin este paradigma é sustentado por três princípios: disjunção,
redução e abstracção.
No que à disjunção diz respeito, Descartes fez a separação entre o sujeito pensante (ego
cogitans) e a coisa extensa (res extensa) e ao fazê-lo formulou o paradigma que iria
34
dominar o pensamento europeu atéaos nossos dias: o modelo sujeito/objecto. Deste
raciocínio resultou a diferenciação entre filosofia e ciência. A partir de então ficou clara a
existência de dois mundos: o mundo das ideias e o mundo das coisas, sendo que ambos não
se tocariam e só aparentemente se poderiam complementar. É neste contexto que Morin
sugere a disjunção entre o conhecimento científico e a reflexão filosófica. Embora este
pensamento modelo tenha permitido grandes avanços, não só do conhecimento científico
como da reflexão filosófica, desde o séc. XVII até aos nossos dias, Morin não o isenta de
graves deficiências:
³[U]ma tal disjunção, rareando as comunicações entre o conhecimento científico e a
reflexão filosófica, devia finalmente privar a ciência de se conhecer, de se reflectir e
mesmo de se conceber a si própria cientificamente. Mais ainda, o princípio da
disjunção isolou radicalmente uns dos outros os três grandes campos do conhecimento
científico: a física, a biologia, a ciência do homem´ (Morin 2003: 17).
É desta forma que enquadramos a redução que decorre do trajecto inevitável docomplexo
para o simples. Ao dividir, ou separar, o conhecimento científico retalhou o ³tecido
complexo das realidades´ ao mesmo tempo que se tentava, como ideal do conhecimento
científico ³descobrir, por detrás da complexidade aparente dos fenómenos, uma ordem
perfeita legislando uma máquina perpétua (o cosmos), ela própria feita dos microelementos
(os átomos) reunidos diferentemente em objectos e sistemas´ (Morin 2003: 17). Ora, este
tipo de conhecimento científico encontrava, desta forma, o seu fundamento de rigor e
operacionalidade na medida e no cálculo. Só que para Morin, entre outros pensadores,
como por exemplo Martin Heidegger (1889-1976), Prigogine (1917-2003) e Merleau-
Ponty (1907-1961), a matematização e a sua operacionalização separam os seres e as
coisas, descontextualizam-nos do todo que é o mundo, a realidade vivida e experimentada,
para apenas considerarem como realidades inteligíveis e explicáveis as fórmulas e as
equações que regem as partes que se podem quantificar. Mais, só o quantificável e o
mensurável pode desta forma ser conhecido. Heidegger comentou, com alguma ironia, que
a matematização do ser vivo o permite conhecer em todo o detalhe, excepto precisamente
como ser vivo (Heidegger 1977). Sob esta perspectiva, Morin considera que ³o
pensamento simplificador é incapaz de conceber a conjunção do uno e do múltiplo: ou
ainda unifica abstractamente ao anular a diversidade´ (Morin 2003: 17-8).
35
Com a conjugação destes dois princípios Morin chega ao terceiro princípio do paradigma
da simplicidade: a abstracção. Neste ponto do seu pensamento, Morin conclui que este é o
caminho percorrido até ao ponto em que apelidou de ³inteligência cega´, o beco sem saída
do paradigma da simplicidade. A partir daqui são muitas as críticas. Ao considerar que o
método desintegra a realidade e cria fendas entre as disciplinas do saber, este autor alerta
para os riscos da perigosa viragem do conhecimento, cada vez menos disponível para a
reflexão e discussão dos homens e crescentemente modelado para ³ser incorporado nas
memórias informacionais e manipuladas pelos poderes anónimos, nomeadamente os
estados´ (Morin 2003: 18).
Para Morin é no séc. XX que a necessidade de viragem do pensamentocientífico se coloca
mais acentuadamente. Reconhecendo os enormes progressos do conhecimento científico e
da reflexão filosófica desde o séc. XVII até aos nossos dias, Morin acentua que ³as suas
consequências nocivas últimas só começam a revelar-se no século XX´ (Morin 2003: 17).
Morin insiste nesta ideia por diversos motivos, entre os quais, e talvez o mais forte, o facto
de o ³velho´ pensamento se ter fechado sobre si próprio, ao mesmo tempo que ignorou
quase por completo as novas realidades emergentes noséculo XX, desde logo com o surgir
da mecânica quântica, que abalou profundamente os alicerces da ciência, porque fez com
que as chamadas ciências exactas deixassem de ser... exactas. Oprincípio da incerteza,
enunciado por Werner Heisenberg (1901-1976), refere precisamente que ao nível dos mais
pequenos elementos constitutivos da matéria, a observação muda o fenómeno observado, e
que, por isso, o conhecimento humano nunca pode ser µexacto¶; o princípio refere
nomeadamente que o observador só pode conhecerou a posição ou a velocidade de um
elemento, nunca as duas simultaneamente. Também a teoria da relatividade de Einstein
(1879-1955) havia revolucionado a física newtoniana, unindo o espaço e o tempo numa
nova dimensão a que chamou espaço-tempo. Mais recentemente o projecto de
sequênciação do genoma humano ilustrou de uma forma particularmente interessante,
como adiante descreveremos, os limites do reducionismo positivista para o estudo da
natureza humana.
A estes exemplos deve ainda acrescentar-se o contínuo testemunho da imprevisibilidade da
acção humana. No século XX, desde o eclodir da II Guerra Mundial no berço da
civilização ocidental, à queda do Muro de Berlim, à implosão da URSS, a Chernobyl e ao
36
novo terrorismo global, são vários os exemplos da imensidão de eventos que escapam às
relações simplificadoras de causa-efeito.
As novas realidades, de que os casos acima referidos são exemplo, provocaram cortes e
cisões nos modelos reducionistas existentes. Persistiu-se assim no erro decorrente da
cegueira, tal como lhe chamou Morin. O pensamento e, por consequência, as ciências,
separadas e estanques deixaram de conseguir dar respostas às muitas perguntas novas que
se colocam cada vez com maior intensidade. Não custa, pois, aceitar que Morin fale não só
na necessidade de um novo pensamento filosófico, como também, na necessidade de um
novo paradigma de conhecimento científico. Morin propõe, então, a complexidade como
resposta às novas necessidades porque ao reduzir o todo às partes para a partir daítentar
explicar o todo, será o mesmo que aplicar a lógica mecânica aos problemas do ser vivo e
da vida social.
Numa outra linha de investigação, o etnólogo Marcel Mauss (1872-1950), afirmou na sua
obra Essai de Sociologie, publicada em 1971, que ³é preciso recompor o todo´. É nesta
recomposição do todo que assenta a necessidade de um novo paradigma do pensamento.
Uma nova lógica que, sem romper com a anterior, esteja aberta a mais possibilidades,
porque o universo não parece ser a perfeita máquina determinista que os modelos
decorrentes do ³cogito, ergo sum´ ± penso, logo existo ± pressupunham.
Entramos assim no pensamento complexo, na lógica do ³todo que está na parte que está no
todo´, ou seja, entramos num sistema de pensamento em que a abordagem não é feita de
fora para dentro mas sim sempre dentro do sistema e a parte só é separada enquanto
elemento do todo, nunca saindo nem se isolando dele, apenas servindo para o compreender
porque dele é parte integrante. É, então, uma lógica em que compreender as partes
significa também compreender o todo, mas compreender o todo, por si só, também
significa compreender as partes, porque desintegrar um qualquer elemento significa
descontextualizar não só as partes como igualmente o próprio todo o que, nesta perspectiva
complexa não faria qualquer sentido já que renegaria a sua lógica intrínseca de percepção
interrelacional, interactiva e interdependente dos elementos de uma qualquer realidade. O
pensamento complexo, ou a contribuição de Morin para um possível paradigmada
complexidade, desafia-nos, pois, a ver a árvore-e-a-floresta. É desta forma que entramos,
segundo Morin, numa ³considerável revolução´.
37
No paradigma da simplicidade ³as falhas, as fendas multiplicam-se´, no entanto, trata-se
de uma modelo matriz que não será abandonado. Decorrente do paradigma prevalecente a
metodologia científica é reducionista e quantitativa.
³Reducionista, uma vez que era preciso chegar às unidades complementares não
decomponíveis, as únicas que podiam ser cercadas, clara e distintivamente; e
quantitativista, uma vez que estas unidades discretas podiam servir de base a todas as
computações´ (Morin 2003: 80).
Com um controlo rígido assente nos princípios enunciados, pode entender-se que a lógica
do pensamento ocidental tem exercido uma acção apertada, ou guiada se quisermos, do
progresso do pensamento, no entanto, limitado no seu próprio método, que é fechado e não
aberto a um desenvolvimento fora dos seus limites. Como conclui Edgar Morin, ³[a]
imaginação, a iluminação, a criação, sem as quais o progresso das ciências não teria sido
possível, só entravam na ciência às escondidas: não eram logicamente assinaláveis e eram
sempre epistemologicamente condenáveis´ (Morin 2003: 81). De resto, e também sobre a
necessidade de um novo pensamento que faça face às insuficiências do paradigma reinante,
já o filosofo e historiador da ciência, Thomas Kuhn (1922-1996), no seu ensaioThe
Structure of Scientific Revolutions (Kuhn 1996), publicado em 1962, defende que os novos
conceitos têm a capacidade de nos sugerir uma nova maneira de ver o mundo, portanto,
não mais se devendo encarar a verdade científica como a única verdade, podendo e
devendo esta ser plural.
2.2. Genoma Humano e Complexidade
O projecto de investigação científica de mapeamento do genoma humano,
consensualmente aceite como um dos mais avançados empreendimentos da ciência
contemporânea, ilustra de uma forma interessante os limites dos métodos reducionistas
bem como os desafios que se colocam a uma investigação conduzida sob a perspectiva da
complexidade.
Desta forma, podemos começar por colocar a pergunta: o que é o homem? A pergunta é
secular e aparentemente, com o projecto do genoma humano, estaríamos à beira de
conhecer a resposta. O projecto do genoma tentou dar-nos esta resposta e como estamos a
falar do mais evoluído e ousado cruzamento da ciência com a tecnologia, fundaram-se
38
esperanças de que aquela pudesse de facto ser obtida. Inspirado fundamentalmente no
paradigma cartesiano, que divide e separa para compreender o todo, oprojecto dividiu o
homem na menor divisão que a ciência actual pode conseguir: o gene. Assim, com o
homem geneticamente dividido± isolado e descontextualizado± e depois de sequenciado
encontrou-se uma ± não a ± resposta: afinal somos, entre nós humanos, geneticamente
iguais em mais de 99,9 por cento. E que dizer de outra conclusão: somos praticamente
iguais a um rato, com uma diferença genética de apenas 1 por cento e só depois vem a
nossa igualdade ao macaco, com uma diferença de 2 por cento. Somos, então, todos
praticamente iguais? Deixemos as partes e olhemos o todo: até um animal nos diferencia.
O que significa, assim, o projecto do genoma? Significa, tão só, que o que é idêntico é a
nossa sequência genética, não nós mesmos, os indivíduos em si.
³O que tudo isto quer dizer é que os genes, só por si, com os seus tipos e a sua
quantidade, não são explicação cabal para modo de ser nenhum. Por outras palavras,
simplificando e banalizando, o que foi descoberto é que os genes são como que a
fotografia do ser humano, só que este ser humano, na sua essência, não é uma
fotografia, mas um filme´ (Ilharco 2004: 27).
O filme é, afinal, a sequênciação lógica e natural de um determinado número de
fotografias, logo, o genoma, como fotografia de um filme que é o homem,é apenas uma
pequena parte da explicação de um filme cujo final ainda não é conhecido.
Daqui decorre que a resposta ao ³quem somos´ ou ³o que somos´ não pode ser encontrada,
apenas, na nossa composição química, biológica, ou genética, em suma, na matéria.No
paper de Venter et al (2001) refere-se que a quantidade modesta de genes humanos± o
arroz tem quase o dobro dos nossos genes«± significa que para descobrirmos os
mecanismos que geram as complexidades inerentes ao desenvolvimento humano e os
sofisticados sistemas que mantêm a homeostase temos de procurar noutro lugar; ora o
outro lugar é a perspectiva da complexidade, aliás, como os próprios cientistas o admitem:
³We will soon be in a position to move away from the cataloging of individual
components of the system, and beyond the simplistic notions of «this binds to that,
which then docks on this, and then the complex moves there«» to the exciting area of
network perturbations, nonlinear responses and thresholds, and their pivotal role in
human diseases. The enumeration of the «parts lists» reveals that in organisms with
complex nervous systems, neither gene number, neuron number of cell types
39
correlates in any meaningful manner with even simplistic measures of structural or
behavioural complexity´ (Venter et al 2001: 1347).
Daí que os autores concluam que existem falácias no modelo de pensamento cartesiano
que nos impedem de pelas partes chegar ao todo, logo, o gene só por si nunca dará resposta
à pergunta ³quem somos?´
³There are two fallacies to be avoided: determinism, the idea that all characteristics of
the person are ³hard-wired´ by the genome; and reductionism, the view that with
complete knowledge of the human genome sequence, it is only a matter of time before
our understanding of gene functions and interactions will provide a complete causal
description of human variability. The real challenge of human biology, beyond the
task of finding out how genes orchestrate the construction and maintenance of the
miraculous mechanism of our bodies, will lie ahead as we seek to explain how our
minds have come to organize thoughts sufficiently well to investigate our own
existence´ (Venter et al 2001: 1348).
Entende-se assim a dúvida que, afinal e contra todas as perspectivas, o projecto genoma
veio desfazer: não é pelas partes que conseguiremos entender o homem. A resposta está no
todo. Aliás, como Manuel Sérgio nos referiu, citando Hegel, ³a verdade é o todo´.
2.3. Dois Paradigmas: Reducionismo e Complexidade
Traçada que está, em termos gerais e em especial na visão de Edgar Morin, a emergência
de um novo paradigma de pensamento passamos ao enunciar do que podemos chamar os
contornos de cada um dos paradigmas, uma vez que deixámos implícito que o surgir de um
novo modelo matriz não requer a implosão do outro que existia previamente. Pelo
contrário, a sua coexistência e interacção darão sentido aos dois modelos fundamentais de
pensamento filosófico e científico. Afinal, esta posição decorre directamente da tese de que
³o todo está na parte que está no todo´.
Paradigma é sinónimo de modelo, neste caso, de modelo matriz ou de modelo estrutura.
No entanto, a própria noção de paradigma tem conhecido desenvolvimentos ou
aperfeiçoamentos ao longo dos tempos. Para Khun (1996), paradigma é a ferramenta
teórica e o conjunto dos procedimentos e leis que constituem a raiz que orienta toda a
investigação em dada altura e contexto histórico. Daí que a história da ciência nos ensine
40
que cada vez que muda um paradigma seja o próprio mundo a mudar. Ao mudar o mundo
mudam, necessariamente, os homens e neles a sua forma de olhar, de interpretar e de
experimentar o mundo e as coisas. É desta forma que Khun considera que o mais
importante é justamente esse olhar, uma vez que enquanto se opera a revolução das ideias
que leva ao novo paradigma, os cientistas vêem novas e diferentes coisas quando olham os
velhos e mesmos objectos, ou, dito por outras palavras, será o mesmo que nos
transportarmos subitamente para um outro planeta, com as mesmas coisas com que sempre
lidámos mas que se tornam elas mesmas diferentes aos nossos olhos já que passam a ser
observadas num contexto completamente diferente: ³[w]hat were ducks in the scientist¶s
world before the revolution are rabbits afterwards´ (Khun 1996: 111).
