Carlos Taibo sintetiza a questão que se nos coloca, hoje. Ou ganhamos a consciência de que temos de sair urgentemente do capitalismo, regressando a lógicas de cooperação, solidariedade e apoio mútuo; ou entra-se num caminho de salve-se quem puder, com guerras, pobreza acentuada, desdém para com as alterações climáticas, com regimes fascistas e genocidas.
Sumário
1 - Uma (des)ordem económica e política
2 - A globalização é um processo
2.1 - Como o capitalismo vem cavalgando a globalização
2.2 - A instituição de um estado de excepção generalizado
3 - Os grandes promotores do desastre
3.1 - As ameaças vindas das classes políticas
4 – A leitura do contexto.
4.1 - As alternativas possíveis e as desejáveis
4.2 – O desenvolvimento do espirito do fascismo
4.3 – Um novo internacionalismo, precisa-se!
Um internacionalismo do século xxi, contra o capitalismo e o nacionalismo (1)
1. grazia.tanta@gmail.com 10/02/2017 1
Um internacionalismo do século XXI, contra o capitalismo e o nacionalismo (1)
Carlos Taibo sintetiza a questão que se nos
coloca, hoje. Ou ganhamos a consciência de
que temos de sair urgentemente do
capitalismo, regressando a lógicas de
cooperação, solidariedade e apoio mútuo;
ou entra-se num caminho de salve-se quem
puder, com guerras, pobreza acentuada,
desdém para com as alterações climáticas,
com regimes fascistas e genocidas.
Sumário
1 - Uma (des)ordem económica e política
2 - A globalização é um processo
2.1 - Como o capitalismo vem cavalgando a globalização
2.2 - A instituição de um estado de excepção generalizado
3- Os grandes promotores do desastre
3.1 - As ameaças vindas das classes políticas
4 – A leitura do contexto.
4.1 - As alternativas possíveis e as desejáveis
4.2 – O desenvolvimento do espirito do fascismo
4.3 – Um novo internacionalismo, precisa-se!
1 - Uma (des)ordem económica e política
Há uma trama de elementos económicos, políticos, militares e ideológicos que gere a
Humanidade, fomentando o conformismo nas populações para que nada mude,
excepto no capítulo das adaptações necessárias ao funcionamento do modelo
neoliberal do capitalismo; admitem-se correções na velocidade e nos instrumentos
mas, não de objetivos. Em todas as épocas existiram esses ordenamentos, mesmo em
níveis geográficos restritos, quando o planeta se achava política e economicamente
fragmentado, com áreas desconectadas umas das outras.
As mais altas esferas com poder de decisão não se encontram especificamente nas
conferências Bilderberg ou Davos, como é do gosto dos amantes de teorias da
conspiração. Esses poderes constituem-se e reproduzem-se no seio de redes muito
flexíveis, de matrizes institucionais onde preponderam os CEO dos grandes bancos ou
das multinacionais, os estratos políticos mais elevados dos países com relevância
global e ainda think tanks e empresas ligadas à informação. Relacionam-se
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permanentemente – para além dos mediatizados conclaves regulares - trocando
informações, fazendo negócios, debatendo entre si, tentando influenciar ou neutralizar
interesses distintos ou adversos, decidindo guerras e acordos de paz, cooptando uns
elementos, despromovendo outros, de acordo com táticas e estratégias formuladas ou
reformuladas.
Essa ordem não tem uma hierarquia rígida, nem se circunscreve num elementar “nós” e
“eles” que em tempos se imputava como constituinte do pensamento primário de um
Ronald Reagan, em cujo discurso o maniqueísmo era peça chave como uma forma de
mobilização de sentimentos de aversão e ódio contra o Outro; primarismo ampliado
pelo novel Trump. Essa ordem contém a focagem no controlo biopolítico, na
manipulação das multidões, nomeadamente através da televisão e de Googles ou
Facebooks, mais e mais bidirecionais, como a teletela de Orwell; e define inimigos reais
ou fictícios como o terrorismo, os imigrantes, os muçulmanos, os pretos, os árabes,
passado que está o tempo em que esse pódio era ocupado por comunistas,
sindicalistas, anarquistas.
