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A QUARTA VIAGEM DE SIMBAD, O MARUJO 13 
A quarta viagem de Simbad, o marujo 
As mil e uma noites | Anônimo 
Tradução de Alves Moreira 
Quem nunca leu, pelo menos ouviu falar. Súmula de histórias milenares com 
registro em forma de escrita que remonta aos séculos XII e XVI – relatos 
árabes, persas ou sírios, fundidos com outros ainda mais antigos, de origem 
hindu –, As mil e uma noites é um tesouro do imaginário popular da humanida-de, 
com suas aventuras de sultões, califas, princesas encantadas, tapetes voado-res, 
marujos perdidos (como Simbad), ladrões com seus bandos (Ali Babá e os 
quarenta ladrões), histórias, enfim, para todos os tipos de leitores. Caberia a 
nós escolher uma dessas histórias. Optamos pelas andanças marítimas e em 
terra firme (firme, porém insegura) de Simbad, o marujo – ao encontro do 
desconhecido. (A grande aventura do homem é o desafio de entender o outro 
de cultura diferente da nossa?) 
Os muitos prazeres e divertimentos que por acaso gozei depois da minha tercei-ra 
viagem não chegaram a ser atrativos suficientes para me impedir de viajar mais 
uma vez. Além disso, me deixei ainda levar pela paixão de vender mercadorias e 
de conhecer coisas novas. Dispus, pois, dos meus negócios, e, com um sortimento de 
fazendas consumidas nos lugares para onde tencionava ir, parti. 
Tomei o caminho em direção à Pérsia, cujas províncias atravessei quase todas, e 
cheguei a um porto marítimo; de lá embarquei num navio. Sim, fizemo-nos à vela, 
e tínhamos já aproado em alguns portos da terra firme e em algumas ilhas orientais, 
quando um dia, depois de um longo trajeto, fomos acometidos de uma rajada de 
vento que obrigou o capitão a mandar amainar as velas e a dar todas as ordens
14 AS MIL E UMA NOITES 
necessárias para prevenir o perigo que nos ameaçava. Mas todas essas cautelas resul-taram 
inúteis; não sendo a manobra bem-sucedida, as velas fizeram-se em mil 
pedaços, e, não podendo mais o navio ser governado, deu em seco e despedaçou-se 
de tal modo que muitos mercadores e marinheiros se afogaram – e perdeu-se toda 
a carga. 
Tive, assim como outros mercadores e marujos, a felicidade de me agarrar a um 
pedaço de madeira. Fomos todos levados pela corrente a uma ilha perto de nós. 
Nessa ilha, encontramos frutas e fontes d’água que nos ajudaram a restabelecer 
nossas forças. Descansamos a noite toda no mesmo lugar onde o mar nos jogara, 
sem pensar a respeito do que deveríamos fazer. O abatimento a que nos reduzira a 
nossa desgraça não deixara lugar para tanto. 
Logo ao nascer do sol do dia seguinte, afastamo-nos da praia; internando-nos 
na ilha, logo avistamos habitações aonde chegamos. Um grandíssimo número de 
negros veio ao nosso encontro; fomos cercados por eles, que nos aprisionaram e 
nos separaram numa espécie de partilha, levando-nos depois para suas casas. 
Eu e cinco dos meus companheiros fomos conduzidos para o mesmo lugar. Foram 
logo nos mandando sentar, nos serviram uma erva qualquer e nos convidaram por 
gestos que comêssemos dela; e meus companheiros, sem perceber que eles não a 
comiam, só consultaram a fome que os apertava e serviram-se dela lautamente. Quan-to 
a mim, pressentindo naquilo uma armadilha, como de fato o era, nem sequer a 
provei, no que fiz muito bem, pois, passado pouco tempo, percebi que meus compa-nheiros 
estavam fora do seu juízo e que, falando comigo, não sabiam o que diziam. 
Aqueles negros nos davam aquelas ervas para nos perturbar o espírito e nos tirar 
do cuidado que o triste conhecimento da nossa sorte nos devia causar e, para engor-darmos, 
alimentavam-nos com arroz preparado com leite de coco, que meus com-panheiros, 
já com a razão alterada, comiam sofregamente. Eu também comia, com 
certeza, mas pouca quantidade. Sendo eles antropófagos, era sua intenção devorar-nos 
quando estivéssemos bem mais gordos, o que acabou acontecendo aos meus 
companheiros, ignorantes de seu destino por terem o juízo prejudicado. Visto que 
eu conservava o meu juízo, bem concluís vós, senhores, que, em vez de engordar 
como os outros, eu emagrecia cada vez mais. Não me abandonava o receio da morte 
e transformava em veneno todos os alimentos que me ofereciam. Caí numa espécie 
de torpor que acabou me sendo útil, pois, tendo aqueles negros matado e comido
A QUARTA VIAGEM DE SIMBAD, O MARUJO 15 
meus companheiros, contentaram-se com isso, e, vendo-me seco, descarnado e 
doente, foram adiando minha morte. 
Eu, no entanto, tinha muita liberdade; eles praticamente não reparavam nas 
minhas ações. Graças a isso, um dia me afastei das habitações nativas – e escapei. 
Um velho que me viu e suspeitou de minha intenção gritou com todas as suas forças 
para que eu voltasse; mas, em vez de lhe obedecer, corri mais ainda, e bem depressa 
desapareci da sua visão. Não havia na aldeia senão aquele velho preto. Todos os 
outros haviam se ausentado e só deveriam retornar no fim do dia, como costumava 
acontecer; e foi por essa razão, certo de que não chegariam a tempo de vir atrás de 
mim quando soubessem de minha fuga, que caminhei até a noite chegar, quando 
parei para descansar um pouco e comer alguma coisa das provisões que trouxera 
comigo. Mas não demorei em seguir meu caminho, e durante sete dias andei fugin-do 
dos lugares de que desconfiava ser habitados. Vivia à base de coco, que me dava 
ao mesmo tempo de comer e de beber. 
