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Língua Portuguesa – 9º Ano 
O Tesouro – Eça de Queiroz 
O Tesouro 
Eça de Queiroz 
I 
Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guannes e Rostabal, eram então, em 
todo o Reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e os mais remendados. 
Nos paços de Medranhos, a que o vento da serra levara vidraça e telha, 
passavam eles as tardes desse inverno, engelhados nos seus pelotes de camelão, 
batendo as solas rotas sobre as lajes da cozinha, diante da vasta lareira negra, 
onde desde muito não estalava lume, nem fervia a panela de ferro. Ao escurecer 
devoravam uma côdea de pão negro, esfregada com alho. Depois, sem 
candeia, através do pátio, fendendo a neve, iam dormir à estrebaria, para 
aproveitar o calor das três éguas lazarentas que, esfaimadas como eles, roíam as 
traves da manjedoura. E a miséria tornara esses senhores mais bravios que lobos. 
Ora, na Primavera, por uma silenciosa manhã de domingo, andando todos 
os três na mata de Roquelanes a espiar pegadas de caça e a apanhar tortulhos 
entre os robles, enquanto as três éguas pastavam a relva nova de abril, - os 
irmãos de Medranhos encontraram, por trás de uma mouta de espinheiros, numa 
cova de rocha, um velho cofre de ferro. Como se o resguardasse uma torre 
segura, conservava as suas três chaves nas suas três fechaduras. Sobre a tampa, 
mal decifrável através da ferrugem, corria um dístico em letras árabes. E dentro, 
até às bordas, estava cheio de dobrões de ouro! 
No terror e esplendor da emoção, os três senhores ficaram mais lívidos do 
que círios. Depois, mergulhando furiosametne as mãos no ouro, estalaram a rir, 
num riso de tão larga rajada, que as folhas tenras dos olmos, em roda, tremiam... 
E de novo recuaram, bruscamente se encararam, com os olhos a flamejar, numa 
desconfiança tão desabrida que Guannes e Rostabal apalpavam nos cintos os 
cabos das grandes facas. Então Rui, que era gordo e ruivo, e o mais avisado, 
ergueu os braços, como um árbitro, e começou por decidir que o tesouro, ou 
viesse de Deus ou do demônio, pertencia aos três, e entre eles se repartiria, 
rigidamente, pesando-se o ouro em balanças. Mas como poderiam carregar 
para Medranhos, para os cimos da serra, aquele cofre tão cheio? Nem convinha 
que saíssem da mata com o seu bem, antes de cerrar a escuridão. Por isso ele 
entendia que o mano Guannes, como mais leve, devia trotar para a vila vizinha 
de Retortilho, levando já ouro na bolsinha, a comprar três alforges de couro, três 
maquias de cevada, três empadões de carne e três botelhas de vinho. Vinho e 
carne eram para eles, que não comiam desde a véspera: a cevada era para as 
éguas. E assim refeitos, senhores e cavalgaduras, ensacariam o ouro nos alforges 
e subiriam para Medranhos, sob a segurança da noite sem Lua. 
- Bem tramado! - gritou Rostabal, homem mais alto que um pinheiro, de 
longa guedelha e com uma barba que lhe caía desde os olhos raiados de 
sangue até à fivela do cinturão. 
Mas Guannes não se arredava do cofre, enrugado, desconfiado, puxando 
entre os dedos a pele negra do seu pescoço de grou. Por fim, brutalmente: 
- Manos! O cofre tem três chaves... Eu quero fechar a minha fechadura e 
levar a minha chave! 
- Também eu quero a minha, mil raios! - rugiu logo Rostabal. 
Rui sorriu. Decerto, decerto! A cada dono do ouro cabia uma das chaves 
que o guardavam. E cada um em silêncio, agachado ante o cofre, cerrou a sua 
Bem Explicado – Centro de Explicações Lda.
Língua Portuguesa – 9º Ano 
O Tesouro – Eça de Queiroz 
fechadura com força. Imediatamente Guannes, desanuviado, saltou na égua, 
meteu pela vereda de olmos, a caminho de Retortilho, atirando aos ramos a sua 
cantiga costumada e dolente: 
Olé! Olé! 
Sale la cruz de la iglesia, 
Vestida de negro luto... 
II 
Na clareira, em frente à mouta que encobria o tesouro (e que os três 
tinham desbastado a cutiladas), um fio de água, brotando entre rochas, caía 
sobre uma vasta laje encravada, onde fazia como um tanque, claro e quieto, 
antes de se escoar para as relvas altas. E ao lado, na sombra de uma faia, jazia 
um velho pilar de granito, tombado e musgoso. Ali vieram sentar-se Rui e 
Rostabal, com os seus tremendos espadões entre os joelhos. As duas éguas 
tosavam a boa erva pintalgada de papoilas e botões de ouro. Pela ramaria 
andava um melro a assobiar. Um cheiro errante de violetas adoçava o ar 
luminoso. E Rostabal, olhando o sol, bocejava com fome. 
Então Rui, que tirara o sombrero e lhe cofiava as velhas plumas roxas, 
começou a considerar, na sua fala avisada e mansa, que Guannes, nessa 
manhã, não quisera descer com eles à mata de Roquelanes. E assim era a sorte 
ruim! Pois que se Guannes tivesse quedado em Medranhos, só eles dois teriam 
descoberto o cofre, e só entre eles dois se dividiria o ouro! Grande pena! Tanto 
mais que a parte de Guannes seria em breve dissipada, com rufiões, aos dados, 
pelas tavernas. 
- Ah! Rostabal, Rostabal! Se Guannes, passando aqui sozinho, tivesse 
achado este ouro, não dividia conosco, Rostabal! 
O outro rosnou surdamente e com furor, dando um puxão às barbas 
negras: 
- Não, mil raios! Guannes é sôfrego... Quando o ano passado, se te lembras, 
ganhou os cem ducados ao espadeiro de Fresno, nem me quis emprestar três 
para eu comprar um gibão novo! 
- Vês tu! - gritou Rui, resplandecendo. 
Ambos se tinham erguido do pilar de granito, como levados pela mesma idéia, 
que os deslumbrava. E, através das suas largas passadas, as ervas altas silvavam. 
- E para quê - prosseguia Rui. - Para que serve todo o ouro que nos leva! Tu 
não o ouves, de noite, como tosse! Ao redor da palha em que dorme, todo o 
chão está negro do sangue que escarra! Não dura até às outras neves, Rostabal! 
Mas até lá terá dissipado os bons dobrões que deviam ser nossos, para 
levantarmos a nossa casa, e para tu teres ginetes, e armas, e trajes nobres, e o 
teu terço de solarengos, como compete a quem é, como tu, o mais velho dos de 
Medranhos... 
- Pois que morra, e morra hoje! - bradou Rostabal. 
- Queres! 
Vivamente, Rui agarrara o braço do irmão e apontava para a vereda de 
olmos, por onde Guannes partira cantando: 
- Logo adiante, ao fim do trilho, há um sítio bom, nos silvados. E hás-de ser 
tu, Rostabal, que és o mais forte e o mais destro. Um golpe de ponta pelas costas. 
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Língua Portuguesa – 9º Ano 
O Tesouro – Eça de Queiroz 
E é justiça de Deus que seja tu, que muitas vezes, nas tavernas, sem pudor, 
Guannes te tratava de cerdo e de torpe, por não saberes a letra nem os 
números. 
- Malvado! 
- Vem! 