Perante a ausência de alternativa política entendível, aceite e susceptível de
entusiasmar, de lançar os povos na luta contra o capitalismo junta-se, o conformismo e
o medo do desconhecido, como elementos que contribuem decisivamente para o
sucesso do neoliberalismo e da forma política dominante no Ocidente, a democracia
de mercado, protegida militarmente pela NATO; ou, diretamente pelo Pentágono, no
Pacífico Ocidental ou na área do Golfo Pérsico.
O binómio neoliberalismo-democracia de mercado, não enquadra soluções alternativas
atrativas para os povos europeus, com o seu cortejo de empobrecimento relativo,
dívida, redução da qualidade de vida, autoritarismo, corrupção…; tal como o defunto
modelo socialista - de facto, capitalismo de estado + partido único – que, ao implodir
em 1991, evidenciou o seu fracasso, ficando o celebrado homo sovieticus bem
representado por um cinzento e corrupto burocrata. Fora da Europa, a situação é
certamente, pior. A pobreza, as guerras, as ditaduras, as chacinas, os desastres
ambientais, sob diversas combinações, evidenciam-se na maior parte do mundo, com
altíssimas responsabilidades dos ocidentais na sua eclosão e manutenção.
2 - A globalização é um processo
A globalização não nasceu com o neoliberalismo nem, mais geralmente, com o
capitalismo. Foi sempre um processo lento, gradativo, que só depois das viagens de
Colombo, Gama e Magalhães assumiu uma dimensão planetária. Foi sempre um
processo de descoberta do Outro, de enriquecimento comercial e cultural mútuo, um
gerador de avanços civilizacionais; um processo de cruzamento de saberes, hábitos, de
miscigenação. Esse processo foi mais lento, por exemplo, quando havia dificuldades
técnicas de comunicação; ou após o fim do Império Romano do Ocidente, com o
encerramento autárcico inerente ao feudalismo, enquanto se desenvolvia claramente
na área islâmica, no Mediterrâneo Oriental, no norte de África, no Índico; assim como
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sofreu uma retração entre as duas grandes guerras, interagindo com as derivas
identitárias inerentes ao fascismo.
Hoje, a globalização é muito mais profunda e diversificada do que nunca; em paralelo
com as trocas de mercadorias e serviços, acentuam-se trocas de conhecimentos,
migrações e fusões de corpos, dando origem a mestiçagens físicas e culturais que
enriquecem e unificam a Humanidade, criando condições para o atenuar de espíritos
identitários nacionais, étnicos ou religiosos.
Mais recentemente, a acessibilidade de todos à informação banalizou-se, arrasando os
direitos de propriedade, vulgarizando as trocas e os negócios feitos ao seu arrepio
daqueles direitos, a despeito da existência de proibições e espionagens massivas para
avaliação e controlo do estado de espírito dos povos; mesmo que se procurem atitudes
de controlo da informação para benefício dos grandes grupos de media. Vulgarizaram-
se as viagens pelo planeta, com a canibalização de preços entre os operadores, bem
como as trocas interpessoais e o conhecimento in loco de culturas e povos.
Pode dizer-se que o processo de globalização insere a longa marcha da unificação da
Humanidade e é incompatível com o nacionalismo e o fascismo, por natureza,
fechados, excludentes, tendencialmente xenófobos, autoritários. Para que se consiga
essa unificação, a solidariedade entre as pessoas e povos, a destruição dos
armamentos, a dignificação do ambiente é preciso destruir o capitalismo e as classes
políticas que o servem.
2.1 - Como o capitalismo vem cavalgando a globalização
O expansionismo colonial do passado que carateriza grande parte dos países
chamados ocidentais deu um forte impulso para a compreensão do planeta como
unidade, conhecida e inserida em relações potencialmente de todos, com todos. Essa
expansão baseou-se na extrema violência da conquista, da pilhagem, da escravatura,
da violação, do genocídio mas, é apontado como um orgulhoso passado civilizador,
com o paternalismo, de “dar mundos ao mundo” por parte dos colonizadores ou dos
que beneficiaram do colonialismo. Essa gesta é apresentada como virtuosa,
protagonizada por países autoproclamados como magnânimos dadores de civilização
ao resto do planeta; mas, de facto, assente no domínio militar e tecnológico que impôs
trocas desiguais, desestruturação social e destruição de modos de vida.