Para Morin (2003) um paradigma é uma relação lógica extremamente fecunda e poderosa
que se situa entre noções mestras, noções chave e princípios chave. Ora é justamente a
fecundidade dessa relação lógica que faz com que, numa mudança de paradigma, tudo
mude numa sociedade.Assim, no entender de Morin, aquilo que afecta um paradigma, que
se traduz na pedra angular de todo o sistema de pensamento, acaba por afectar, invariável e
simultaneamente, a ontologia, a metodologia, a epistemologia, a lógica e por simpatia, a
prática, a política, a sociedade. Numa perspectiva de integração podemos, então, falar em
paradigma como o mundo das ideias onde uma trave mestra condiciona e conduz de forma
fecunda não só o pensamento como o próprio método científico. Mudar essa trave mestra é
mudar o próprio edifício no qual habita toda uma civilização enquanto passado, presente e
futuro. Ao fazê-lo, é essencialmente o passado que se questiona e o futuro que se repensa
porque a nossa visão mudou radicalmente. Afinal, tudo o que já vimos não é exactamente o
que já vimos mas o que julgámos ter visto. O passado não foi o que foi e o futuro será
outro.
É importante, no entanto, realçar que quando falamos em complexidade não é pacifico que
estejamos a falar num paradigma da complexidade. O próprio EdgarMorin formula o
problema ao afirmar:
³[N]ão se pode tirar, eu não posso tirar, nem pretendo tirar do meu bolso um
paradigma de complexidade. Um paradigma, se tiver de ser formulado por alguém,
por Descartes por exemplo, é no fundo, o produto de todo um desenvolvimento
cultural, histórico e civilizacional. O paradigma da complexidade surgirá do conjunto
de novas concepções, de novas visões, de novas descobertas e de novas reflexões que
41
vão conciliar-se e juntar-se. Estamos numa batalha incerta e não sabemos ainda quem
a ganhará´ (Morin 2003: 112).
Morin trabalha, assim, para o desenvolvimento de um paradigma que pode não existir
enquanto tal, mas sim que poderá estar a construir-se e que poderá vir a ser, finalmente,
reconhecido como o paradigma da complexidade. ³De este modo, su obra abre caminos,
inicia y vislumbra recorridos. Es equivocado buscar en él pensamiento consolidado. Morin
articula caminos posibles, pero aún poco transitados, que parecían imposibles.´ (Morenoin
Velilla 2002:21). Já na década de 80 o biólogo e filósofo Francisco Varela (1946-2001)
arriscou o prognóstico de o pensamento complexo evoluir para paradigma. É essa a
conclusão que poderemos extrair das suas palavras.
³Acredito convictamente que existe uma grande mudança ou uma tendência para a
mudança na nossa sensibilidade contemporânea e na epistemologia científica, no
sentido de estarmos cada vez mais interessados numa epistemologia que não vê o
mundo como uma fotografia, mas que se ocupa de criar o mundo (laying down of a
world) onde o sujeito e o objecto emirjam por mútua especificação´ (Varela in
Magalhães 2005: 57).
Magalhães (2005) defende que esta mudança já está em curso e que se chama
complexidade. Afirma que a revolução está a acontecer de uma forma abrangente e que a
sua operacionalização já é visível em vários campos da ciência, nomeadamente, na gestão
e organização de empresas.
Não é, pois, pacífica a questão da complexidade enquanto paradigma, embora muitos
autores já a enquadrem como tal. De qualquer forma, seja qual for a terminologia que
adoptemos ± problema, questão, perspectiva, aproximação, corrente, paradigma, entre
outras ± parece claro que o conceito e as ideias que encerra estão em fase de
desenvolvimento e maturação, sendo que só talvez o tempo, entendidoeste como o
desenvolvimento cumulativo da acção humana, nos dirá de que forma se contextualizará a
complexidade no mundo das ciências.
No que respeita ao paradigma do positivismo reducionista a que Morin chamou da
simplicidade, ele atravessou a história do pensamento ocidental desde o séc. XVII até aos
nossos dias. Descartes deu-lhe o impulso primário, ao separar, no homem, corpo e mente.
Da evolução do ³cogito, ergo sum´ nasceu aquilo a que se convencionou chamar o
³método científico´. Aquela afirmação, porventura a mais famosa da história da ciência,
42
surgiu pela primeira vez na quarta secção deO Discurso do Método, em 1637, e sugerenos
a ideia de que só no pensar se encontra o fundamento do existir ou, se quisermos,
através da instrumentalização da matéria existimos em separado enquanto corpo e mente.
Com esta premissa entendemos em Descartes a lógica que separa ares cogitans (coisa
pensante) da res extensa (coisa material). Esta última advém e só pode existir e ter
substância na primeira. Ora, foi justamente nesta divisão primeira, mente/corpo, que se
fundou e desenvolveu o moderno método científico. A divisão, a separação, a hierarquia
são noções mestras de um pensamento operacionalizado em método que atravessou os
quatro últimos séculos da história ocidental. Deste método resultou, então, a separação
clara do domínio do humano, enquanto reflexão sobre a sua natureza e fim± entregue à
filosofia ± e do domínio da matéria, e/ou corpo ± entregue ao conhecimento científico.
Filosofia e ciência seguiram, desta forma, caminhos diferentes e separados e ao fazê-lo
dificilmente poderiam socorrer-se uma da outra, interagir e cooperar, logo, fechar-se-iam
sobre si mesmas. Em resultado disto mesmo, entende-se o paradigma da simplicidade e o
seu objectivo: o seu princípio ³quer separa o que está ligado (disjunção), quer unifica o que
está disperso (redução)´ (Morin 2003: 86). Tomando o homem como referência, Morin
deixa-nos um exemplo ilustrativo:
³O homem é um ser evidentemente biológico. É ao mesmo tempo um ser
evidentemente cultural, metabiológico e que vive num universo de linguagem, de
ideias e de consciência. Ora estas duas realidades, a realidade biológica e a realidade
cultural, o paradigma da simplificação obriga-nos quer a separá-los quer a reduzir a
mais complexa à menos complexa. Vai portanto estudar-se o homem biológico no
departamento de biologia, como um ser anatómico, fisiológico, etc., e vai estudar-se o
homem nos departamentos das ciências humanas e sociais. Vai estudar-se o cérebro
como órgão biológico e vai estudar-se o espírito, the mind, como uma função ou
realidade psicológica. Esquece-se que um não existe sem o outro; ou melhor que um é
simultaneamente o outro, embora sejam tratados por termos e conceitos diferentes´
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  • 1. CASE STUDY JOSÉ MOURINHO UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE O FENÓMENO DA LIDERANÇA E A OPERACIONALIZAÇÃO DA PERSPECTIVA PARADIGMÁTICA DA COMPLEXIDADE Dissertação Apresentada para Obtenção do Grau de Mestre em Ciências da Comunicação, Organização e Novas Tecnologias Por Luís Manuel Guerreiro Dias Alves Lourenço Sob orientação do Prof. Doutor Fernando Ilharco RESUMO A investigação que se apresenta tem como objecto o case study José Mourinho, especificamente na sua dimensão de liderança. Trata-se de uma abordagem interpretivista que analisa o trabalho e a liderança de José Mourinho à luz de desenvolvimentos teóricosvários, tendo como primeiro fundamento a perspectiva paradigmática da complexidade,essencialmente tal como ela é entendida na obra de Edgar Morin. Apresentamos José Mourinho enquanto líder e treinador de futebol, dando a conhecer a sua trajectória profissional desde o anonimato até ao estrelato onde actualmente se move. Esta investigação apela a um corpus teórico diversificado e relevante para a compreensão do fenómeno da liderança, especificamente da eficácia da liderança de José Mourinho. Assim,sob a perspectiva paradigmática da complexidade, moldando o progresso da investigação e estabelecendo as relações entre os diversos blocos teóricos, utilizamos para a análise do nosso objecto de estudo a teoria da inteligência emocional, um conjunto importante deinvestigações sobre a constituição e dinâmicas de grupo, bem como um leque importante de teorias consagradas sobre o fenómeno da liderança ± desde a teoria do grande homem às teorias neo- carismáticas, passando pelas análises comportamentais e contingenciais, entre outras. Apresentamos também uma revisão da investigação em curso sobre o fenómeno daliderança no que respeita ao relacionamento entre complexidade e liderança e entre complexidade e emoções. A análise que fazemos do trabalho e da liderança de José Mourinho é precedida por duas entrevistas, uma ao próprio José Mourinho e a outra a Rui Faria, técnico-adjunto de Mourinho no Chelsea. Na análise que apresentamos no Capítulo 9, e que ocupa uma parte importante da dissertação, propomos entendimentos, noções e conceitos que nos parecem pertinentes para a compreensão da liderança de José Mourinho e da sua eficácia. Entre esses aspectos, e a título de exemplo, propomos uma articulação teórica da operacionalização da complexidade na liderança, tal como é levada a cabo por JoséMourinho; identificamos e caracterizamos a noção de globalidade da acção profissional como uma consequência da aplicação da perspectiva da complexidade; analisamos a noção de dominante, introduzida pelo próprio Mourinho, propondo um enquadramento conceptual complexo; sugerimos, e exploramos, o conceito à líder como indicador de um tipo de comportamento necessário para a liderança e cuja genuinidade é importante; avaliamos a acção concreta de José Mourinho à luz das diversas teorias introduzidas sobre liderança, e não esquecendo o seu enquadramento paradigmático na complexidade, sugerimos que os modelos com os quais ele tem mais afinidades são o carismático e o transformacional. Por fim, consideramos, com a devida modéstia, que esta investigação pode também abrir caminhos para novos desenvolvimentos, nomeadamente no que respeita à transferibilidade da prática profissional de José Mourinho para as organizações em geral. Introdução
  • 2. O caso de sucesso que constitui a carreira de José Mourinho, actual treinador do Chelsea FC, de Londres, para ser compreendido plenamente não pode ser encarado, ou estudado, apenas na vertente de treinador de futebol. As vitórias que já conquistou ± e foram muitas num curto espaço de tempo ± colocaram sobre ele os holofotes da fama a nível mundial. Muitos perguntam hoje quem é José Mourinho, um homem que para além de um bem sucedido treinador de futebol é igualmente um líder que arrasta e influencia milhões de pessoas por todo o mundo. José Mourinho é uma figura pública de expressão mundial. Ele não é apenas o treinador da equipa de futebol do Chelsea. Ele é o líder que muitos seguem, admiram e respeitam: muitos jovens ambicionam ser como ele, muitos homens gostariam de ser como ele, muitos profissionais gostariam de aprender a ser mais como José Mourinho. Mourinho é um líder e os seus actos e as suas palavras fazem sonhar legiões de admiradores. Na investigação que a seguir apresentamos propusemo-nos estudar a dimensão da liderança no trabalho de José Mourinho. Vamos tentar perceber o homem e o profissional, simultaneamente como treinador de futebol e como líder de profissionais de alto rendimento. Nesta dissertação mais do que tentar objectivar factos, estabelecer modelos de liderança, ou determinar relações de causa-efeito, que supostamente nos conduzam a verdades ou a leis universais, interessa-nos observar atentamente, seguir pistas, descobrir caminhos, estudar detalhadamente e reflectir teoricamente sobre a complexidade do que encontrarmos. Interessa-nos compreender melhor o fenómeno que investigamos, o qual, estudado desde há muito, não temos dúvidas que é imensamente complexo, subtil e de enormes desafios. Nesta investigação interessa-nos, também, promover o desenvolvimento de um tipo de conhecimento que aceita a complexidade do mundo e a mudança em que a acção humana sempre está envolvida e se envolve. Deste ponto de vista interpretivista, procuramos descrever e entender a eficácia da liderança de José Mourinho a partir de teorias e perspectivas várias, capazes de nos proporcionarem um entendimento coerente, profundo e detalhado do fenómeno em causa. Desta forma, conforme à prática estabelecida nas ciências sociais e humanas, optámos por levar a cabo uma investigação interpretivista, assente num corpo teórico considerado apropriado para o objecto em estudo e numa recolha qualitativa de dados, fundamentalmente constituída ± mas não apenas ± pelas entrevistas apresentadas nos capítulos 7 e 8. A presente dissertação está organizada em nove capítulos. No Capítulo 1 faremos uma apresentação de José Mourinho. Traçaremos o seu percurso e mostraremos Mourinho através de Mourinho, ou seja, pelas suas acções e pelas suas palavras iremos oferecer uma imagem global daquilo que fez de Mourinho aquilo que ele é hoje e que justifica a sua ascensão ao mais alto patamar do mundo do futebol e que, por simpatia, acabou por fazer dele um homem conhecido em todo o planeta. No Capítulo 2 iniciaremos a fase teórica da dissertação. O objecto desta investigação é a liderança de José Mourinho. A perspectiva de fundo que modelará o nosso trabalho é a da complexidade. É também esta perspectiva paradigmática que há muitos anos influencia o trabalho de José Mourinho. Assim, referiremos várias teorias e noções no seio da perspectiva da complexidade, nomeadamente, os estudos desenvolvidos por Edgar Morin e por Ilie Prigogine. Tentaremos ir um pouco mais além, apresentando trabalho de outros pensadores, filósofos e teóricos sociais, que tanto tiveram influência no estudo e no trabalho de Mourinho, como é o caso Manuel Sérgio, como recorrentemente têm tido influência em estudos de ciências
  • 3. sociais sobre a perspectiva da complexidade, como, por exemplo, é o caso do alemão Martin Heidegger (1889-1976). O projecto do mapeamento do genoma humano servir-nos-á como ilustração da necessidade de um pensamento complexo para o estudo do homem, bem como das implicações da acção humana. Procuramos nesta dissertação apresentar um texto integrado ± na sequência do nosso propósito de realizar um estudo integrado ± onde desde o seu inicio, e à medida que formos apresentando as teorias que iremos utilizar, faremos aproximações ilustrativas ao trabalho de Mourinho. Trata-se de uma prática que iremos seguir ao longo do nosso estudo. O Capítulo 3 apresenta um dos blocos de teorias que constituirá um dos fundamentos da análise do trabalho de José Mourinho. Trata-se da teoria da inteligência emocional, tal como foi desenvolvida e proposta por Daniel Goleman. Nesse capítulo faremos uma primeira aproximação a Mourinho como líder emocionalmente inteligente. No Capítulo 4 apresentaremos uma revisão sobre a investigação levada a cabo nas últimas décadas sobre o fenómeno dos grupos. Pode, de resto, dizer-se que não é possível falar da perspectiva da complexidade sem se falar no todo, como um grupo constituído por partes. O trabalho de José Mourinho decorre no seio de um grupo de profissionais de alta competição que ele lidera. É desta forma que neste capítulo iremos introduzir o conceito de grupo e rever a investigação que sobre ele tem recaído numa perspectiva de ciênciassociais. Apresentaremos os fundamentos do conceito de grupo, bem como noções sobre o seu desenvolvimento e maturidade, as formas como nasce, se desenvolve e se mantém, eainda diversas tipologias que têm sido propostas para o seu estudo. No Capítulo 5 focaremos as teorias que descrevem e explicam o fenómeno da liderança. Será um olhar simultaneamente histórico e evolutivo, já que iremos apresentar as diversas teorias sobre a liderança desde os primeiros estudos propostos, em meados do séculopassado, até aos dias de hoje, sob critérios que se prendem com o seu próprio desenvolvimento, na medida em que aqueles estudos se foram tornando relevantes erespondendo às necessidades da sociedade. No Capítulo 6 procuramos apresentar um ponto de situação em termos da investigação actual sobre o fenómeno da liderança. Porque José Mourinho assenta o seu trabalho e a sua liderança nas teorias da complexidade, com um forte apelo à inteligência emocional, procurámos essencialmente papers recentes que ligassem a liderança à complexidade, bem como a liderança às emoções. No Capítulo 7 reentramos no caso de estudo da nossa dissertação. No capítulo 1 fizemos uma primeira apresentação de José Mourinho e do seu trabalho. Este capítulo éinteiramente constituído por uma entrevista a José Mourinho, na qual, pretendemos ouvirna primeira pessoa as razões das suas escolhas e decisões, da sua prática e da sua sistematização. Procurámos discutir exploratoriamente os principais aspectos do trabalho de Mourinho sobre os quais recai a nossa investigação: a complexidade e o seu trabalho; a forma como lida emocionalmente com os seus liderados; a sua noção de grupo e o funcionamento dos seus grupos; e o seu estilo de liderança. O Capítulo 8 prossegue a discussão exploratória acima iniciada. Se no capítulo anterior obtivemos o olhar do líder sobre as questões acima enunciadas, já neste capítulo, seguindo a mesma metodologia ± a de discutir exploratoriamente os temas referidos ± pretendemos obter uma visão de liderado, de um dos seguidores de José Mourinho. Apresentamos assim a entrevista que realizámos a Rui Faria, adjunto no Chelsea FC, o ³braço direito´ de Mourinho na equipa técnica.
