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FAUSTO & MEFISTÓFELES



           O nome é proveniente do Latim, “feliz”, sendo utilizado como epíteto. Sua divulgação
se deve certamente à popularidade de Fausto, herói de numerosas obras literárias e
artísticas, salientando-se dentre elas a de Goethe. A raiz do nome é “fau”, que nos deu favor
(favor), favorável (faustus), o que favorece, o que protege (fautor). Fausto é, pois, o ditoso, o
venturoso, o próspero. O verbo latino é “faveo, es, favi, fautum, favere”, favorecer. A palavra
pode tomar também o sentido de orgulho, soberba.

           Para muitos, Fausto foi um personagem historicamente determinado: um mágico que
teria vivido no século XVI. A mais antiga referência que temos sobre ele talvez seja a de
Trithemius (1462-1516), mago alemão, que escreveu livros sobre Geomancia, Alquimia e
Feitiçaria. Neste último, ele faz referências à história de um tal de dr. Faustus. Na notícia que
nos dá, Trithemius o menciona numa carta de 1507, na qual o descreve com desprezo, como
um tolo, um charlatão.

          Outro que o menciona também como charlatão é Mudt, um cônego da igreja alemã
da época. Johann Gast, um pastor protestante da Basiléia, do séc. XVI, deixa uma nota que
nos permite supor que teria conhecido o dr. Fausto. Algumas outras citações nos fixam a
imagem do dr. Fausto como um mágico que perambulava pelas cidades da Alemanha, sendo
também apontado como um astrólogo e um necromante, isto é, um adivinho que prediz o
futuro evocando os mortos, um profissional da necromancia (nekromanteia), arte que teria
aprendido na Cracóvia (sul da Polônia) e que lhe dera um certo renome. Aos poucos, a fama
do dr. Fausto foi se espalhando, acabando sua figura por se tornar um dos modelos do
mágico medieval, podendo ser ligado seu nome desde então a personalidades como Apuleio,
Vergílio, Roger Bacon, o papa Silvestre II, Paracelso e outros.

         Fausto se assemelha a Lucius Apuleius Theseus (125-170), escritor latino que
“esperando encontrar o segredo das coisas, abandonou-se a todos os demônios da
curiosidade até os confins do sacrilégio’. Ele nos conta a sua história num texto,
“Metamorfoses”, também chamado de “O Asno de Ouro”. Quando pretendeu o personagem
do romance, também chamado Lucius, obter de uma feiticeira os seus conhecimentos
secretos, foi transformado num asno. A forma humana só lhe seria devolvida se ele comesse
as rosas que alguém estivesse levando para participar dos chamados Mistérios de Isis. Se
assim fizesse, Lucius obteria até a velhice uma vida isenta de problema e, depois, na
ocorrência da morte, uma feliz estada nos Campos Elíseos.

          A figura de Vergílio (Publius Vergilius Maro – 70 aC-19 dC)) é extremamente
interessante quando a deslocamos da Literatura, onde a maioria só a vê, para o mundo da
magia e da feitiçaria na Itália medieval. Embora a fama de Vergílio como poeta tenha
praticamente apagado a sua fama de feiticeiro, sabemos que ele, na Idade Média, era muito
mais conhecido como feiticeiro do que como poeta. Sua fama como necromante espalhou-se
a partir do sul da Itália, principalmente do séc.X em diante. Inicialmente, Vergílio ligou-se
filosoficamente ao epicurismo; aos poucos, porém, foi aderindo a uma espécie de platonismo
místico através do qual aceitou e defendeu a sobrevivência da alma depois da morte do
corpo. É no seu fantástico poema “A Eneida” que esta tese se explicita.

         Quanto a Roger Bacon (1.214-1.294), teólogo franciscano, filósofo, cientista e
alquimista inglês, chamado de “Doctor Admirabilis”, foi ele uma das mais espantosas figuras
da história do pensamento e da ciência. Suas descobertas, suas especulações e suas
prefigurações mentais fazem dele o modelo do mago medieval. Já o papa Silvestre II, falecido
em 1003, sempre foi considerado um feiticeiro. Além de vários episódios de sua vida ligados à
feitiçaria, famosa é a história do seu pacto com o Diabo para obter o papado. Paracelso
(Aurelius Philippus Theophrastus Paracelsus Bombastus von Hohenheim – 1493-1541) é uma
das figuras com quem Fausto parece ter maior semelhança. Alquimista, físico, médico,
expoente da filosofia hermética, Paracelso sempre esteve à margem de tudo o que era
ortodoxia científica no seu tempo. Sua vida nômade, antes de se fixar na Basiléia, acusa
passagens, algumas julgadas impossíveis, como a que teria feito pelo mundo dos tártaros,
pelo interior do Egito, da Arábia e da Índia, onde mantivera contactos com xamãs, feiticeiros e
mágicos.

          Muitos comparam também Fausto a Lúcifer. “Mestre do dois”, símbolo do intelecto
revoltado, senhor da divisão, da separação, Lúcifer foi muitas vezes considerado como o guia
da humanidade, o pai da consciência humana que, para existir, tem, por sua própria natureza,
a necessidade de criar uma fenda, um fosso, entre ela e as coisas que aparecem. É neste
sentido que nos ocorre a frase de Hegel: “toda consciência é uma consciência infeliz”. A
consciência humana não pode existir sem a interferência do Diabo (etimologicamente, o que
divide, o que separa). Tomar consciência será sempre, pois, separar-se.

         A função de Lúcifer é a de privar o ser humano da graça divina para submetê-lo ao
seu poder e dominação. Assim, é este anjo caído que vai representar as forças da
desintegração da personalidade do ser humano. Numericamente, tudo isto é representado
pelo número dois, número feminino por excelência, símbolo da ambivalência, do conflito, do
antagonismo, que de latente se tornou manifesto no mundo moderno através das várias
formas que o ódio pode tomar. Como número de todos os desdobramentos, o dois é o
número através do qual caímos na multiplicidade, na dispersão, ou seja, no diabólico.

         As origens do dr. Fausto nos remetem, contudo, a um passado muito mais remoto:
ao tempo de um pacto que poderia ter sido estabelecido entre o ser humano e Satã (em
hebraico, o que arma ciladas), com o objetivo da obtenção, pelo primeiro, de toda a ciência do
universo. Em troca, Satã se apossaria da sua alma. Este tema pertence a antigas tradições
judaicas (Cabala) e cristãs. Este tema também aparece nas primeiras tradições luteranas,
que dão cor a muitos episódios da crônica do dr. Fausto. O acabamento final da história é
feito do século XV para o XVI quando ela toma forma definitiva, com alguns traços
renascentistas.