A descolonização que se seguiu à II Guerra pretendeu manter tudo como
anteriormente, de modo mais adequado às menores capacidades financeiras e
militares dos grandes colonizadores; ingleses, franceses e holandeses, arrasados com a
guerra. Um pouco mais tarde, os belgas deixaram o Congo na barbárie que, aliás, foi
sempre o estado em que viveu a sua população desde que ofertada ao rei Leopoldo,
no final do século XIX. A Espanha, já há muito havia sido varrida da América e das
Filipinas, transformadas em quintal dessa emanação coletiva da Europa, chamada EUA.
Os portugueses, ao contrário da chegada à Índia pela rota do Cabo, em que foram os
precursores, desta vez foram os últimos a sair da cena colonial depois de anos
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perdidos em guerra, visando a inviável manutenção de um mítico estado
pluricontinental.
A descolonização, em geral, foi a continuidade da colonização, suavizada pela
cooptação de elites locais corruptas para a manutenção da anterior exploração
colonial, no seu essencial. Porém, como corruptas, essas elites, libertas da tutela
política e militar do colonizador, passaram a negociar os seus favores a quem melhor
pagasse, entre as multinacionais; que compravam um qualquer sargento para depor
um governo recalcitrante, ou que se tornasse caro.
Em paralelo, tendo como modelo o Japão, em alguns países asiáticos com regimes
autoritários, gerou-se uma ligação estreita entre os capitalistas nacionais e os
aparelhos estatais que garantiam lógicas laborais de baixos salários, com parcos
direitos e disciplina militar. Acolheram de braços abertos as grandes empresas
ocidentais, multinacionais que, em disputa por recursos e mercados, pretendiam
produção a baixos custos; entretanto, com o tempo, os hospedeiros adoptaram as
tecnologias ocidentais e fortaleceram os seus próprios conglomerados, os zaibatsu
(Japão) ou os chaebol (Coreia do Sul).
Seguiu-se um sucesso de maior dimensão, na China, onde vive 1/5 da população
mundial. O seu partido único, com um enorme aparelho que procede à direção política
e estratégica da economia e monitoriza a multidão, integra os mais importantes
magnatas, num género de capitalismo de estado onde os capitais podem ser privados
mas, com supervisão estatal. Em poucas décadas passou de grande exportador de bens
baratos e de baixa qualidade, de destino de investimentos estrangeiros, para grande
investidor global no exterior, com capacidade para investimentos de enorme
significado estratégico, como as vias terrestre e marítima da Rota da Seda ou da
construção de linhas internas de TGV, referindo-se, a propósito, que os 19000 Km já
existentes, ultrapassam essas infraestruturas ao serviço em todos os outros países.
Exportações mundiais de mercadorias (% do total)
1948 1953 1963 1973 1983 1993 2003 2014
$ 1000 M 59 84 157 579 1838 3688 7380 18494
América do N 28,1 24,8 19,9 17,3 16,8 17,9 15,8 13,5
E U A 21,7 18,8 14,9 12,3 11,2 12,6 9,8 8,8
América Sul e
Central 11,3 9,7 6,4 4,3 4,5 3,0 3,0 3,8
Europa 35,1 39,4 47,8 50,9 43,5 45,3 45,9 36,8
Alemanha 1,4 5,3 9,3 11,7 9,2 10,3 10,2 8,2
URSS/CEI 2,2 3,5 4,6 3,7 5,0 1,5 2,6 4,0
África 7,3 6,5 5,7 4,8 4,5 2,5 2,4 3,0
Médio Oriente 2,0 2,7 3,2 4,1 6,7 3,5 4,1 7,0
Ásia 14,0 13,4 12,5 14,9 19,1 26,0 26,1 32,0
China 0,9 1,2 1,3 1,0 1,2 2,5 5,9 12,7
Japão 0,4 1,5 3,5 6,4 8,0 9,8 6,4 3,7
Fonte: OMC
É interessante notar-se no quadro, o evidente declínio do peso dos EUA nas
exportações mundiais, no período considerado, perdendo em 2003 o primeiro posto,
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para a Alemanha e, mais recentemente, em 2014, para a China que, ultrapassou
também as posições da Alemanha e do Japão.