  • 4. Finalmente no Capítulo 9 apresentamos a nossa análise do fenómeno em estudo: a liderança de José Mourinho. Sob a perspectiva da complexidade, com base nas teorias introduzidas, sobre as emoções, o funcionamento dos grupos e a liderança, analisaremos aacção e o trabalho concreto de José Mourinho, focando principalmente o material introduzido no capítulo 1 e nas entrevistas apresentadas nos capítulos 7 e 8. Gostaríamos de salientar que sendo a perspectiva da complexidade a nossa primeira base teórica, a que por isso modela toda a investigação, termos procurado ao longo da dissertação nada separar em demasia, não separar perdendo a noção do todo, e tudo pensar em conjunto nassuas relações e complementaridade, nada por isso descontextualizando. Desta forma se deverão entender as ligações, as conexões e os enquadramentos que formos tentando fazer e apontar ao longo da dissertação, porque como adiante mencionaremos, citando Hegel no contexto da epistemologia em que assentamos esta investigação, ³a verdade é o todo´. CAPÍTULO 1 QUEM É JOSÉ MOURINHO: BIOGRAFIA E IMAGEM PÚBLICA 1.1. Quem é José Mourinho? Parece ser hoje consensual que José Mourinho, o treinador de futebol do Chelsea FC, se tornou, num curto espaço de tempo, num case study um pouco por todo o mundo. Com 43 anos de idade e apenas 6 anos como treinador principal de futebol conta já com umcurrículo invejável e talvez não menos surpreendente. Nas seis temporadas que já efectuouapenas em quatro delas escolheu, preparou e conduziu equipas do princípio ao fim daépoca, já que nas duas primeiras esteve apenas dois meses no Benfica e seis meses na União de Leiria. Nas restantes quatro épocas liderou as equipas de futebol profissional do FC Porto e do Chelsea FC e se só estas levarmos em conta, pelos motivos apontados, podeafirmar-se que José Mourinho é o treinador de maior sucesso da actualidade em todo o mundo. O seu currículo só pode mesmo ser comparado a alguns treinadores com largos anos de experiência em grandes clubes europeus. Assim, em termos curriculares ± e não contando aqui com os ínumeros prémios pessoais já ganhos ± José Mourinho colecciona, na sua sala de troféus, dois Campeonatos nacionais de Portugal, uma Taça de Portugal, duas Supertaças portuguesas, uma Taça UEFA e uma Taça da Liga dos Campeões e chegado há duas épocas a Inglaterra já conquistou a Taça da Liga inglesa e também dois campeonatos. O velho ³mito britânico´ segundo o qual ninguém no primeiro ano naquele país consegue vencer a sua mais importante prova acabou com José Mourinho. Vamos, pois, neste capítulo introduzir José Mourinho. Iremos traçar em termos genéricos o seu percurso enquanto treinador principal de uma equipa de futebol. Como se lançou e como se afirmou na rota do sucesso são introduções que importa fazer para um entendimento do que se pretende nesta dissertação: o estudo, de um ponto de vista de ciências da comunicação, das práticas de interacção grupal e de liderança de JoséMourinho. O sucesso do actual técnico do Chelsea não passa, defacto, despercebido a ninguém. Nas televisões é hoje um líder de audiências, os jornais aumentam as tiragens sempre que Mourinho é noticia de primeira página e os produtos aos quais o treinador empresta a sua
  • 5. imagem são sucessos de venda. A constatação que, por agora, se faz é que a imagem de José Mourinho extravasou, em larga escala, o campo desportivo. Ele transformou-se num fenómeno global a ponto de ser hoje o rosto promocional de várias marcas de nome mundial, como sejam os casos da Adidas, da American Express e da Samsung, entreoutras. Portanto, no desporto ou nos negócios, Mourinho é uma referência mundial seja noplano estrito da liderança seja no campo comunicacional mais vasto. The million dollar question: a que se deve este impacto comunicacional? Apenas aos resultados conseguidos nos jogos de futebol? Parece-nos que a resposta terá de ser dada pela negativa. Tanto mais que se nos afigura pacifico que José Mourinho não é apenasvisto como um treinador de futebol de sucesso. Eventualmente, será assim no ³mundo do futebol´ mas fora dele profissionais de todo o mundo têm os olhos postos nos seusmodelos de interacção, de gestão e de liderança, o que o torna, também, um gestor e umlíder de sucesso. Deste modo, Mourinho, é objecto de estudo e de apetência pelas empresasde marketing e publicidade e a sua imagem é utilizada não apenas como um treinador desucesso mas como um ³homem de sucesso´. Nos spots publicitários da American Express realça-se a segurança e a determinação do profissional, bem como a sua capacidade deantecipação; na campanha publicitária da Samsung compara-se José Mourinho ao famoso agente secreto James Bond ± 007, sugerindo vertentes comuns no carácter de ambos:homens destemidos, arrojados e decididos. Desta forma, parece-nos claro que hoje em dia existe um convencimento geral de que o sucesso de José Mourinho não se deve apenas aos seus conhecimentos técnicos sobre futebol. A forma como comanda e gere uma equipa de futebol éconsiderada, igualmente, determinante para os resultados que vai obtendo. A revistaExame, na sua edição de Abril de 2005, dedica um artigo a José Mourinho com o título: ³18 Lições de Campeão´. Noante título podemos ler: ³Pode o modelo de gestão de José Mourinho ser aplicado em empresas fora do mundo do futebol? Sim. O seu livro tem ensinamentos para todo o tipode gestores´. Não procurando, por agora, abordar a prática profissional de José Mourinho em toda a sua extensão, pretendemos neste capítulo introdutório apontar de uma forma clara o que se considera serem os principais pontos fortes do treinador do Chelsea enquanto líder e comunicador, ou seja, aquilo que lhe dá força para o exterior bem como a força interior que consegue transmitir aos seus jogadores. A forma como José Mourinho se relaciona com estes últimos, enquanto catalizador de motivações, sejam elas de grupo ou individuais, e como interage emocionalmente, gerindo as fraquezas e os pontos fortes do grupo, são elementos que têm levado, não poucas vezes, as suas equipas a superarem-se. Emerge aqui a inteligência emocional de José Mourinho, a qual aliada à sua organização profissional e à sua eficácia comunicacional tem conduzido a uma conclusão generalizada: Mourinho consegue transformar jogadores quase banais em super campeões e grupos quase banaisem super grupos. 1.1.1. Mourinho: Um Caso Mediático O treinador de futebol José Mourinho é hoje um caso raro de popularidade no mundo inteiro. A razão que justifica esta constatação assenta nos resultadosatingidos em seis anos de actividade profissional como treinador principal de futebol, bem como na sua imagemde liderança. O que Mourinho ganhou catapultou-o para o estrelato e fez dele um dos maiores protagonistas do futebol da actualidade. Mourinho conseguiu aliar à sua performance desportiva uma forma diferente de estar no futebol, com uma linguagem diferente e uma
  • 6. imagem diferente. Os resultados desportivos, a sua acção enquanto líder eo seu discurso conjugados com o marketing fazem de José Mourinho oque ele é hoje, ou seja, um homem de sucesso reconhecido internacionalmente. Como profissional do futebol, Mourinho joga em todos os campos: dentro e fora das quatro linhas. Joga também de formas diversas: com a razão e com a emoção. Num e noutro caso José Mourinho utiliza o conhecimento profundo que tem do fenómeno futebolístico e tenta colmatar os seus pontos fracos e, no caso dos adversários, tenta anular os respectivos pontos fortes e explorar as suas fraquezas. A chave do seu sucesso tem sido, também, atribuída à sua capacidade de criar grupos coesos e motivados, capazes de ir buscar forças aos próprios antagonistas e de descobrir em si forças desconhecidas explorando-as até ao limite. Também a empatia com todos os que consigo trabalham é algo de muito importante e com certeza determinante. Desta forma, é fácil de entender que o trabalho de José Mourinho junto do seu grupo não se resume às componentes físico-tácticas dos atletas. Mourinho é, também, um condutor de homens e, como tal, um comunicadornato, um gestor de emoções e um explorador de recursos. O trabalho mental é uma das suas maiores armas. A comunicação eficaz com o grupo bem como as relações interpessoais constituem algumas das ferramentas essenciais do seu trabalho. 1.1.2. Em Constante Desafio José Mourinho era aos 36 anos um profissional bem instalado na vida. Era treinador adjunto de um dos maiores e mais conceituados clubes do mundo, o Barcelona FC, egozava de prestígio reconhecido no seu país e em Espanha, o país onde trabalhava. Em grande parte pela visibilidade que o clube naturalmente lhe dava, Mourinho ia aos poucos sendo reconhecido na Europa do futebol. No final da temporada de 1999/2000 quase que abruptamente e com mais um ano de contrato, José Mourinho decidiu rescindir com Barcelona. Para trás deixava um salário que, pela sua idade e experiência reduzidas, seria difícil de igualar em qualquer outro clube. Deixava também uma posição cómoda e estável como treinador adjunto, cujo trabalho sem pressões lhe permitiria continuar adesenvolver as suas ideias e a sua aprendizagem. Só que, a avaliar pela sua decisão, dinheiro e estabilidade não são tudo. Mesmo com mulher e dois filhos menores ± um deles com menos de um ano de idade± José Mourinho optou por desafiar o futuro. ³ Não tenho medo nenhum do futuro. Tenho uma grande confiança em mim e nos meus conhecimentos. Seique posso fazer a diferença e que posso vencer´ (Mourinho in Lourenço 2004: 25), e destaforma José Mourinho fez as malas e saiu de Barcelona. Nessa altura a sua mente era dominada por um sentimento único: ser treinador principal numa equipa de futebol. Mesmo que calculados, correu riscos, mas estava absolutamente determinado conforme ocomprovam as palavras da altura na sua biografia autorizada: ³Julgo que é possível, mais tarde ou mais cedo, encontrar um clube de segunda linha. («) Tenho um projecto para entregar a quem me quiser contratar, tenho ambições e objectivos bem definidos. Levo comigo um documento orientador que será a garantia do meu trabalho. Por outro lado, se o Barcelona me deu algo ± e muito me deu, com toda a certeza ± foi visibilidade no meu próprio país. («) Quem me quiser contratar já está familiarizado com o meu trabalho, pelo que não sou um completo desconhecido. Não fará, pois, uma aposta totalmente no escuro porque sabe o que eu quero, só não sabe se eu vou ou não conseguir colocar em prática as minhas ideias. De qualquer forma não quero pensar nisso agora´ (Mourinho in Lourenço 2004: 27). E desta forma Mourinho entrou para as estatísticas do desemprego em Portugal. De uma vida de sonho em Barcelona, num ápice, passou a desempregado em Setúbal. Está bom
  • 7. de ver que a questão económica não se lhe colocava com especial acutilância. Antes, era na questão profissional que mais e maiores riscos corria. José Mourinho estava, na altura, longe de ser a figura pública que é hoje. Por outro lado ainda não tinha dado provas a ninguém de que poderia, com algum sucesso, ser treinador principal numa equipa de futebol. Por fim, constatando que no mundo do futebol vale bem o ditado ³quem não aparece esquece´, José Mourinho não se podia dar ao luxo de estar muito tempo afastado. Pelas razões apontadas, Mourinho correu alguns riscos profissionais. Porém, a sua forte determinação, não temendo o futuro em nome de algo em que acreditava profundamente, fizeram-no dar, talvez, o primeiro grande passo para conquistar tudo o que conquistou até hoje. E de facto, volvidos quatro meses da sua saída de Barcelona, José Mourinho encontrava-se no relvado do estádio da Luz a treinar, como técnico principal pela primeira vez na sua vida, o Benfica. Sobre a forma como José Mourinho encara o futuro, sem receios de maior, uma outra situação, ocorrida cerca de ano e meio depois de se ter iniciado no Benfica± e que tanta tinta fez correr nos jornais portugueses ± ajuda a conhecer o seu carácter. Depois de uma disputa acesa entre Benfica e FC Porto para a sua contratação, em Janeiro de 2002, foi a equipa do norte que levou a melhor. O FC Porto estava longe dos seus tempos áureos eo presidente do clube portista, Jorge Nuno Pinto da Costa, tentava devolver ao clube o passado recente, ou seja, tentava voltar às vitórias. Pinto da Costa optou então por demitiro treinador, Octávio Machado, que não conseguira mais do que um desesperante 6º lugar ao iniciar-se a segunda volta do campeonato. Para além disso o clube não conseguia ser campeão ia para três anos consecutivos, performance de que só havia registo semelhante nos idos anos 70. Pela primeira vez, em cerca de 20 anos como dirigente portista, Pinto da Costa começava também a ser contestado pela massa associativa. Pinto da Costa apostouentão em José Mourinho, com a certeza de que aquela temporada, em termos de umavitória no campeonato, estava definitivamente comprometida, mas com a esperança que melhores épocas viriam. A debilidade desportiva que o clube vivia na altura pareceu, também, não ter atemorizado José Mourinho, o novo treinador do clube do Porto. No diade apresentação à imprensa José Mourinho deixou o país desportivo atónito com ³tanta sobranceria´... Estávamos, no dia 23 de Janeiro de 2002 quando, numa sala cheia dejornalistas, José Mourinho disse o seguinte: ³para o ano vamos ser campeões´. O que olevava Mourinho, logo no primeiro dia no clube, a desafiar os adversários com a ³certeza´ de que o FC Porto até já podia, com ano e meio de antecedência, encomendar as faixas decampeão? Uma razão muito simples: tratava-se de comunicar com eficácia para todo o clube, desde os jogadores aos adeptos. ³José Mourinho quis dar a entender aos portistas, logo no primeiro dia, que estava no clube para ganhar. («) Ficou, desta maneira, içada a bandeira portista no mastro principal das Antas e Mourinho quis, desde logo, toda a nação azul e branca unida à volta da nova bandeira´ (Lourenço 2004: 99). E no ano seguinte o FC Porto ganhou o Campeonato Nacional, a Taça de Portugal e a Taça UEFA. Mourinho prometeu menos do que aquilo que conseguiu. Parece claro que José Mourinho não teme comprometimentos. Parece também correctoafirmar que o faz em prol do seu grupo de trabalho. Manter um grupo unido, com uma missão de futuro e, principalmente, sem pressões, parece ser a sua forma de actuação. Nemque para isso tenha de chamar a si todas as pressões exteriores. Mas José Mourinhotambém gosta disso. Por exemplo, Mourinho sabia que o seu regresso ao Estádio da Luz, enquanto treinador de uma