No oitavo dia cheguei próximo do mar e avistei gente de pele branca como eu 
colhendo pimenta, em abundância ali. Averigüei bem a ocupação deles e fui me 
aproximando devagar. 
Os homens que colhiam pimenta vieram ao meu encontro e foram logo me 
perguntando, em árabe, quem eu era, de onde eu vinha. Fiquei contente de ouvi-los 
falar como eu e de boa vontade satisfiz sua curiosidade, e contei a eles como fora o 
naufrágio e como chegara àquela ilha, onde caíra nas mãos dos homens pretos. 
– Mas esses pretos – disse um deles – comem carne humana. Qual milagre fez 
com que escapasses à sua crueldade? 
Contei o que já ouviram antes e eles ficaram maravilhosamente pasmos. 
Fiquei na colheita com eles até juntarem a quantidade de pimenta que quiseram, 
depois me embarcaram no navio que os trouxera, que rumou para a ilha de onde 
tinham vindo. 
Lá apresentaram-me ao seu sultão, que parecia um bom príncipe e que teve a 
paciência de ouvir o relato da minha aventura, o que lhe causou admiração. Em 
seguida mandou que me dessem roupas e ordenou que tivessem atenção e cuida-do 
comigo. 
A ilha em que me encontrava era mui povoada e abundante em toda a sorte de 
coisas, e fazia-se um grande comércio na cidade onde o sultão residia. Esse agradá-vel 
asilo consolou-me da minha desgraça, e as generosidades que aquele bondoso
16 AS MIL E UMA NOITES 
sultão tinha para comigo me deixaram muito contente. De fato, não havia pessoa 
alguma que tivesse mais cuidado que eu no seu espírito e, em conseqüência disso, 
não havia ninguém em sua corte nem na cidade que não procurasse oportunidade 
de me agradar. 
E assim fui eu bem depressa considerado homem nascido na ilha e não estrangeiro. 
Observei pelo menos uma coisa que julguei extraordinária: todos, e mesmo o 
sultão, montavam a cavalo sem freio e sem estribos. O que me deu a liberdade, um 
dia, de perguntar a eles por que sua majestade não se utilizava dessas comodidades. 
Respondeu-me ele que lhe falava de coisas cujo uso se ignorava nos seus estados. 
Procurei a oficina de um carpinteiro e pedi que armasse o pau de uma sela sobre o 
modelo que lhe forneci. O pau da sela preparado, guarneci-o eu mesmo de crina e 
couro e enfeitei-o com um bordado de ouro. Dirigi-me depois a um serralheiro para 
que executasse um freio segundo o modelo que lhe mostrei e pedi que fizesse estribos. 
Tudo isso perfeitamente acabado, fui apresentá-lo ao sultão, e experimentei-o 
num de seus cavalos. O príncipe montou e ficou tão satisfeito com minha intenção 
que me manifestou a alegria que naquilo tinha, com grandes larguezas de espírito. 
Não pude deixar de fazer várias selas para os cavalos dos seus ministros e princi-pais 
oficiais do palácio, e todos eles me deram tantos presentes que me enriqueceram 
em pouco tempo. Fiz selas também para os cavalos das pessoas mais gradas da cidade, 
o que me granjeou, além de uma grande reputação, a consideração de todo mundo. 
Como fazia a vontade ao sultão em tudo o que era possível, ele me disse um dia: 
– Simbad, eu te estimo muito, e sei que todos os meus vassalos que te conhecem 
te querem bem, a meu exemplo. Tenho um pedido a te fazer, e importa que me 
concedas o que te vou pedir. 
– Senhor – respondi-lhe eu –, não há coisa que não esteja pronto a fazer para 
mostrar a minha obediência a Vossa Majestade, que tem sobre mim um poder 
absoluto. 
– Minha vontade é casar-te – replicou o sultão – para que o casamento te dete-nha 
nos meus estados e não te lembres mais da tua pátria. 
Como não ousaria resistir à vontade do príncipe, deu-me ele por mulher uma 
senhora de sua corte, nobre e cordata, bela e rica. Realizadas as cerimônias de 
núpcias, estabeleci-me em casa da senhora, com a qual vivi algum tempo em perfei-ta 
união. No entanto, não estava muito contente com minha situação: era minha
A QUARTA VIAGEM DE SIMBAD, O MARUJO 17 
intenção escapar na primeira oportunidade e voltar para Bagdá, de cuja lembrança 
não me podia fazer esquecer o meu novo estado, por mais vantajoso que fosse. 
Estava vivendo com essa intenção quando a mulher de um dos meus vizinhos, 
com o qual travara amizade mui estreita, caiu doente e morreu. Fui à sua casa para 
consolar o marido e achei-o envolto na mais viva aflição: 
– Deus vos guarde – disse-lhe eu, me aproximando – e vos dê uma longa vida. 
– Ai de mim – respondeu-me ele –, como quereis que alcance a graça que me 
desejais? Não tenho já senão uma hora de vida. 
– Ah!! – repliquei eu –, não deis entrada no vosso espírito a tão funesto pensa-mento. 
Espero que tal não aconteça e que eu tenha o gosto de gozar ainda de vossa 
companhia por muitos anos. 
– Desejo – respondeu ele – que seja longa a duração de vossa vida; quanto ao 
que me diz respeito, meus negócios estão concluídos e asseguro-vos que hoje 
mesmo me enterram com minha mulher; tal é o costume que estabeleceram os 
nossos antepassados nesta ilha, e que observam inviolavelmente; o marido vivo 
enterra-se com a mulher morta, e a mulher viva com o marido morto; nada pode 
valer-me, todos estão sujeitos à lei. 