No dealbar do século XX, a antiga colonia americana da Grã-Bretanha (os EUA) veio a
suplantar a velha metrópole; o Brasil, veio a assumir, um século atrás, uma relevância
global que Portugal, enquanto protetorado inglês, não possuía; mais recentemente, os
capitais ocidentais investidos nos seus antigos domínios coloniais foram suplantados
pelas dinâmicas próprias de algumas das nações antes subalternizadas (China, Taiwan,
Coreia do Sul, Singapura) embora, na sua maioria, as restantes nações se mantenham
como fornecedores de mão-de-obra barata e servil (Vietnam, Marrocos, Bangla Desh…)
ou de recursos naturais (a maioria dos países africanos) com destino ao Ocidente mas,
cada vez mais para a China e outros países seus vizinhos1
. O mapa que se insere abaixo
é um indicador irrecusável das mudanças em curso na geopolítica global.
Fonte: http://www.visualcapitalist.com/
A globalização, promovida nos últimos séculos a partir da Europa, veio a ser
acompanhada e depois dominada pelos EUA e agora, está num ponto de viragem,
protagonizada pelo dinamismo chinês. A globalização na sua forma actual contempla
uma escala de atuação que exige grandes concentrações de capital, grandes empresas,
enormes recursos financeiros e tecnológicos, uma escala de mercados alargada e,
simultaneamente heterogénea, ultrapassado que está o fordismo. O mundo tornou-se
o campo de atuação de redes complementares ou conflituantes, de negócios, de
capitais, de informação, de afetos, de ativismos, que as fronteiras não conseguem
conter.
1
A lógica neoliberal, na sequência da dominância financeira facilita a estratégia global dos países da Ásia
Oriental. Citamos os casos, da compra chinesa do porto do Pireu, na Grécia e da exploração de Sines por
uma empresa estatal de Singapura.
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O mundo de hoje corresponde à passagem do capitalismo dos conflitos inter-
imperialistas e do neocolonialismo, para o capitalismo globalizado, concentrado,
imperial, protagonizado pelo sistema financeiro e pelas multinacionais. Neste contexto,
o poder dos pequenos e médios estados, ainda que se intitulem de soberanos, para se
oporem isoladamente a esse capitalismo concentrado e com recursos numa escala
nunca vista, é uma oposição quixotesca; e, para mais, dificultada dentro de cada um
deles, pela captura que o sistema financeiro e as multinacionais, bem como as suas
instituições (FMI, OMC, BCE, Comissão Europeia…) procedem relativamente às
amansadas classes políticas nacionais.
Todas estas mudanças têm uma contrapartida enorme em problemas, mesmo quando
se manifestam apenas local ou regionalmente.
As distâncias médias na circulação de mercadorias – muitas destinadas a satisfazer
necessidades artificialmente criadas - aumentaram substancialmente, exigindo
gigantescas e caras infraestruturas logísticas; as quais, juntamente com o consumo
energético em geral e aquele relacionado com os veículos de circulação local,
mostram efeitos devastadores sobre o clima que, por sua vez, causam imprevisíveis
desastres ditos naturais mas, onde as responsabilidades humanas são evidentes;
as desigualdades no acesso a condições dignas de vida mantêm-se com níveis
inaceitáveis e alastram a muitas regiões dos países tomados como ricos em termos
médios, para além daqueles que sempre estiveram longe de o ser, nas periferias;
a decadência do poder das potências ocidentais continua a acontecer, mesmo
depois do desaparecimento de um Outro, amaldiçoado, em 1991; agora com outros
protagonistas de desafios, muito para além das ameaças nucleares. Uma maior
equivalência de forças militares tanto poderá conduzir a uma contenção calculada,
como a uma deriva perigosa de conflitos, se se vier a efetivar a concretização dos
intuitos revelados por Trump;
as governações ocidentais, ocupadas por gangs de bufarinheiros, corruptos ou
imbecis, perdem, em cada eleição votantes, descrentes de sistemas políticos que
sentem como distanciados e inoperantes; e a exportação desses modelos para as
periferias também não apresenta resultados frutuosos em termos de democracia;
as desigualdades, sem fim à vista, com a negação de perspetivas claras de
melhorias, desenvolvem taras identitárias e excludentes, desenvolvidas por seitas
religiosas, grupos nacionalistas ou mesclas dessas duas demências, sempre ágeis em
promover tiranetes ou iluminados gurus;
a informação é objeto de superficialidade, mistura-se com propaganda e casa-se
com puras mentiras, influenciando milhões de pessoas submetidas a fluxos
ininterruptos de lixo, sem tempo ou vocação para proceder a análises próprias e
