O documento discute a separação entre cultura científica e humanidades e como isso levou a problemas ambientais e sociais. A tecnociência promoveu o domínio sobre a natureza de forma destrutiva e criou desigualdades globais. Uma abordagem sustentável baseada na ética planetária é necessária para enfrentar os desafios do futuro.
02 EA como ferramenta p uma engenharia mais concienteEdio Neto Lemes
Educação Ambiental dentro do contexto de uma educação crítica sobre problemas ambientais, engenharia e ciência. Ciência e tecnologia inicial X Ciência atual. Debates em torno da Educação Ambiental
02 EA como ferramenta p uma engenharia mais concienteEdio Neto Lemes
Educação Ambiental dentro do contexto de uma educação crítica sobre problemas ambientais, engenharia e ciência. Ciência e tecnologia inicial X Ciência atual. Debates em torno da Educação Ambiental
A SOCIEDADE HUMANA CHEGOU AO XXI A DURAS PENAS... Sobreviveu a tragédias diversas. Padeceu de epidemias arrasadoras que dizimaram populações. Jamais abriu mão da guerra como instrumento de destruição. Cultivou todas as formas de violência contra o próximo. Valeu-se da exploração do mais fraco. Legitimou o roubo como mecanismo de enriquecimento.
(trecho do livro "Pequeno Tratado de Subversão da Ordem" de Dioclécio Campos Júnior - 2015)
Nessa revista são encontrados diversos artigos que falam de temas como ciência, tecnologia e inovação, além de trata temas como: O Programa Ciência sem Fronteiras; o déficit de doutores atuando no setor secundário; a importância das empresas na universidade; produção cientifica avançada; Falta de engenheiros no mercado; Carreira acadêmica no Brasil; P & D; Cidades inteligentes e sustentáveis; Empreendedorismo; Parques tecnológicos; Incentivo oficial ao intercâmbio; Patentes e Partilha dos Royalties.
1. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
TECNOCIÊNCIA E COMPLEXIDADE DA VIDA
EDGARD DE ASSIS CARVALHO
Professor do Departamento de Antropologia, Coordenador do Núcleo de Estudos da Complexidade da PUC-SP
Resumo: O princípio responsabilidade abre a possibilidade de uma ética planetária fundada no religamento,
na compreensão, na magnanimidade e na resistência. Mediante estas práticas, fundadas na inseparabilidade
da cultura científica e da cultura das humanidades, coloca-se a possibilidade da restauração sustentável de
Gaia, mesmo que cenários do futuro encontrem-se ainda atrelados ao desenvolvimento unidimensional da
biotecnologia, da robótica e da neurotecnologia.
Palavras-chave: ética e ciência; mudança tecnológica.
A
cisão entre a cultura científica e a das humanida- cional-lógico-dedutivos e mítico-imaginários se
des permanece intocada até os dias de hoje. Pro- retroalimentassem mutuamente.
duto da visão cartesiana e newtoniana que se A insistência de Snow de que era preciso agir rápido e
constituiu em paradigma do mundo ocidental, essas duas repensar a educação em moldes menos especializados e
culturas não se intercomunicam, cada uma vivendo às fragmentados, e isso do ensino fundamental à universida-
custas dos escombros da outra. Malgrado os esforços de de, não encontrou eco em planejadores e gestores, que se
múltiplas áreas do conhecimento em rejuntar saberes e incumbiram de implantar o divórcio entre tecnologia e
repensar o objeto complexo, essas iniciativas são dissipa- humanismo, entre razão e desrazão. É bem verdade que o
ções, brechas que não conseguem abalar o sólido edifício termo cultura tem múltiplas acepções, que vão desde refi-
das dualidades instaladas e consolidadas no universo da namento e sofisticação, até soberba e erudição. Se o con-
política, da economia e da própria ciência. Em 1959, ceito tivesse deixado de lado essas acepções e passasse a
Charles Snow soube melhor do que ninguém avaliar os ser identificado simplesmente com a práxis cognitiva pla-
efeitos deletérios dessa incomunicabilidade, ao afirmar que netária gerada por grupos sociais múltiplos, a distinção
“quando esses dois sentidos se desenvolvem separados, entre cultura científica e humanista certamente cairia por
nenhuma sociedade é capaz de pensar com sabedoria” terra. É claro que quando olhamos de frente para esse pla-
(Snow, 1995:72). neta globalizado, que inclui e exclui por uma dialética
A existência de uma terceira cultura formada pelas ciê- perversa e fóbica, batemos de frente na velocidade
ncias da sociedade, que se incumbisse de manter boas re- unidimensional e irreversível do progresso, instalada a
lações tanto com cientistas quanto com literatos, deixou- partir da revolução mercantil do século 16, consolidada
se contaminar pelo estigma da separação. Com isso, o com a revolução industrial do século 18 e solidificada com
panteon do conhecimento redividiu-se de novo, constituído a revolução digital do 20.