Foram. Ambos se emboscaram por trás dum silvado, que dominava o 
atalho, estreito e pedregoso, como um leito de torrente. Rostabal, assolapado na 
vala, tinha já a espada nua. Um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos 
álamos - e sentiram o repique leve dos sinos de Retortilho. Rui, coçando a barba, 
calculava as horas pelo sol, que já se inclinava para as serras. Um bando de 
corvos passou sobre eles, grasnando. E Rostabal, que lhes seguira o voo, 
recomeçou a bocejar, com fome, pensando nos empadões e no vinho que o 
outro trazia nos alforges. 
Enfim! Alerta! Era, na vereda, a cantiga dolente e rouca, atirada aos ramos: 
Olé! Olé! 
Sale la cruz de la iglesia 
Toda vestida de negro... 
Rui murmurou: - “Na ilharga! Mal que passe!” O chouto da égua bateu o 
cascalho, uma pluma num sombrero vermelhejou por sobre a ponta das silvas. 
Rostabal rompeu de entre a sarça por uma brecha, atirou o braço, a longa 
espada; - e toda a lâmina se embebeu molemente na ilharga de Guannes, 
quando ao rumor, bruscamente, ele se virara na sela. Com um surdo arranco, 
tombou de lado, sobre as pedras. Já Rui se arremessava aos freios da égua: - 
Rostabal, caindo sobre Guannes, que arquejava, de novo lhe mergulhou a 
espada, agarrada pela folha como um punhal, no peito e na garganta. 
- A chave! - gritou Rui. 
E arrancada a chave do cofre ao seio do morto, ambos largaram pela 
vereda - Rostabal adiante, fugindo, com a pluma do sombrero quebrada e torta, 
a espada ainda nua entalada sob o braço, todo encolhido, arrepiado com o 
sabor de sangue que lhe espirrara para a boca; Rui, atrás, puxando 
desesperadamente os freios da égua, que, de patas fincadas no chão 
pedregoso, arreganhando a longa dentuça amarela, não queria deixar o seu 
amo assim estirado, abandonado, ao comprido das sebes. 
Teve de lhe espicaçar as ancas lazarentas com a ponta da espada: - e foi 
correndo sobre ela, de lâmina alta, como se perseguisse um mouro, que 
desembocou na clareira onde o sol já não dourava as folhas. Rostabal 
arremessara para a relva o sombrero e a espada; e debruçado sobre a laje 
escavada em tanque, de mangas arregaçadas, lavava, ruidosamente, a face e 
as barbas. 
A égua, quieta, recomeçou a pastar, carregada com os alforjes novos que 
Guannes comprara em Retortilho. Do mais largo, abarrotado, surdiam dois 
gargalos de garrafas. Então Rui tirou, lentamente, do cinto, a sua larga navalha. 
Sem um rumor na selva espessa, deslizou até Rostabal, que resfolgava, com as 
longas barbas pingando. E serenamente, como se pregasse uma estaca num 
canteiro, enterrou a folha toda no largo dorso dobrado, certeira sobre o coração. 
Rostabal caiu sobre o tanque, sem um gemido, com a face na água, os longos 
cabelos flutuando na água. A sua velha escarcela de couro ficara entalada sob 
a coxa. Para tirar de dentro a terceira chave do cofre, Rui solevou o corpo - e um 
sangue mais grosso jorrou, escorreu pela borda do tanque, fumegando. 
Bem Explicado – Centro de Explicações Lda.
Língua Portuguesa – 9º Ano 
O Tesouro – Eça de Queiroz 
III 
AGORA eram dele, só dele, as três chaves do cofre!... e Rui, alargando os 
braços, respirou deliciosamente. Mal a noite descesse, com o ouro metido nos 
alforges, guiando a fila das éguas pelos trilhos da serra, subiria a Medranhos e 
enterraria na adega o seu tesouro! E quando ali na fonte, e além rente aos 
silvados, só restassem, sob as neves de dezembro, alguns ossos sem nome, ele 
seria o magnífico senhor de Medranhos, e na capela nova do solar renascido 
mandaria dizer missas ricas pelos seus dois irmãos mortos... Mortos, como? Como 
devem morrer os Medranhos - a pelejar contra o Turco! 
Abriu as três fechaduras, apanhou um punhado de dobrões, que fez retinir 
sobre as pedras. Que puro ouro, de fino quilate! E era o seu ouro! Depois de 
examinar a capacidade dos alforges - e encontrando as duas garrafas de vinho, 
e um gordo capão assado, sentiu uma imensa fome. Desde a véspera só comera 
uma lasca de peixe seco. E há quanto tempo não provava capão! 
Com que delícia se sentou na relva, com as penas abertas, e entre elas a 
ave loura, que rescendia, e o vinho cor de âmbar! Ah! Guannes fora bom 
mordomo - nem esquecera azeitonas. Mas por que trouxera ele, para três 
convivas, só duas garrafas? Rasgou uma asa do capão: devorava a grandes 
dentadas. A tarde descia, pensativa e doce, com nuvenzinhas cor-de-rosa. Para 
além, na vereda, um bando de corvos grasnava. As éguas fartas dormitavam, 
com o focinho pendido. E a fonte cantava, lavando o morto. 
Rui ergueu à luz a garrafa de vinho. Com aquela cor velha e quente, não 
teria custado menos de três maravedis. E pondo o gargalo à boca, bebeu em 
sorvos lentos, que lhe faziam ondular o pescoço peludo. Oh vinho bendito, que 
tão prontamente aquecia o sangue! Atirou a garrafa vazia - destapou outra. Mas, 
como era avisado, não bebeu porque a jornada para a serra, com o tesouro, 
requeria firmeza e acerto. Estendido sobre o cotovelo, descansando, pensava em 
Medranhos coberto de telha nova, nas altas chamas da lareira por noites de 
neve, e o seu leito com brocados, onde teria sempre mulheres. 
De repente, tomado de uma ansiedade, teve pressa de carregar os 
alforges. Já entre os troncos a sombra se adensava. Puxou uma das éguas para 
junto do cofre, ergueu a tampa, tomou um punhado de ouro... mas oscilou, 
largando os dobrões que retilintaram no chão, e levou as duas mãos aflitas ao 
peito. Que é, D. Rui! Raios de Deus! era um lume, um lume vivo, que se lhe 
acendera dentro, lhe subia até às goelas. Já rasgara o gibão, atirava os passos 
incertos e, a arquejar, com a língua pendente, limpava as grossas bagas dum 
suor horrendo que o regelava como neve. Oh Virgem Mãe! Outra vez o lume, 
mais forte, que alastrava, o roía! Gritou: 
- Socorro! Além! Guannes! Rostabal! 
Os seus braços torcidos batiam o ar desesperadamente. E a chama dentro 
galgava - sentia os ossos a estalarem como as traves duma casa em fogo. 
Cambaleou até à fonte para apagar aquela labareda, tropeçou sobre Rostabal; 
e foi com o joelho fincado no morto, arranhando a rocha, que ele, entre uivos, 
procurava o fio de água, que recebia sobre os olhos, pelos cabelos. Mas a água 
mais o queimava, como se fosse um metal derretido. Recuou, caiu para cima da 
relva que arrancava aos punhados, e que mordia, mordendo os dedos, para lhe 
sugar a frescura. Ainda se ergueu, com uma baba densa a escorrer-lhe nas 
Bem Explicado – Centro de Explicações Lda.