  • 8. equipa adversária do Benfica, justamente o FC Porto, não seria pacífico. Estava agora do lado do ³inimigo nº1´ e os adeptos benfiquistas não lheperdoavam a ³traição´. Por isso afirmou: ³[S]abia claramente que quando entrasse em campo teria, aí sim, uma estrondosa recepção« pela negativa, claro está. Por isso fiz questão de entrar sozinho, antes da equipa. O estádio estava cheio quando pisei a relva da Luz pela primeira vez no dia 4 de Março de 2003. Faltava ainda cerca de hora e meia para o início do jogo. Foi fantástico. Vivi uma sensação linda. Nunca fui um jogador de primeiro nível para sentir, por exemplo, o que o Figo sentiu quando regressou a Barcelona e portanto não tinha bem a noção do que seria 80 mil pessoas a assobiar-me e a apupar-me. Julgo que quando somos mentalmente fortes o efeito que as pessoas buscam, de intimidar e perturbar, sai completamente furado. Ao invés, dão força e alento para prosseguir o caminho. Senti-me a pessoa mais importante do mundo ao ouvir em uníssono o coro de assobios e vaias com que os adeptos benfiquistas me receberam no Estádio da Luz. Ao mesmo tempo, ao descarregarem em cima de mim, acabaram por poupar a eq uipa, o que também foi importante´ (Mourinho in Lourenço 2004: 149). Tal como já referimos, a liderança de José Mourinho não se esgota na vertente interna da sua organização. Ela passa para o exterior e muitas vezes produz um efeito boomerang, ou seja, a mensagem é passada para o exterior de forma a muito claramente ser eficaz no interior. Atente-se na conferência de imprensa em Barcelona, em Fevereiro de 2005, na véspera do encontro da primeira-mão dos oitavos de final da Liga dos Campeões Europeus. Os jornalistas, ingleses e espanhóis, estavam ansiosos por saber qual a equipa que José Mourinho faria alinhar. O técnico português queria fazer passar a mensagem de que o Barcelona, para ele, não tinha segredos e isso era uma arma poderosa com que os seus jogadores poderiam contar. Era uma forma de os motivar ao saberem que o líder tinha tudo previsto, com base em total informação sobre o seu opositor. Ao mesmo tempo, o adversário também se desmotivaria ± ou amedrontaria ± ao saber que não poderia contar com o factor surpresa. Mourinho aproveitou a pergunta dos jornalistas sobre a constituição da sua equipa para fazer a sua ³jogada´. A resposta apanhou todos os jornalistas de surpresa de tal modo que ela correu mundo. José Mourinho nomeou então todos os jogadores do Chelsea que iriam entrar em campo no dia seguinte frente ao Barcelona. Equando os jornalistas pensaram que a resposta estava dada, enganaram-se. Mourinho disselhes ainda que lhes ia poupar trabalho« Sem se deter disse de imediato a constituição da equipa que Frank Riijkard, treinador do Barcelona, iria fazer jogar contra si no dia seguinte. E quando os jogadores entraram em campo pôde constatar- se que nem num só nome José Mourinho se havia enganado. 1.1.3. Só a Vitória Interessa Nos nossos dias, com especial e compreensível acutilância no mundo do desporto, oinstinto competitivo é fundamental para se vencer. Um exemplo, de um passado já algodistante, pode ilustrar o sentido competitivo de José Mourinho, para quem só a vitóriainteressa. O autor desta dissertação é amigo de José Mourinho desde a infância. Na nossa terra natal, Setúbal, todos os anos se realiza um torneio de futebol de salão que faz sonhar os jovens que praticam a modalidade. É o maior e mais visível torneio da cidade e disputa-se em Junho. Quis o sorteio que, nas meias-finais se defrontassem José Mourinho e eu próprio, naquela que, consideravam os ³observadores´, seria a final antecipada do torneio. A cinco minutos do fim do jogo ainda se mantinha o empate a zero. Mourinho ³pega´ então na bola e arranca num ³sprint´ a alta velocidade. O último dos jogadores adversários, até chegar ao
  • 9. guarda-redes, era eu, ironia do destino, o seu amigo em campo. José Mourinho em velocidade ³passou´ por mim, saltando-me por cima das pernas que tentavam cortar a bola. Um simples toque tê-lo-ia desequilibrado e feito cair. Teria sido falta, mas não teria sido como foi ± golo. Só que um simples toque, à velocidade a que Mourinho seguia, poderia tê-lo magoado seriamente. A minha decisão, instintiva obviamente, foi não fazer falta, não correndo assim o risco de o lesionar. No final, já depois do banho tomado, encontrámo-nos para seguir juntos para casa. José Mourinho não perdoou a minha decisão... Para ele, ali dentro do campo, não havia amigos mas sim adversários. Por uma má decisão minha, todo um grupo havia sido prejudicado e todo um outro grupo, neste caso o dele, havia sido beneficiado. O grupo que foi prejudicado ± o meu ± não tinha nada a ver com as relações entre nós, argumentava Mourinho. Se a situação ocorrida durante o jogo fosse inversa eleteria tomado a decisão de fazer falta, confidenciou-me. O caso aconteceu tínhamos ambos 22 anos. Na altura passou-me despercebido... Hoje ajuda-nos a compreender que a competitividade de Mourinho não nasceuontem« Passadas cerca de duas décadas a situação, repetiu-se. Mourinho continuou a ser um dos protagonistas, o outro é que mudou. Nas meias-finais da Taça UEFA, na época de 2002/2003, o FC Porto defrontou a Lazio de Roma, considerado, então, o grandefavorito à vitória naquela competição. Quis o sorteio que o primeiro jogo fosse no Estádio das Antas, no Porto. Naquele que Mourinho considerou o ³melhor jogo da época do FC Porto´, a dois minutos do final os portistas venciam por 4-1, um resultado excelente não fosse o adversário marcar ainda um golo, o que já não seria tão positivo. Ir a Roma com uma diferença de três golos seria fantástico, com uma diferença de dois seria apenas bom. ³Faltava um ou dois minutos para o final quando, numa jogada de contra-ataque, a bola sai pela linha lateral mesmo junto a mim. De imediato o argentino Castroman apanha a bola e prepara-se para servir um companheiro seu. Estava no enfiamento da linha limite da nossa grande área e apercebi-me do perigo. A nossa defesa estava descompensada, ou seja, dois avançados italianos para dois defesas meus, pelo que sobrava, de imediato, o Castroman, que logo se integraria na manobra ofensiva. O 4-1 era um resultado excelente mas o 4-2 já não era assim tão bom. Ele (Castroman) estava mesmo junto a mim e eu puxei-o para que não fizesse de imediato a reposição da bola em jogo. O argentino reagiu, o árbitro viu e fez o que tinha de fazer: expulsoume e mostrou um cartão amarelo ao jogador da Lazio. É evidente que foi feio. Não foi uma situação instintiva da minha parte, por isso, reconheço a justiça da minha expulsão. Não tive fair play, para além de ter intervido directamente no jogo. Logo na altura eu pedi desculpa ao Castroman e ele a sorrir respondeu-me apenas:  Mister, é futebol»´ (Mourinho in Lourenço 2004: 156). 1.1.4. Estrelas e Anónimos: Todos São o Grupo Uma equipa de futebol da dimensão do Chelsea FC é composta por ínumeras estrelas. Não há um único jogador do Chelsea± à excepção do guarda-redes suplente, Carlo Cudiccini ± que não seja internacional pelo seu país. Sob o comando de José Mourinho estão nomes famosos do futebol mundial como Frank Lampard, John Terry, Didier Drogba, Michael Ballack ou Andrei Schevschenko, entre outros. Para José Mourinho são nomes importantes no mundo do futebol, mas o nome mais importante é mesmo Chelsea FC. Só em torno deste emblema acontece o êxito, justamente, porque para o treinador o importante, a verdadeira estrela, é mesmo o grupo. E o grupo ± enquanto todo ± vale mais que a soma das partes. O grupo supera-se na soma de todas as partes. No entanto o grupo não começa nem acaba nos jogadores da sua equipa. Ele vai muito para além disso. Todos os que fazem parte da estrutura profissional de futebol constituem o grupo de José Mourinho, e todos eles, nos seus respectivos lugares, são importantes para o sucesso final do grupo. Esta éuma imagem que Mourinho não prescinde de fazer passar a todos os que trabalham comele. Não nos poderemos, pois, admirar com episódio a seguir descrito.
  • 10. Estávamos no início da temporada de 2004/2005. José Mourinho tinha chegado ao clube inglês há cerca de um mês. O clube encontrava-se na pré-temporada e os primeiros 30 dias foram de trabalho em Stamford Bridge, o estádio do Chelsea. Cedo o técnico português percebeu que a relva se encontrava em condições magníficas. Essas condições permitiramlhe excelentes treinos, que tiveram como prémio a primeira vitória num torneio realizado nos Estados Unidos, onde o cabeça de cartaz era o AC Milan, recentemente coroado Campeão Europeu. A taça foi levantada, em campo pelo capitão John Terry, mas o seu destino já estava traçado. Em reconhecimento ao trabalho do tratador da relva de Stamford Bridge, pelos treinos proporcionados à equipa, e que José Mourinho considerou um dos obreiros da vitória, a Taça, uma vez chegada a Londres, foi directa para a casa daquele profissional do Chelsea. Aquele homem, de quem ninguém, à excepção de Mourinho, se havia lembrado quando o Chelsea conquistou o troféu, teve nos dias seguintes os seus merecidos momentos de glória. Os jornais britânicos não deixaram passar em claro o destino do troféu. Nunca um tratador de relva havia dado tantas entrevistas, havia visto tantas fotografias suas nos jornais e, muito provavelmente e mais importante, nunca havia sentido o seu trabalho tão reconhecido. Estas histórias servem, numa análise necessariamente breve, para que se possa compreender a dimensão do profissional em questão. Trata-se de episódios escolhidos para de uma forma abrangente ilustrar o carácter do profissional, evidentemente intimamente ligado ao carácter do ser humano José Mourinho. 1.1.5. Razão e Emoção ³Os jogadores foram fantásticos e mostraram o grupo que somos, mostraram o quanto crescemos como organização; os adjuntos são unidos, não háciumeiras, sabem para quem trabalham e o que devem fazer, têm carácter moldado ao do líder, foram a minha voz´, disse José Mourinho depois de se ter sagrado campeão inglês, pelo segundo ano consecutivo ao serviço do Chelsea.1 José Mourinho é um treinador especial, e os seus resultados comprovam isso mesmo. Enquanto técnico está em permanente actualização, em estudo constante. Como profissional tem aquilo a que na gíria futebolística se chama ³instinto de treinador´. Além disso, ou talvez relacionado com isso mesmo, José Mourinho é um excelente comunicadore um líder eficaz. Quando concebe de raiz uma equipa, o treinador do Chelsea tem um perfil traçado para os profissionais que pretende. Quer jogadores jovens, pobres e sem títulos ganhos. Pretende, desta forma, motivação e ambição. No conceito de grupo de Mourinho o individual tem pouco valor se não trabalhar em prol do colectivo. O grupo é o que mais conta e o individual é entendido na perspectiva de melhorar a actividade do grupo. Na sua liderança Mourinho é centralizador, mas não dispensa as opiniões dos diversos elementos do seu grupo de trabalho. É frontal e preconiza a justiça como o caminho para atingir a lealdade e disciplina nos vários graus hierárquicos. José Mourinho motiva os membros das suas equipas ao discutir com eles o seu desempenho; vai de encontro à natural necessidade de afiliação; e informa-os sempre que toma decisões. Desta forma, Mourinho comunica com eficácia com os jogadores e com os
  • 11. outros profissionais do seu grupo. Qualquer jogador tem sempre a porta do gabinete deJosé Mourinho aberta. A este nível de comunicação interpessoal, José Mourinho é um líderparticularmente atento. Nos casos de indisciplina José Mourinho parece igualmente gerir oseu grupo com mestria. Em dois casos, tratou os envolvidos de formas eficazes, mas totalmente diferentes. Num caso a que adiante nos referiremos com maior detalhe, obenfiquista Maniche, em 2000, foi relegado para a equipa B depois de ter sido expulsonum encontro do campeonato português e posteriormente ter mostrado um evidente desinteresse nos treinos. Num outro caso passado com Vítor Baía, guarda-redes do FC Porto, levantou um processo disciplinar e afastou-o, sumariamente, do grupo depois de uma violenta discussão no balneário, onde Mourinho achou ter havido desrespeito para com o líder do grupo. A comunicação, no caso de Maniche, foi informal e, de certa forma, paternal. No caso de Baía foi autoritária, sem margem para discussões, porque o papel quecada um desempenha no grupo e as suas próprias personalidades são diferentes e Mourinho sabia muito bem disso. Contudo, em ambos os casos, ao fim de relativamente pouco tempo, aqueles jogadores estavam de volta à equipa, e com resultados excepcionais.Servem estes dois exemplos para apontar a importância e a influência de José Mourinho,quer ao nível do desempenho do grupo e da motivação individual, quer no plano do exercício da sua autoridade. Talvez por estes motivos, José Mourinho só contrata para as suas equipas jogadores evoluídos culturalmente e com ³opiniões próprias´ (Lourenço 2004: 27), para assim poder levar a cabo o seu método de treino, aprendizagem e motivação a que chamou ³descoberta guiada´ e que mais adiante descreveremos com algum detalhe. Importa, por agora, destacar a importância da comunicação interpessoal e intra-grupal ± a sua coerência e consistência interna, mesmo na diversidade que muitas vezes apresenta± na forma como José Mourinho lidera o seu grupo de trabalho. A maneira como José Mourinho usa a razão para compreender as suas emoções e as do seu grupo de trabalho, e assim tomar decisões racionais em ambientes muitas vezes intensamente emocionais, faz com que muitos o apontem como um ³mestre´ na difícil tarefa de conduzir e motivar um grupo de profissionais. Nos exemplos anteriormente apontados nota-se a conjugação de uma comunicação constante e frontal com os seus jogadores, bem como um equilíbrio constante entre razão, isto é, competência e capacidade de análise, e emoção, isto é, relações humanas e motivação pessoal. Atente-se na carta escrita por Mourinho, no início da época de 2002/2003, aos jogadores do FC Porto. ³[E]spero que as férias te tenham oferecido o que delas esperavas e que te tenham ¡recarregado» as baterias da motivação e da ambição. ¡Ser campeões» tem de ser sempre o nosso objectivo. Um objectivo diário, uma motivação consistente e permanente uma luz que tem de guiar o nosso trajecto a partir de agora. (¡ ) A nossa relação pessoal, não tenho dúvidas, vai crescer rapidamente e a nossa equipa vai continuar a evoluir. («) Eu e a Administração acreditamos em ti. É precisamente por isso que aqui estás. («) Ser titular nunca será uma palavra correcta, porque o equilíbrio qualitativo é enorme. Preciso de todos porque o trabalho é longo e difícil. Todos serão opção e todos serão um contributo para a equipa. Todos vós precisam unsdos outros. Somos uma EQUIPA. «Só há espírito de equipa», diz o André numa frase que considero fantástica, «quando um atleta não convocado está a ver o jogo no camarote e não aceita que alguém critique um colega seu». Eu acrescento: motivação + ambição + espírito de equipa = sucesso´ (Lourenço 2003: 128). Por estas palavras se pode entender a preparação psicológica que José Mourinho exerce sobre os seus jogadores logo desdeo primeiro dia de trabalho. Também se entende facilmente o rumo do seu pensamento ao fazer depender o sucesso da conjugação de três premissas: motivação, ambição e espírito de equipa. Sublinha-se ainda a interdependência