documentadas, aceitando teorias da conspiração, teses religiosas salvíticas ou
escatologias políticas;
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a universidade, tomada pelo espírito neoliberal lança no “mercado” tecnocratas
iletrados, prontos a servir o capitalismo e eleva corpos docentes de pedantes bem
encadernados, desfasados da realidade para dignificar funções; um novo clero, uma
nova patrística;
a gula do sistema financeiro, estribada na subserviência das classes políticas, aperta
as finanças públicas e degrada a vida das populações através da dívida pública, das
subsequentes austeridades e acrescidas cargas fiscais;
Essas dinâmicas cruzam-se e interagem, funcionam numa escala muito superior ao
observado no tempo da concorrência inter-imperialista, quando os estados-nação, com
fronteiras guardadas e barreiras alfandegárias protegiam os capitalistas locais da
concorrência externa, impedindo a população – entendida como sua propriedade,
como sua coutada de força de trabalho, qual resquício dos tempos feudais e, com o
recurso a meios repressivos - de procurar outras paragens, no exercício das imanentes
pulsões de vida existentes no seio de todos os povos.
A nova escala dos conflitos, integra os povos uns com os outros, não se contém nas
fronteiras e torna impossíveis soluções dentro dos estritos quadros nacionais;
sobretudo quando se trata de pequenas ou mesmo médias potências. A situação que
se tem vivido este século no Médio Oriente mostra a fragilidade dos estados; aliás, com
uma curta e discutível profundidade histórica. Dificilmente se observam as clássicas
guerras entre dois países ou coligações de países, com declarações formais de guerra,
de acordo com o cavalheirismo típico do século XIX.
2.2 - A instituição de um estado de excepção generalizado
Os conflitos generalizam-se e criam um tempo de “guerra civil global” tendo como
protagonistas, exércitos, locais ou estrangeiros e povos, grupos de civis armados ou
milícias em luta entre si, num quadro sem constitucionalidades definidas; estas,
continuando a ser sobretudo nacionais, tornam-se inoperacionais e constituem mais
um elemento para o relativo apagamento dos estados-nação como partes em
conflitos. A intervenção direta das grandes potências, mostra-se igualmente ineficaz,
mesmo com a enorme assimetria face aos seus adversários (Afeganistão, Iraque,
Yémen), admitindo que se não repetem as guerras de extermínio (dos nativos norte-
americanos ou dos hereros) para resolver situações “delicadas”; assim como ao recurso
massivo a técnicas de internamento em campos de concentração, de tortura ou
execução sumária. Finalmente, a ONU, em muitas situações, mostra-se sem apoios
políticos ou financeiros para resolver ou evitar esses conflitos, que se eternizam,
esquecidos, na sombra, sem que a adaptação dos povos a essa situação deixe de
acontecer, com imensos sacrifícios e sofrimentos.
Mesmo na ausência de situações de guerra, banalizou-se a aplicação informal de
estados de excepção, sobretudo no seio de cada país. O arrastamento de baixos
“crescimentos”, de grandes pressões orçamentais para cumprimento das consignas
financeiras ou a aplicação de medidas de austeridade, tornam os povos prisioneiros
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desses estados de excepção, não expressos dentro dos trâmites definidos nas
constituições nacionais mas provenientes de estruturas “técnicas” como o FMI ou a
OMC, a Comissão Europeia e quejandos, inscritas na própria ideologia neoliberal. A sua
continuada ação contra os povos deslegitima as classes políticas que aplicam os
estados de excepção, obriga à destruição da própria ordem neoliberal, justifica a
subversão.
Os atentados que se vão observando na Europa, à semelhança do que aconteceu nos
EUA depois de 11 de setembro de 2001, vão justificando estados de excepção
sucessivos, com enormes incómodos para a população, geram desconfiança e medo,
promovem uma insegurança exacerbada, muito para além das reais ameaças,
largamente empoladas. Esse clima enquista, crispa as populações nativas e torna
suspeito qualquer emigrante, estudante, viajante com certas caraterísticas físicas ou
culturais; nesse clima, logo surgem os defensores do encerramento autárcico, os
nacionalistas, os xenófobos, os propagandistas das medidas securitárias, da invasão da
privacidade, das buscas e atropelos, do aumento das prerrogativas das polícias, das
detenções e prisões arbitrárias, dos guantanamos, da lógica do dispara primeiro e
averigua depois, componentes típicas do fascismo. Essa deriva entronizou Hitler,
décadas atrás.