Enquanto contava essa estranha barbaridade, cuja notícia me assustara cruel-mente, 
os parentes, amigos e vizinhos chegavam para participar dos funerais. Re-vestiram 
o cadáver com suas melhores vestes, como no dia de noivado, e enfeita-ram- 
no com todas as suas jóias. Colocaram-no depois num esquife descoberto e 
pôs-se o cortejo em marcha. À frente dos enlutados caminhava o marido, seguindo 
o corpo da mulher. 
Pegaram a direção de uma alta montanha e, ali chegando, levantaram uma 
grande pedra que cobria a abertura de um poço profundo e nele desceram o cadáver, 
sem lhe tirar coisa alguma dos seus vestidos e jóias. Feito isso, o marido abraçou seus 
parentes e amigos e deixou-se meter sem resistência num caixão com uma bilha 
d’água e sete pães; desceram-no então da mesma maneira que tinham descido a 
mulher. A montanha estendia-se ali diante de nós e servia o mar de limite – e o poço 
era profundíssimo. 
Acabada a cerimônia, colocaram de novo a pedra sobre a abertura. 
Não haveria precisão, meus senhores, de dizer-vos que fui testemunha tristíssima 
desse funeral. Todas as demais pessoas que a ele assistiram não me pareceram co-movidas, 
pelo hábito de repetidas vezes ver a mesma coisa.
18 AS MIL E UMA NOITES 
Não consegui evitar comentar com o sultão o que pensava a respeito daquilo: 
– Senhor – disse-lhe eu –, nada poderia me espantar mais do que o estranho 
costume que se pratica entre vós, de enterrar os vivos e os mortos; viajei por muitas 
nações e jamais ouvi falar de uma lei tão cruel como essa. 
– O que é que tu querias, Simbad? – respondeu-me o sultão. – É uma lei comum 
a todos, e eu mesmo estou sujeito a ela. Serei enterrado vivo com a sultana minha 
esposa se ela morrer primeiro. 
– Mas, senhor – disse-lhe eu –, ouso perguntar a Vossa Majestade se os estran-geiros 
também são obrigados a seguir tal costume. 
– Sem dúvida – replicou o sultão, sorrindo com a minha pergunta. – Não estão 
isentos eles quando casados nesta ilha. 
Com essa resposta, voltei triste para casa. O receio de que morresse primeiro 
minha mulher, e de que me enterrassem vivo com ela, me dava motivos para refle-xões 
bastante desconsoladoras. No entanto, que remédio dar a esse mal? Precisava 
ter paciência e reportar-me à vontade de Deus. Mas tremia à menor indisposição 
que notava em minha mulher; ai de mim!, tive logo o susto por inteiro: ela caiu 
doente e morreu em poucos dias. 
Podeis imaginar qual não foi a minha aflição! Ser enterrado vivo não me parecia 
um fim menos deplorável que o de ser devorado por antropófagos. O sultão, acompa-nhado 
de toda a corte, quis honrar com sua presença o funeral, e as pessoas mais 
consideráveis da cidade me deram também a honra de assistir ao meu próprio enterro. 
Quando estava tudo pronto para a cerimônia, depositaram o corpo da minha 
mulher num esquife, juntamente com todas as suas jóias e seus melhores vestidos. O 
cortejo começou. 
Como segundo ator dessa lamentável tragédia, seguia eu atrás do esquife, com 
os olhos banhados em lágrimas e chorando o meu próprio e desgraçado destino. 
Antes de chegar à montanha, quis testar o estado de espírito dos acompanhantes. 
Dirigi-me ao sultão, em primeiro lugar, e depois aos que se encontravam à roda de 
mim; e, prostrando-me na sua presença para beijar a aba dos seus vestidos, supli-quei- 
lhes que tivessem compaixão de mim. 
– Considerai – dizia eu – que eu sou estrangeiro, que não deveria estar sujeito a 
uma lei tão rigorosa, e que tenho outra mulher e filhos no meu país. 
Por mais ênfase enternecida que desse a essas palavras, ninguém parecia se 
compadecer de mim; pelo contrário, se apressaram a descer o corpo de minha
A QUARTA VIAGEM DE SIMBAD, O MARUJO 19 
mulher ao poço, e, passados alguns instantes, desceram também o meu, noutro 
esquife descoberto, com um vaso d’água e sete pães. Por fim, acabada a cerimônia, 
colocaram a pedra na boca do poço, indiferentes às minhas excessivas aflições e aos 
meus lamentáveis gritos. 
Com a pouca claridade que vinha de cima, e à proporção que me aproximava do 
fundo, descobria a disposição daquele lugar subterrâneo. Era uma vastíssima gruta 
e que bem podia ter cinqüenta cúbitos de profundidade. 
Senti logo um fedor insuportável que exalava de uma infinidade de cadáveres 
que eu ia vendo à direita e à esquerda. Pareceu-me escutar, das últimas pessoas 
descidas com vida, os últimos arrancos de sobrevida. 
Chegando lá embaixo, no entanto, saí logo do esquife e afastei-me dos cadáve-res, 
tapando o nariz. Joguei-me no chão e ali fiquei muito tempo, banhado em 
lágrimas e refletindo sobre meu triste destino: 
“É verdade que Deus dispõe de nós segundo Sua Providência; desafortunado 
Simbad, não é tua a culpa de se ver reduzido a morrer de morte tão estranha? 
Quisesse Deus que tivesses perecido em alguns dos naufrágios de que conseguiste 
escapar! Não terias de morrer de morte tão vagarosa e terrível, em todas as suas 
circunstâncias. Mas tu mesmo a procuraste por tua maldita avareza. Ah!, desgraça-do! 
Não devias antes ter ficado em casa a gozar em paz o fruto de teu trabalho?” 