Língua Portuguesa – 9º Ano 
O Tesouro – Eça de Queiroz 
barbas: e de repente, esbugalhando pavorosamente os olhos, berrou como se 
compreendesse enfim a traição, todo o horror: 
- É veneno! 
Oh! D. Rui, o avisado, era veneno! Porque Guannes, apenas chegara a 
Retortilho, mesmo antes de comprar os alforges, correra cantando a uma viela, 
por detrás da catedral, a comprar ao velho droguista judeu o veneno que, 
misturado ao vinho, o tornaria a ele, a ele somente, dono de todo o tesouro. 
Anoiteceu. Dois corvos de entre o bando que grasnava, além nos silvados, já 
tinham pousado sobre o corpo de Guannes. A fonte, cantando, lavava o outro 
morto. Meio enterrada na erva, toda a face de Rui se tornara negra. Uma 
estrelinha tremeluzia no céu. 
O tesouro ainda lá está, na mata de Roquelanes. 
FIM 
Bem Explicado – Centro de Explicações Lda.
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O Tesouro – Eça de Queiroz 
Resumo: 
Guanes, Rostabal e Rui de Medranhos eram três fidalgos irmãos do Reino das Astúrias, os mais 
famintos do reino. Passavam os dias junto à lareira, que há muito que não se acendia. Devoram, à noite, 
pedaços de pão enegrecido, indo depois deitar-se no estábulo para aproveitar o calor das suas três, 
também famintas, éguas. 
Certo dia, acharam numa cova de rocha um velho cofre de ferro, este tinha três chaves e somente 
podia ser aberto com as três. Deleitados pela ideia de voltarem aos tempos de bem-estar na vida decidiram 
repartir o tesouro igualmente pelos três quando chegassem a casa e ficaram, então, com uma chave cada 
um. 
Mas a ganância dos Homens é por vezes mais forte que a razão e Rui, através de um diálogo subtil 
consegue convencer Rostabal a matar Guanes, de forma a ficarem somente os dois com o tesouro. Tal 
acontece quando Guanes volta da vila com comida e, novamente no local onde o tesouro estava, 
satisfazem-se com a comida que Guanes tinha ido comprar. 
Porém, ainda insatisfeito, Rui vai a uma das éguas de que dispunham e retira uma navalha com que 
apunhala Rostabal pelas costas. Felicitando-se por ter agora todo o dinheiro em sua posse, Rui festeja 
bebendo um dos garrafões de vinho que estavam na égua até à última gota. A sua “festa” e alegria não 
duraram muito pois rapidamente começou a sentir um fogo interior queimando-o. Correu até ao regato mas 
a água queimava-lhe a garganta como se fosse metal líquido. Era veneno. Guanes também tinha em mente 
matá-los. Rui caiu no chão inerte e o seu corpo ainda se encontra na mata de Roquelanes, bem como o 
tesouro. 
1. Estrutura da Acção 
 Introdução (dois primeiros parágrafos) – Apresentação das personagens e 
descrição do ambiente em que vivem; 
 Desenvolvimento (até ao penúltimo parágrafo) – Descoberta do tesouro, 
decisão de partilha e esforços para eliminar os concorrentes; 
Por sua vez, o desenvolvimento tem também uma estrutura tripartida: 
· Descoberta do tesouro e decisão de o partilhar; 
· Rui e Rostabal decidem matar Guanes; morte de Guanes; 
morte de Rostabal; 
· Rui apodera-se do cofre e morre envenenado. 
 Conclusão (dois últimos parágrafos) – Situação final. 
Da conclusão infere-se que, se considerarmos a história dos "três irmãos de 
Medranhos", estamos perante uma narrativa fechada ; ao invés, se nos 
centrarmos sobre o "tesouro", teremos de considerar a narrativa aberta , dado 
que ele continua por descobrir ("...ainda lá está, na mata de Roquelanes."). 
A articulação das sequências narrativas ( momentos de avanço ) faz-se por 
encadeamento. Os momentos de pausa abrem e fecham a narrativa e 
interrompem regularmente a narração com descrições (espaço, objectos, 
personagens) e reflexões. 
Bem Explicado – Centro de Explicações Lda.
Língua Portuguesa – 9º Ano 
O Tesouro – Eça de Queiroz 
2. Personagens 
Caracterização Física Caracterização Psicológica 
Rui gordo e ruivo avisado, calculista, traiçoeiro 
Guanes pele negra, pescoço de grou, 
enrugado desconfiado, calculista, traiçoeiro 
Rostabal alto, cabelo comprido, barba 
longa, olhos raiados de sangue ingénuo, impulsivo 
Predomina o processo de caracterização directa , visto que a maior parte das informações são-nos 
dadas pelo narrador. No entanto, os traços de traição e premeditação de Rui e Guanes são deduzidos a 
partir do seu comportamento ( caracterização indirecta ). 
As personagens começam por ser apresentadas colectivamente ("Os três irmãos de Medranhos..."), 
mas, á medida que a acção progride, a sua caracterização vai-se individualizando, como que sublinhando 
o predomínio do egoísmo individual sobre a aparente fraternidade. 
3. Tempo 
Tempo histórico – A referência ao "Reino das Astúrias" permite localizar a 
acção por volta do século IX, já que os árabes invadiram a península ibérica no 
século VIII (a ocupação iniciou-se em 711 e prolongou-se por vários anos, sem 
nunca ter sido concluída); por outro lado, no século X encontramos já constituído 
o Reino de Leão, que sucedeu ao das Astúrias. 
Tempo da história – A acção decorre entre o Inverno e a Primavera, mas 
concentra-se num domingo de Primavera, estendendo-se de manhã até à noite. 
O Inverno está conotado com a escuridão, a noite, o sono, a morte. E é no 
Inverno que nos são apresentadas as personagens, envoltas na decadência 
económica, no isolamento social e na degradação moral ("E a miséria tornara 
estes senhores mais bravios que lobos."). Por sua vez, a Primavera tem uma 
conotação positiva, associa-se à luz, à cor, ao renascimento da natureza, sugere 
uma vida nova, enquanto o domingo é um dia santo, favorável ao renascimento 
espiritual. 
A acção central inicia-se na manhã de domingo e progride durante o dia. 
À medida que a noite se aproxima a tragédia vai-se preparando. Quando 
tudo termina, com a morte sucessiva dos irmãos, a noite está a surgir 
("Anoiteceu."). 
Tempo do discurso – A acção estende-se do Inverno à Primavera e o seu 
núcleo central concentra-se num dia, desde a manhã até à noite. A 
condensação de um tempo da história tão longo (presumivelmente três ou 
quatro meses) numa narrativa curta (conto) implica a utilização sistemática de 
sumários ou resumos (processo pelo qual o tempo do discurso é menor do que o 
tempo da história). Nos momentos mais significativos da acção (decisão de 
repartir o tesouro e partilha das chaves, bem como a argumentação de Rui para 
excluir Guanes da partilha) o tempo do discurso tende para a isocronia (igual 
duração do tempo da história e do tempo do discurso), sem no entanto a atingir. 
Bem Explicado – Centro de Explicações Lda.
Língua Portuguesa – 9º Ano 
O Tesouro – Eça de Queiroz 
É possível também identificar no texto um outro processo de redução do 
tempo da história, que é a elipse (eliminação, do discurso, de períodos mais ou 
menos longos da história). A parte inicial da acção é localizada no Inverno 
("...passavam eles as tardes desse Inverno...") e logo a seguir o narrador remete-nos 
para a Primavera ("Ora, na Primavera, por uma silenciosa manhã de 
domingo..."). 
