1) O documento descreve a vida e obra do poeta português Manuel Maria Barbosa du Bocage, desde seu nascimento em 1765 até o século XXI.
2) Inclui detalhes sobre sua família, serviço militar em Setúbal, carreira literária e prisões políticas.
3) Também apresenta perspectivas e retratos de Bocage por diferentes artistas ao longo dos séculos.
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Bocage 250 anos, de 1765 ao séc xxi (3)
1. BOCAGE:
250 anos, de 1765 ao século XXI
António Mateus Vilhena
João Reis Ribeiro
Maio.2015
2. Com afecto,
a quem nos ouve,
esperando que dêem este tempo
por bem utilizado…
3. «Ironia de um destino infeliz que se prolongou para além da
morte, Bocage é hoje ainda para o rural analfabeto da mais remota
aldeia, para o garoto precoce das ruas, para a regateira dos mercados
de Lisboa, apenas um grande farçola, descarado e vadio, que dava
respostas a tempo e tratava as coisas pelo nome.
Se Bocage soubesse que o seu nome assina hoje tanta piada
insulsa e ordinária, riria talvez – ele que em tantas vezes soube rir de
si mesmo – […] com aquele riso de imortalidade que já antevia, ao
sentir-se resvalar na decadência do fim.»
Esther de Lemos [n. 1929]
4. Magro, de olhos azuis,
carão moreno...
Júlio Pomar, 1983
Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão n’altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio e não pequeno;
Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno;
Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades;
[Inimigo de hipócritas e frades; ]
Eis Bocage, em quem luz algum talento:
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.
[Num dia em que se achou cagando ao vento.]
in Bocage, Rimas, 3º vol, 1804 // [ed. Inocêncio F. da Silva, 1854]
5. Magro, de olhos azuis, carão moreno…
Henrique José da Silva (1805); Legrand (1841); O
Panorama (1846, nº 13); Pedro Reis (1871); Fernando
Santos (Bocage e as Musas, 1929); Luciano dos Santos
(Tríptico, 1957); Selos CTT (1965); Selo CTT (2015);
Júlio Pomar (1983)
7. Em 15 de
Setembro
de 1765,
nesta casa,
na Rua de
S.Domingos,
terá nascido
Manuel Maria
Barbosa du
Bocage…
Archivo Pittoresco, 1860, nº 46
8. A casa em que
terá nascido Bocage,
na Rua Edmond Bartissol…
1862 – Obras na casa, com armas
de bispo
1864 (Janeiro) – “Voz do
Progresso” apelou à colocação
de uma lápide
1864 (Abril) – Colocação da
lápide
1886 (Maio) – “Gazeta
Setubalense” anunciou a
venda da casa
1887 (Abril) – “Semana
Setubalense” noticiou a
compra por Bartissol
1887 (Agosto) – Bartissol
ofereceu a casa à Câmara para
ser “biblioteca municipal ou
museu bocagiano”
10. Setúbal em 1741
Juan Alvarez de Colmenar, Annales d’Espagne et de Portugal, 1741
11. Janet Schaw [1731-1801]
escocesa, viajante, 44 anos
– Visitou Setúbal em 1775 –
“O céu estava limpo e sereno – mais de 50 navios
ancorados e mais de uma centena de barcos na pesca
da sardinha – e ouvia-se cantar. A povoação estava
toda à vista, com muitos moinhos de vento a
trabalhar lá no alto, o que dava um lindo efeito. A
costa é muito escarpada e os montes e terras altas
cobertos de trigo ou pastagens, pareciam tão frescos
que deliciavam os sentidos.”
Vila “quase completamente arruinada, em grande parte devido ao
pavoroso terramoto, e em parte devido aos efeitos ainda mais
horrorosos do despotismo.”
Há a “superstição grosseira, onde a religião é o mesmo que o chicote
para os escravos e cada indivíduo tem um tribunal da Inquisição dentro
de si.”