          A Cabala (Tradições), como se sabe, é a tradição esotérica e mística do judaísmo já
aparecida na Antiguidade no “Livro de Henoch”. A Cabala seria, assim, com os textos que a
ela se associam, “O Livro da Claridade”, séc. XII, e o “Zohar”, início do séc.XIV, a versão
intelectual da mística judaica. Na doutrina sefirótica (emanação divina) da Cabala,
encontramos a idéia de que o homem terrestre é uma sombra do homem celestial. Fausto
seria, assim, uma ilustração da busca ascensional do homem terrestre para atingir o seu
modelo celeste. Uma busca incessante de conhecimento que não recuasse nem diante do
próprio Inferno.

          Já o luteranismo, como está em “O Livro da Concórdia” (1577), entra no Fausto com
as questões do pecado original e do livre-arbítrio, das quais o homem não pode se libertar
sem a fé e a graça. O luteranismo, é bom lembrar, foi implantado sobretudo na Alemanha do
norte e do centro, região do Fausto goethiano. No século XVII, o luteranismo vai receber a
contribuição pietista, propagada por Jakob Spener, doutrina que propõe a transformação dos
costumes através de princípios morais muito austeros.
Quanto ao componente renascentista da história, podemos caracterizá-lo como o
seu elemento de choque. A Renascença foi um vasto movimento cultural conhecido na
Europa ocidental no começo do séc.XV, marcado, no seus aspectos mais visíveis e talvez
mais superficiais, por uma vontade de fazer “renascer” os valores da Antiguidade na
civilização européia. No fundo, porém, o que se propunha não era só uma nova estética mas
um novo sistema de valores. O mais importante agora era a glorificação do homem através
da valorização da sua razão, num mundo cada vez mais sensível aos aspectos quantitativos
da matéria, pelo aparecimento de técnicas novas, segundo um pensamento experimental e
científico.

         Sob um outro ângulo, não há como não deixar de se ver também em Fausto a
desconfiança do “homem do povo” diante do “homem novo” nessa fase de transição do
mundo medieval para o renascentista. Para o “homem do povo”, preso ainda às antigas
tradições medievais, o novo tipo ficava muitas vezes entre um letrado e um charlatão já que
costumava carregar livros escritos em línguas incompreensíveis sem ser um homem da Igreja
e, o que era pior, procurava levar uma vida confortável sem ser nobre, não realizando
também, por outro lado, nenhum trabalho manual. A explicação mais óbvia que o homem
comum encontrava para tudo isto era que só com o auxílio do Diabo, mediante algum
pagamento (a entrega da alma), poderia esse “homem novo” conhecer tudo o que sabia ou
que alardeava conhecer.

          Outra aproximação possível é a que podemos fazer entre a figura de Fausto e o mito
de Prometeu. O titã grego, cujo nome significa “aquele que sabe antes”, simboliza
efetivamente a afirmação do conhecimento humano diante do divino. Ao modelar os novos
seres a partir da argila e ao lhes fornecer o fogo, até então um segredo dos deuses,
insuflando-lhes com isso não só uma alma mas uma inteligência criadora, Prometeu
proporcionou-lhes condições para que tentassem, como eles o vêm fazendo, a conquista da
criação, destronando os deuses. No mito de Prometeu, a “entrega da alma ao Diabo” fica
implícita na importância dada ao intelecto humano, sempre diabólico na perspectiva divina, já
que é com ele, como a história no-lo demonstra, que os humanos vêm teimosamente se
recusando a aceitar o seu destino, a sua posição na criação.

           Mais: não só se recusando a aceitar o seu destino mas tentando obstinadamente
assumir o controle de toda a criação. É por essa razão que muitos escritores desde Ésquilo,
(Voltaire, Schlegel, Shelley, Herder, Byron, André Gide), que muitos artistas (Ticiano, Rubens,
Böcklin) e que compositores (Beethoven, Liszt, Orff) se voltaram para o tema do filho de
Jápeto, ressaltando sempre o que acima apontamos. O tema faustiano tem fortes ligações
com o mito prometeico, sem dúvida. Aliás, é de se ressaltar, quanto a este aspecto, a
profunda influência que um filósofo e escritor “prometeico” como Johann Gottfried Herder
exerceu sobre o jovem Goethe.

          É de se lembrar ainda, na perspectiva bíblica, que os frutos da árvore da ciência,
que Adão ingere, por sugestão de Eva, irão causar a expulsão do casal do Paraíso, isto é, a
queda. Adão podia tudo no Paraíso terrestre, vivendo num estado de graça sobrenatural.
Faltava-lhe, contudo, algo, o direito de tocar na árvore do conhecimento do bem e do mal. A
inobservância quanto a esta proibição trouxe a perdição do gênero humano. A ciência é
demoníaca, não pode ser aqui outra a conclusão...

          Foi Christopher Marlowe (1564-1593), na Inglaterra, o primeiro escritor a dar uma
forma literária à história de Fausto (A História Trágica do dr. Faustus). Marlowe, desde cedo,
afirmou seu pensamento rebelde com relação às crenças religiosas e favorável quanto às
especulações científicas. Sua obra desenvolve uma apologia da revolta individual e, ao
mesmo tempo, nos fala do caráter trágico que ela pode tomar, em meio à temática do
sobrenatural e das leis morais herdadas da Idade Média.

          As origens históricas de Fausto, como ele nos aparece no séc. XVI, estão, contudo,
nos registros encontrados na Alemanha, nas primeiras décadas do século, nos quais se fala
da existência de um mágico errante chamado Georgius Faust ou dr. Faust, como era também
conhecido. Teria nascido provavelmente em 1480, em Knittlingen (Württenberg) e falecido por
volta de 1540. As referências encontradas sobre ele vão desde depoimentos de adversários a
elogios de clientes satisfeitos; desde testemunhos neutros a acusações do clero protestante.

          Uma das informações mais desabonadoras sobre o dr. Fausto nos é passada por
Johannes Tritthein, acima referido, erudito beneditino, em 1507, numa carta que escreve a
Virdung, matemático e astrólogo, que ensinava na Universidade de Heidelberg. Sabe-se que
o dr. Fausto se declarava um profissional da necromancia, capaz de ver o futuro por meio de
comunicação com o espírito dos mortos, e também astrólogo, isto é, alguém que sabia
interpretar a influência das energias planetárias nas vidas e nas questões humanas.

         Sabe-se também que o dr. Fausto se apresentava, com um discurso não muito claro,
como representante de uma tradição herética, fato que o punha em conflito com o
conhecimento acadêmico do tempo. O dr. Fausto se denominava como “o Fausto mais
jovem”, fazendo supor com essa afirmação que haveria um outro mago, um senior, seu
antecessor, e talvez um outro mais velho ainda... Admitia-se que o conhecimento dessa
linhagem de sábios constituiria aquilo a que se deu o nome de “prisca theologia”, a mais
autêntica sabedoria dos antigos, anterior à tradição cristã, que a havia condenado e proibido.