  • 12. dos elementos perante o grupo (incluindo-se aqui a ele próprio) quando afirma que todos os elementos dependem uns dos outros. Por fim deixa bem vincada a sua liderança, ainda que duma forma indirecta, ao dizer que acredita no jogador, por isso ele faz parte do grupo ³por si escolhido´. Para além de recursos humanos, Mourinho gere também de uma forma muito interessante a sua imagem. Quer para dentro do grupo quer para a opinião pública, o tipo de comunicação que efectua obriga à reacção. Para o exterior Mourinho passa a imagem de arrogante, ³compra´ ou provoca ³guerras´ e em caso algum se atemoriza. José Mourinho aprendeu que a indiferença dos outros não lhe é útil. Desta forma é um estudioso das reacções humanas e procura nos outros forças para si mesmo e para o seu grupo. Desencadeada esta espécie de processo de guerrilha, Mourinho controla as suas emoções e explora as do adversário em seu proveito. Pode bem dizer-se que transforma fraquezas alheias em forças suas. Além disso, e como amigo de longa data do treinador actual do Chelsea ± e conforme ao espírito descritivo deste capítulo ± devemos acrescentar que desde há muito é para mim pacifico que José Mourinho tem uma especial, e talvez rara, capacidade para lidar com apressão. Será mesmo talvez de dizer, possivelmente sem exagerar por aí além, que a pressão exterior não o atinge; que 80 mil pessoas vaiando-o no Estádio da Luz, antes do encontro com o Benfica, não só não o incomodaram como o motivaram e fizeram-no entrar em campo primeiro que os seus jogadores, poupando-os assim ao ruído ensurdecedor das primeiras vaias dos adeptos benfiquistas. Mourinho utiliza o conhecimento profundo que tem dos seus jogadores, gere as suas emoções e utiliza-as em proveito do grupo. Busca, de igual modo, toda a informação possível sobre os seus adversários, através de um estudo exaustivo, transmite-a ao grupo e com a colaboração dos que consigo trabalham estuda as melhores formas de anular os pontos fortes e explorar as fraquezas dos adversários. Mourinho é muito mais do que um técnico de futebol. Se o é, então como Manuel Sérgio referiu (in Lourenço 2004: prefácio), ele é um novo treinador e não apenas um treinador novo. Ele é um líder, um visionário, e um comunicador nato. Sabe qual o caminho a seguir para fazer a diferença. Enquantogestor de pessoas, de emoções, de afectos e interacções, o cunho pessoal de Mourinhoparece de facto ter um lugar único no mundo do futebol. 1.1.6. José Mourinho, O Carismático A revista Visão, edição de 4 de Abril de 2005, escrevia como subtítulo de uma reportagem sobre o treinador do Chelsea: ³À beira de ser campeão, no primeiro ano em Inglaterra, Sir Mourinho tem o mundo a seus pés. Em Londres é amado e odiado. Seja pelas vitórias do Chelsea, a arrogância, o sobretudo ou a barba de três dias´. É assim José Mourinho, uma figura pública que não deixa ninguém indiferente. Para isso o treinador reúne várias características que o tornam único na sua profissão. 19 Na sociedade mediática em que vivemos, cada vez mais os membros das diversas comunidades tendem a identificar-se, a seguir e até a apaixonar-se por aqueles que se apresentam como líderes, nos mais diversos sectores das sociedades. Aliás, esta linha de identificação e de paixão com e pelo líder, foi há muito indicada por Sigmund Freud (1856-1939), como o substrato mais profundo do fenómeno grupal. O carisma, lato sensu, pode indicar-se como uma atracção irracional, isto é, sem necessidade de uma explicação racional, por parte das massas por alguém que lhes inspira poder e confiança, amor ou ódio. Ora José Mourinho é hojeum homem carismático, gostese ou não dele. Ele gera sonhos, imitações e inspirações, provoca ódios e paixões como
  • 13. poucos. Seja pelas suas vitórias, pela sua arrogância aparente, pela barba± geralmente com 3 dias por fazer... ± ou pelo seu sobretudo cinzento ± que tanta tinta fez correr nos jornais ingleses ±, pelas suas declarações frontais e por vezes provocatórias, Mourinho está sempre nas luzes da ribalta. ³José´ como é conhecido em Inglaterra é, em tantos cantos do mundo, o homem que adolescentes e adultos gostariam de ser. Porquê? Talvez porque conseguiu um sucesso mundial aos 40 anos de idade, porque é famoso, porque tem bom porte, uma personalidade vincada e porque sabe o que quer e para onde vai. Depois, desde a sua imagem às suas palavras e actos, Mourinho comunica de uma forma ímpar todo este manancial de virtudes para o mundo exterior. Desta forma, parece-nos apropriado fechar esta subsecção com a história que, por ventura, mais celebrizou José Mourinho em todo o mundo. A história que o baptizou como The Special One. No dia da sua apresentação como treinador do Chelsea FC, José Mourinho compareceu aos jornalistas ingleses, em Londres, para a habitual conferência de imprensa. Todos queriam saber como é que um português de 41 anos iria gerir, comandar e treinar uma das maiores e mais mediáticas equipas de futebol do mundo. Quem era José Mourinho? Como chegara ali? O que pretendia? Como iria adaptar-se a uma realidade nova e seguramente difícil? Como reagiria à pressão? Enfim, muitas e pertinentes questões teriam de ser colocadas a este português com fama de arrogante, aparentemente muito seguro de si, mas que sem dúvida pouco ou nada conhecia da realidade britânica. Todas as perguntas foram feitas e uma resposta teve dimensão mundial: ³Because I¶m a Special One´. Esta resposta foi dada por José Mourinho com base nos resultados conseguidos pelo FC Porto, sob o seu comando, nas duas temporadas anteriores, conquistando a Taça UEFA e a Liga dos Campeões. José Mourinho afirmou, então, que se o futebolinglês, o Chelsea e 20 os seus jogadores eram especiais, ele, com toda a certeza também o era, por aquilo que tinha ganho, pela forma como tinha ganho e, acima de tudo, no clube onde tinha ganho, seguramente, um clube com pouca dimensão económica quando comparado com os grandes da Europa. Ainda assim, em dois anos seguidos, ele rivalizou com os ³grandes´ da Europa e ganhou. Isso tornava-o diferente, special, de tal forma que não teve qualquer hesitação em admiti-lo perante uma plateia de jornalistas ingleses. No dia seguinte as primeiras páginas dos jornais britânicos fizeram-se em uníssono: ³I¶m a Special One´. Hoje, em toda a Inglaterra e, provavelmente, grande parte do mundo± pelo menos desportivo ±, quando se fala no The Special One todos sabem que se está a falar de José Mourinho. 1.2. José Mourinho: a Imagem Pública Entramos assim na sua segunda parte deste capítulo, dedicada à imagem pública de José Mourinho. Caracterizado que está ± ainda que em traços largos ± o percurso e o sucesso de José Mourinho, passamos agora a outra fase deste capítulo. Procuraremos nas páginas seguintes enquadrar José Mourinho face ao que dele se comenta com mais regularidade. Ao olharmos os jornais, ao vermos a televisão, ao ouvirmos a rádio, ou até mesmo nas conversas de rua, quando se fala de Mourinho existem sempre algumas ideias que se sobrepõem e que são, de certa forma, consensuais para a generalidade das pessoas, quer se goste ou não da figura em causa. Da nossa experiência pessoal, e como biógrafo de José Mourinho, recolhemos aqui alguns dos traços que geralmente lhe são atribuídos. 1.2.1. Disciplina Reconhecidamente, José Mourinho conduz os seus grupos de trabalho com mestria. Numa equipa de futebol, recheada de ³estrelas´, não é fácil gerir ambições, emoções e motivações, e torna-se problemático resolver conflitos. O treinador português enfrenta-os com autoridade e disciplina. Num caso que acima já fizemos referência, quando treinava o Benfica, após Maniche ser expulso num jogo com o Boavista, e depois de outros incidentes, Mourinho interpelou o jogador com frontalidade: 21
  • 14. ³Das duas uma: ou tens um problema de cabeça e precisas de o resolver ou tens um problema físico e precisas, na mesma, de arranjar solução. Por isso vais treinar para a equipa B e quando achares que ou a cabeça ou o físico já não têm problemas vens ter comigo´ (Lourenço 2004: 44). Passados quatro dias Maniche dirigiu-se ao técnico, pediu-lhe desculpas e depois de pagar uma multa de 1000 euros foi reintegrado na equipa principal do Benfica. Poucas semanas depois Maniche era o capitão benfiquista e foi, posteriormente, um dos elementos essenciais na equipa do FC Porto ± com José Mourinho ± e da selecção nacional. Chegou ainda a jogar pelo Chelsea sob o comando do treinador português. 1.2.2. Autoridade Depois de passar pelo Benfica, José Mourinho assumiu o comando técnico da União de Leiria. No estágio de pré-temporada, na localidade de Tábua, quando todos os elementos do grupo ainda se estavam a conhecer surgiu uma situação que, para os jogadores, esclareceu cabalmente o papel de cada entidade e de cada profissional na estrutura leiriense. Num sábado de sol os administradores do clube marcaram um encontro de futebol com os jornalistas que acompanhavam a equipa. Não tinha acabado o treino da equipa de Mourinho e já alguns ³patrões´ da União de Leiria realizavam, do outro lado do campo, exercícios de aquecimento com vista ao ³amigável´ que se seguiria. ³Mourinho parou imediatamente a sessão e, gritando para os ¢ atletas» que iniciavam o aquecimento, mandou-os abandonar o campo. A surpresa foi geral, tanto de um lado como de outro. Os jogadores e restante equipa técnica ficaram mudos à espera que a ¢ bronca estalasse». Os elementos da SAD da União de Leiria entreolharam-se sem acreditar muito bem que estavam a ser expulsos por um seu subordinado. Por mais três vezes, com voz firme e grossa, José Mourinho gritou para o outro lado do campo a palavra ¢ RUA». Um deles ainda retorquiu: ¢ Mas porquê Mister? Você está a treinar aí e nós estamos aqui, qual é o problema?». Mourinho manteve-se inalterável no seu propósito: ¢ Eu depois explico-vos. Agora, rua!!!». A indecisão deu lugar à obediência e o campo ficou totalmente livre para a União de Leiria continuar a treinar´ (Lourenço 2004: 82). Mais tarde Mourinho explicou aos administradores as razões da sua atitude: aquele era, na altura, um local de trabalho, não de diversão e por esse motivo só o seu grupo de trabalho 22 poderia estar ali; tudo o resto só ajudava à desconcentração, algo que Mourinho não permite. Deram-lhe razão e prometeram que não se repetiria uma cena idêntica. 1.2.3. Motivação Ao serviço do FC Porto, em vésperas de um importante Porto/Benfica, José Mourinho deparou-se com uma entrevista do então Presidente do Benfica, Manuel Vilarinho, na qual afirmava ter sonhado que a sua equipa iria ganhar, por 3-0, no Estádio das Antas. ³Quando Vilarinho tornou público o seu sonho de imediato pensei: ¢ aí está a provocação que eu preciso para agitar o orgulho dos meus jogadores. De imediato mandei fazer uma fotocópia da entrevista do presidente do Benfica e coloquei-a na parede do balneário das Antas durante toda a semana, para que ninguém se esquecesse do ³sonho´ de Vilarinho. Aos jornais disse apenas que na nossa casa ninguém nos ganha por 3-0. E fomos para o jogo de alguma forma espicaçados´ (Lourenço 2004: 105). A verdade é que o jogo terminou com uma vitória do FC Porto por 3-2. 1.2.4. Determinação Com apenas dois meses de treinador principal, José Mourinho sentiu que o seu futuro poderia não passar pelo Benfica. Em início de carreira, a vida no clube da Luz não foi fácil. Face à a mudança de um presidente que lhe dava toda a confiança (Vale e Azevedo) para outro que lhe retirava toda a confiança (Manuel Vilarinho), Mourinho não temeu o futuro e arriscou. Devia ou não continuar no Benfica? Devia ou não definir de uma vez por todas o seu futuro com a direcção do clube? Devia ou não esperar que o despedissem? Devia ou não, simplesmente, bater com a porta? A caminho de casa, na auto-estrada que liga Lisboa a Setúbal, Mourinho tomou a decisão que iria abalar o país desportivo. Agora vai ser o
  • 15. tudo ou nada», referiu. Manuel Vilarinho recebeu José Mourinho no gabinete presidencial do Estádio da Luz. O presidente já sabia do que se tratava pelo que não era necessária qualquer introdução prévia ao assunto. Na reunião valeu o pragmatismo. José Mourinho não se deixou tentar pelas palavras de Vilarinho. Estava demasiado fragilizado por tudo o que lhe tinha acontecido até então na Luz. ³Agora ou era preto no branco» ou era nada. 23 E deu nada!´ (Lourenço 2004:64). Nesse mesmo dia José Mourinho rescindiu contrato com o Benfica e não mais voltou a treinar a equipa da Luz. 1.2.5. Frontalidade Na gestão de Mourinho não têm lugar jogadas subterrâneas. A comunicação frontal é vista como algo imprescindível ao bom funcionamento do grupo. Um exemplo de frontalidade é o caso da dispensa de Maniche da equipa principal do Benfica, acima referido. Nos grupos de José Mourinho todos devem comunicar entre si e dizer o que têm a dizer, sem constrangimentos e com total lealdade. Assim, nos minutos que antecederam o seu primeiro treino ao serviço do Benfica, Mourinho prometeu aos seus jogadores que o mote era ³olhos nos olhos´: ³ofereci-lhes frontalidade total. Quis, assim, que todos tivessem a certeza de que quando o treinador tomasse decisões sobre os jogadores do Benfica, fossem elas quais fossem, eles seriam sempre os primeiros a saber e por meu intermédio´ (Lourenço 2004: 39). Ainda no Benfica um outro exemplo ilustra de forma cabal a frontalidade da actuação de José Mourinho. No início do ano de 2001, Mourinho treinava a União de Leiria quando surgiu o interesse do Benfica em contratá-lo. Toni havia sido despedido e o clube de Lisboa necessitava de um novo técnico. Mourinho foi o escolhido einiciaram-se as negociações. Existia, no entanto, um entrave. Jesualdo Ferreira estava no clube como treinador adjunto e Mourinho não contava com ele na sua equipa de trabalho. Os dirigentes do Benfica insistiam, porém, na integração do técnico na equipa de adjuntos de Mourinho. Na reunião a posição de José Mourinho ficou bem clara: ³Das duas uma: ou digo directamente, olhos-nos-olhos, a Jesualdo Ferreira que não quero trabalhar com ele, para que, claramente, entenda que sou eu que não quero trabalhar comele, ou então nada feito e não vou para o Benfica (Mourinho in Lourenço 2004: 93). E por esta e outras razões Mourinho acabou mesmo por não chegar a acordo com o Benfica. 1.2.6. Risco José Mourinho não tem medo de desafiar o futuro. Para isso arrisca,provoca e compromete-se. No ano de 2003, ao serviço do FC Porto, a sua equipa perdeu, em casa, 24 nos quartos de final da Taça UEFA, por 1-0, com o Panathinaikos da Grécia. No final do encontro, Mourinho viu o treinador adversário, Sérgio Markarian, a festejar como se já tivesse vencido a eliminatória. Não gostou e de imediato se dirigiu ao seu opositor: ³Não estejas aos saltos que isto ainda não acabou´. Logo de seguida passou pelos adeptos portistas, nas bancadas do Estádio das Antas e fez-lhes um sinal como que a dizer µtenham calma, ainda temos uma palavra a dizer... («) Quando chegou aos balneários, depois de ter visto a festa grega, deparou-se com o inverso. Os seus jogadores estavam tristes, frustrados e de cabeça baixa. Logo ali José Mourinho quis deixar as coisas bem claras. £ Isto não acabou e eu disse isso, mesmo agora, ao treinador deles. Nós vamos lá dar a volta à eliminatória e se alguém aqui não acredita que é possível ganhar lá e passar às meias-finais que o diga já, porque fica cá e eu vou para a Grécia com outro» (Lourenço 2004: 151). Quinze dias depois o FC Porto ganhou o jogo por 2-0, qualificando-se para a meia-final da Taça UEFA, competição cuja edição desse ano havia de ganhar. 1.2.7. Participação Para o actual treinador do Chelsea FC todas as opiniões contam. O líder, para ele, só adquire a liderança de facto e de direito se esta for conquistada racional e emocionalmente. Daí que nos seus métodos de trabalho todos sejam chamados a participar e todos fiquem com a certeza de que contribuíram para as decisões finais que envolvem o grupo. Desta