* in Journal of a Lady of Quality, Being the Narrative of a Journey from Scotland to the West Indies, North Caroline and Portugal in the Years 1774 to 1776 (1921)
12. Setúbal vista por
Teotónio Banha [1785-1853]
1816
“Perspectiva da Vila de Setúbal vista da Casa do Trapixe, no sítio de Tróia”
13. As quatro paróquias de
Setúbal em 1758
Anunciada
800 fogos – 3223 adultos – 83 crianças
São Julião
690 fogos – 3167 habitantes
Sta. Maria
228 fogos – 718 habitantes
S. Sebastião
1148 fogos – 4458 adultos – 200 crianças
TOTAIS: 2866 fogos – 11849 habitantes
Fonte: Memórias Paroquiais de 1758
14. São Sebastião
Habitantes – 39,3%
Fortemente abalada pelo terramoto, especialmente a igreja
Produtos: sal (500 marinhas entre Setúbal e Alcácer) e peixe (“o mais
saboroso pescado de toda a Europa”)
[1751 – nasceu Tomás Santos e Silva]
[1765 – nasceu Manuel Maria Barbosa du Bocage]
Algumas famílias importantes, como os Cabedos, e segundas residências
de fidalgos, pelos “grandes gastos da Corte”
“Toda esta vila está situada em campina ao longo da praia, menos esta
freguesia de São Sebastião, que está situada em um monte com
escoante das águas e lavada dos ares, sendo, por isso, a mais sadia da
terra.”
Fonte: P. Manuel Pereira de Carvalho, Memórias Paroquiais de 1758
JRR,19Abr2005
15. Contemporâneos
setubalenses de Bocage
Santos e Silva (1751-1816, por F.T.Almeida, 1815)
Morgado de Setúbal (1752-1809, por Luciano dos Santos, 1957)
Luísa Todi (1753-1833, por Louise Vigée-Lebrun, 1785)
Teotónio Banha (1785-1853, M.J. Sendim, 1832)
17. A entrada de Bocage para o mundo da aventura futura – de
partidas e chegadas, de conhecimento de mundos novos e de
intrigas, de amores e desamores, de prisões e contestações, de
escrita e boémia – passou pelo gesto voluntário de assentar
praça em Setúbal. Estávamos em 1781…
JRR, 15Abr2005
JRR, 15Abr2005
JRR,15Abr2005
18. “Regimento de Infantaria de Setúbal – Em Setembro do ano de 1781 assentou
praça voluntariamente nesta Unidade com a idade de 16 anos Manuel Maria
Barbosa du Bocage – Viria a ser um dos maiores poetas portugueses – 22-9-1980”
JRR, 15Abr2005
19. Assento no Livro de Registo do
Regimento de Infantaria de Setúbal
20. Assento no Livro de Registo do
Regimento de Infantaria de
Setúbal
Nº: 84 – 6ª Companhia
Nome: Manoel Maria Barbosa de Bocaje
Idade: 16
Altura: 5 pés e 4 polegadas
Serviço: Praça a 22 de Setembro de 1781
Cabelos: castanhos
Olhos: pardos
Nascimento: Setúbal
21. Assento no Livro de Registo do
Regimento de Infantaria de
Setúbal
Juramento: 22 de Setembro de 1781
Casualidades: Passagem a Goarda
Marinha Sº te 8 por Despº de 5 de
Setembro de 1783
22. Assento no Livro de Registo do
Regimento de Infantaria de
Setúbal
Registo dos Licenciados
Do 1º te 15 de Agosto de 1782
De 26 de Junho te 15 de Julho de 1783
De 16 te 31 de Julho de 1783
21 de Agosto te 15 de Setembro de 1783
23. Adeus, meu pátrio Sado...
Eu me ausento de ti, meu pátrio Sado,
Mansa corrente, deleitosa, amena,
Em cuja praia o nome de Filena
Mil vezes tenho escrito e mil beijado.
Nunca mais me verás entre o meu gado
Soprando a namorada e branda avena,
A cujo som descias mais serena,
Mais vagarosa para o mar salgado.
Devo, enfim, manejar por lei da Sorte
Cajados não, mortíferos alfanges
Nos campos do colérico Mavorte;
E talvez entre impávidas falanges
Testemunhas farei da minha morte
Remotas margens, que humedece o Ganges. JRR, 26Set2004
24. Camões, grande Camões… e o Fado
1783 – Está na Academia dos Guardas-Marinhas. Vive em Lisboa, na Rua do Loreto.
1786 – Embarca para o Oriente, passando por Rio de Janeiro e Moçambique, até chegar a Goa.