agora pelas ciências da natureza, pelas ciências da cultu- Opondo definitivamente magia e ciência, a idéia de
ra e pelo imaginário presente nas artes, na literatura e na progresso ganhou força, passando a reprimir qualquer tipo
poesia. Incomunicáveis, essas três galáxias foram conta- de cognição que não fosse regida pela causalidade e pelo
minadas pelo desenvolvimento fantástico da tecnociência, determinismo e não aspirasse atingir verdades paradig-
que selou de vez as mais variadas formas de dominação máticas consensuais. O chamado paradoxo neolítico che-
do homem sobre a natureza, impedindo que itinerários ra- ga a parecer inocente quando se depara com a voracidade
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2. TECNOCIÊNCIA E COMPLEXIDADE DA VIDA
que o controle da natureza apresentou nos tempos moder- Essas potencialidades pervertidas das tecnologias ga-
nos. Mesmo que se assuma cognitiva e politicamente com nham expressão máxima no sistema desigual de trocas que
Claude Lévi-Strauss (1962) a inexistência de diferença de atravessa o planeta em sua totalidade. Ao analisá-las, René
natureza e grau entre os pensamentos mágico e científico, Passet (1998:65) afirmou que “os fluxos transfronteiriços
a hipermodernidade preferiu concentrar-se apenas no de mercadorias representam, em sua maioria, trocas inter
prometeísmo da ciência e da razão. ou intra-firmas transnacionais”. Com isso, os Estados-
A noção de progresso parece andar em crise e, como Nações não conseguem mais controlar a massa das mer-
apontou Paolo Rossi, temas como a escravidão do homem, cadorias e isso porque “os capitais circulam mais fácil e
a erosão da subjetividade, as extinções de espécies vege- rapidamente do que as mercadorias” (Passet, 1998:65),
tais e animais retornaram à cena político-cultural de modo como se estivessem submetidos a estrutura virtual
obsessivo, sinalizando a urgência de uma tomada de po- invariante, situada além e aquém dos homens.
sição diante dessa geopolítica do caos. Ao que tudo indi- Essa “nova ordem mundial” inundou de desigualda-
ca, “o que é moderno não coincide mais com o que é des todas as sociedades sem distinção de longitude ou
humano” (Rossi, 2000:97). Esse antagonismo entre latitude, aumentando os sem-emprego, os sem-terra, os
modernidade e humanidade fez com que a condição hu- sem-teto. Todas estas ausências sociais, por vezes circun-
mana passasse a contar pouco diante da hegemonia da dadas por uma vitimização e infantilização excessivas,
regulação das instituições, do narcisismo da política e da repercutem a cada dia na pauperização do trabalho e da
arrogância da ciência. Por isso, “olhar para o futuro asse- vida. Se deixadas a seu bel-prazer, conterão três possi-
melha-se a uma viagem oceânica em frágeis caravelas” bilidades: ou o sistema se autodestrói, ou se recompõe
(Rossi, 2000:130). por soluções paliativas, ou se nega por uma utópica re-
No contexto dessa viagem sem destino, a devastação volta civil acionada pela legião dos estarrecidos do pla-
das águas, ares e terras espelha, de modo substantivo, a neta. Na verdade, não há como identificar nesse espaço/
fragilidade dessas caravelas imaginárias, cujos conduto- tempo geopolítico aonde se localizam os novos inimi-
res são aqueles que ainda acreditam nas forças de conjun- gos do mundo, pois eles se encontram disseminados,
ção que solidarizam, fraternizam e universalizam. Mes- como um monstro de múltiplas cabeças, entre os setores
mo diante de mares bravios e da pirataria escondida em constitutivos das classes dominantes que detêm o con-
potentes submarinos, essa consciência telúrica ampliou- trole do poderio nuclear, do narcotráfico, do crime or-
se consideravelmente a partir dos anos 70, consubs- ganizado, da desfaçatez midiática e dos cinismos da re-
tanciando-se em inúmeros encontros transnacionais que, presentação política.