Tais eram as inúteis lamentações com que fazia ressoar a gruta, batendo com 
raiva e desespero na cabeça e no estômago, e entregando-me por inteiro aos mais 
cruciantes pensamentos. Direi eu, no entanto, em vez de chamar a morte em meu 
socorro, por mais infeliz que me achasse, fez-se ainda sentir em mim o amor da vida 
que me induziu a prolongar meus dias. 
Apesar da escuridão na gruta, tão densa que impossível de distinguir o dia da 
noite, fui apalpando em busca do meu esquife para pegar o pão e a água, e pus-me a 
comer e a beber, notando então que a gruta era espaçosa e mais plena de cadáveres 
do que a princípio me parecera. 
Foi assim que sobrevivi durante uns dois dias; no entanto, tendo acabado pão e 
água, me preparei para morrer... 
Pois só o que eu esperava era a morte quando ouvi levantarem a pedra no alto. 
Um cadáver e uma pessoa viva foram jogados. O defunto era o homem. É natural 
tomar resoluções extremas em circunstâncias extremas. No momento em que des-ciam 
a mulher, fui para perto de onde seu esquife devia ser colocado e, ao perceber
20 AS MIL E UMA NOITES 
que tapavam a abertura do poço, bati na cabeça da desgraçada duas ou três fortes 
pancadas com um grande osso que encontrara ali à mão. Ela ficou atordoada, ou 
melhor, assassinei-a; e, como não fizera essa ação desumana senão para aproveitar-me 
do pão e da água que trazia no seu esquife, tive provisões para mais alguns dias. 
E assim foi: quando as provisões estavam terminando, logo desceram uma mu-lher 
morta e um homem vivo, e matei o homem da mesma maneira. E por felicidade 
minha, parecia que acontecera uma epidemia qualquer na cidade: não tive falta de 
mantimentos, sempre usando a mesma artimanha. 
No dia em que eu acabava de matar outra mulher, ouvi alguma coisa soprar e um 
vulto se locomover. Fui me aproximando de onde partia aquele barulho, e ouvi 
um sopro mais forte ainda, e me pareceu antever alguma coisa que fugia. Segui 
então aquela espécie de sombra que parava por vezes e soprava sempre, fugindo à 
medida que eu me aproximava. Andei muito tempo no encalço daquela sombra, e 
fui tão longe que avistei finalmente uma luz que parecia uma estrela. Segui a luz, 
perdendo-a de vista algumas vezes, de acordo com os obstáculos que a ocultavam de 
mim; mas tornava a achá-la, e por fim descobri uma abertura no rochedo, suficien-temente 
larga para que eu pudesse passar por ela. 
Grande descoberta a minha, e parei por um tempo para me refazer da violenta 
excitação e decorrente do cansaço do muito que caminhei; e me aproximando até 
aquela abertura, por ela passei e eis-me em plena beira-mar. 
Quanta alegria, senhores! Podeis imaginar? Tais foram as dificuldades que tive 
certo trabalho para me convencer de que não era aquilo tudo sonho nem imaginação. 
Convencido de que era tudo real, restituídos os meus sentidos, que voltaram ao 
estado normal, percebi que a coisa que eu ouvira soprar e que era vulto e sombra, 
que eu seguia, era um animal saído do mar, que costumava entrar na gruta para 
alimentar-se dos corpos mortos. 
Olhei e examinei a montanha e concluí que ela estava assentada entre a cidade 
e o mar, sem ligação alguma por caminho ou trilha; porque era de tal forma encarpada 
que a natureza a tornara inacessível por terra. 
Deitei-me na praia, prostrado, e agradecia a Deus a graça que acabara de 
me conceder. 
Logo voltei à gruta para buscar pão, que comi em plena claridade do dia, com 
vontade melhor do que quando enterrado num lugar tenebroso.
A QUARTA VIAGEM DE SIMBAD, O MARUJO 21 
Voltei outra vez para, apalpando aqui e ali nos esquifes, apanhar todos os diaman-tes, 
rubis, pérolas, braceletes de ouro, enfim, todos os ricos estojos que encontrava à 
mão – e carreguei tudo para a beira-mar. Fiz vários pacotes e amarrei-os com as cordas 
que serviram para descer os esquifes, e que eram muitas. Coloquei-os na praia, à 
espera de uma boa oportunidade, sem temer que a chuva lhes fizesse algum dano, pois 
não era então a estação das chuvas. 
Depois de dois ou três dias avistei um navio que acabara de sair do porto e que 
passava perto de onde eu estava. 
Acenei com o pano do meu turbante e gritei com todo o ar dos meus pulmões, 
até que consegui que me ouvissem e então mandaram-me eles uma chalupa para 
me embarcar. 
À pergunta que os marujos me fizeram, por que desgraça da sorte me achava eu 
naquele local, respondi que escapara de um naufrágio há dois dias, com os embru-lhos 
que viam; e tal foi minha fortuna que, sem examinarem o lugar onde eu estava 
nem se o que eu lhes dizia era verdade, contentaram-se com minha resposta e me 
levaram com eles, eu e meus pacotes. 
Assim que cheguei a bordo, o capitão, satisfeito do favor que me fazia, e ocupa-do 
com o comando do navio, teve também a bondade de acreditar no meu pretenso 
naufrágio. Ofereci-lhe algumas das minhas jóias, mas ele não quis aceitá-las. 
Mar adentro, passamos por várias ilhas, entre outras passamos perto da ilha dos 
Sinos, afastada dez dias da ilha de Serendib, com o vento ordinário e regulado, e seis 
da ilha de Kela, onde ancoramos. Há nessa ilha minas de chumbo, canas da Índia e 
mui excelente alcanfor. 