1789 – Revolução Francesa. Desertor. Viaja na China e em Macau
1790 – Regresso a Lisboa. Entrada na “Nova Arcádia” (até 1793).
1791 – Publicação de “Rimas” (1º vol).
1797 – Primeira detenção (Limoeiro e cárceres do Santo Ofício). Inicia traduções.
«Lisboa, 7 de Outubro de 1971 – Visita melancólica ao Aljube, a recordar horas más do
passado, continuada no Limoeiro por intenção de Bocage, que a 10 de Agosto de 1797, como
consta dum velho livro de assentos guardado na cave, deu entrada naquela casa. Afonso Lopes
Vieira, em maus versos, que cito de cor, diz que «Os poetas portugueses que não passam pelas
prisões / não são dignos descendentes de Camões». Assim é, de facto. Todos os que nesta terra
empunham uma lira e se louvam no grande mestre, já que não podem acompanhá-lo nos
arroubos do génio, seguem-lhe ao menos as passadas rebeldes. Assim lhe são fiéis. E que outra
solução resta aos dirigentes dum país de conformados, senão meter na cadeia os raros
inconformados que nele erguem a voz? Mas há uma coisa de que os governantes ainda se não
lembraram, por ignorância, evidentemente: de lhes tirar, com a liberdade, a paisagem que se vê
através das grades portuguesas. A que Bocage teve diante dos olhos é tão deslumbradora que
até eu me senti roubado. Que faria Pina Manique, se soubesse que ela era assim…»
Miguel Torga [1907-1993], Diário – XI (1973)
25. «Convenhamos [...] que não é caso de somenos ir eu a descer a Travessa de André Valente e
dar de rosto, quase ao virar a esquina, com o poeta Manuel Maria, mais conhecido por Bocage.
São encontros que só podem ter-se madrugada alta, quando já ninguém anda pelas ruas ou só
andam os predestinados a encontros tais. E não se pense que eu ia – como dizer? – bebido.
De madrugada estou sempre lúcido, mesmo que os olhos se me fechem de sono e de fadiga.
Ouço os meus passos e a minha respiração – e estou vivo, angustiadamente vivo, por obra e
graça do silêncio e da descoberta de estar só, e outra vez só, até já não poder aguentar mais e
procurar ao menos o reflexo de um vidro, uma presença visível, embora inexistente.
Não sei se o Bocage era ali inexistente. Visível, sim. Dava-lhe na cara a luz de um candeeiro:
magro, de olhos azuis. Reconheci-o logo. Olhou para mim, muito sério, mirou-me de alto a
baixo e sorriu. Como quem não acredita no que vê ou sorri de si mesmo. Ainda agora não sei
se ele estava lúcido – ou bêbedo. Deu-me as boas-noites e as palavras soaram-me como se
tivessem sido ditas por um estrangeiro, como se viessem de país sotoposto a este no tempo.
Respondi, e ele lá me entendeu. Afinal, falávamos a mesma língua. (…)»
José Saramago. Deste mundo e do outro.
1798 – “Reeducação” no Convento de S. Bento. Liberdade em Abril.
1799 – Publicação de “Rimas” (2º vol)
1802 – Vive na Tv. André Valente, em Lisboa.
26. 1805 – Já Bocage não sou…
… e, em Lisboa, em 21 de Dezembro, o frio invadiu a casa da Tv. André Valente…
JRR,Abr2005
1804 – Grandes dificuldades financeiras. Publicação de “Rimas” (3º vol)
1805 – Morte da sobrinha, com 5 anos. Reconcilia-se com os adversários.
Poesias Selectas de Manuel Maria Barbosa du Bocage, J. S. da Silva Ferraz (1864)
27. Ler Bocage
1812 – “Obras Poéticas”, por Desidério Marques Leão
1813 – “Verdadeiras Poesias Inéditas de M. M. B. Bocage”, por Nuno Álvares Pato Moniz
1853 – “Obras Completas”, por Inocêncio Francisco da Silva
1854 – “Poesias Eróticas, Satíricas e Burlescas”, por Inocêncio Francisco da Silva
1875 – “Obras Completas”, por Teófilo Braga
1968-1973 – “Opera Omnia” bocagiana, por Hernâni Cidade
2004-? – “Obra Completa”, por Daniel Pires [5 vols. até 2015]
28. 1871 – A memória em Setúbal
(estátua de Bocage)
O poeta morrera,
Trouxera a pena e instalara-se.