sem diabolizarem a noção de desenvolvimento, passaram A world culture, expressão crítica utilizada por
a postular que ele deveria ser norteado pela sustentabili- Ramonet (1998), que deslocalizou unidades de produção
dade. “O desenvolvimento é durável se as gerações futu- e aglutinou unidades de consumo conspícuo, gerou um
ras herdam um meio ambiente cuja qualidade seja pelo espaço econômico transnacional e transpolítico capitanea-
menos igual ao das gerações precedentes” (Ramonet, do pelos EUA, Japão, União Européia, mesmo que terro-
1998:7). rismos, neonazismos, corrupções e até traições conjugais
O ponto de partida de qualquer iniciativa regida pela empanem o brilho que o bloco pretende exibir, nem sem-
sustentabilidade requer uma crítica contundente à civili- pre com sucesso. Para que a reprodução dessa máquina
zação tecnológica, impelindo indivíduos e sociedades a mortífera se amplie sem traumatismos, a comunicação e o
se mobilizarem contra a violentação da vida e a desola- mercado passaram a ser os dois paradigmas estruturantes
ção da terra. O planeta sinaliza um certo cansaço diante do pensamento, incumbidos de aplacar os dissidentes e
de vacas loucas, águas contaminadas, dejetos tóxicos, ca- incensar os prosélitos.
tástrofes nucleares, andróides gênicos, máquinas espiri- Essa pacificação e passividade tramadas nos gabinetes
tuais e próteses corpóreas siliconadas. Ao que tudo indi- do poder instituído vêm esbarrando em alguns problemas,
ca, a mutação contemporânea, regida por uma taxa e isso porque a ampliação da insignificância do mundo
ampliada de acumulação material e imaterial que encanta começa a exigir reflexões éticas sobre a ciência e a técni-
os “donos do poder”, vem gerando um desencantamento ca. Em primeiro lugar, cabe pensar um pouco sobre o sig-
recalcado, cujos sintomas são visíveis a olhares mais com- nificado dessa palavra. Quem se incumbiu dessa tarefa,
plexos e sensíveis. de modo irretocável, foi Cornelius Castoriadis (1996). Não
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3. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000
se trata, apenas, de uma insignificância na cultura ou na vinculados a elas, à infra-estrutura tácita de conceitos e
política, mas também no pensamento e nos pensadores aco- idéias que produziram e às ressonâncias reais e imaginá-
metidos pelo conformismo e pela apatia, incapazes de rias que operaram. Mas é sempre bom relembrar que toda
enxergarem para além dos contornos do infinitamente essa herança cultural “é para as massas e não apenas para
pequeno, especialistas nos fragmentos do corpo, da alma, intelectuais de torre de marfim” (Brody e Brody, 1999:25).
da sociedade, da mente. Revoluções científicas foi o nome dado a esse conjun-
Para Castoriadis, torna-se prioritário desentranhar for- to de alterações prodigiosas, produto de mentes inquie-
ças psíquicas capazes de bater de frente no progresso ins- tas, dominadas pela pulsão da descoberta. Se seu resul-
trumental, nos cães de guarda do poder e em todos aque- tado foi mais visível na ampliação da parafernália
les que, ao lado dos tiranos institucionais, impedem a instrumental e mais oculto na planilha dos conceitos, o
emergência de uma criação imaginária radical. Por isso, fato é que mudaram o estilo do entendimento do mundo,
em sua cosmovisão, os profissionais da política são mas- introduziram certezas e semearam incertezas por todo lado.
sacrados sem clemência e seus desmandos, corrupções e Com o humor de sempre, Freeman Dyson (1998:45) refe-
narcisismos denunciados implacavelmente. Algum para- riu-se a dois estilos contrastantes que cercam a fabrica-
doxo insolucionável não conseguiu harmonizar conquis- ção científica: “a organização e a disciplina rígidas repre-
tas democráticas e maravilhas científicas com a huma- sentadas por Napoleão, o caos e liberdade criativos
nização da cultura. Ao contrário disso, ampliaram-se a representados por Tolstoi. No mundo dos computadores,
resignação e a impotência diante da fatalidade da crise, Napoleão é o pesado mainframe da IBM: Tolstoi é o hu-
sendo que a reunificação de cidadãos em torno de aspira- milde Macintosh. A revolução da informática represen-
ções coletivas planetárias não se processou como se es- tou uma saída das ambições napoleônicas de Von Neumann
perava. Diante da ampliação dos horrores políticos, eco- em direção à anarquia tolstoiana da Internet”. Mesmo que
nômicos e culturais produzida pelo século XX, o sistema Dyson credite à genética e à neurofisiologia o pódio cien-
planetário sepultou paixões e utopias, substituindo-as por tífico do século XXI, napoleônicos e tolstoianos terão que
desesperanças e conformidades. se unir para derrubar as fronteiras e entender a vida de
Mesmo assim, é preciso resistir e criar condições de modo menos linear e mais interdependente, de modo a
autonomia e liberdade para o pensamento e para a ação. superar os efeitos que tecnologias civis e militares vêm
Para dizer a verdade ao poder e às cintilações dele ema- provocando no crescimento das desigualdades. “O mal
nadas, não é mais possível pensar apenas como especia- pode ser visto em muitas partes do mundo, especialmente
lista, mas como um “outsider vigilante”, que questiona a nas grandes cidades das Américas do Norte e do Sul”
desumanização cultural. Como reitera Edward Said (Dyson, 1998:80).