O sultão da ilha de Kela é riquíssimo e poderosíssimo; sua autoridade estende-se 
também sobre a ilha dos Sinos, a duas jornadas de distância, e cujos habitantes são 
ainda tão bárbaros que comem carne humana. Depois de fazer muito comércio 
nessa ilha, tornamo-nos ao mar e aportamos em outras localidades. 
Por fim, cheguei felizmente a Bagdá, com infinitas riquezas, cuja lista seria 
inútil fazer-vos. Posso dar graças a Deus pelos favores que Ele me concedeu; dei 
grandes esmolas, não só para a conservação de algumas mesquitas, como para a 
subsistência dos pobres; e dei-me inteiramente a meus parentes e amigos, divertin-do- 
me e levando uma boa vida com eles.
22 MITOLOGIA ESCANDINAVA

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A fuga de Simbad da ilha dos canibais

  • 1. A QUARTA VIAGEM DE SIMBAD, O MARUJO 13 A quarta viagem de Simbad, o marujo As mil e uma noites | Anônimo Tradução de Alves Moreira Quem nunca leu, pelo menos ouviu falar. Súmula de histórias milenares com registro em forma de escrita que remonta aos séculos XII e XVI – relatos árabes, persas ou sírios, fundidos com outros ainda mais antigos, de origem hindu –, As mil e uma noites é um tesouro do imaginário popular da humanida-de, com suas aventuras de sultões, califas, princesas encantadas, tapetes voado-res, marujos perdidos (como Simbad), ladrões com seus bandos (Ali Babá e os quarenta ladrões), histórias, enfim, para todos os tipos de leitores. Caberia a nós escolher uma dessas histórias. Optamos pelas andanças marítimas e em terra firme (firme, porém insegura) de Simbad, o marujo – ao encontro do desconhecido. (A grande aventura do homem é o desafio de entender o outro de cultura diferente da nossa?) Os muitos prazeres e divertimentos que por acaso gozei depois da minha tercei-ra viagem não chegaram a ser atrativos suficientes para me impedir de viajar mais uma vez. Além disso, me deixei ainda levar pela paixão de vender mercadorias e de conhecer coisas novas. Dispus, pois, dos meus negócios, e, com um sortimento de fazendas consumidas nos lugares para onde tencionava ir, parti. Tomei o caminho em direção à Pérsia, cujas províncias atravessei quase todas, e cheguei a um porto marítimo; de lá embarquei num navio. Sim, fizemo-nos à vela, e tínhamos já aproado em alguns portos da terra firme e em algumas ilhas orientais, quando um dia, depois de um longo trajeto, fomos acometidos de uma rajada de vento que obrigou o capitão a mandar amainar as velas e a dar todas as ordens
  • 2. 14 AS MIL E UMA NOITES necessárias para prevenir o perigo que nos ameaçava. Mas todas essas cautelas resul-taram inúteis; não sendo a manobra bem-sucedida, as velas fizeram-se em mil pedaços, e, não podendo mais o navio ser governado, deu em seco e despedaçou-se de tal modo que muitos mercadores e marinheiros se afogaram – e perdeu-se toda a carga. Tive, assim como outros mercadores e marujos, a felicidade de me agarrar a um pedaço de madeira. Fomos todos levados pela corrente a uma ilha perto de nós. Nessa ilha, encontramos frutas e fontes d’água que nos ajudaram a restabelecer nossas forças. Descansamos a noite toda no mesmo lugar onde o mar nos jogara, sem pensar a respeito do que deveríamos fazer. O abatimento a que nos reduzira a nossa desgraça não deixara lugar para tanto. Logo ao nascer do sol do dia seguinte, afastamo-nos da praia; internando-nos na ilha, logo avistamos habitações aonde chegamos. Um grandíssimo número de negros veio ao nosso encontro; fomos cercados por eles, que nos aprisionaram e nos separaram numa espécie de partilha, levando-nos depois para suas casas. Eu e cinco dos meus companheiros fomos conduzidos para o mesmo lugar. Foram logo nos mandando sentar, nos serviram uma erva qualquer e nos convidaram por gestos que comêssemos dela; e meus companheiros, sem perceber que eles não a comiam, só consultaram a fome que os apertava e serviram-se dela lautamente. Quan-to a mim, pressentindo naquilo uma armadilha, como de fato o era, nem sequer a provei, no que fiz muito bem, pois, passado pouco tempo, percebi que meus compa-nheiros estavam fora do seu juízo e que, falando comigo, não sabiam o que diziam. Aqueles negros nos davam aquelas ervas para nos perturbar o espírito e nos tirar do cuidado que o triste conhecimento da nossa sorte nos devia causar e, para engor-darmos, alimentavam-nos com arroz preparado com leite de coco, que meus com-panheiros, já com a razão alterada, comiam sofregamente. Eu também comia, com certeza, mas pouca quantidade. Sendo eles antropófagos, era sua intenção devorar-nos quando estivéssemos bem mais gordos, o que acabou acontecendo aos meus companheiros, ignorantes de seu destino por terem o juízo prejudicado. Visto que eu conservava o meu juízo, bem concluís vós, senhores, que, em vez de engordar como os outros, eu emagrecia cada vez mais. Não me abandonava o receio da morte e transformava em veneno todos os alimentos que me ofereciam. Caí numa espécie de torpor que acabou me sendo útil, pois, tendo aqueles negros matado e comido
  • 3. A QUARTA VIAGEM DE SIMBAD, O MARUJO 15 meus companheiros, contentaram-se com isso, e, vendo-me seco, descarnado e doente, foram adiando minha morte. Eu, no entanto, tinha muita liberdade; eles praticamente não reparavam nas minhas ações. Graças a isso, um dia me afastei das habitações nativas – e escapei. Um velho que me viu e suspeitou de minha intenção gritou com todas as suas forças para que eu voltasse; mas, em vez de lhe obedecer, corri mais ainda, e bem depressa desapareci da sua visão. Não havia na aldeia senão aquele velho preto. Todos os outros haviam se ausentado e só deveriam retornar no fim do dia, como costumava acontecer; e foi por essa razão, certo de que não chegariam a tempo de vir atrás de mim quando soubessem de minha fuga, que caminhei até a noite chegar, quando parei para descansar um pouco e comer alguma coisa das provisões que trouxera comigo. Mas não demorei em seguir meu caminho, e durante sete dias andei fugin-do dos lugares de que desconfiava ser habitados. Vivia à base de coco, que me dava ao mesmo tempo de comer e de beber. No oitavo dia cheguei próximo do mar e