  • 16. forma, os jogadores são responsabilizados quer pelas vitórias quer pelas derrotas. ³O trabalho táctico que promovo não é um trabalho em que de um lado está o emissor e do outro o receptor. Eu chamo-lhe a ¤ descoberta guiada», ou seja, eles descobrem segundo as minhas pistas. Construo situações de treino para os levar por um determinado caminho. Eles começam a sentir isso, falamos, discutimos e chegamos a conclusões´ (Mourinho in Lourenço 2004: 26). 1.2.8. Grupo Um conceito de grupo coeso e solidário é algo de que José Mourinho não prescinde. A ideia é de imediato transmitida a todos os seus colaboradores: ninguém está acima do grupo. Assim, no estágio de pré-temporada do FC Porto, em 2002, ao fim de alguns dias, o 25 treinador portista deu, finalmente, uma noite de folga aos seus jogadores. Marcou-lhes a hora de regresso ao hotel e esperou por eles. ³Fiquei completamente surpreendido, não só por terem aparecido muito antes da hora marcada, mas também por terem chegado todos ao mesmo tempo. Perguntei, então, ao Jorge Costa, que ia a passar por mim: - Jorge, o que é que se passou aqui? - Fomos todos juntos e temos aqui um grande grupo Mister. É difícil exprimir o que sente um treinador ao ouvir o capitão falar assim. Vinte e tal homens que estavam juntos há cinco dias, na sua primeira folga optaram por estar juntos, jantar juntos e confraternizar juntos. Era o meu grupo que estava a nascer´ (Mourinho in Lourenço 2004: 123). E nasceu, de tal forma, que nesse ano o FC Porto ganhou tudo o que tinha para ganhar: Campeonato, Taça de Portugal e Taça UEFA. 1.2.9. Confiança José Mourinho é naturalmente um homem confiante. Acredita sempre na vitória e faz questão de passar esse estado de espírito para os que consigotrabalham. Só acreditando na vitória se pode ganhar. Na temporada de 2002/2003 o jogo que decidia a vitória portista no campeonato estava agendado para o Estádio na Luz, com o Benfica. Na preparação do encontro Mourinho, treinador do Porto, surpreendeu os seus jogadores. ³Para moralizar os meus jogadores não sou um treinador que opte pelos ³gritos de ordem´ tipo: ¥ vamos a eles, até os comemos, somos os melhores, etc., etc., ». Nada disso. No que respeita ao jogo com o Benfica fiz passar a mensagem de superioridade total sobre o adversário. Eu sabia que o Camacho ± treinador benfiquista -, sempre que estava a perder, trocava o Zahovic pelo Sokota. Ora, quando iniciei os treinos fi-lo exactamente no sentido de preparar a minha equipa contra as investidas atacantes do Sokota. Até que um jogador, meio surpreendido me disse: ¥ Mas, Mister, eles não jogam com o Sokota, jogam com o Zahovic!!!». Era o que eu queria ouvir para de imediato responder: ¥ Jogam com o Zahovic quando estão a ganhar. Contra nós vão ter 26 de jogar com o Sokota, que é a opção de Camacho quando estão a perder«»´ (Mourinho in Lourenço 2004: 147-8). O facto é que o FC Porto chegou à Luz e ganhou o encontro por 1-0. Camacho, o treinador benfiquista, foi mesmo obrigado a colocar Sokota em campo. 1.2.10. Análise Nada no seu trabalho José Mourinho quer deixar ao acaso. Mourinho não parte para um jogo sem conhecer ao pormenor o adversário. Saber os terrenos que pisa é essencial ao bom desempenho do seu grupo. Na final da Liga dos Campeões, contra oMónaco, na Alemanha, em 2004, a análise do adversário foi mais longe que nunca. ³Na preparação do jogo começámos pelo visionamento de muitos jogos efectuados pelo nosso adversário. Eu já sabia tudo sobre o Mónaco mas queria que os meus jogadores também soubessem e sobretudo que eles vissem com os próprios olhos («). Para além destas informações globais, fizemos algo que nunca tínhamos feito. Cada jogador ficou com um DVD individualizado para ver e analisar. A título de exemplo
  • 17. dei ao Paulo Ferreira um DVD com todas as acções individuais e colectivas do Rothen, que era o ¦ ala» do Mónaco que iria jogar ¦ em cima» dele. Os centrais tinham informações sobre o Morientes e o Prso. Enfim, cada jogador tinha o seu DVD para estudar. Depois discutimos em conjunto a informação individual de cada um. Foi desta forma que ficámos a conhecer o Mónaco e considero que a equipa francesa não tinha segredos para nós´ (Mourinho in Lourenço 2004: 221). O FC Porto venceu a final da Liga dos Campeões por 3-0. 1.2.11. Valores Mourinho tem regras, assentes em valores, permanentemente definidas. Um dos seus exercícios, quase diário, é não deixar que essas regras ± e por consequência, os valores nos quais elas assentam ± resvalem por caminhos que poderão desviar o grupo dos objectivos pretendidos. 27 No final da época de 2002/2003, depois da equipa do FC Porto ter ganho tudo, ou seja, a Liga portuguesa, a Taça de Portugal e a Taça UEFA, José Mourinho temeu uma mudança de atitude por parte dos seus jogadores: ³[A]pós o sucesso da primeira época, em que ganhámos tudo o que havia para ganhar, tive § medo» da segunda [época]. Tive § medo» relativamente à abordagem da época por parte dos jogadores, sobretudo a nível mental, psicológico, ao nível da motivação, do comportamento, do crescimento no bom ou mau caminho, no estatuto de alguns jogadores. (§ ) Não era com medo que se deitassem mais tarde ou que bebessem mais copos, era dentro do próprio jogo. (§ ) Então decidi que aquela disciplina que nos caracterizava na primeira época, dentro daquele padrão de jogo, não se podia perder e que o rigor táctico devia aumentar. (§ ) Assim, aproveitei o seu maior rigor em termos de disciplina táctica, em termos de posições e de funções, para trabalhar muito mais à volta do 1x4x4x22. Porque esta estrutura, da forma como eu a concebo, é muito mais táctica que o 1x4x3x33. Muito mais táctica! (§ ) É um sistema à partida desequilibrador (§ ) é um sistema que tem coisas más. E, ao obrigar os meus jogadores a jogar neste sistema táctico, § obrigo-os» a ser naturalmente disciplinados, rigorosos e concentrados´ (Mourinho in Oliveira et al 2006: 177-8). E de seguida ± para melhor se compreender o raciocínio do treinador± Mourinho concluiu: ³ [A]cho que quem sentir que precisa de disciplina na sua equipa, em vez de ir à procura dos aspectos disciplinares nus e crus (pontualidade, rigor, etc.), deve ir antes pelo rigor táctico, pela procura de uma determinada disciplina táctica. É assim que eu consigo uma disciplina global. Lá está, a partir da minha ideia de jogo e da sua operacionalização, consigo atingir os outros objectivos todos. Contextualizando todas as minhas preocupações (Mourinho in Oliveira et al 2006: 178). Nessa temporada, com um modelo de jogo mais rigoroso, mais difícil e de menor qualidade (pelo menos na opinião de José Mourinho), o FC Porto conquistou a Liga portuguesa e a Liga dos Campeões Europeus. 2 Esquema táctico utilizado no futebol que traduz a disposição dos jogadores dentro do campo. No caso a equipa joga com o guarda-redes, 4 defesas, 4 médios e 2 avançados. 3 Aqui a equipa joga estruturada com o guarda-redes, 4 defesas, 3 médios e 3 avançados. 28 1.2.12. Comprometimento A temporada de 2001/2002 trouxe a José Mourinho uma realidade nova. Pela primeira vez na sua carreira escolheu e preparou, de início, uma equipa. Foi ela, justamente, a União de Leiria. Desconhecendo quase por completo a maioria dos seus jogadores tentou, logo na fase inicial, criar empatia com o seu grupo e ao mesmo tempo motivá-lo. Para atingir os seus fins comprometeu-se, deixando claro que a sua motivação era elevada: ³Não tenho dúvidas que mais tarde ou mais cedo eu vou para um grande». Quando eu for, alguns de vocês vêm comigo´ (Mourinhoin Lourenço 2004: 86). Ficou a promessa e também a esperança que a todos atingiu, porque a qualquer um poderia tocar. ³Nunca especifiquei quem ia comigo porque dependeria sempre do clube para onde eu fosse. Sabia, por exemplo, que o Benfica precisava de um defesa esquerdo e, portanto, o Nuno Valente estava certo que iria comigo. O Benfica precisava igualmente de um
  • 18. extremo e o Maciel também sabia que se eu fosse para a Luz ele iria comigo, enfim, eles sabiam que mais tarde iriam comigo. Esta situação constituiu um factor de motivação para os jogadores e, ao mesmo tempo, criou uma certa cumplicidade entre nós. Do tipo ¨ vocês ajudam-me a chegar lá que eu depois levarei alguns de vós». Foi desta forma que eu me comprometi perante o grupo. Assim mesmo¨ ´ (Mourinho in Lourenço 2004: 86-7). Alguns meses depois Mourinho saiu da União de Leiria para ir treinar um grande», o FC Porto. No final da época contratou dois jogadores do seu anterior clube: Nuno Valente e Derlei. Mais tarde foi a vez de Maciel seguir os passos dos seus companheiros. 1.2.13. Workahoolic José Mourinho só ³desliga´ do trabalho quandoestá em férias. Durante um mês ± em todo o ano ± não se pensa nem se fala sobre futebol. Sai de férias, desliga o telefone e fica inacessível. No que toca aos restantes onze meses do ano, José Mourinho só vive para a sua profissão e só não pensa nela quando dorme... A este respeito, é ilustrativo um comentário da sua mulher: ³Mesmo em casa ele está sempre a falar ou a pensar no futebol. O jogo nunca lhe sai da cabeça. Depois dos jogos, nas Antas vamos geralmente os dois jantar fora. No início do jantar começa por me perguntar como foi o meu dia e o dia dos filhos. A 29 meio do jantar já está a falar de futebol e na sobremesa pega num pedaço de papel e começa a fazer a equipa e a escrever a táctica para o jogo seguinte. Ele é assim e não há © volta» a dar-lhe. Vai ser sempre assim© ´ (Matilde Mourinho in Lourenço 2004: 166-7). 1.2.14. Empatia O mundo do futebol é um mundo de crenças e superstições. Se a crença é positiva o mesmo já não se poderá dizer da superstição. José Mourinho não é± e não se cansa de o repetir ± supersticioso. Diz mesmo que a superstição é prejudicial ao ambiente de trabalho e, por consequência, ao desempenho do grupo. Ao combatê-la não só tenta resolver o problema em si como pretende ir mais longe. No caso concreto quea seguir se descreve, José Mourinho criou novas e mais fortes empatias, especialmente com as vítimas da superstição... ³Tínhamos, então, o embate FC Porto ± Denislizpor para fazer esquecer o Funchal4. Mas outro desafio esperava o grupo. Vencer Silvino5, o pé frio»6. Tratou-se de mais uma provocação» de José Mourinho, tal era a confiança na recuperação da equipa e num resultado positivo contra a equipa turca. Normalmente Silvino Louro não vai para o banco a não ser nas competições europeias onde é permitida a presença de mais um elemento técnico. Assim, Silvino acompanhou muito poucas vezes José Mourinho no banco, sendo que, nas duas últimas que o tinha feito ± com o Sparta de Praga para a Liga dos Campeões, em 2001/02 e com o Polónia Varsóvia para a Taça UEFA, já na temporada 2002/03 ± a equipa perdeu sempre. Silvino ficou logo com a alcunha de pé frio» e dela custou a livrar-se. No dia antes do jogo o treinador do FC Porto fez o anúncio: Silvino vai estar no banco a meu lado. Logo algumas almas mais tementes» começaram a assobiar para o ar», desconfiadas e assustadas com a reacção que os deuses do infortúnio poderiam provocar dada a presença do treinador de guarda-redes do FC Porto no banco. José Mourinho sorriu e manteve-se firme na sua posição: tenho tanta certeza que vou ganhar amanhã que o pé frio» vai para o banco. O próprio Silvino mostrou-se assustado com a situação, até por saber que existiam pessoas 4 O jogo do Funchal, com o Marítimo, tinha constituído a primeira derrota da época 2002/2003 de José Mourinho no FC Porto. Quatro dias depois jogaria com a equipa turca do Denislizpor, em jogo referente à primeira-mão dos oitavos-de-final da Taça UEFA. 5 Treinador de guarda-redes do FC Porto na equipa técnica comandada por José Mourinho. 6 Na gíria futebolística significa ³azarado´. 30 desagradadas» com a ideia. José Mourinho manteve-se inabalável na decisão. Ganhámos por 6-1 e o pé frio, a cada golo que marcávamos, dava-me toques no braço e fazia um sorriso sarcástico como que a dizer: vá, agora sempre quero ver quem é que vai ter coragem de me continuar a chamar pé frio». E a alcunha de Silvino ficou