Deram-lhe uma pedra fria como morada,
Um pedaço de mármore para guardar as palavras.
Derretiam-nas o sol.
A praça ficara, de repente, animada.
Os pombos esvoaçavam livremente,
Apenas a liberdade voava com eles.
No pedestal da vida, a morte aprisionou-o:
Bocage está preso.
A liberdade anda nas asas dos pombos…
Soltem o poeta…
Nídia Jerónimo Martins [n. 1956], inédito
29. 1905 e 2005 – A memória em Setúbal
(100 e 200 anos da morte de Bocage)
JRR, 13Mar2005
JRR, 13Mar2005
JRR,18Mar2005
Setúbal,TAS,Nov2005
Mendes Estafeta, ed., s/d
31. «Bocage, outro Messias literário, ofusca, dispersa, quase aniquila toda a
sinagoga arcádica. Forte igualmente com os idiomas da antiga e moderna
Itália, e com o francês, de que sabe não colher senão o necessário, o útil e o
bom, abelha delicada entre insectos impuros, que só venenos lhe sugavam dá a
ouvir pela primeira vez aos ecos multiplicados e atónitos um falar altíquo e
terso, claro e elegante, cheio e harmonioso como nenhum, em poesia, ainda por
cá se ouvira, nem se tornou a ouvir.»
António Feliciano de Castilho [1800-1875]
«[...] Resgatou-se Bocage refugiando-se a só na dor da saudade ou nos raptos
religiosos, que os tinha ardentíssimos como todos os infelizes.»
Camilo Castelo Branco [1825-1890]
«Este, quase desde a infância poeta, apareceu no mundo em toda a
efervescência dos primeiros anos, ardente cantor das paixões, entusiasta,
agitado do seu próprio natural violento, rápido, insofrido, sem cabal instrução
para poeta, com todo o talento (raro, espantoso talento!) para improvisador.
(…)
Dos sonetos há grande cópia que não tem igual nem em português, nem em
língua nenhuma, duma força, duma valentia, duma perfeição admirável.»
Almeida Garrett [1799-1854], Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa, 1826
32. «Da transformação literária, representada por um rompimento definido com as
tradições literárias portuguesas, pode-se considerar ponto de partida Antero de
Quental e a Escola de Coimbra, embora necessariamente precedida de
prenúncios e tentativas de tal modificação remontando até 1770, ao esquecido
José Anastácio da Cunha (poeta superior ao exageradamente apreciado e
insuportável Bocage)».
Fernando Pessoa [1888-1935], Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias
«O maior drama de Bocage, o mais pungente, foi o de ter vivido em tempo que
lhe não convinha. Poeta grande, de vocação autêntica e precoce, viu-se forçado
a arrastar o seu destino através de uma época de poesia medíocre. Nascido 30
ou 40 anos depois, não é difícil imaginar o espaço que lhe caberia no espaço do
Romantismo.»
David Mourão-Ferreira [1927-1996]
«Mais do que em qualquer outro dos escritores portugueses seus
contemporâneos, teve repercussão em Bocage, o agravamento profundo
naquele momento histórico vivido em todas as nações da nossa cultura, do
conflito permanente entre a ordem e a liberdade.»
Hernâni Cidade [1887-1975]
«O poeta consumiu-se na busca incessante de uma felicidade impossível, ora
inventando mulheres quiméricas, ora evadindo-se pela volúpia dos
sentimentos. A morte horroriza-o e ao mesmo tempo exerce nele uma poderosa
sedução: ela é o esquecimento e a paz.»
Jacinto do Prado Coelho [1920-1984]
34. Sebastião da Gama (1924-1952) – I
SÚPLICA
Quem me dera – ai, quem me dera! –
ter o estro de Bocage
p’ra esta paixão sincera,
em verso, cantar e a laje
do teu coração quebrar
cessando, assim, meu penar.
Moça gentil, como és, não acredito qu’exista
em Portugal, lés a lés.
Tu me ofuscaste a vista
c’o’a beleza irradiante
que posssuis, loira galante.