          Esta sabedoria, considerada demoníaca, havia sido restaurada em grande parte pelo
padre Marsilio Ficino, helenista, filósofo e humanista italiano, chefe da escola platônica de
Florença, que contava entre seus discípulos e correspondentes figuras como Margarida de
Navarra, Paracelso, John Colet e Lourenço de Médici, o Magnífico, seu protetor. Ficino
traduziu não só os diálogos de Platão como uma boa parte do “Corpus Hermeticum”, as obras
dos neoplatônicos e do Pseudo-Denis. Ficino e seus seguidores lançaram a tese de que o
“Corpus Hermeticum” seria a fonte mais antiga desse conhecimento não contaminado pelo
cristianismo. Pico della Mirandola ampliaria essa tradição, tornando-a mais herética, ao propor
que se estabelecesse uma relação entre ela e o cristianismo. Esse grande erudito italiano do
séc. XV procurou analisar a Bíblia e interpretar o cristianismo à luz da Cabala. Escreveu 900
teses sobre o tema, motivo de sua condenação pela cúria romana e da declaração pública de
sua heresia.
          Alguns pesquisadores entendem que, ao se considerar como um segundo Fausto,
esse de que tratamos, do séc. XV, estaria se referindo a um tal de são Fausto, do século V,
muito atacado por Santo Agostinho por sua ligação com a heresia maniquéia. Já outros,
melhor embasados, apontam para a figura de Simão, o mago, pertencente a uma seita
gnóstica no tempo dos apóstolos. A ligação da figura de Fausto à de Simão (o Fausto mais
antigo) parece ser aquela que melhor a explica, “segundo as palavras do próprio dr. Fausto”.

          Simão é um feiticeiro mencionado no Novo Testamento (Atos). Nascido em Chipre,
vivia na Samaria. Ao observar o trabalho dos apóstolos Pedro e João, que, tendo recebido o
Espírito Santo, faziam a imposição de suas mãos para a cura de doentes, Simão lhes
ofereceu dinheiro para que eles lhe passassem o poder. Condenado por Pedro, o episódio
deu origem àquilo que é conhecido como simonia, pecado que tanto nos fala da negociação
de títulos eclesiásticos como do abuso da graça divina em proveito pessoal.
Esse conflito entre os apóstolos e Simão explica, sem dúvida, a figura de Fausto na
medida em que ilustra o conflito histórico entre a religião oficial e a magia. O que a história de
Simão discute é que a Igreja Católica chamou a si o controle absoluto das ligações entre o
mundo real e o “outro lado”, o mundo invisível. O poder de fazer milagres é o poder que o dr.
Fausto vai reivindicar no século XVI.

          A História registra que Simão aprendeu a arte da magia com um personagem
chamado Dositheus, contemporâneo de Cristo, que se proclamava como o Messias
anunciado pelos profetas. Repelido pelos apóstolos, Simão, sedento de poder e glória, teria
se posto a viajar, fazendo discursos às multidões. Em Roma, teria ele se apresentado a Nero,
o imperador, a quem encenou com êxito a sua própria ressurreição, pondo assim em risco o
futuro do cristianismo. Quando Simão, na sequência de sua exibição para o imperador, pulou
de uma torre especialmente construída no campo de Marte, em Roma, e começou a se elevar
nos ares (O Ato dos Santos Apóstolos), Pedro, o apóstolo, também presente, diante do risco
que o futuro do cristianismo corria devido ao apoio que Simão recebia das forças do mal,
invocou os seus poderes, ordenou que tais forças deixassem de apoiá-lo. Tal aconteceu,
“sendo largado, ele caiu em um lugar chamado Via Sacra, e, partido em quatro pedaços,
morreu por obra do demônio” (O Ato dos Apóstolos). Uma observação: não confundir este
Simão, heresiarca judeu-gnóstico da Samaria, com Simão Stilites, que, segundo dizem, viveu
trinta e sete anos no topo de uma coluna pregando o cristianismo, até a sua morte em 459
dC. Em 1959, o cineasta espanhol Luis Buñuel realizou, com o título de “Simão do Deserto”,
um filme sobre o Stilites.

         Segundo depoimentos do séc. XVI, Fausto proclamava haver dominado toda a
tradição greco-romana e adquirido o conhecimento de todos os livros. Registre-se mais,
segundo a lenda, que numa reunião com estudantes ele fez uma descrição completa de todos
os personagens da guerra de Tróia “como se dela tivesse participado”.

          A feitiçaria, a partir de 1560, começou a ser atacada indistintamente por luteranos,
calvinistas e católicos. Parece estar hoje suficientemente provado que foram os protestantes
(Lutero e Melanchton) os primeiros a relacionar Fausto com o Diabo. A morte de Fausto,
inclusive, por volta de 1540, era atribuída nos meios protestantes ao próprio Diabo. A principal
fonte da versão mais próxima do séc.XVI sobre o mito de Fausto apareceu em 1587, o
“Faustbuch”, de enorme sucesso na Alemanha, publicando-se logo inúmeras versões da
história.

         Goethe parece ter tomado conhecimento do mito faustiano em 1770, através de
Herder, quando fazia o curso de Direito em Estrasburgo. Seus projetos àquela altura incluíam
obras sobre figuras como Prometeu, Maomé, Júlio César e o Judeu Errante. A escolha voltou-
se para o Fausto porque o tema integrava-se não só à tradição alemã como porque sua
personalidade, ávida de conhecimentos, identificava-se de algum modo com ele.

         Goethe começa o seu poema dramático em 1773, dá-lhe continuidade em 1790,
sendo a primeira parte da obra publicada em 1806. O que se vê no Fausto de Goethe é a
sedução, por ele, da inocente Margarida, que ele abandonará. Margarida, como sabemos,
mata seu filho e é condenada à morte, mas seu arrependimento a salvará da danação.
Quanto a Fausto, entre Mefistófeles, que jurou reduzí-lo à animalidade, e Deus, que lhe
fornece meios de salvar-se através de suas próprias forças, aparece ele como um símbolo da
condição humana e de sua oscilação constante entre o bem e o mal.

       O Diabo, no Antigo Testamento, aparece com pouco destaque. Já no Novo
Testamento ele vai adquirir muita proeminência, especialmente em uma cena que certamente
antecipa o pacto de Fausto. É a cena em que o Demônio tenta Jesus Cristo, transportando-o
para um monte muito alto para mostrar-lhe todos os reinos do mundo. O Demônio promete
que dará a Cristo tudo o que lhe mostrava se, prostrado, ele o adorasse. Temos aqui, sem
dúvida, a gênese do tema faustiano. A presunção de que só a magia diabólica poderia tanto e
trazer a satisfação para todos os desejos, uma presunção que aparecerá como tentação
diabólica várias vezes na história do homem, ao longo dos milênios. A resposta de Cristo é
conhecida: “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a Ele servirás”.