  • 19. por aí´ (Lourenço 2004: 145-6). Silvino Louro mantém-se na equipa técnica de José Mourinho no Chelsea FC. 1.2.15. Envolvimento A época de 2003/2004 ficou marcada, logo em Outubro, por uma grave lesão de um jogador recém-chegado às Antas. Tratou-se de César Peixoto que, em França, frente ao Olympique de Marselha havia contraído a pior lesão que se pode ter enquanto jogador profissional de futebol7. A única saída, nestes casos, é a sala de operações. Pela importância do processo, pela união do grupo e± talvez acima de tudo ± pelo ³homem´, José Mourinho tomou uma atitude inédita na sua vida. Vestiu a bata de médico e foi para a sala de operações. ³Enchi-me de coragem e estive presente. Achei que, tendo essa oportunidade, era importante para mim e para o César Peixoto estar presente. Pela minha parte, para perceber o conteúdo da operação e para poder ter uma acção mais activa na recuperação. Pela parte do César, porque julgo que é importante para um jogador saber que tem a seu lado, numa altura muito difícil da sua vida, o treinador. No fundo estar ali significava dizer-lhe: cura-te que estamos à tua espera». ( ) Esta intervenção cirúrgica fez-me entender a dimensão daquele tipo de lesão e ao mesmo tempo acabou por condicionar algumas das minhas atitudes futuras. Percebi que a pressão que os treinadores sempre fazem, quer aos jogadores quer aos departamentos médicos dos clubes, para acelerar as recuperações, afinal, na maior parte das vezes, não faz sentido. A partir daquele momento passei a ser mais condescendente com as queixas dos jogadores e com as preocupações dos médicos´ (Mourinhoin Lourenço 2004: 197). Infelizmente, poucos meses depois e pelo mesmo motivo, Mourinho voltaria à sala de operações. Desta vez com Derlei8. 7 César Peixoto fez uma ruptura do ligamento cruzado anterior da perna esquerda. Em média este tipo de lesão demora entre 6 a 8 meses a debelar o que equivale ao jogador não jogar mais na temporada. 8 Avançado do FC Porto na altura. 31 1.2.16. Humor Pode a sua aparência pública sugerir o contrário, mas para quem o conhece bem, como a família e os amigos mais chegados, não existem dúvidas de que José Mourinho é um homem com sentido de humor.Esta sua faceta é espelhada em vários campos da sua vida. O CD editado no final de 2005, no qual um artista irlandês imita José Mourinho a falar no balneário aos seus jogadores, terminando com o treinador do Chelsea a cantar, é disso uma boa prova. José Mourinho não só afirmou publicamente ter gostado do trabalho como fez questão de conhecer pessoalmente o seu autor para lhe dar os parabéns. Também no seu grupo José Mourinho aprecia a boa disposição. No final de um encontro entre a União de Leiria e o Benfica, estando Mourinho ao serviço do clube da cidade do Liz, o seu adjunto Baltemar Brito foi motivo de muitos risos na viagem de regresso a Leiria. Mourinho fez questão de contar o episódio na sua biografia: ³No parque automóvel os autocarros dos dois clubes estavam estacionados lado a lado. Como têm as mesmas cores prestavam-se a confusões. O Brito foi o primeiro a sair dos balneários e entrou no autocarro que estava mais à mão. Sentou-se logo no lugar do Jesualdo Ferreira9 e não se fez rogado quanto aos lanches que estavam em cima dos assentos. Começou a comer o lanche que, por acaso, até devia ser o de Jesualdo Ferreira quando, de repente, começa a ver entrar a malta do Benfica. Só teve tempo de baixar a cabeça, pensar grande barraca» e abandonar oautocarro em passo acelerado. É evidente que viemos a rir e a brincar com o Brito de Torres10 até à chegada a Leiria. Uma das frases era: Já queres vir nesse autocarro, é?!! Tem calma Brito, não podes dar tanto nas vistas»´ (Mourinho in Lourenço 2004: 87). Alguns meses depois Baltemar Brito e José Mourinho entrariam num outro autocarro para nele viajar durante dois anos e meio. O autocarro azul e branco do FC Porto. Neste capítulo procurámos caracterizar e enquadrar o trabalho de José Mourinho, bem como traçar em termos gerais, consensualmente aceites, a imagem pública do actual treinador do Chelsea.
  • 20. 9 Ao tempo Jesualdo Ferreira era o treinador principal do Benfica. 10 Na época de 2001/2002 a União de Leiria realizou os jogos em casa emprestada, em Torres N ovas, devido ao facto de estar a construir um novo estádio em Leiria. 32 CAPÍTULO 2 SOB A PERSPECTIVA DA COMPLEXIDADE 33 Em bom rigor não podemos determinar com exactidão quando começou esta investigação. O autor desta dissertação conhece José Mourinhodesde a infância, é o seu biógrafo oficial e tem um profundo conhecimento da sua maneira de ser e de pensar. Daqui resulta que à partida para esta investigação já conhecíamos, de alguma forma, alguns dos fundamentos teóricos em que assentava o trabalho deMourinho. De resto, Manuel Sérgio, seu antigo professor e um dos teóricos que mais influenciou Mourinho no caminho profissional por si seguido, em conversas prévias, já nos havia alertado para a perspectiva de trabalho que decidimos adoptar nesta dissertação. Desta forma, de um ponto de vista epistemológico e metodológico, o principal desafio que nos surgiu passou pelo enquadramento do estudo do trabalho de José Mourinho na perspectiva da complexidade. Em suma, são duas as razões que justificam o percurso escolhido e desenvolvido nesta dissertação: (i) a perspectiva da complexidade, nomeadamente no que respeita à sua aplicação na motricidade humana (Sérgio 2003, 2004), é o ponto de partida do trabalho desenvolvido por José Mourinho; e (ii) a nossa intuição, que se foi tornado cada vez mais forte nestes últimos anos, de que a perspectiva da complexidade seria a melhor forma para explicar o trabalho e o sucesso de José Mourinho. 2.1. Para um Novo Paradigma do Conhecimento: Complexidade São vários os pensadores contemporâneos que defendem podermos estar± no final do séc. XX e início do séc. XXI ± perante e emergência de um novo paradigma científico: a complexidade ou, se quisermos, o pensamento complexo. O pensamento científico que dominou o séc. XX± e que encontra no séc. XVII, com Descartes, o seu fundamento ± assenta em bases reducionistas, ou seja, num esquema de pensamento que preconiza a separação e a divisão das partes para, a partir do entendimento detalhado destas e da sua posterior junção, tentar explicar o todo. Edgar Morin (1921- ), pensador contemporâneo cuja tese sobrepensamento complexo servirá de perspectiva de fundo a esta investigação, chamou àquele modelo de pensamento oparadigma da simplicidade. Para Morin este paradigma é sustentado por três princípios: disjunção, redução e abstracção. No que à disjunção diz respeito, Descartes fez a separação entre o sujeito pensante (ego cogitans) e a coisa extensa (res extensa) e ao fazê-lo formulou o paradigma que iria 34 dominar o pensamento europeu atéaos nossos dias: o modelo sujeito/objecto. Deste raciocínio resultou a diferenciação entre filosofia e ciência. A partir de então ficou clara a existência de dois mundos: o mundo das ideias e o mundo das coisas, sendo que ambos não se tocariam e só aparentemente se poderiam complementar. É neste contexto que Morin sugere a disjunção entre o conhecimento científico e a reflexão filosófica. Embora este pensamento modelo tenha permitido grandes avanços, não só do conhecimento científico como da reflexão filosófica, desde o séc. XVII até aos nossos dias, Morin não o isenta de graves deficiências: ³[U]ma tal disjunção, rareando as comunicações entre o conhecimento científico e a reflexão filosófica, devia finalmente privar a ciência de se conhecer, de se reflectir e mesmo de se conceber a si própria cientificamente. Mais ainda, o princípio da disjunção isolou radicalmente uns dos outros os três grandes campos do conhecimento científico: a física, a biologia, a ciência do homem´ (Morin 2003: 17). É desta forma que enquadramos a redução que decorre do trajecto inevitável docomplexo para o simples. Ao dividir, ou separar, o conhecimento científico retalhou o ³tecido complexo das realidades´ ao mesmo tempo que se tentava, como ideal do conhecimento
  • 21. científico ³descobrir, por detrás da complexidade aparente dos fenómenos, uma ordem perfeita legislando uma máquina perpétua (o cosmos), ela própria feita dos microelementos (os átomos) reunidos diferentemente em objectos e sistemas´ (Morin 2003: 17). Ora, este tipo de conhecimento científico encontrava, desta forma, o seu fundamento de rigor e operacionalidade na medida e no cálculo. Só que para Morin, entre outros pensadores, como por exemplo Martin Heidegger (1889-1976), Prigogine (1917-2003) e Merleau- Ponty (1907-1961), a matematização e a sua operacionalização separam os seres e as coisas, descontextualizam-nos do todo que é o mundo, a realidade vivida e experimentada, para apenas considerarem como realidades inteligíveis e explicáveis as fórmulas e as equações que regem as partes que se podem quantificar. Mais, só o quantificável e o mensurável pode desta forma ser conhecido. Heidegger comentou, com alguma ironia, que a matematização do ser vivo o permite conhecer em todo o detalhe, excepto precisamente como ser vivo (Heidegger 1977). Sob esta perspectiva, Morin considera que ³o pensamento simplificador é incapaz de conceber a conjunção do uno e do múltiplo: ou ainda unifica abstractamente ao anular a diversidade´ (Morin 2003: 17-8). 35 Com a conjugação destes dois princípios Morin chega ao terceiro princípio do paradigma da simplicidade: a abstracção. Neste ponto do seu pensamento, Morin conclui que este é o caminho percorrido até ao ponto em que apelidou de ³inteligência cega´, o beco sem saída do paradigma da simplicidade. A partir daqui são muitas as críticas. Ao considerar que o método desintegra a realidade e cria fendas entre as disciplinas do saber, este autor alerta para os riscos da perigosa viragem do conhecimento, cada vez menos disponível para a reflexão e discussão dos homens e crescentemente modelado para ³ser incorporado nas memórias informacionais e manipuladas pelos poderes anónimos, nomeadamente os estados´ (Morin 2003: 18). Para Morin é no séc. XX que a necessidade de viragem do pensamentocientífico se coloca mais acentuadamente. Reconhecendo os enormes progressos do conhecimento científico e da reflexão filosófica desde o séc. XVII até aos nossos dias, Morin acentua que ³as suas consequências nocivas últimas só começam a revelar-se no século XX´ (Morin 2003: 17). Morin insiste nesta ideia por diversos motivos, entre os quais, e talvez o mais forte, o facto de o ³velho´ pensamento se ter fechado sobre si próprio, ao mesmo tempo que ignorou quase por completo as novas realidades emergentes noséculo XX, desde logo com o surgir da mecânica quântica, que abalou profundamente os alicerces da ciência, porque fez com que as chamadas ciências exactas deixassem de ser... exactas. Oprincípio da incerteza, enunciado por Werner Heisenberg (1901-1976), refere precisamente que ao nível dos mais pequenos elementos constitutivos da matéria, a observação muda o fenómeno observado, e que, por isso, o conhecimento humano nunca pode ser µexacto¶; o princípio refere nomeadamente que o observador só pode conhecerou a posição ou a velocidade de um elemento, nunca as duas simultaneamente. Também a teoria da relatividade de Einstein (1879-1955) havia revolucionado a física newtoniana, unindo o espaço e o tempo numa nova dimensão a que chamou espaço-tempo. Mais recentemente o projecto de sequênciação do genoma humano ilustrou de uma forma particularmente interessante, como adiante descreveremos, os limites do reducionismo positivista para o estudo da natureza humana. A estes exemplos deve ainda acrescentar-se o contínuo testemunho da imprevisibilidade da acção humana. No século XX, desde o eclodir da II Guerra Mundial no berço da civilização ocidental, à queda do Muro de Berlim, à implosão da URSS, a Chernobyl e ao 36 novo terrorismo global, são vários os exemplos da imensidão de eventos que escapam às relações simplificadoras de causa-efeito. As novas realidades, de que os casos acima referidos são exemplo, provocaram cortes e cisões nos modelos reducionistas existentes. Persistiu-se assim no erro decorrente da cegueira, tal como lhe chamou Morin. O pensamento e, por consequência, as ciências,
  • 22. separadas e estanques deixaram de conseguir dar respostas às muitas perguntas novas que se colocam cada vez com maior intensidade. Não custa, pois, aceitar que Morin fale não só na necessidade de um novo pensamento filosófico, como também, na necessidade de um novo paradigma de conhecimento científico. Morin propõe, então, a complexidade como resposta às novas necessidades porque ao reduzir o todo às partes para a partir daítentar explicar o todo, será o mesmo que aplicar a lógica mecânica aos problemas do ser vivo e da vida social. Numa outra linha de investigação, o etnólogo Marcel Mauss (1872-1950), afirmou na sua obra Essai de Sociologie, publicada em 1971, que ³é preciso recompor o todo´. É nesta recomposição do todo que assenta a necessidade de um novo paradigma do pensamento. Uma nova lógica que, sem romper com a anterior, esteja aberta a mais possibilidades, porque o universo não parece ser a perfeita máquina determinista que os modelos decorrentes do ³cogito, ergo sum´ ± penso, logo existo ± pressupunham. Entramos assim no pensamento complexo, na lógica do ³todo que está na parte que está no todo´, ou seja, entramos num sistema de pensamento em que a abordagem não é feita de fora para dentro mas sim sempre dentro do sistema e a parte só é separada enquanto elemento do todo, nunca saindo nem se isolando dele, apenas servindo para o compreender porque dele é parte integrante. É, então, uma lógica em que compreender as partes significa também compreender o todo, mas compreender o todo, por si só, também significa compreender as partes, porque desintegrar um qualquer elemento significa descontextualizar não só as partes como igualmente o próprio todo o que, nesta perspectiva complexa não faria qualquer sentido já que renegaria a sua lógica intrínseca de percepção interrelacional, interactiva e interdependente dos elementos de uma qualquer realidade. O pensamento complexo, ou a contribuição de Morin para um possível paradigmada complexidade, desafia-nos, pois, a ver a árvore-e-a-floresta. É desta forma que entramos, segundo Morin, numa ³considerável revolução´. 37 No paradigma da simplicidade ³as falhas, as fendas multiplicam-se´, no entanto, trata-se de uma modelo matriz que não será abandonado. Decorrente do paradigma prevalecente a metodologia científica é reducionista e quantitativa. ³Reducionista, uma vez que era preciso chegar às unidades complementares não decomponíveis, as únicas que podiam ser cercadas, clara e distintivamente; e quantitativista, uma vez que estas unidades discretas podiam servir de base a todas as computações´ (Morin 2003: 80). Com um controlo rígido assente nos princípios enunciados, pode entender-se que a lógica do pensamento ocidental tem exercido uma acção apertada, ou guiada se quisermos, do progresso do pensamento, no entanto, limitado no seu próprio método, que é fechado e não aberto a um desenvolvimento fora dos seus limites. Como conclui Edgar Morin, ³[a] imaginação, a iluminação, a criação, sem as quais o progresso das ciências não teria sido possível, só entravam na ciência às escondidas: não eram logicamente assinaláveis e eram sempre epistemologicamente condenáveis´ (Morin 2003: 81). De resto, e também sobre a necessidade de um novo pensamento que faça face às insuficiências do paradigma reinante, já o filosofo e historiador da ciência, Thomas Kuhn (1922-1996), no seu ensaioThe Structure of Scientific Revolutions (Kuhn 1996), publicado em 1962, defende que os novos conceitos têm a capacidade de nos sugerir uma nova maneira de ver o mundo, portanto, não mais se devendo encarar a verdade científica como a única verdade, podendo e devendo esta ser plural. 2.2. Genoma Humano e Complexidade O projecto de investigação científica de mapeamento do genoma humano, consensualmente aceite como um dos mais avançados empreendimentos da ciência contemporânea, ilustra de uma forma interessante os limites dos métodos reducionistas bem como os desafios que se colocam a uma investigação conduzida sob a perspectiva da complexidade.