avistei gente de pele branca como eu colhendo pimenta, em abundância ali. Averigüei bem a ocupação deles e fui me aproximando devagar. Os homens que colhiam pimenta vieram ao meu encontro e foram logo me perguntando, em árabe, quem eu era, de onde eu vinha. Fiquei contente de ouvi-los falar como eu e de boa vontade satisfiz sua curiosidade, e contei a eles como fora o naufrágio e como chegara àquela ilha, onde caíra nas mãos dos homens pretos. – Mas esses pretos – disse um deles – comem carne humana. Qual milagre fez com que escapasses à sua crueldade? Contei o que já ouviram antes e eles ficaram maravilhosamente pasmos. Fiquei na colheita com eles até juntarem a quantidade de pimenta que quiseram, depois me embarcaram no navio que os trouxera, que rumou para a ilha de onde tinham vindo. Lá apresentaram-me ao seu sultão, que parecia um bom príncipe e que teve a paciência de ouvir o relato da minha aventura, o que lhe causou admiração. Em seguida mandou que me dessem roupas e ordenou que tivessem atenção e cuida-do comigo. A ilha em que me encontrava era mui povoada e abundante em toda a sorte de coisas, e fazia-se um grande comércio na cidade onde o sultão residia. Esse agradá-vel asilo consolou-me da minha desgraça, e as generosidades que aquele bondoso
  • 4. 16 AS MIL E UMA NOITES sultão tinha para comigo me deixaram muito contente. De fato, não havia pessoa alguma que tivesse mais cuidado que eu no seu espírito e, em conseqüência disso, não havia ninguém em sua corte nem na cidade que não procurasse oportunidade de me agradar. E assim fui eu bem depressa considerado homem nascido na ilha e não estrangeiro. Observei pelo menos uma coisa que julguei extraordinária: todos, e mesmo o sultão, montavam a cavalo sem freio e sem estribos. O que me deu a liberdade, um dia, de perguntar a eles por que sua majestade não se utilizava dessas comodidades. Respondeu-me ele que lhe falava de coisas cujo uso se ignorava nos seus estados. Procurei a oficina de um carpinteiro e pedi que armasse o pau de uma sela sobre o modelo que lhe forneci. O pau da sela preparado, guarneci-o eu mesmo de crina e couro e enfeitei-o com um bordado de ouro. Dirigi-me depois a um serralheiro para que executasse um freio segundo o modelo que lhe mostrei e pedi que fizesse estribos. Tudo isso perfeitamente acabado, fui apresentá-lo ao sultão, e experimentei-o num de seus cavalos. O príncipe montou e ficou tão satisfeito com minha intenção que me manifestou a alegria que naquilo tinha, com grandes larguezas de espírito. Não pude deixar de fazer várias selas para os cavalos dos seus ministros e princi-pais oficiais do palácio, e todos eles me deram tantos presentes que me enriqueceram em pouco tempo. Fiz selas também para os cavalos das pessoas mais gradas da cidade, o que me granjeou, além de uma grande reputação, a consideração de todo mundo. Como fazia a vontade ao sultão em tudo o que era possível, ele me disse um dia: – Simbad, eu te estimo muito, e sei que todos os meus vassalos que te conhecem te querem bem, a meu exemplo. Tenho um pedido a te fazer, e importa que me concedas o que te vou pedir. – Senhor – respondi-lhe eu –, não há coisa que não esteja pronto a fazer para mostrar a minha obediência a Vossa Majestade, que tem sobre mim um poder absoluto. – Minha vontade é casar-te – replicou o sultão – para que o casamento te dete-nha nos meus estados e não te lembres mais da tua pátria. Como não ousaria resistir à vontade do príncipe, deu-me ele por mulher uma senhora de sua corte, nobre e cordata, bela e rica. Realizadas as cerimônias de núpcias, estabeleci-me em casa da senhora, com a qual vivi algum tempo em perfei-ta união. No entanto, não estava muito contente com minha situação: era minha
  • 5. A QUARTA VIAGEM DE SIMBAD, O MARUJO 17 intenção escapar na primeira oportunidade e voltar para Bagdá, de cuja lembrança não me podia fazer esquecer o meu novo estado, por mais vantajoso que fosse. Estava vivendo com essa intenção quando a mulher de um dos meus vizinhos, com o qual travara amizade mui estreita, caiu doente e morreu. Fui à sua casa para consolar o marido e achei-o envolto na mais viva aflição: – Deus vos guarde – disse-lhe eu, me aproximando – e vos dê uma longa vida. – Ai de mim – respondeu-me ele –, como quereis que alcance a graça que me desejais? Não tenho já senão uma hora de vida. – Ah!! – repliquei eu –, não deis entrada no vosso espírito a tão funesto pensa-mento. Espero que tal não aconteça e que eu tenha o gosto de gozar ainda de vossa companhia por muitos anos. – Desejo – respondeu ele – que seja longa a duração de vossa vida; quanto ao que me diz respeito, meus negócios estão concluídos e asseguro-vos que hoje mesmo me enterram com minha mulher; tal é o costume que estabeleceram os nossos antepassados nesta ilha, e que observam inviolavelmente; o marido vivo enterra-se com a mulher morta, e a mulher viva com o marido morto; nada pode valer-me, todos estão sujeitos à lei. Enquanto contava essa estranha barbaridade, cuja notícia me assustara cruel-mente, os parentes, amigos e vizinhos chegavam para participar dos funerais. Re-vestiram o cadáver com suas melhores vestes, como no dia de noivado, e enfeita-ram- no com todas as suas jóias. Colocaram-no depois num esquife descoberto e pôs-se o cortejo em marcha. À frente dos enlutados caminhava o marido, seguindo o corpo da mulher. Pegaram a direção de uma alta montanha e, ali chegando, levantaram uma grande pedra que cobria a abertura de um poço profundo e nele desceram o cadáver, sem lhe tirar coisa alguma dos seus vestidos e jóias. Feito isso, o marido abraçou seus parentes e amigos e deixou-se meter sem resistência num caixão com uma bilha d’água e sete pães; desceram-no então da mesma maneira que tinham descido a mulher. A montanha estendia-se ali diante de nós e servia o mar de limite – e o poço era profundíssimo. Acabada a cerimônia, colocaram de novo a pedra sobre a abertura. Não haveria precisão, meus senhores, de dizer-vos que fui testemunha tristíssima desse funeral. Todas as demais pessoas que a ele assistiram não me pareceram co-movidas, pelo hábito de repetidas vezes ver a mesma coisa.