(1996:33), é preciso experienciar cotidianamente a con- A tecnologia, enquanto modo de produção cercado por
dição de “intelectual exílico, que não responde à lógica dispositivos instrumentais e de controle postos em ação
da convenção, mas à da audácia”, que transcende os con- por predadores inventivos obstinados, criou uma forma
tornos sitiados de sua zona de saber e opta pela condição inquisitorial que saqueou os tesouros do mundo natural,
de amador, preferindo “o risco da incerteza no domínio atirando-os nos compartimentos do poder. Essa cultura
público – uma conferência, um livro, um artigo – ao espa- fáustica, decadente e trágica, foi responsável pela “mon-
ço fechado e controlado pelos expertos e pelos profissio- tagem de um mundo em miniatura, criado por nós, que se
nais” (Said, 1996:43). moveria, tal como o Universo, graças à sua energia pró-
O amadorismo a que se refere Said exige intelectuais pria e obedecendo apenas à mão do homem” (Spengler,
polivalentes, universalistas e éticos, que enfrentem com 1993:102). O questionamento feito por Oswald Spengler,
vigor e determinação as contradições do cenário planetá- em 1931, sobre essa megamáquina, que exibia uma po-
rio contemporâneo. Para isso, ciência e técnica devem ser tência de domínio sem precedentes e atraía a fina flor de
entendidas num amplo circuito de ambivalências, mesmo indivíduos mais dotados cognitivamente, resumia-se em
que as maiores descobertas da ciência, como a gravitação saber quanto tempo seria ainda necessário para que sua
universal, a estrutura do átomo, a relatividade, o big-bang, devoração e corrosão se concretizassem.
a mecânica quântica e a decifração do genoma, represen- A irreversibilidade do tempo incumbiu-se de mostrar
tem momentos irreversíveis que a história humana produ- que a racionalidade e a racionalização padronizaram as
ziu sobre ela mesma. Por isso, queiramos ou não, estamos relações humanas com velocidade máxima, como se as
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4. TECNOCIÊNCIA E COMPLEXIDADE DA VIDA
palavras e as coisas dessem as costas para a segunda lei dos, mas de propor uma política de civilização (Morin e
da termodinâmica. Desse modo, individualidade e proprie- Naïr, 1997) que redefina a vida em comum, entenda o
dade passaram a ser entendidas como sinônimas, e isso sapiens como meio, fim, objeto e sujeito da política e pro-
porque a diminuição do quantum de energia per capita des- picie boas notícias para Gaia. Uma desaceleração nos ní-
pendido nos processos de trabalho não permitiu a amplia- veis tecnológicos, acoplada a uma planilha de precauções
ção da criatividade, da liberdade e da autonomia. Como ético-políticas, não seria impensável para uma renovação
acuradamente percebeu Herbert Marcuse (1999:103), “tal de valores experimentais universalistas, que investissem
Utopia não seria um estado de felicidade perene. A indi- na conservação, na frugalidade, na preservação e se recu-
vidualidade natural do homem é também a fonte de sua sassem a reconhecer em Gaia um laboratório de experi-
aflição natural”. mentações mefistofélicas de cunho produtivista e inumano.