  • 23. Desta forma, podemos começar por colocar a pergunta: o que é o homem? A pergunta é secular e aparentemente, com o projecto do genoma humano, estaríamos à beira de conhecer a resposta. O projecto do genoma tentou dar-nos esta resposta e como estamos a falar do mais evoluído e ousado cruzamento da ciência com a tecnologia, fundaram-se 38 esperanças de que aquela pudesse de facto ser obtida. Inspirado fundamentalmente no paradigma cartesiano, que divide e separa para compreender o todo, oprojecto dividiu o homem na menor divisão que a ciência actual pode conseguir: o gene. Assim, com o homem geneticamente dividido± isolado e descontextualizado± e depois de sequenciado encontrou-se uma ± não a ± resposta: afinal somos, entre nós humanos, geneticamente iguais em mais de 99,9 por cento. E que dizer de outra conclusão: somos praticamente iguais a um rato, com uma diferença genética de apenas 1 por cento e só depois vem a nossa igualdade ao macaco, com uma diferença de 2 por cento. Somos, então, todos praticamente iguais? Deixemos as partes e olhemos o todo: até um animal nos diferencia. O que significa, assim, o projecto do genoma? Significa, tão só, que o que é idêntico é a nossa sequência genética, não nós mesmos, os indivíduos em si. ³O que tudo isto quer dizer é que os genes, só por si, com os seus tipos e a sua quantidade, não são explicação cabal para modo de ser nenhum. Por outras palavras, simplificando e banalizando, o que foi descoberto é que os genes são como que a fotografia do ser humano, só que este ser humano, na sua essência, não é uma fotografia, mas um filme´ (Ilharco 2004: 27). O filme é, afinal, a sequênciação lógica e natural de um determinado número de fotografias, logo, o genoma, como fotografia de um filme que é o homem,é apenas uma pequena parte da explicação de um filme cujo final ainda não é conhecido. Daqui decorre que a resposta ao ³quem somos´ ou ³o que somos´ não pode ser encontrada, apenas, na nossa composição química, biológica, ou genética, em suma, na matéria.No paper de Venter et al (2001) refere-se que a quantidade modesta de genes humanos± o arroz tem quase o dobro dos nossos genes«± significa que para descobrirmos os mecanismos que geram as complexidades inerentes ao desenvolvimento humano e os sofisticados sistemas que mantêm a homeostase temos de procurar noutro lugar; ora o outro lugar é a perspectiva da complexidade, aliás, como os próprios cientistas o admitem: ³We will soon be in a position to move away from the cataloging of individual components of the system, and beyond the simplistic notions of «this binds to that, which then docks on this, and then the complex moves there«» to the exciting area of network perturbations, nonlinear responses and thresholds, and their pivotal role in human diseases. The enumeration of the «parts lists» reveals that in organisms with complex nervous systems, neither gene number, neuron number of cell types 39 correlates in any meaningful manner with even simplistic measures of structural or behavioural complexity´ (Venter et al 2001: 1347). Daí que os autores concluam que existem falácias no modelo de pensamento cartesiano que nos impedem de pelas partes chegar ao todo, logo, o gene só por si nunca dará resposta à pergunta ³quem somos?´ ³There are two fallacies to be avoided: determinism, the idea that all characteristics of the person are ³hard-wired´ by the genome; and reductionism, the view that with complete knowledge of the human genome sequence, it is only a matter of time before our understanding of gene functions and interactions will provide a complete causal description of human variability. The real challenge of human biology, beyond the task of finding out how genes orchestrate the construction and maintenance of the miraculous mechanism of our bodies, will lie ahead as we seek to explain how our minds have come to organize thoughts sufficiently well to investigate our own existence´ (Venter et al 2001: 1348). Entende-se assim a dúvida que, afinal e contra todas as perspectivas, o projecto genoma veio desfazer: não é pelas partes que conseguiremos entender o homem. A resposta está no todo. Aliás, como Manuel Sérgio nos referiu, citando Hegel, ³a verdade é o todo´.
  • 24. 2.3. Dois Paradigmas: Reducionismo e Complexidade Traçada que está, em termos gerais e em especial na visão de Edgar Morin, a emergência de um novo paradigma de pensamento passamos ao enunciar do que podemos chamar os contornos de cada um dos paradigmas, uma vez que deixámos implícito que o surgir de um novo modelo matriz não requer a implosão do outro que existia previamente. Pelo contrário, a sua coexistência e interacção darão sentido aos dois modelos fundamentais de pensamento filosófico e científico. Afinal, esta posição decorre directamente da tese de que ³o todo está na parte que está no todo´. Paradigma é sinónimo de modelo, neste caso, de modelo matriz ou de modelo estrutura. No entanto, a própria noção de paradigma tem conhecido desenvolvimentos ou aperfeiçoamentos ao longo dos tempos. Para Khun (1996), paradigma é a ferramenta teórica e o conjunto dos procedimentos e leis que constituem a raiz que orienta toda a investigação em dada altura e contexto histórico. Daí que a história da ciência nos ensine 40 que cada vez que muda um paradigma seja o próprio mundo a mudar. Ao mudar o mundo mudam, necessariamente, os homens e neles a sua forma de olhar, de interpretar e de experimentar o mundo e as coisas. É desta forma que Khun considera que o mais importante é justamente esse olhar, uma vez que enquanto se opera a revolução das ideias que leva ao novo paradigma, os cientistas vêem novas e diferentes coisas quando olham os velhos e mesmos objectos, ou, dito por outras palavras, será o mesmo que nos transportarmos subitamente para um outro planeta, com as mesmas coisas com que sempre lidámos mas que se tornam elas mesmas diferentes aos nossos olhos já que passam a ser observadas num contexto completamente diferente: ³[w]hat were ducks in the scientist¶s world before the revolution are rabbits afterwards´ (Khun 1996: 111). Para Morin (2003) um paradigma é uma relação lógica extremamente fecunda e poderosa que se situa entre noções mestras, noções chave e princípios chave. Ora é justamente a fecundidade dessa relação lógica que faz com que, numa mudança de paradigma, tudo mude numa sociedade.Assim, no entender de Morin, aquilo que afecta um paradigma, que se traduz na pedra angular de todo o sistema de pensamento, acaba por afectar, invariável e simultaneamente, a ontologia, a metodologia, a epistemologia, a lógica e por simpatia, a prática, a política, a sociedade. Numa perspectiva de integração podemos, então, falar em paradigma como o mundo das ideias onde uma trave mestra condiciona e conduz de forma fecunda não só o pensamento como o próprio método científico. Mudar essa trave mestra é mudar o próprio edifício no qual habita toda uma civilização enquanto passado, presente e futuro. Ao fazê-lo, é essencialmente o passado que se questiona e o futuro que se repensa porque a nossa visão mudou radicalmente. Afinal, tudo o que já vimos não é exactamente o que já vimos mas o que julgámos ter visto. O passado não foi o que foi e o futuro será outro. É importante, no entanto, realçar que quando falamos em complexidade não é pacifico que estejamos a falar num paradigma da complexidade. O próprio EdgarMorin formula o problema ao afirmar: ³[N]ão se pode tirar, eu não posso tirar, nem pretendo tirar do meu bolso um paradigma de complexidade. Um paradigma, se tiver de ser formulado por alguém, por Descartes por exemplo, é no fundo, o produto de todo um desenvolvimento cultural, histórico e civilizacional. O paradigma da complexidade surgirá do conjunto de novas concepções, de novas visões, de novas descobertas e de novas reflexões que 41 vão conciliar-se e juntar-se. Estamos numa batalha incerta e não sabemos ainda quem a ganhará´ (Morin 2003: 112). Morin trabalha, assim, para o desenvolvimento de um paradigma que pode não existir enquanto tal, mas sim que poderá estar a construir-se e que poderá vir a ser, finalmente, reconhecido como o paradigma da complexidade. ³De este modo, su obra abre caminos, inicia y vislumbra recorridos. Es equivocado buscar en él pensamiento consolidado. Morin
  • 25. articula caminos posibles, pero aún poco transitados, que parecían imposibles.´ (Morenoin Velilla 2002:21). Já na década de 80 o biólogo e filósofo Francisco Varela (1946-2001) arriscou o prognóstico de o pensamento complexo evoluir para paradigma. É essa a conclusão que poderemos extrair das suas palavras. ³Acredito convictamente que existe uma grande mudança ou uma tendência para a mudança na nossa sensibilidade contemporânea e na epistemologia científica, no sentido de estarmos cada vez mais interessados numa epistemologia que não vê o mundo como uma fotografia, mas que se ocupa de criar o mundo (laying down of a world) onde o sujeito e o objecto emirjam por mútua especificação´ (Varela in Magalhães 2005: 57). Magalhães (2005) defende que esta mudança já está em curso e que se chama complexidade. Afirma que a revolução está a acontecer de uma forma abrangente e que a sua operacionalização já é visível em vários campos da ciência, nomeadamente, na gestão e organização de empresas. Não é, pois, pacífica a questão da complexidade enquanto paradigma, embora muitos autores já a enquadrem como tal. De qualquer forma, seja qual for a terminologia que adoptemos ± problema, questão, perspectiva, aproximação, corrente, paradigma, entre outras ± parece claro que o conceito e as ideias que encerra estão em fase de desenvolvimento e maturação, sendo que só talvez o tempo, entendidoeste como o desenvolvimento cumulativo da acção humana, nos dirá de que forma se contextualizará a complexidade no mundo das ciências. No que respeita ao paradigma do positivismo reducionista a que Morin chamou da simplicidade, ele atravessou a história do pensamento ocidental desde o séc. XVII até aos nossos dias. Descartes deu-lhe o impulso primário, ao separar, no homem, corpo e mente. Da evolução do ³cogito, ergo sum´ nasceu aquilo a que se convencionou chamar o ³método científico´. Aquela afirmação, porventura a mais famosa da história da ciência, 42 surgiu pela primeira vez na quarta secção deO Discurso do Método, em 1637, e sugerenos a ideia de que só no pensar se encontra o fundamento do existir ou, se quisermos, através da instrumentalização da matéria existimos em separado enquanto corpo e mente. Com esta premissa entendemos em Descartes a lógica que separa ares cogitans (coisa pensante) da res extensa (coisa material). Esta última advém e só pode existir e ter substância na primeira. Ora, foi justamente nesta divisão primeira, mente/corpo, que se fundou e desenvolveu o moderno método científico. A divisão, a separação, a hierarquia são noções mestras de um pensamento operacionalizado em método que atravessou os quatro últimos séculos da história ocidental. Deste método resultou, então, a separação clara do domínio do humano, enquanto reflexão sobre a sua natureza e fim± entregue à filosofia ± e do domínio da matéria, e/ou corpo ± entregue ao conhecimento científico. Filosofia e ciência seguiram, desta forma, caminhos diferentes e separados e ao fazê-lo dificilmente poderiam socorrer-se uma da outra, interagir e cooperar, logo, fechar-se-iam sobre si mesmas. Em resultado disto mesmo, entende-se o paradigma da simplicidade e o seu objectivo: o seu princípio ³quer separa o que está ligado (disjunção), quer unifica o que está disperso (redução)´ (Morin 2003: 86). Tomando o homem como referência, Morin deixa-nos um exemplo ilustrativo: ³O homem é um ser evidentemente biológico. É ao mesmo tempo um ser evidentemente cultural, metabiológico e que vive num universo de linguagem, de ideias e de consciência. Ora estas duas realidades, a realidade biológica e a realidade cultural, o paradigma da simplificação obriga-nos quer a separá-los quer a reduzir a mais complexa à menos complexa. Vai portanto estudar-se o homem biológico no departamento de biologia, como um ser anatómico, fisiológico, etc., e vai estudar-se o homem nos departamentos das ciências humanas e sociais. Vai estudar-se o cérebro como órgão biológico e vai estudar-se o espírito, the mind, como uma função ou realidade psicológica. Esquece-se que um não existe sem o outro; ou melhor que um é simultaneamente o outro, embora sejam tratados por termos e conceitos diferentes´