Neste contexto não se coloca em causa a legitimidade das intervenções militares e a
desestabilização política no Médio Oriente por parte dos ocidentais; nem se questiona
o interesse das multinacionais nos conflitos, os interesses das corporações militares e o
seu transbordar para as rivalidades geopolíticas ou os impactos nas subjetividades dos
povos que olham os seus vizinhos, como inimigos ou concorrentes num campeonato
em que nenhum leva a taça.
A Constituição portuguesa reconhece - no artº 19º - o estado de sítio e o de
emergência, para situações de invasão estrangeira, perturbação da ordem
constitucional ou de calamidade pública; podendo, nesse contexto, ser suspenso o
exercício dos direitos, liberdades e garantias. Inversamente, a generalizada retirada ou
redução de rendimentos e direitos à sombra da intervenção da troika (2011/14) ou do
seu factual prolongamento sine die aconteceu, mesmo que não abrangida pelo
referido artº 19º, nem por qualquer outro normativo constitucional. Essa perda de
rendimentos e direitos instituiu um estado de excepção que, para mais se apresenta
como banalizado e por tempo indeterminado.
A dívida pública é uma renda a favor do capital financeiro na sua globalidade e
constitui um elemento que condiciona toda a vida da população, direta ou
indiretamente, que acentua desigualdades profundas entre os vários estratos sociais e
que impulsiona medidas lesivas dos direitos com um cariz, visivelmente permanente.
Trata-se de mais um elemento que eterniza uma situação de excepção, criada pela
classe política e, portanto, sem qualquer real controlo democrático. A dívida vai
aumentando ano após ano, com sérios riscos de agravamento, com o rotineiro aval
parlamentar, atingindo níveis de total ilegitimidade e insustentabilidade de onde
resulta o actual e implícito estado de excepção. O nível de degradação e fragilidade
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política e económica é tal que só se resolve com modificações fundas no sistema
económico e no modelo de representação.
O recurso a dinheiros públicos para salvaguardar a viabilidade de empresas privadas
(bancos e participantes de parcerias público-privadas) começou em 2008 com o BPN e
vem-se prolongando, como sequela da irresponsável interação entre os bancos
instalados em Portugal e os grupos económicos portugueses, todos tomados como
“too big to fail”. Esse empenho tem tido impactos na carga fiscal, inchada pela
criatividade dos governos, menos atentos, por exemplo, às dificuldades alimentares
que tocam 20% da população, aos custos da emigração de centenas de milhares de
pessoas e à precarização da vida de trabalhadores e pensionistas.
Se a intervenção no BPN em 2008 aconteceu para “para evitar o risco sistémico”,
passados todos estes anos, o que se verifica é que esse risco evoluiu para uma situação
em que a própria existência do sistema constitui um risco efetivo que assegura uma
situação de desastre periférico para dez milhões de pessoas. Tudo isso acontece no
âmbito de um discurso onde consta, implicitamente um estado de excepção cujo fim
se aponta, todos os anos, sempre para o ano seguinte. A continuidade destes
elementos corresponde a uma suspensão continuada do exercício de direitos, contidos
na própria Constituição.
Os estados de excepção, nem sempre declarados mas factuais, do ponto de vista
jurídico são antagónicos com a democracia, com os chamados “estados de direito” e a
sua existência legitima toda a resistência e a revolta por parte dos povos contra as suas
classes políticas e instituições globais. A sua banalização institui situações em que,
acima da força da lei está a lei da força, sendo esta última, saída de uma imposição
ditatorial tão do agrado de Carl Schmitt, o grão-jurista do nazismo; registe-se, que o
regime nazi, instaurando um estado de excepção por doze anos, com a atribuição ao
führer de enormes poderes de decisão, não precisou de se dar ao trabalho de revogar
a constituição de Weimar.
(continua)
Este e outros textos em:
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