Quanta à ordenação dos acontecimentos, predomina o respeito pela 
sequência cronológica. Só na parte final nos surge uma analepse (recuo no 
tempo), quando o narrador abandona a postura de observador e adopta uma 
focalização omnisciente , para revelar o modo como Guanes tinha planeado o 
envenenamento dos irmãos, manifestando dessa forma a natureza traiçoeira do 
seu carácter. 
Frequentemente, a analepse permite esconder do narratário pormenores 
importantes para a compreensão dos acontecimentos, mantendo assim um 
suspense favorável à tensão dramática. 
4. Espaço 
A acção é localizada nas Astúrias e decorre, a parte inicial, nos "Paços de 
Medranhos" e, a parte central, na mata de Roquelanes. Somente o episódio do 
envenenamento do vinho é situado num local um pouco mais longínquo, na vila 
de Retorquilho. 
O paço dos Medranhos é descrito negativamente, por exclusão ("...a que o 
vento da serra levara vidraça e telha..."), e os três irmãos circulam entre a cozinha 
(sem lume, nem comida) e a estrebaria, onde dormem, "para aproveitar o calor 
das três éguas lazarentas". 
O facto de três fidalgos passarem os seus dias entre a cozinha e a 
estrebaria, os lugares menos nobres de um palácio, é significativo: caracteriza 
bem o grau de decadência económica em que vivem. A miséria em que vivem é 
acompanhada por uma degradação moral que o narrador não esconde ("E a 
miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos."). 
De igual modo, o espaço exterior, a mata de Roquelanes, não é um simples 
cenário onde decorre a acção. As descrições da natureza têm também um 
carácter significativo. A "relva nova de Abril", manifestação visível do 
renascimento da natureza, sugere o renascimento espiritual que as personagens, 
como veremos, não são capazes de concretizar. Do mesmo modo, a "moita de 
espinheiros" e a "cova de rocha" simbolizam as dificuldades, os sacrifícios, que é 
necessário enfrentar para alcançar o objecto pretendido — são obstáculos que é 
necessário ultrapassar. 
A natureza, calma, pacífica, renascente ("...um fio de água, brotando entre 
rochas, caía sobre uma vasta laje escavada, onde fazia como um tanque, claro 
e quieto, antes de se escoar para as relvas altas."), contrasta com o espaço 
interior das personagens, que facilmente imaginamos inquietas, agitadas, 
perturbadas pela visão do ouro e ansiosas por dele se apoderarem, com exclusão 
dos demais. Enquanto isso "as duas éguas retouçavam a boa erva pintalgada de 
papoulas e botões-de-ouro". Esse contraste tinha já sido posto em evidência 
antes, depois dos três terem contemplado o ouro ("...estalaram a rir, num riso de 
tão larga rajada que as folhas tenras dos olmos, em roda, tremiam..."). E, quando 
Bem Explicado – Centro de Explicações Lda.
Língua Portuguesa – 9º Ano 
O Tesouro – Eça de Queiroz 
Rui e Rostabal esperam, emboscados, o irmão, "um vento leve arrepiou na 
encosta as folhas dos álamos", como se a natureza sentisse o horror do crime que 
estava para ser cometido. Depois de assassinado Guanes, os dois regressam à 
"clareira onde o sol já não dourava as folhas". 
5. Simbologia 
À leitura do conto ressalta de imediato a referência insistente ao número 
três , de todos os números aquele que carrega maior carga simbólica. 
Desde logo, são três os irmãos; e o três é também um símbolo da família — 
pai, mãe, filho(s). Mas aqui encontramos uma família truncada, imperfeita — nem 
pais, nem filhos, apenas três irmãos. Não há, aliás, a mais leve referência aos 
progenitores dos fidalgos de Medranhos, como se eles nunca tivessem existido. 
Essa ausência da narração é, de certo modo, um símbolo da sua ausência na 
educação dos filhos. Sem a presença modeladora dos pais (ou alguém que os 
substituísse), Rui, Guanes e Rostabal dificilmente poderiam desenvolver 
sentimentos humanos: vivem como "lobos", porque — imaginamos nós — 
cresceram como lobos. 
Eles próprios não foram capazes de constituir uma família verdadeira, do 
mesmo modo que os três, apesar dos laços de sangue e de viverem juntos, não 
formam uma família e sempre pela mesma razão: porque são incapazes de sentir 
o amor. 
O tesouro está guardado num cofre . Um cofre protege, preserva, permite 
que o seu conteúdo permaneça intocado ao longo do tempo. A sua utilização é 
significativa do carácter precioso do conteúdo. Igualmente significativo é o facto 
de o cofre ser de ferro, material resistente, simultaneamente, à força e à 
corrupção. 
Três fechaduras — novamente o número "três"! — preservam o conteúdo do 
cofre (Da curiosidade? Da cobiça? Da apropriação indevida?...), mas três chaves 
permitem abri-lo sem dificuldade. Note-se: nenhuma delas, só por si, mas as três 
em conjunto. O simbolismo aqui é evidente. Só a cooperação dos três 
proprietários permite aceder ao tesouro. É pela solidariedade, pela cooperação, 
pela convergência de interesses e esforços que é possível alcançar o "tesouro" 
por todos almejado. Foi apenas porque, momentaneamente, os três cooperaram, 
que lhes foi permitido contemplar o "tesouro". E porque não souberam manter 
esse espírito de cooperação, não lhes foi permitido possuir o "tesouro". 
E quando Rui expõe a estratégia a seguir, o número "três" volta a aparecer 
insistentemente ("...três alforges de couro, três maquias de cevada, três 
empadões de carne e três botelhas de vinho."), como que a sublinhar o irredutível 
individualismo que os vai conduzir à tragédia. 
Por outro lado, o ouro , material precioso e incorruptível, é ele próprio 
símbolo de perfeição. Obviamente, para além do seu valor material, simboliza a 
salvação, a elevação a uma forma superior de vida, mais espiritual, menos 
animal. É esse o verdadeiro bem, o verdadeiro tesouro. Os fidalgos de Medranhos 
vivem mergulhados na decadência material e na degradação moral. Não se lhes 
conhece uma actividade útil, um sentimento mais elevado, um afecto. Vivem 
Bem Explicado – Centro de Explicações Lda.
Língua Portuguesa – 9º Ano 
O Tesouro – Eça de Queiroz 
com os animais e como animais. Mas para eles, como para todo o ser humano, 
há uma possibilidade de redenção. O "tesouro" está ali, à sua frente, é possível 
alcançá-lo; mas, para isso, é necessário enfrentar dificuldades, largar a cobiça, 
vencer o egoísmo, criar laços de solidariedade e verdadeira fraternidade. 
É possível encontrar no conto outros símbolos. Vimos já o significado que o 
Inverno , a Primavera , o domingo assumem neste contexto. Mas há também a 
água , símbolo de vida (vemo-la na clareira, escoando-se por entre a relva que 
cresce e Rui procura combater o veneno com ela) e de purificação (com a 
água, Rostabal pretende livrar-se do sangue do irmão que assassinou). O dístico 
em letras árabes mal legível, remete para um passado distante, mítico, um tempo 
de paz, equilíbrio e perfeição, uma idade de ouro que poderá ser recuperada 
por quem conseguir encontrar o "tesouro. 