Já que desdém te mereço
apenas, oh amor meu,
ajoelhado te peço:
Deixa-me, ao menos, que eu
te possa ver, e amar
como a santa num altar.
inédito, Lisboa, 10 – IV – 1940
35. Sebastião da Gama (1924-1952) – II
15 Set 1950 – Lugar de Bocage na Nossa Poesia de Amor, CMSetúbal – apresentada
também em Estremoz (Abr 1951) e em Vila Viçosa (Jun 1951)
A ideia do Amor em Bocage:
• “resultante de um conhecimento directo, uma lição aprendida fora dos livros”
• “o Amor foi-lhe uma coisa deleitosa, um risonho prazer. Eis o que o opõe a
Camões: o contentamento de amar”
• “O desejo percorre a sua poesia toda, sequioso mas terno. (…) Era a paixão em
carne viva; nenhum romântico foi tão romântico; assim, é poderosamente que se
assenhoreia dele o Ciúme; enche-lhe o Ciúme a boca de injúrias”
• “Poesia feita de impulsos, de momentos, de estados de alma; não há pose na
poesia de Bocage: aquilo que ali está é aquilo que foi. (…) Bocage diz de frente o
que tem a dizer. (…) Seria um amante como Bocage o que encontraríamos, a
descermos à essência de cada um.”
36. Alexandre O’Neill (1924-1986)
“Auto-Retrato”
O’Neill (Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada…)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O’Neill!)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras mil
que são a semovente estátua do prazer.
Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse…
in Poemas com Endereço, 1962
37. Ary dos Santos (1937-1984)
“Ao meu falecido irmão Manuel Maria Barbosa du Bocage”
Meu sacana de versos! Meu vadio,
Fazes falta ao Rossio. Falta ao Nicola.
Lisboa é uma sarjeta. É um vazio.
E é raro o poeta que entre nós faz escola.
Mastigam ruminando o desafio.
São uns merdosos que nos pedem esmola.
Aos vinte anos cheiram a bafio,
têm joanetes culturais na tola.
Que diria Camões, nosso padrinho,
ou o Primo Fernando que acarinho
como Pessoa viva à cabeceira?
O que me vale é que não estou sozinho,
ainda se encontram alguns pés de linho
crescendo não sei como na estrumeira!
in VIII Sonetos, 1984
38. Manuel Ângelo Ochoa (n. 1944)
Olhos castanhos, gordo, agreste cara;
meio duro dos pés; alta postura;
aspeito incerto, ou de alegria ou de tristura;
nariz dobrado a meio, feroz, torto;
ânimo vário, mais brando agora;
co’a idade inclinado a mover-se do coração ferido;
p’los cafés matando os dias;
a sorrisos gentis, não insensível, digo, a cândidas musas;
p’lo confesso tolerando padres:
Eis Ochôa: Luas asas lhe deram desta a devaneio.
in EnconVoscoAve – É Bonito o Amor (2014)
39. «Bocage continua vivo entre nós; e o seu sonho de imortalidade, que a
nomeada grosseira caricaturou, realiza-se, afinal, na emoção com que
escutamos ainda a sua voz ardente.»
Esther de Lemos [n. 1929], in Bocage – Gigantes da Literatura Universal, 1972
«Bocage [define-se] como poeta, na medida em que, servido por uma
técnica excepcional, espontânea e fácil, se nos transmite, sem artifícios
retóricos ou exageros emocionais, tal qual é. Esse modo directo de dar-
se, vestido apenas pelo figurino do tempo, que ele consegue fazer
esquecer de tal maneira o supera, será porventura o sinal do seu drama
mais íntimo: Bocage foi um mendigo da ternura. (…)
Ler os versos de Bocage (…) é sofrer a dolorosa vivência de um irmão
que, servido por linguagem que não é a nossa, não pôde todavia
esconder a sua humaníssima condição.»
Rogério Peres Claro [n. 1921], in Versos de Bocage – Antologia, 1965
«Em Portugal, a arte de fazer versos chegou ao apogeu com Bocage e
depois dele decaiu. Da sua geração, e das que a precederam, foi ele o
máximo cinzelador da métrica. [..] Depois dele, Portugal teve talvez
poetas mais fortes, de surto mais alto, de mais fecunda imaginação. Mas
nenhum o excedeu nem o igualou no brilho da expressão.»
Olavo Bilac [1865-1918], in Bocage, 1917