  • 6. 18 AS MIL E UMA NOITES Não consegui evitar comentar com o sultão o que pensava a respeito daquilo: – Senhor – disse-lhe eu –, nada poderia me espantar mais do que o estranho costume que se pratica entre vós, de enterrar os vivos e os mortos; viajei por muitas nações e jamais ouvi falar de uma lei tão cruel como essa. – O que é que tu querias, Simbad? – respondeu-me o sultão. – É uma lei comum a todos, e eu mesmo estou sujeito a ela. Serei enterrado vivo com a sultana minha esposa se ela morrer primeiro. – Mas, senhor – disse-lhe eu –, ouso perguntar a Vossa Majestade se os estran-geiros também são obrigados a seguir tal costume. – Sem dúvida – replicou o sultão, sorrindo com a minha pergunta. – Não estão isentos eles quando casados nesta ilha. Com essa resposta, voltei triste para casa. O receio de que morresse primeiro minha mulher, e de que me enterrassem vivo com ela, me dava motivos para refle-xões bastante desconsoladoras. No entanto, que remédio dar a esse mal? Precisava ter paciência e reportar-me à vontade de Deus. Mas tremia à menor indisposição que notava em minha mulher; ai de mim!, tive logo o susto por inteiro: ela caiu doente e morreu em poucos dias. Podeis imaginar qual não foi a minha aflição! Ser enterrado vivo não me parecia um fim menos deplorável que o de ser devorado por antropófagos. O sultão, acompa-nhado de toda a corte, quis honrar com sua presença o funeral, e as pessoas mais consideráveis da cidade me deram também a honra de assistir ao meu próprio enterro. Quando estava tudo pronto para a cerimônia, depositaram o corpo da minha mulher num esquife, juntamente com todas as suas jóias e seus melhores vestidos. O cortejo começou. Como segundo ator dessa lamentável tragédia, seguia eu atrás do esquife, com os olhos banhados em lágrimas e chorando o meu próprio e desgraçado destino. Antes de chegar à montanha, quis testar o estado de espírito dos acompanhantes. Dirigi-me ao sultão, em primeiro lugar, e depois aos que se encontravam à roda de mim; e, prostrando-me na sua presença para beijar a aba dos seus vestidos, supli-quei- lhes que tivessem compaixão de mim. – Considerai – dizia eu – que eu sou estrangeiro, que não deveria estar sujeito a uma lei tão rigorosa, e que tenho outra mulher e filhos no meu país. Por mais ênfase enternecida que desse a essas palavras, ninguém parecia se compadecer de mim; pelo contrário, se apressaram a descer o corpo de minha
  • 7. A QUARTA VIAGEM DE SIMBAD, O MARUJO 19 mulher ao poço, e, passados alguns instantes, desceram também o meu, noutro esquife descoberto, com um vaso d’água e sete pães. Por fim, acabada a cerimônia, colocaram a pedra na boca do poço, indiferentes às minhas excessivas aflições e aos meus lamentáveis gritos. Com a pouca claridade que vinha de cima, e à proporção que me aproximava do fundo, descobria a disposição daquele lugar subterrâneo. Era uma vastíssima gruta e que bem podia ter cinqüenta cúbitos de profundidade. Senti logo um fedor insuportável que exalava de uma infinidade de cadáveres que eu ia vendo à direita e à esquerda. Pareceu-me escutar, das últimas pessoas descidas com vida, os últimos arrancos de sobrevida. Chegando lá embaixo, no entanto, saí logo do esquife e afastei-me dos cadáve-res, tapando o nariz. Joguei-me no chão e ali fiquei muito tempo, banhado em lágrimas e refletindo sobre meu triste destino: “É verdade que Deus dispõe de nós segundo Sua Providência; desafortunado Simbad, não é tua a culpa de se ver reduzido a morrer de morte tão estranha? Quisesse Deus que tivesses perecido em alguns dos naufrágios de que conseguiste escapar! Não terias de morrer de morte tão vagarosa e terrível, em todas as suas circunstâncias. Mas tu mesmo a procuraste por tua maldita avareza. Ah!, desgraça-do! Não devias antes ter ficado em casa a gozar em paz o fruto de teu trabalho?” Tais eram as inúteis lamentações com que fazia ressoar a gruta, batendo com raiva e desespero na cabeça e no estômago, e entregando-me por inteiro aos mais cruciantes pensamentos. Direi eu, no entanto, em vez de chamar a morte em meu socorro, por mais infeliz que me achasse, fez-se ainda sentir em mim o amor da vida que me induziu a prolongar meus dias. Apesar da escuridão na gruta, tão densa que impossível de distinguir o dia da noite, fui apalpando em busca do meu esquife para pegar o pão e a água, e pus-me a comer e a beber, notando então que a gruta era espaçosa e mais plena de cadáveres do que a princípio me parecera. Foi assim que sobrevivi durante uns dois dias; no entanto, tendo acabado pão e água, me preparei para morrer... Pois só o que eu esperava era a morte quando ouvi levantarem a pedra no alto. Um cadáver e uma pessoa viva foram jogados. O defunto era o homem. É natural tomar resoluções extremas em circunstâncias extremas. No momento em que des-ciam a mulher, fui para perto de onde seu esquife devia ser colocado e, ao perceber