6. Indícios Trágicos 
Frequentemente, na narrativa, a tragédia é anunciada antecipadamente 
por indícios, que as personagens ignoram, mas não passam despercebidos ao 
leitor atento. É o caso da cantiga que Guanes entoa ao dirigir-se à vila e continua 
a cantarolar quando regressa. 
Olé! Olé! 
Sale la cruz de la iglesia, 
Vestida de negro luto... 
A "cruz" e o "negro luto" são referências claras à morte que Guanes planeia 
para os irmãos. Mas ironicamente prenuncia também a sua própria morte. Como 
se vê, nenhuma das três personagens é capaz de reconhecer esse sinal. 
Outro indício trágico são as duas garrafas que Guanes trouxe de 
Retorquilho. Rui estranha o facto, mas não suspeita da traição. Se as personagens 
fossem capazes de interpretar esses indícios poderiam fugir ao destino. Mas são 
incapazes disso e é desse lento aproximar do desenlace e da incapacidade das 
personagens para o evitar que resulta a dimensão trágica da narrativa. 
Bem Explicado – Centro de Explicações Lda.

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  • 1. Língua Portuguesa – 9º Ano O Tesouro – Eça de Queiroz O Tesouro Eça de Queiroz I Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guannes e Rostabal, eram então, em todo o Reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e os mais remendados. Nos paços de Medranhos, a que o vento da serra levara vidraça e telha, passavam eles as tardes desse inverno, engelhados nos seus pelotes de camelão, batendo as solas rotas sobre as lajes da cozinha, diante da vasta lareira negra, onde desde muito não estalava lume, nem fervia a panela de ferro. Ao escurecer devoravam uma côdea de pão negro, esfregada com alho. Depois, sem candeia, através do pátio, fendendo a neve, iam dormir à estrebaria, para aproveitar o calor das três éguas lazarentas que, esfaimadas como eles, roíam as traves da manjedoura. E a miséria tornara esses senhores mais bravios que lobos. Ora, na Primavera, por uma silenciosa manhã de domingo, andando todos os três na mata de Roquelanes a espiar pegadas de caça e a apanhar tortulhos entre os robles, enquanto as três éguas pastavam a relva nova de abril, - os irmãos de Medranhos encontraram, por trás de uma mouta de espinheiros, numa cova de rocha, um velho cofre de ferro. Como se o resguardasse uma torre segura, conservava as suas três chaves nas suas três fechaduras. Sobre a tampa, mal decifrável através da ferrugem, corria um dístico em letras árabes. E dentro, até às bordas, estava cheio de dobrões de ouro! No terror e esplendor da emoção, os três senhores ficaram mais lívidos do que círios. Depois, mergulhando furiosametne as mãos no ouro, estalaram a rir, num riso de tão larga rajada, que as folhas tenras dos olmos, em roda, tremiam... E de novo recuaram, bruscamente se encararam, com os olhos a flamejar, numa desconfiança tão desabrida que Guannes e Rostabal apalpavam nos cintos os cabos das grandes facas. Então Rui, que era gordo e ruivo, e o mais avisado, ergueu os braços, como um árbitro, e começou por decidir que o tesouro, ou viesse de Deus ou do demônio, pertencia aos três, e entre eles se repartiria, rigidamente, pesando-se o ouro em balanças. Mas como poderiam carregar para Medranhos, para os cimos da serra, aquele cofre tão cheio? Nem convinha que saíssem da mata com o seu bem, antes de cerrar a escuridão. Por isso ele entendia que o mano Guannes, como mais leve, devia trotar para a vila vizinha de Retortilho, levando já ouro na bolsinha, a comprar três alforges de couro, três maquias de cevada, três empadões de carne e três botelhas de vinho. Vinho e carne eram para eles, que não comiam desde a véspera: a cevada era para as éguas. E assim refeitos, senhores e cavalgaduras, ensacariam o ouro nos alforges e subiriam para Medranhos, sob a segurança da noite sem Lua. - Bem tramado! - gritou Rostabal, homem mais alto que um pinheiro, de longa guedelha e com uma barba que lhe caía desde os olhos raiados de sangue até à fivela do cinturão. Mas Guannes não se arredava do cofre, enrugado, desconfiado, puxando entre os dedos a pele negra do seu pescoço de grou. Por fim, brutalmente: - Manos! O cofre tem três chaves... Eu quero fechar a minha fechadura e levar a minha chave! - Também eu quero a minha, mil raios! - rugiu logo Rostabal. Rui sorriu. Decerto, decerto! A cada dono do ouro cabia uma das chaves que o guardavam. E cada um em silêncio, agachado ante o cofre, cerrou a sua Bem Explicado – Centro de Explicações Lda.
  • 2. Língua Portuguesa – 9º Ano O Tesouro – Eça de Queiroz fechadura com força. Imediatamente Guannes, desanuviado, saltou na égua, meteu pela vereda de olmos, a caminho de Retortilho, atirando aos ramos a sua cantiga costumada e dolente: Olé! Olé! Sale la cruz de la iglesia, Vestida de negro luto... II Na clareira, em frente à mouta que encobria o tesouro (e que os três tinham desbastado a cutiladas), um fio de água, brotando entre rochas, caía sobre uma vasta laje encravada, onde fazia como um tanque, claro e quieto, antes de se escoar para as relvas altas. E ao lado, na sombra de uma faia, jazia um velho pilar de granito, tombado e musgoso. Ali vieram sentar-se Rui e Rostabal, com os seus tremendos espadões entre os joelhos. As duas éguas tosavam a boa erva pintalgada de papoilas e botões de ouro. Pela ramaria andava um melro a assobiar. Um cheiro errante de violetas adoçava o ar luminoso. E Rostabal, olhando o sol, bocejava com fome. Então Rui, que tirara o sombrero e lhe cofiava as velhas plumas roxas, começou a considerar, na sua fala avisada e mansa, que Guannes, nessa manhã, não quisera descer com eles à mata de Roquelanes. E assim era a sorte ruim! Pois que se Guannes tivesse quedado em Medranhos, só eles dois teriam descoberto o cofre, e só entre eles dois se dividiria o ouro! Grande pena! Tanto mais que a parte de Guannes seria em breve dissipada, com rufiões, aos dados, pelas tavernas. - Ah! Rostabal, Rostabal! Se Guannes, passando aqui sozinho, tivesse achado este ouro, não dividia conosco, Rostabal! O outro rosnou surdamente e com furor, dando um puxão às barbas negras: - Não, mil raios! Guannes é sôfrego... Quando o ano passado, se te lembras, ganhou os cem ducados ao espadeiro de Fresno, nem me quis emprestar três para eu comprar um gibão novo! - Vês tu! - gritou Rui, resplandecendo. Ambos se tinham erguido do pilar de granito, como levados pela mesma idéia, que os deslumbrava. E, através das suas largas passadas, as ervas altas silvavam. - E para quê - prosseguia Rui. - Para que serve todo o ouro que nos leva! Tu não o ouves, de noite, como tosse! Ao redor da palha em que dorme, todo o chão está negro do sangue que escarra! Não dura até às outras neves, Rostabal! Mas até lá terá dissipado os bons dobrões que deviam ser nossos, para levantarmos a nossa casa, e para tu teres ginetes, e armas, e trajes nobres, e o teu terço de solarengos, como compete a quem é, como tu, o mais velho dos de Medranhos... - Pois que morra, e morra hoje! - bradou Rostabal. - Queres! Vivamente, Rui agarrara o braço do irmão e apontava para a vereda de olmos, por onde Guannes partira cantando: - Logo adiante, ao fim do trilho, há um sítio bom, nos silvados. E hás-de ser tu, Rostabal, que és o mais forte e o mais destro. Um golpe de ponta pelas costas. Bem Explicado – Centro de Explicações Lda.