          “O Segundo Fausto”, de 1832, ano da morte de Goethe, inacabado, apresenta
problemas fundamentais de moral e de metafísica. Introduzido no mundo da Grécia antiga,
tornando-se esposo de Helena de Tróia, Fausto nesta obra atinge uma serenidade idealizada.
         Mefistófeles, embora personagem do Fausto goethiano, já aparece na literatura
desde 1587 (O Livro Popular) e na obra de Marlowe (1588). Os elementos gregos dão o
sentido de “aquele que não é amante da luz” ao nome Mefistófeles, o que nos permite
aproximá-lo de Lúcifer, o “portador da luz”. Outra etimologia possível seria a de se ver dentro
de Mefistófeles a palavra grega “mephitis”, o que é nocivo à saúde, o que é tóxico, infecto.
Mefitismo, lembremos, em medicina, é enfermidade provocada pela exalação fétida de
matérias em decomposição. Pela vertente judaica, Mefistófeles seria uma combinação de
palavras hebraicas, “mephiz”, mentiroso, e “tofel”, destruidor.

           Gênio do mal, anjo caído, Mefistófeles transforma-se depois num demônio do
conhecimento, cuja aspiração é a de dominar o mundo para destruí-lo. É um demônio da
literatura medieval, assistente do dr. Fausto desde que ele entregou sua alma ao Diabo.
Mefistófeles é amargo e sarcástico; Goethe o transformou num símbolo metafísico. Sua
função, positivamente (?) no Fausto, é a de representar para a humanidade adormecida a
inquietação criadora. Em que pesem as etimologias de seu nome, Mefistófeles tem um lugar
importante quando pensamos na história do progresso humano, mesmo que negativamente.
Em última instância, Mefistófeles simbolizaria o desafio que a própria vida nos oferece, com
as suas contradições, os seus equívocos, as suas derrotas e as suas possibilidades de vitória.

          A lenda de Fausto foi muito enriquecida ao longo dos séculos, desde Marlowe,
merecendo a atenção de Lessing, Klinger, Lenau, Thomas Mann, Paul Valéry (Mon Faust) e
outros, inclusive de cineastas, de coreógrafos e de autores de ópera. Na música, Berlioz
(1846), Schumann (1853), Liszt (1854) e Gounod (1859) defenderão o tema. Na pintura,
Delacroix continua sendo o intérprete mais apaixonado do mito alemão. No cinema, Fausto
aparecerá, dentre outros, com Murnau (Goethe, 1926), Orson Welles (The March of Time,
1935), Claude Autant-Lara (Margueritte de la Nuit, 1955), René Clair (La Beauté du Diable,
1950), Fraz Seitz (Doktor Faustus, 1981), István Szabó (Mephisto, 1981) e Jan Svankmajer
(Faust, 1994).

          Goethe é, de certo modo, o responsável pelos traços que fixaram a imagem de
Fausto. Como Fausto, Goethe, ao longo de sua vida, tentou experimentar tudo. Divagações, a
cultura clássica, interesses múltiplos, a revolta, a política, seu grande interesse pela magia,
pela astrologia, pela ciência, seus amores, tudo vivido segundo uma certa postura “olímpica”,
que procurou passar para o mundo. No final, porém, um certo vazio, um gosto amargo na
boca, talvez angústia. Por isso, “aceitará” aquilo que Mefistófeles lhe oferece, julgando que
obterá alguma paz ou satisfação.

          Particularmente importante foi a astrologia na vida de Goethe, mas igualmente
negligenciada pelos que o estudaram ao longo dos últimos dois séculos. Seria ela, a
astrologia, a “ponte” entre Goethe e Fausto? Lembremos que no início de “Poesia e Verdade”
lá está, segundo as suas próprias palavras: “A 28 de agosto de 1749, mesmo ao bater do
meio-dia, vim eu ao mundo em Francoforte-do-Meno. A constelação era feliz; o Sol estava no
signo de Virgem e culminava nesse dia; Júpiter e Vênus olhavam-se amigáveis, Mercúrio sem
hostilidade; Saturno e Marte mostravam-se indiferentes; só a Lua, que há pouco fora cheia,
exercia a força da sua oposição, tanto mais que a sua hora planetária começara ao mesmo
tempo. Por isso ela se opôs ao meu nascimento, que não pôde dar-se até que essa hora não
passasse.” No poema “Sentimento Humano”, Goethe nos diz:

                             Vós, ó Deuses, grandes Deuses
                             No vasto céu lá em cima
                             Se vós nos désseis na terra
                             Mente firme, ânimo bom,
                             Oh! Como vos deixaríamos
                             O vasto céu lá em cima!

           No segundo Fausto, já no fim da vida, com quase 83 anos, Goethe se fixará em
Helena, padrão de beleza clássica, da mitologia grega. Uma tentativa, talvez, de se entregar a
prazeres mais “terrestres”, isto é, a mulher, idealizada na pessoa de Helena, símbolo do
eterno feminino. Se tivesse vivido um pouco mais não seria fora de propósito, acreditamos,
admitir que Goethe abandonaria seu lado prometeico a favor do epimeteico. Prometeu, o
filantropíssimo, como se sabe, por causa de sua revolta contra os deuses, foi punido. Já
Epimeteu, “o que sabe depois”, deixou os deuses de lado e se concentrou em Pandora, na
sua beleza, no seu esplendor, aceitando-a, não dando maior importância àquilo que o
machismo grego (e as religiões patriarcais também) sempre atribuiu a ela, a de ser a mulher a
responsável por todos os males que fazem a humanidade sofrer.

         Mas no Fausto, como no mito de Orfeu, esse “feminino” (chame-se ele Pandora,
Eurídice ou Helena) não será atingido, ele escapa de Goethe. Helena some, com o filho do
casal, Euforion, ser fantástico, símbolo da criação poética superior. Impulsivo e exuberante,
Euforion vôa, querendo ascender às alturas, como um Ícaro, mas seu corpo desaparecerá,
uma existência rutilante e fugaz. Apesar de ter tentado “viver” o seu lado epimeteico e não o
tendo conseguido, não lhe restou outra alternativa senão a de se voltar para Prometeu. As
últimas palavras de Geethe, já moribundo, sempre citadas, foram “Mais Luz...”

         No século XX, o tema faustiano ligar-se-á ao nacionalismo alemão, como símbolo de
uma proposta de dominação do mundo. É muito ilustrativo dessa visão o filme Mephisto
(1981), adaptação de um romance de Klaus Mann, dirigido por István Szabó, grande cineasta
húngaro, estrelado por Klaus Maria Brandauer, nome maior do cinema alemão. O filme nos
conta a história de Gustaf Gründgens, ator, que foi casado com Erika, irmã de Klaus, e que
aderiu ao nazismo para obter benefícios profissionais e materiais.