  • 8. 20 AS MIL E UMA NOITES que tapavam a abertura do poço, bati na cabeça da desgraçada duas ou três fortes pancadas com um grande osso que encontrara ali à mão. Ela ficou atordoada, ou melhor, assassinei-a; e, como não fizera essa ação desumana senão para aproveitar-me do pão e da água que trazia no seu esquife, tive provisões para mais alguns dias. E assim foi: quando as provisões estavam terminando, logo desceram uma mu-lher morta e um homem vivo, e matei o homem da mesma maneira. E por felicidade minha, parecia que acontecera uma epidemia qualquer na cidade: não tive falta de mantimentos, sempre usando a mesma artimanha. No dia em que eu acabava de matar outra mulher, ouvi alguma coisa soprar e um vulto se locomover. Fui me aproximando de onde partia aquele barulho, e ouvi um sopro mais forte ainda, e me pareceu antever alguma coisa que fugia. Segui então aquela espécie de sombra que parava por vezes e soprava sempre, fugindo à medida que eu me aproximava. Andei muito tempo no encalço daquela sombra, e fui tão longe que avistei finalmente uma luz que parecia uma estrela. Segui a luz, perdendo-a de vista algumas vezes, de acordo com os obstáculos que a ocultavam de mim; mas tornava a achá-la, e por fim descobri uma abertura no rochedo, suficien-temente larga para que eu pudesse passar por ela. Grande descoberta a minha, e parei por um tempo para me refazer da violenta excitação e decorrente do cansaço do muito que caminhei; e me aproximando até aquela abertura, por ela passei e eis-me em plena beira-mar. Quanta alegria, senhores! Podeis imaginar? Tais foram as dificuldades que tive certo trabalho para me convencer de que não era aquilo tudo sonho nem imaginação. Convencido de que era tudo real, restituídos os meus sentidos, que voltaram ao estado normal, percebi que a coisa que eu ouvira soprar e que era vulto e sombra, que eu seguia, era um animal saído do mar, que costumava entrar na gruta para alimentar-se dos corpos mortos. Olhei e examinei a montanha e concluí que ela estava assentada entre a cidade e o mar, sem ligação alguma por caminho ou trilha; porque era de tal forma encarpada que a natureza a tornara inacessível por terra. Deitei-me na praia, prostrado, e agradecia a Deus a graça que acabara de me conceder. Logo voltei à gruta para buscar pão, que comi em plena claridade do dia, com vontade melhor do que quando enterrado num lugar tenebroso.
  • 9. A QUARTA VIAGEM DE SIMBAD, O MARUJO 21 Voltei outra vez para, apalpando aqui e ali nos esquifes, apanhar todos os diaman-tes, rubis, pérolas, braceletes de ouro, enfim, todos os ricos estojos que encontrava à mão – e carreguei tudo para a beira-mar. Fiz vários pacotes e amarrei-os com as cordas que serviram para descer os esquifes, e que eram muitas. Coloquei-os na praia, à espera de uma boa oportunidade, sem temer que a chuva lhes fizesse algum dano, pois não era então a estação das chuvas. Depois de dois ou três dias avistei um navio que acabara de sair do porto e que passava perto de onde eu estava. Acenei com o pano do meu turbante e gritei com todo o ar dos meus pulmões, até que consegui que me ouvissem e então mandaram-me eles uma chalupa para me embarcar. À pergunta que os marujos me fizeram, por que desgraça da sorte me achava eu naquele local, respondi que escapara de um naufrágio há dois dias, com os embru-lhos que viam; e tal foi minha fortuna que, sem examinarem o lugar onde eu estava nem se o que eu lhes dizia era verdade, contentaram-se com minha resposta e me levaram com eles, eu e meus pacotes. Assim que cheguei a bordo, o capitão, satisfeito do favor que me fazia, e ocupa-do com o comando do navio, teve também a bondade de acreditar no meu pretenso naufrágio. Ofereci-lhe algumas das minhas jóias, mas ele não quis aceitá-las. Mar adentro, passamos por várias ilhas, entre outras passamos perto da ilha dos Sinos, afastada dez dias da ilha de Serendib, com o vento ordinário e regulado, e seis da ilha de Kela, onde ancoramos. Há nessa ilha minas de chumbo, canas da Índia e mui excelente alcanfor. O sultão da ilha de Kela é riquíssimo e poderosíssimo; sua autoridade estende-se também sobre a ilha dos Sinos, a duas jornadas de distância, e cujos habitantes são ainda tão bárbaros que comem carne humana. Depois de fazer muito comércio nessa ilha, tornamo-nos ao mar e aportamos em outras localidades. Por fim, cheguei felizmente a Bagdá, com infinitas riquezas, cuja lista seria inútil fazer-vos. Posso dar graças a Deus pelos favores que Ele me concedeu; dei grandes esmolas, não só para a conservação de algumas mesquitas, como para a subsistência dos pobres; e dei-me inteiramente a meus parentes e amigos, divertin-do- me e levando uma boa vida com eles.