  • 3. Língua Portuguesa – 9º Ano O Tesouro – Eça de Queiroz E é justiça de Deus que seja tu, que muitas vezes, nas tavernas, sem pudor, Guannes te tratava de cerdo e de torpe, por não saberes a letra nem os números. - Malvado! - Vem! Foram. Ambos se emboscaram por trás dum silvado, que dominava o atalho, estreito e pedregoso, como um leito de torrente. Rostabal, assolapado na vala, tinha já a espada nua. Um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos álamos - e sentiram o repique leve dos sinos de Retortilho. Rui, coçando a barba, calculava as horas pelo sol, que já se inclinava para as serras. Um bando de corvos passou sobre eles, grasnando. E Rostabal, que lhes seguira o voo, recomeçou a bocejar, com fome, pensando nos empadões e no vinho que o outro trazia nos alforges. Enfim! Alerta! Era, na vereda, a cantiga dolente e rouca, atirada aos ramos: Olé! Olé! Sale la cruz de la iglesia Toda vestida de negro... Rui murmurou: - “Na ilharga! Mal que passe!” O chouto da égua bateu o cascalho, uma pluma num sombrero vermelhejou por sobre a ponta das silvas. Rostabal rompeu de entre a sarça por uma brecha, atirou o braço, a longa espada; - e toda a lâmina se embebeu molemente na ilharga de Guannes, quando ao rumor, bruscamente, ele se virara na sela. Com um surdo arranco, tombou de lado, sobre as pedras. Já Rui se arremessava aos freios da égua: - Rostabal, caindo sobre Guannes, que arquejava, de novo lhe mergulhou a espada, agarrada pela folha como um punhal, no peito e na garganta. - A chave! - gritou Rui. E arrancada a chave do cofre ao seio do morto, ambos largaram pela vereda - Rostabal adiante, fugindo, com a pluma do sombrero quebrada e torta, a espada ainda nua entalada sob o braço, todo encolhido, arrepiado com o sabor de sangue que lhe espirrara para a boca; Rui, atrás, puxando desesperadamente os freios da égua, que, de patas fincadas no chão pedregoso, arreganhando a longa dentuça amarela, não queria deixar o seu amo assim estirado, abandonado, ao comprido das sebes. Teve de lhe espicaçar as ancas lazarentas com a ponta da espada: - e foi correndo sobre ela, de lâmina alta, como se perseguisse um mouro, que desembocou na clareira onde o sol já não dourava as folhas. Rostabal arremessara para a relva o sombrero e a espada; e debruçado sobre a laje escavada em tanque, de mangas arregaçadas, lavava, ruidosamente, a face e as barbas. A égua, quieta, recomeçou a pastar, carregada com os alforjes novos que Guannes comprara em Retortilho. Do mais largo, abarrotado, surdiam dois gargalos de garrafas. Então Rui tirou, lentamente, do cinto, a sua larga navalha. Sem um rumor na selva espessa, deslizou até Rostabal, que resfolgava, com as longas barbas pingando. E serenamente, como se pregasse uma estaca num canteiro, enterrou a folha toda no largo dorso dobrado, certeira sobre o coração. Rostabal caiu sobre o tanque, sem um gemido, com a face na água, os longos cabelos flutuando na água. A sua velha escarcela de couro ficara entalada sob a coxa. Para tirar de dentro a terceira chave do cofre, Rui solevou o corpo - e um sangue mais grosso jorrou, escorreu pela borda do tanque, fumegando. Bem Explicado – Centro de Explicações Lda.
  • 4. Língua Portuguesa – 9º Ano O Tesouro – Eça de Queiroz III AGORA eram dele, só dele, as três chaves do cofre!... e Rui, alargando os braços, respirou deliciosamente. Mal a noite descesse, com o ouro metido nos alforges, guiando a fila das éguas pelos trilhos da serra, subiria a Medranhos e enterraria na adega o seu tesouro! E quando ali na fonte, e além rente aos silvados, só restassem, sob as neves de dezembro, alguns ossos sem nome, ele seria o magnífico senhor de Medranhos, e na capela nova do solar renascido mandaria dizer missas ricas pelos seus dois irmãos mortos... Mortos, como? Como devem morrer os Medranhos - a pelejar contra o Turco! Abriu as três fechaduras, apanhou um punhado de dobrões, que fez retinir sobre as pedras. Que puro ouro, de fino quilate! E era o seu ouro! Depois de examinar a capacidade dos alforges - e encontrando as duas garrafas de vinho, e um gordo capão assado, sentiu uma imensa fome. Desde a véspera só comera uma lasca de peixe seco. E há quanto tempo não provava capão! Com que delícia se sentou na relva, com as penas abertas, e entre elas a ave loura, que rescendia, e o vinho cor de âmbar! Ah! Guannes fora bom mordomo - nem esquecera azeitonas. Mas por que trouxera ele, para três convivas, só duas garrafas? Rasgou uma asa do capão: devorava a grandes dentadas. A tarde descia, pensativa e doce, com nuvenzinhas cor-de-rosa. Para além, na vereda, um bando de corvos grasnava. As éguas fartas dormitavam, com o focinho pendido. E a fonte cantava, lavando o morto. Rui ergueu à luz a garrafa de vinho. Com aquela cor velha e quente, não teria custado menos de três maravedis. E pondo o gargalo à boca, bebeu em sorvos lentos, que lhe faziam ondular o pescoço peludo. Oh vinho bendito, que tão prontamente aquecia o sangue! Atirou a garrafa vazia - destapou outra. Mas, como era avisado, não bebeu porque a jornada para a serra, com o tesouro, requeria firmeza e acerto. Estendido sobre o cotovelo, descansando, pensava em Medranhos coberto de telha nova, nas altas chamas da lareira por noites de neve, e o seu leito com brocados, onde teria sempre mulheres. De repente, tomado de uma ansiedade, teve pressa de carregar os alforges. Já entre os troncos a sombra se adensava. Puxou uma das éguas para junto do cofre, ergueu a tampa, tomou um punhado de ouro... mas oscilou, largando os dobrões que retilintaram no chão, e levou as duas mãos aflitas ao peito. Que é, D. Rui! Raios de Deus! era um lume, um lume vivo, que se lhe acendera dentro, lhe subia até às goelas. Já rasgara o gibão, atirava os passos incertos e, a arquejar, com a língua pendente, limpava as grossas bagas dum suor horrendo que o regelava como neve. Oh Virgem Mãe! Outra vez o lume, mais forte, que alastrava, o roía! Gritou: - Socorro! Além! Guannes! Rostabal! Os seus braços torcidos batiam o ar desesperadamente. E a chama dentro galgava - sentia os ossos a estalarem como as traves duma casa em fogo. Cambaleou até à fonte para apagar aquela labareda, tropeçou sobre Rostabal; e foi com o joelho fincado no morto, arranhando a rocha, que ele, entre uivos, procurava o fio de água, que recebia sobre os olhos, pelos cabelos. Mas a água mais o queimava, como se fosse um metal derretido. Recuou, caiu para cima da relva que arrancava aos punhados, e que mordia, mordendo os dedos, para lhe sugar a frescura. Ainda se ergueu, com uma baba densa a escorrer-lhe nas Bem Explicado – Centro de Explicações Lda.