         Klaus Mann (1906-1949), escritor alemão, era filho de Thomas Mann, o grande
romancista. Homossexual, sempre teve uma relação muito difícil com o pai. Quando os
nazistas chegaram ao poder, com Hitler, em 1933, foi para a Suiça, indo depois para a França
(Cannes) onde se suicidou, ingerindo barbitúricos.
A Origem do Mito de Fausto e suas Comparações com Figuras Históricas e Míticas

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A Origem do Mito de Fausto e suas Comparações com Figuras Históricas e Míticas

  • 1. FAUSTO & MEFISTÓFELES O nome é proveniente do Latim, “feliz”, sendo utilizado como epíteto. Sua divulgação se deve certamente à popularidade de Fausto, herói de numerosas obras literárias e artísticas, salientando-se dentre elas a de Goethe. A raiz do nome é “fau”, que nos deu favor (favor), favorável (faustus), o que favorece, o que protege (fautor). Fausto é, pois, o ditoso, o venturoso, o próspero. O verbo latino é “faveo, es, favi, fautum, favere”, favorecer. A palavra pode tomar também o sentido de orgulho, soberba. Para muitos, Fausto foi um personagem historicamente determinado: um mágico que teria vivido no século XVI. A mais antiga referência que temos sobre ele talvez seja a de Trithemius (1462-1516), mago alemão, que escreveu livros sobre Geomancia, Alquimia e Feitiçaria. Neste último, ele faz referências à história de um tal de dr. Faustus. Na notícia que nos dá, Trithemius o menciona numa carta de 1507, na qual o descreve com desprezo, como um tolo, um charlatão. Outro que o menciona também como charlatão é Mudt, um cônego da igreja alemã da época. Johann Gast, um pastor protestante da Basiléia, do séc. XVI, deixa uma nota que nos permite supor que teria conhecido o dr. Fausto. Algumas outras citações nos fixam a imagem do dr. Fausto como um mágico que perambulava pelas cidades da Alemanha, sendo também apontado como um astrólogo e um necromante, isto é, um adivinho que prediz o futuro evocando os mortos, um profissional da necromancia (nekromanteia), arte que teria aprendido na Cracóvia (sul da Polônia) e que lhe dera um certo renome. Aos poucos, a fama do dr. Fausto foi se espalhando, acabando sua figura por se tornar um dos modelos do mágico medieval, podendo ser ligado seu nome desde então a personalidades como Apuleio, Vergílio, Roger Bacon, o papa Silvestre II, Paracelso e outros. Fausto se assemelha a Lucius Apuleius Theseus (125-170), escritor latino que “esperando encontrar o segredo das coisas, abandonou-se a todos os demônios da curiosidade até os confins do sacrilégio’. Ele nos conta a sua história num texto, “Metamorfoses”, também chamado de “O Asno de Ouro”. Quando pretendeu o personagem do romance, também chamado Lucius, obter de uma feiticeira os seus conhecimentos secretos, foi transformado num asno. A forma humana só lhe seria devolvida se ele comesse as rosas que alguém estivesse levando para participar dos chamados Mistérios de Isis. Se assim fizesse, Lucius obteria até a velhice uma vida isenta de problema e, depois, na ocorrência da morte, uma feliz estada nos Campos Elíseos. A figura de Vergílio (Publius Vergilius Maro – 70 aC-19 dC)) é extremamente interessante quando a deslocamos da Literatura, onde a maioria só a vê, para o mundo da magia e da feitiçaria na Itália medieval. Embora a fama de Vergílio como poeta tenha praticamente apagado a sua fama de feiticeiro, sabemos que ele, na Idade Média, era muito mais conhecido como feiticeiro do que como poeta. Sua fama como necromante espalhou-se a partir do sul da Itália, principalmente do séc.X em diante. Inicialmente, Vergílio ligou-se filosoficamente ao epicurismo; aos poucos, porém, foi aderindo a uma espécie de platonismo místico através do qual aceitou e defendeu a sobrevivência da alma depois da morte do corpo. É no seu fantástico poema “A Eneida” que esta tese se explicita. Quanto a Roger Bacon (1.214-1.294), teólogo franciscano, filósofo, cientista e alquimista inglês, chamado de “Doctor Admirabilis”, foi ele uma das mais espantosas figuras da história do pensamento e da ciência. Suas descobertas, suas especulações e suas
  • 2. prefigurações mentais fazem dele o modelo do mago medieval. Já o papa Silvestre II, falecido em 1003, sempre foi considerado um feiticeiro. Além de vários episódios de sua vida ligados à feitiçaria, famosa é a história do seu pacto com o Diabo para obter o papado. Paracelso (Aurelius Philippus Theophrastus Paracelsus Bombastus von Hohenheim – 1493-1541) é uma das figuras com quem Fausto parece ter maior semelhança. Alquimista, físico, médico, expoente da filosofia hermética, Paracelso sempre esteve à margem de tudo o que era ortodoxia científica no seu tempo. Sua vida nômade, antes de se fixar na Basiléia, acusa passagens, algumas julgadas impossíveis, como a que teria feito pelo mundo dos tártaros, pelo interior do Egito, da Arábia e da Índia, onde mantivera contactos com xamãs, feiticeiros e mágicos. Muitos comparam também Fausto a Lúcifer. “Mestre do dois”, símbolo do intelecto revoltado, senhor da divisão, da separação, Lúcifer foi muitas vezes considerado como o guia da humanidade, o pai da consciência humana que, para existir, tem, por sua própria natureza, a necessidade de criar uma fenda, um fosso, entre ela e as coisas que aparecem. É neste sentido que nos ocorre a frase de Hegel: “toda consciência é uma consciência infeliz”. A consciência humana não pode existir sem a interferência do Diabo (etimologicamente, o que divide, o que separa). Tomar consciência será sempre, pois, separar-se. A função de Lúcifer é a de privar o ser humano da graça divina para submetê-lo ao seu poder e dominação. Assim, é este anjo caído que vai representar as forças da desintegração da personalidade do ser humano. Numericamente, tudo isto é representado pelo número dois, número feminino por excelência, símbolo da ambivalência, do conflito, do antagonismo, que de latente se tornou manifesto no mundo moderno através das várias formas que o ódio pode tomar. Como número de todos os desdobramentos, o dois é o número através do qual caímos na multiplicidade, na dispersão, ou seja, no diabólico. As origens do dr. Fausto nos remetem, contudo, a um passado muito mais remoto: ao tempo de um pacto que poderia ter sido estabelecido entre o ser humano e Satã (em hebraico, o que arma ciladas), com o objetivo da obtenção, pelo primeiro, de toda a ciência do universo. Em troca, Satã se apossaria da sua alma. Este tema pertence a antigas tradições judaicas (Cabala) e cristãs. Este tema também aparece nas primeiras tradições luteranas, que dão cor a muitos episódios da crônica do dr. Fausto. O acabamento final da história é feito do século XV para o XVI quando ela toma forma definitiva, com alguns traços renascentistas. A Cabala (Tradições), como se sabe, é a tradição esotérica e mística do judaísmo já aparecida na Antiguidade no “Livro de Henoch”. A Cabala seria, assim, com os textos que a ela se associam, “O Livro da Claridade”, séc. XII, e o “Zohar”, início do séc.XIV, a versão intelectual da mística judaica. Na doutrina sefirótica (emanação divina) da Cabala, encontramos a idéia de que o homem terrestre é uma sombra do homem celestial. Fausto seria, assim, uma ilustração da busca ascensional do homem terrestre para atingir o seu modelo celeste. Uma busca incessante de conhecimento que não recuasse nem diante do próprio Inferno. Já o luteranismo, como está em “O Livro da Concórdia” (1577), entra no Fausto com as questões do pecado original e do livre-arbítrio, das quais o homem não pode se libertar sem a fé e a graça. O luteranismo, é bom lembrar, foi implantado sobretudo na Alemanha do norte e do centro, região do Fausto goethiano. No século XVII, o luteranismo vai receber a contribuição pietista, propagada por Jakob Spener, doutrina que propõe a transformação dos costumes através de princípios morais muito austeros.
  • 3. Quanto ao componente renascentista da história, podemos caracterizá-lo como o seu elemento de choque. A Renascença foi um vasto movimento cultural conhecido na Europa ocidental no começo do séc.XV, marcado, no seus aspectos mais visíveis e talvez mais superficiais, por uma vontade de fazer “renascer” os valores da Antiguidade na civilização européia. No fundo, porém, o que se propunha não era só uma nova estética mas um novo sistema de valores. O mais importante agora era a glorificação do homem através da valorização da sua razão, num mundo cada vez mais sensível aos aspectos quantitativos da matéria, pelo aparecimento de técnicas novas, segundo um pensamento experimental e científico. Sob um outro ângulo, não há como não deixar de se ver também em Fausto a desconfiança do “homem do povo” diante do “homem novo” nessa fase de transição do mundo medieval para o renascentista. Para o “homem do povo”, preso ainda às antigas tradições medievais, o novo tipo ficava muitas vezes entre um letrado e um charlatão já que costumava carregar livros escritos em línguas incompreensíveis sem ser um homem da Igreja e, o que era pior, procurava levar uma vida confortável sem ser nobre, não realizando também, por outro lado, nenhum trabalho manual. A explicação mais óbvia que o homem comum encontrava para tudo isto era que só com o auxílio do Diabo, mediante algum pagamento (a entrega da alma), poderia esse “homem novo” conhecer tudo o que sabia ou que alardeava conhecer. Outra aproximação possível é a que podemos fazer entre a figura de Fausto e o mito de Prometeu. O titã grego, cujo nome significa “aquele que sabe antes”, simboliza efetivamente a afirmação do conhecimento humano diante do divino. Ao modelar os novos seres a partir da argila e ao lhes fornecer o fogo, até então um segredo dos deuses, insuflando-lhes com isso não só uma alma mas uma inteligência criadora, Prometeu proporcionou-lhes condições para que tentassem, como eles o vêm fazendo, a conquista da criação, destronando os deuses. No mito de Prometeu, a “entrega da alma ao Diabo” fica implícita na importância dada ao intelecto humano, sempre diabólico na perspectiva divina, já que é com ele, como a história no-lo demonstra, que os humanos vêm teimosamente se recusando a aceitar o seu destino, a sua posição na criação. Mais: não só se recusando a aceitar o seu destino mas tentando obstinadamente assumir o controle de toda a criação. É por essa razão que muitos escritores desde Ésquilo, (Voltaire, Schlegel, Shelley, Herder, Byron, André Gide), que muitos artistas (Ticiano, Rubens, Böcklin) e que compositores (Beethoven, Liszt, Orff) se voltaram para o tema do filho de Jápeto, ressaltando sempre o que acima apontamos. O tema faustiano tem fortes ligações com o mito prometeico, sem dúvida. Aliás, é de se ressaltar, quanto a este aspecto, a profunda influência que um filósofo e escritor “prometeico” como Johann Gottfried Herder exerceu sobre o jovem Goethe. É de se lembrar ainda, na perspectiva bíblica, que os frutos da árvore da ciência, que Adão ingere, por sugestão de Eva, irão causar a expulsão do casal do Paraíso, isto é, a queda. Adão podia tudo no Paraíso terrestre, vivendo num estado de graça sobrenatural. Faltava-lhe, contudo, algo, o direito de tocar na árvore do conhecimento do bem e do mal. A inobservância quanto a esta proibição trouxe a perdição do gênero humano. A ciência é demoníaca, não pode ser aqui outra a conclusão... Foi Christopher Marlowe (1564-1593), na Inglaterra, o primeiro escritor a dar uma forma literária à história de Fausto (A História Trágica do dr. Faustus). Marlowe, desde cedo, afirmou seu pensamento rebelde com relação às crenças religiosas e favorável quanto às especulações científicas. Sua obra desenvolve uma apologia da revolta individual e, ao
  • 4. mesmo tempo, nos fala do caráter trágico que ela pode tomar, em meio à temática do sobrenatural e das leis morais herdadas da Idade Média. As origens históricas de Fausto, como ele nos aparece no séc. XVI, estão, contudo, nos registros encontrados na Alemanha, nas primeiras décadas do século, nos quais se fala da existência de um mágico errante chamado Georgius Faust ou dr. Faust, como era também conhecido. Teria nascido provavelmente em 1480, em Knittlingen (Württenberg) e falecido por volta de 1540. As referências encontradas sobre ele vão desde depoimentos de adversários a elogios de clientes satisfeitos; desde testemunhos neutros a acusações do clero protestante. Uma das informações mais desabonadoras sobre o dr. Fausto nos é passada por Johannes Tritthein, acima referido, erudito beneditino, em 1507, numa carta que escreve a Virdung, matemático e astrólogo, que ensinava na Universidade de Heidelberg. Sabe-se que o dr. Fausto se declarava um profissional da necromancia, capaz de ver o futuro por meio de comunicação com o espírito dos mortos, e também astrólogo, isto é, alguém que sabia interpretar a influência das energias planetárias nas vidas e nas questões humanas. Sabe-se também que o dr. Fausto se apresentava, com um discurso não muito claro, como representante de uma tradição herética, fato que o punha em conflito com o conhecimento acadêmico do