  • 5. Língua Portuguesa – 9º Ano O Tesouro – Eça de Queiroz barbas: e de repente, esbugalhando pavorosamente os olhos, berrou como se compreendesse enfim a traição, todo o horror: - É veneno! Oh! D. Rui, o avisado, era veneno! Porque Guannes, apenas chegara a Retortilho, mesmo antes de comprar os alforges, correra cantando a uma viela, por detrás da catedral, a comprar ao velho droguista judeu o veneno que, misturado ao vinho, o tornaria a ele, a ele somente, dono de todo o tesouro. Anoiteceu. Dois corvos de entre o bando que grasnava, além nos silvados, já tinham pousado sobre o corpo de Guannes. A fonte, cantando, lavava o outro morto. Meio enterrada na erva, toda a face de Rui se tornara negra. Uma estrelinha tremeluzia no céu. O tesouro ainda lá está, na mata de Roquelanes. FIM Bem Explicado – Centro de Explicações Lda.
  • 6. Língua Portuguesa – 9º Ano O Tesouro – Eça de Queiroz Resumo: Guanes, Rostabal e Rui de Medranhos eram três fidalgos irmãos do Reino das Astúrias, os mais famintos do reino. Passavam os dias junto à lareira, que há muito que não se acendia. Devoram, à noite, pedaços de pão enegrecido, indo depois deitar-se no estábulo para aproveitar o calor das suas três, também famintas, éguas. Certo dia, acharam numa cova de rocha um velho cofre de ferro, este tinha três chaves e somente podia ser aberto com as três. Deleitados pela ideia de voltarem aos tempos de bem-estar na vida decidiram repartir o tesouro igualmente pelos três quando chegassem a casa e ficaram, então, com uma chave cada um. Mas a ganância dos Homens é por vezes mais forte que a razão e Rui, através de um diálogo subtil consegue convencer Rostabal a matar Guanes, de forma a ficarem somente os dois com o tesouro. Tal acontece quando Guanes volta da vila com comida e, novamente no local onde o tesouro estava, satisfazem-se com a comida que Guanes tinha ido comprar. Porém, ainda insatisfeito, Rui vai a uma das éguas de que dispunham e retira uma navalha com que apunhala Rostabal pelas costas. Felicitando-se por ter agora todo o dinheiro em sua posse, Rui festeja bebendo um dos garrafões de vinho que estavam na égua até à última gota. A sua “festa” e alegria não duraram muito pois rapidamente começou a sentir um fogo interior queimando-o. Correu até ao regato mas a água queimava-lhe a garganta como se fosse metal líquido. Era veneno. Guanes também tinha em mente matá-los. Rui caiu no chão inerte e o seu corpo ainda se encontra na mata de Roquelanes, bem como o tesouro. 1. Estrutura da Acção  Introdução (dois primeiros parágrafos) – Apresentação das personagens e descrição do ambiente em que vivem;  Desenvolvimento (até ao penúltimo parágrafo) – Descoberta do tesouro, decisão de partilha e esforços para eliminar os concorrentes; Por sua vez, o desenvolvimento tem também uma estrutura tripartida: · Descoberta do tesouro e decisão de o partilhar; · Rui e Rostabal decidem matar Guanes; morte de Guanes; morte de Rostabal; · Rui apodera-se do cofre e morre envenenado.  Conclusão (dois últimos parágrafos) – Situação final. Da conclusão infere-se que, se considerarmos a história dos "três irmãos de Medranhos", estamos perante uma narrativa fechada ; ao invés, se nos centrarmos sobre o "tesouro", teremos de considerar a narrativa aberta , dado que ele continua por descobrir ("...ainda lá está, na mata de Roquelanes."). A articulação das sequências narrativas ( momentos de avanço ) faz-se por encadeamento. Os momentos de pausa abrem e fecham a narrativa e interrompem regularmente a narração com descrições (espaço, objectos, personagens) e reflexões. Bem Explicado – Centro de Explicações Lda.
  • 7. Língua Portuguesa – 9º Ano O Tesouro – Eça de Queiroz 2. Personagens Caracterização Física Caracterização Psicológica Rui gordo e ruivo avisado, calculista, traiçoeiro Guanes pele negra, pescoço de grou, enrugado desconfiado, calculista, traiçoeiro Rostabal alto, cabelo comprido, barba longa, olhos raiados de sangue ingénuo, impulsivo Predomina o processo de caracterização directa , visto que a maior parte das informações são-nos dadas pelo narrador. No entanto, os traços de traição e premeditação de Rui e Guanes são deduzidos a partir do seu comportamento ( caracterização indirecta ). As personagens começam por ser apresentadas colectivamente ("Os três irmãos de Medranhos..."), mas, á medida que a acção progride, a sua caracterização vai-se individualizando, como que sublinhando o predomínio do egoísmo individual sobre a aparente fraternidade. 3. Tempo Tempo histórico – A referência ao "Reino das Astúrias" permite localizar a acção por volta do século IX, já que os árabes invadiram a península ibérica no século VIII (a ocupação iniciou-se em 711 e prolongou-se por vários anos, sem nunca ter sido concluída); por outro lado, no século X encontramos já constituído o Reino de Leão, que sucedeu ao das Astúrias. Tempo da história – A acção decorre entre o Inverno e a Primavera, mas concentra-se num domingo de Primavera, estendendo-se de manhã até à noite. O Inverno está conotado com a escuridão, a noite, o sono, a morte. E é no Inverno que nos são apresentadas as personagens, envoltas na decadência económica, no isolamento social e na degradação moral ("E a miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos."). Por sua vez, a Primavera tem uma conotação positiva, associa-se à luz, à cor, ao renascimento da natureza, sugere uma vida nova, enquanto o domingo é um dia santo, favorável ao renascimento espiritual. A acção central inicia-se na manhã de domingo e progride durante o dia. À medida que a noite se aproxima a tragédia vai-se preparando. Quando tudo termina, com a morte sucessiva dos irmãos, a noite está a surgir ("Anoiteceu."). Tempo do discurso – A acção estende-se do Inverno à Primavera e o seu núcleo central concentra-se num dia, desde a manhã até à noite. A condensação de um tempo da história tão longo (presumivelmente três ou quatro meses) numa narrativa curta (conto) implica a utilização sistemática de sumários ou resumos (processo pelo qual o tempo do discurso é menor do que o tempo da história). Nos momentos mais significativos da acção (decisão de repartir o tesouro e partilha das chaves, bem como a argumentação de Rui para excluir Guanes da partilha) o tempo do discurso tende para a isocronia (igual duração do tempo da história e do tempo do discurso), sem no entanto a atingir. Bem Explicado – Centro de Explicações Lda.