tempo. O dr. Fausto se denominava como “o Fausto mais jovem”, fazendo supor com essa afirmação que haveria um outro mago, um senior, seu antecessor, e talvez um outro mais velho ainda... Admitia-se que o conhecimento dessa linhagem de sábios constituiria aquilo a que se deu o nome de “prisca theologia”, a mais autêntica sabedoria dos antigos, anterior à tradição cristã, que a havia condenado e proibido. Esta sabedoria, considerada demoníaca, havia sido restaurada em grande parte pelo padre Marsilio Ficino, helenista, filósofo e humanista italiano, chefe da escola platônica de Florença, que contava entre seus discípulos e correspondentes figuras como Margarida de Navarra, Paracelso, John Colet e Lourenço de Médici, o Magnífico, seu protetor. Ficino traduziu não só os diálogos de Platão como uma boa parte do “Corpus Hermeticum”, as obras dos neoplatônicos e do Pseudo-Denis. Ficino e seus seguidores lançaram a tese de que o “Corpus Hermeticum” seria a fonte mais antiga desse conhecimento não contaminado pelo cristianismo. Pico della Mirandola ampliaria essa tradição, tornando-a mais herética, ao propor que se estabelecesse uma relação entre ela e o cristianismo. Esse grande erudito italiano do séc. XV procurou analisar a Bíblia e interpretar o cristianismo à luz da Cabala. Escreveu 900 teses sobre o tema, motivo de sua condenação pela cúria romana e da declaração pública de sua heresia. Alguns pesquisadores entendem que, ao se considerar como um segundo Fausto, esse de que tratamos, do séc. XV, estaria se referindo a um tal de são Fausto, do século V, muito atacado por Santo Agostinho por sua ligação com a heresia maniquéia. Já outros, melhor embasados, apontam para a figura de Simão, o mago, pertencente a uma seita gnóstica no tempo dos apóstolos. A ligação da figura de Fausto à de Simão (o Fausto mais antigo) parece ser aquela que melhor a explica, “segundo as palavras do próprio dr. Fausto”. Simão é um feiticeiro mencionado no Novo Testamento (Atos). Nascido em Chipre, vivia na Samaria. Ao observar o trabalho dos apóstolos Pedro e João, que, tendo recebido o Espírito Santo, faziam a imposição de suas mãos para a cura de doentes, Simão lhes ofereceu dinheiro para que eles lhe passassem o poder. Condenado por Pedro, o episódio deu origem àquilo que é conhecido como simonia, pecado que tanto nos fala da negociação de títulos eclesiásticos como do abuso da graça divina em proveito pessoal.
  • 5. Esse conflito entre os apóstolos e Simão explica, sem dúvida, a figura de Fausto na medida em que ilustra o conflito histórico entre a religião oficial e a magia. O que a história de Simão discute é que a Igreja Católica chamou a si o controle absoluto das ligações entre o mundo real e o “outro lado”, o mundo invisível. O poder de fazer milagres é o poder que o dr. Fausto vai reivindicar no século XVI. A História registra que Simão aprendeu a arte da magia com um personagem chamado Dositheus, contemporâneo de Cristo, que se proclamava como o Messias anunciado pelos profetas. Repelido pelos apóstolos, Simão, sedento de poder e glória, teria se posto a viajar, fazendo discursos às multidões. Em Roma, teria ele se apresentado a Nero, o imperador, a quem encenou com êxito a sua própria ressurreição, pondo assim em risco o futuro do cristianismo. Quando Simão, na sequência de sua exibição para o imperador, pulou de uma torre especialmente construída no campo de Marte, em Roma, e começou a se elevar nos ares (O Ato dos Santos Apóstolos), Pedro, o apóstolo, também presente, diante do risco que o futuro do cristianismo corria devido ao apoio que Simão recebia das forças do mal, invocou os seus poderes, ordenou que tais forças deixassem de apoiá-lo. Tal aconteceu, “sendo largado, ele caiu em um lugar chamado Via Sacra, e, partido em quatro pedaços, morreu por obra do demônio” (O Ato dos Apóstolos). Uma observação: não confundir este Simão, heresiarca judeu-gnóstico da Samaria, com Simão Stilites, que, segundo dizem, viveu trinta e sete anos no topo de uma coluna pregando o cristianismo, até a sua morte em 459 dC. Em 1959, o cineasta espanhol Luis Buñuel realizou, com o título de “Simão do Deserto”, um filme sobre o Stilites. Segundo depoimentos do séc. XVI, Fausto proclamava haver dominado toda a tradição greco-romana e adquirido o conhecimento de todos os livros. Registre-se mais, segundo a lenda, que numa reunião com estudantes ele fez uma descrição completa de todos os personagens da guerra de Tróia “como se dela tivesse participado”. A feitiçaria, a partir de 1560, começou a ser atacada indistintamente por luteranos, calvinistas e católicos. Parece estar hoje suficientemente provado que foram os protestantes (Lutero e Melanchton) os primeiros a relacionar Fausto com o Diabo. A morte de Fausto, inclusive, por volta de 1540, era atribuída nos meios protestantes ao próprio Diabo. A principal fonte da versão mais próxima do séc.XVI sobre o mito de Fausto apareceu em 1587, o “Faustbuch”, de enorme sucesso na Alemanha, publicando-se logo inúmeras versões da história. Goethe parece ter tomado conhecimento do mito faustiano em 1770, através de Herder, quando fazia o curso de Direito em Estrasburgo. Seus projetos àquela altura incluíam obras sobre figuras como Prometeu, Maomé, Júlio César e o Judeu Errante. A escolha voltou- se para o Fausto porque o tema integrava-se não só à tradição alemã como porque sua personalidade, ávida de conhecimentos, identificava-se de algum modo com ele. Goethe começa o seu poema dramático em 1773, dá-lhe continuidade em 1790, sendo a primeira parte da obra publicada em 1806. O que se vê no Fausto de Goethe é a sedução, por ele, da inocente Margarida, que ele abandonará. Margarida, como sabemos, mata seu filho e é condenada à morte, mas seu arrependimento a salvará da danação. Quanto a Fausto, entre Mefistófeles, que jurou reduzí-lo à animalidade, e Deus, que lhe fornece meios de salvar-se através de suas próprias forças, aparece ele como um símbolo da condição humana e de sua oscilação constante entre o bem e o mal. O Diabo, no Antigo Testamento, aparece com pouco destaque. Já no Novo Testamento ele vai adquirir muita proeminência, especialmente em uma cena que certamente
  • 6. antecipa o pacto de Fausto. É a cena em que o Demônio tenta Jesus Cristo, transportando-o para um monte muito alto para mostrar-lhe todos os reinos do mundo. O Demônio promete que dará a Cristo tudo o que lhe mostrava se, prostrado, ele o adorasse. Temos aqui, sem dúvida, a gênese do tema faustiano. A presunção de que só a magia diabólica poderia tanto e trazer a satisfação para todos os desejos, uma presunção que aparecerá como tentação diabólica várias vezes na história do homem, ao longo dos milênios. A resposta de Cristo é conhecida: “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a Ele servirás”. “O Segundo Fausto”, de 1832, ano da morte de Goethe, inacabado, apresenta problemas fundamentais de moral e de metafísica. Introduzido no mundo da Grécia antiga, tornando-se esposo de Helena de Tróia, Fausto nesta obra atinge uma serenidade idealizada. Mefistófeles, embora personagem do Fausto goethiano, já aparece na literatura desde 1587 (O Livro Popular) e na obra de Marlowe (1588). Os elementos gregos dão o sentido de “aquele que não é amante da luz” ao nome Mefistófeles, o que nos permite aproximá-lo de Lúcifer, o “portador da luz”. Outra etimologia possível seria a de se ver dentro de Mefistófeles a palavra grega “mephitis”, o que é nocivo à saúde, o que é tóxico, infecto. Mefitismo, lembremos, em medicina, é enfermidade provocada pela exalação fétida de matérias em decomposição. Pela vertente judaica, Mefistófeles seria uma combinação de palavras hebraicas, “mephiz”, mentiroso, e “tofel”, destruidor. Gênio do mal, anjo caído, Mefistófeles transforma-se depois num demônio do conhecimento, cuja aspiração é a de dominar o mundo para destruí-lo. É um demônio da literatura medieval, assistente do dr. Fausto desde que ele entregou sua alma ao Diabo. Mefistófeles é amargo e sarcástico; Goethe o transformou num símbolo metafísico. Sua função, positivamente (?) no Fausto, é a de representar para a humanidade adormecida a inquietação criadora. Em que pesem as etimologias de seu nome, Mefistófeles tem um lugar importante quando pensamos na história do progresso humano, mesmo que negativamente. Em última instância, Mefistófeles simbolizaria o desafio que a própria vida nos oferece, com as suas contradições, os seus equívocos, as suas derrotas e as suas possibilidades de vitória. A lenda de Fausto foi muito enriquecida ao longo dos séculos, desde Marlowe, merecendo a atenção de Lessing, Klinger, Lenau, Thomas Mann, Paul Valéry (Mon Faust) e outros, inclusive de cineastas, de coreógrafos e de autores de ópera. Na música, Berlioz (1846), Schumann (1853), Liszt (1854) e Gounod (1859) defenderão o tema. Na pintura, Delacroix continua sendo o intérprete mais apaixonado do mito alemão. No cinema, Fausto aparecerá, dentre outros, com Murnau (Goethe, 1926), Orson Welles (The March of Time, 1935), Claude Autant-Lara (Margueritte de la Nuit, 1955), René Clair (La Beauté du Diable, 1950), Fraz Seitz (Doktor Faustus, 1981), István Szabó (Mephisto, 1981) e Jan Svankmajer (Faust, 1994). Goethe é, de certo modo, o responsável pelos traços que fixaram a imagem de Fausto. Como Fausto, Goethe, ao longo de sua vida, tentou experimentar tudo. Divagações, a cultura clássica, interesses múltiplos, a revolta, a política, seu grande interesse pela magia, pela astrologia, pela ciência, seus amores, tudo vivido segundo uma certa postura “olímpica”, que procurou passar para o mundo. No final, porém, um certo vazio, um gosto amargo na boca, talvez angústia. Por isso, “aceitará” aquilo que Mefistófeles lhe oferece, julgando que obterá alguma paz ou satisfação. Particularmente importante foi a astrologia na vida de Goethe, mas igualmente negligenciada pelos que o estudaram ao longo dos últimos dois séculos. Seria ela, a astrologia, a “ponte” entre Goethe e Fausto? Lembremos que no início de “Poesia e Verdade” lá está, segundo as suas próprias palavras: “A 28 de agosto de 1749, mesmo ao bater do
  • 7. meio-dia, vim eu ao mundo em Francoforte-do-Meno. A constelação era feliz; o Sol estava no signo de Virgem e culminava nesse dia; Júpiter e Vênus olhavam-se amigáveis, Mercúrio sem hostilidade; Saturno e Marte mostravam-se indiferentes; só a Lua, que há pouco fora cheia, exercia a força da sua oposição, tanto mais que a sua hora planetária começara ao mesmo tempo. Por isso ela se opôs ao meu nascimento, que não pôde dar-se até que essa hora não passasse.” No poema “Sentimento Humano”, Goethe nos diz: Vós, ó Deuses, grandes Deuses No vasto céu lá em cima Se vós nos désseis na terra Mente firme, ânimo bom, Oh! Como vos deixaríamos O vasto céu lá em cima! No segundo Fausto, já no fim da vida, com quase 83 anos, Goethe se fixará em Helena, padrão de beleza clássica, da mitologia grega. Uma tentativa, talvez, de se entregar a prazeres mais “terrestres”, isto é, a mulher, idealizada na pessoa de Helena, símbolo do eterno feminino. Se tivesse vivido um pouco mais não seria fora de propósito, acreditamos, admitir que Goethe abandonaria seu lado prometeico a favor do epimeteico. Prometeu, o filantropíssimo, como se sabe, por causa de sua revolta contra os deuses, foi punido. Já Epimeteu, “o que sabe depois”, deixou os deuses de lado e se concentrou em Pandora, na sua beleza, no seu esplendor, aceitando-a, não dando maior importância àquilo que o machismo grego (e as religiões patriarcais também) sempre atribuiu a ela, a de ser a mulher a responsável por todos os males que fazem a humanidade sofrer. Mas no Fausto, como no mito de Orfeu, esse “feminino” (chame-se ele Pandora, Eurídice ou Helena) não será atingido, ele escapa de Goethe. Helena some, com o filho do casal, Euforion, ser fantástico, símbolo da criação poética superior. Impulsivo e exuberante, Euforion vôa, querendo ascender às alturas, como um Ícaro, mas seu corpo desaparecerá, uma existência rutilante e fugaz. Apesar de ter tentado “viver” o seu lado epimeteico e não o tendo conseguido, não lhe restou outra alternativa senão a de se voltar para Prometeu. As últimas palavras de Geethe, já moribundo, sempre citadas, foram “Mais Luz...” No século XX, o tema faustiano ligar-se-á ao nacionalismo alemão, como símbolo de uma proposta de dominação do mundo. É muito ilustrativo dessa visão o filme Mephisto (1981), adaptação de um romance de Klaus Mann, dirigido por István Szabó, grande cineasta húngaro, estrelado por Klaus Maria Brandauer, nome maior do cinema alemão. O filme nos conta a história de Gustaf Gründgens, ator, que foi casado com Erika, irmã de Klaus, e que aderiu ao nazismo para obter benefícios profissionais e materiais. Klaus Mann (1906-1949), escritor alemão, era filho de Thomas Mann, o grande romancista. Homossexual, sempre teve uma relação muito difícil com o pai. Quando os nazistas chegaram ao poder, com Hitler, em 1933, foi para a Suiça, indo depois para a França (Cannes) onde se suicidou, ingerindo barbitúricos.