  • 8. Língua Portuguesa – 9º Ano O Tesouro – Eça de Queiroz É possível também identificar no texto um outro processo de redução do tempo da história, que é a elipse (eliminação, do discurso, de períodos mais ou menos longos da história). A parte inicial da acção é localizada no Inverno ("...passavam eles as tardes desse Inverno...") e logo a seguir o narrador remete-nos para a Primavera ("Ora, na Primavera, por uma silenciosa manhã de domingo..."). Quanta à ordenação dos acontecimentos, predomina o respeito pela sequência cronológica. Só na parte final nos surge uma analepse (recuo no tempo), quando o narrador abandona a postura de observador e adopta uma focalização omnisciente , para revelar o modo como Guanes tinha planeado o envenenamento dos irmãos, manifestando dessa forma a natureza traiçoeira do seu carácter. Frequentemente, a analepse permite esconder do narratário pormenores importantes para a compreensão dos acontecimentos, mantendo assim um suspense favorável à tensão dramática. 4. Espaço A acção é localizada nas Astúrias e decorre, a parte inicial, nos "Paços de Medranhos" e, a parte central, na mata de Roquelanes. Somente o episódio do envenenamento do vinho é situado num local um pouco mais longínquo, na vila de Retorquilho. O paço dos Medranhos é descrito negativamente, por exclusão ("...a que o vento da serra levara vidraça e telha..."), e os três irmãos circulam entre a cozinha (sem lume, nem comida) e a estrebaria, onde dormem, "para aproveitar o calor das três éguas lazarentas". O facto de três fidalgos passarem os seus dias entre a cozinha e a estrebaria, os lugares menos nobres de um palácio, é significativo: caracteriza bem o grau de decadência económica em que vivem. A miséria em que vivem é acompanhada por uma degradação moral que o narrador não esconde ("E a miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos."). De igual modo, o espaço exterior, a mata de Roquelanes, não é um simples cenário onde decorre a acção. As descrições da natureza têm também um carácter significativo. A "relva nova de Abril", manifestação visível do renascimento da natureza, sugere o renascimento espiritual que as personagens, como veremos, não são capazes de concretizar. Do mesmo modo, a "moita de espinheiros" e a "cova de rocha" simbolizam as dificuldades, os sacrifícios, que é necessário enfrentar para alcançar o objecto pretendido — são obstáculos que é necessário ultrapassar. A natureza, calma, pacífica, renascente ("...um fio de água, brotando entre rochas, caía sobre uma vasta laje escavada, onde fazia como um tanque, claro e quieto, antes de se escoar para as relvas altas."), contrasta com o espaço interior das personagens, que facilmente imaginamos inquietas, agitadas, perturbadas pela visão do ouro e ansiosas por dele se apoderarem, com exclusão dos demais. Enquanto isso "as duas éguas retouçavam a boa erva pintalgada de papoulas e botões-de-ouro". Esse contraste tinha já sido posto em evidência antes, depois dos três terem contemplado o ouro ("...estalaram a rir, num riso de tão larga rajada que as folhas tenras dos olmos, em roda, tremiam..."). E, quando Bem Explicado – Centro de Explicações Lda.
  • 9. Língua Portuguesa – 9º Ano O Tesouro – Eça de Queiroz Rui e Rostabal esperam, emboscados, o irmão, "um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos álamos", como se a natureza sentisse o horror do crime que estava para ser cometido. Depois de assassinado Guanes, os dois regressam à "clareira onde o sol já não dourava as folhas". 5. Simbologia À leitura do conto ressalta de imediato a referência insistente ao número três , de todos os números aquele que carrega maior carga simbólica. Desde logo, são três os irmãos; e o três é também um símbolo da família — pai, mãe, filho(s). Mas aqui encontramos uma família truncada, imperfeita — nem pais, nem filhos, apenas três irmãos. Não há, aliás, a mais leve referência aos progenitores dos fidalgos de Medranhos, como se eles nunca tivessem existido. Essa ausência da narração é, de certo modo, um símbolo da sua ausência na educação dos filhos. Sem a presença modeladora dos pais (ou alguém que os substituísse), Rui, Guanes e Rostabal dificilmente poderiam desenvolver sentimentos humanos: vivem como "lobos", porque — imaginamos nós — cresceram como lobos. Eles próprios não foram capazes de constituir uma família verdadeira, do mesmo modo que os três, apesar dos laços de sangue e de viverem juntos, não formam uma família e sempre pela mesma razão: porque são incapazes de sentir o amor. O tesouro está guardado num cofre . Um cofre protege, preserva, permite que o seu conteúdo permaneça intocado ao longo do tempo. A sua utilização é significativa do carácter precioso do conteúdo. Igualmente significativo é o facto de o cofre ser de ferro, material resistente, simultaneamente, à força e à corrupção. Três fechaduras — novamente o número "três"! — preservam o conteúdo do cofre (Da curiosidade? Da cobiça? Da apropriação indevida?...), mas três chaves permitem abri-lo sem dificuldade. Note-se: nenhuma delas, só por si, mas as três em conjunto. O simbolismo aqui é evidente. Só a cooperação dos três proprietários permite aceder ao tesouro. É pela solidariedade, pela cooperação, pela convergência de interesses e esforços que é possível alcançar o "tesouro" por todos almejado. Foi apenas porque, momentaneamente, os três cooperaram, que lhes foi permitido contemplar o "tesouro". E porque não souberam manter esse espírito de cooperação, não lhes foi permitido possuir o "tesouro". E quando Rui expõe a estratégia a seguir, o número "três" volta a aparecer insistentemente ("...três alforges de couro, três maquias de cevada, três empadões de carne e três botelhas de vinho."), como que a sublinhar o irredutível individualismo que os vai conduzir à tragédia. Por outro lado, o ouro , material precioso e incorruptível, é ele próprio símbolo de perfeição. Obviamente, para além do seu valor material, simboliza a salvação, a elevação a uma forma superior de vida, mais espiritual, menos animal. É esse o verdadeiro bem, o verdadeiro tesouro. Os fidalgos de Medranhos vivem mergulhados na decadência material e na degradação moral. Não se lhes conhece uma actividade útil, um sentimento mais elevado, um afecto. Vivem Bem Explicado – Centro de Explicações Lda.
  • 10. Língua Portuguesa – 9º Ano O Tesouro – Eça de Queiroz com os animais e como animais. Mas para eles, como para todo o ser humano, há uma possibilidade de redenção. O "tesouro" está ali, à sua frente, é possível alcançá-lo; mas, para isso, é necessário enfrentar dificuldades, largar a cobiça, vencer o egoísmo, criar laços de solidariedade e verdadeira fraternidade. É possível encontrar no conto outros símbolos. Vimos já o significado que o Inverno , a Primavera , o domingo assumem neste contexto. Mas há também a água , símbolo de vida (vemo-la na clareira, escoando-se por entre a relva que cresce e Rui procura combater o veneno com ela) e de purificação (com a água, Rostabal pretende livrar-se do sangue do irmão que assassinou). O dístico em letras árabes mal legível, remete para um passado distante, mítico, um tempo de paz, equilíbrio e perfeição, uma idade de ouro que poderá ser recuperada por quem conseguir encontrar o "tesouro. 6. Indícios Trágicos Frequentemente, na narrativa, a tragédia é anunciada antecipadamente por indícios, que as personagens ignoram, mas não passam despercebidos ao leitor atento. É o caso da cantiga que Guanes entoa ao dirigir-se à vila e continua a cantarolar quando regressa. Olé! Olé! Sale la cruz de la iglesia, Vestida de negro luto... A "cruz" e o "negro luto" são referências claras à morte que Guanes planeia para os irmãos. Mas ironicamente prenuncia também a sua própria morte. Como se vê, nenhuma das três personagens é capaz de reconhecer esse sinal. Outro indício trágico são as duas garrafas que Guanes trouxe de Retorquilho. Rui estranha o facto, mas não suspeita da traição. Se as personagens fossem capazes de interpretar esses indícios poderiam fugir ao destino. Mas são incapazes disso e é desse lento aproximar do desenlace e da incapacidade das personagens para o evitar que resulta a dimensão trágica da narrativa. Bem Explicado – Centro de Explicações Lda.