Se o homem traz consigo a marca da felicidade e da afli- Uma mudança de escala nesse laboratório sem super-
ção, do contingente e do necessário, do prazer e da dor, da visores nomeados, fundada numa ética valorizadora da
dominação e da dependência, constata-se que essa dialética convivência entre os seis bilhões de humanos que hoje
de ambivalências não permitiu a supressão do ‘cativeiro da habitam o planeta, e que amanhã, por volta de 2025, so-
humanidade’, mesmo diante dos horrores cotidianos que o marão entre 7,3 e 10,7 bilhões, segundo os últimos dados
planeta vem presenciando. É interessante constatar que, divulgados pela ONU, poderia vir a restaurar o sentimento
tanto Marcuse quanto Spengler, mesmo situados em cam- da totalidade e da harmonia, assim como a unidade entre
pos epistêmicos distintos, produziram essas reflexões en- mente e matéria, entre ciência e vida tão desprezada ulti-
tre 1931 e 1941, como que prefigurando, cada um a seu mamente. Foi esse o tom utilizado por Tseard Zoethout
modo, as conseqüências deletérias que o nazifacismo e o (1999:38) que, ao considerar Spinoza um filósofo da to-
nacional-socialismo do terceiro Reich provocariam na alma talidade, afirmou que “uma pessoa tem de olhar o mundo
da civilização planetária. Generalizou-se o mal-estar, em- a partir do ‘ponto da eternidade’”. Essa maneira de olhar
bora nesse final milenar corações e mentes “eugênicas” se é verdadeiramente uma arte de conhecimento que requer,
incumbam de direcionar o futuro da Terra para onde bem acima de tudo, intuição intelectual. Somente assim será
pretenderem. O homo-sapiens 2000 se aparenta a um ven- possível voltar a reconhecer que a totalidade nunca será
tríloquo acometido pela experiência da repetição e vacina- capturada pela soma das partes, porque implica sempre a
do contra a experiência da criatividade. É possível que ve- interconexão contraditória e indeterminada de todos os
nha a ser geneticamente correto e esterelizado, embora eventos, sejam eles coisas ou idéias, fatos ou representa-
eticamente incorreto, discriminador e relativista. ções, amores ou desamores.
Reinventou-se a natureza, computou-se o DNA, pro- Esse sentimento de totalidade requer uma revolução
cessou-se a informação em níveis surpreendentes, mas as noológica que se defronte contra qualquer forma de colo-
concepções mecanicistas não foram superadas, malgrado nização. Se esse processo histórico soube invadir as
as estruturas dissipativas, os fluxos de dispersão e as ten- alteridades a partir de 1492, submetendo-as às imposições
dências reorganizatórias que cercam a impermanência de do dominador, a segunda chegada de Colombo é agora
todos os sistemas vivos. “Com as novas tecnologias, os representada pela biopirataria de culturas, plantas, animais.
seres humanos assumem o papel de artistas criativos (…) Com a determinação que lhe é peculiar, Vandana Shiva
mas esse novo tipo de arte (…) é uma arte da imitação, (1997) exemplificou essa colonização interior, referindo-
cheia de técnicas de cálculo racional, produção em massa se ao patenteamento de células e genes realizado pelos
e personalização” (Rifkin, 1999:234). Caso a revolução próprios homens de ciência. Entre os patenteamentos ce-
biotecnológica seja mesmo capaz de produzir uma revi- lulares e os territoriais, é estabelecida apenas uma dife-
ravolta no sentido da existência, como acredita Jeremy rença de natureza. Se os últimos classificavam as culturas
Rifkin, aprimorando os nexos da vida democrática em não ocidentais como inferiores, pré-lógicas e, portanto,
escala ampliada, os riscos de uma entropia e de uma de- passíveis de apropriação indébita, os primeiros classifi-
sordem generalizadas poderão vir a ser minimizados, desde cam os iguais como privados de vida e direitos, porque
que o mito do progresso e o antropocentrismo dele decor- sofredores e desesperançados. “Terras e florestas, rios e
rente seja colocado em seu devido lugar. oceanos, a atmosfera como um todo foram colonizados,
Não se trata mais de restaurar a carcomida querela en- erodidos, poluídos. O capital agora tem que se lançar para
tre antigos e modernos, ou entre apocalípticos e integra- novas colônias, para invadi-las e explorá-las, a fim de
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garantir sua acumulação futura. Essas novas colônias são nela, para que seja possível exercitar a parcimônia diante
os espaços interiores dos corpos das mulheres [e também de apetites vorazes e incontrolados.
dos homens], plantas e animais” (Shiva, 1997:13). Torna-se crucial que assumamos com Jonas a necessi-
Esse deslocamento estratégico da colonização passou dade da temperança antes que seja tarde demais. “Nós
a exigir que a ética da vida ocupe cientistas e técnicos de podemos até chegar a reduzir a extensão da voragem e
modo inabalável e definitivo. Hans Jonas (1990) que, desde voltar a viver com menos, antes que um esgotamento ca-
1979, dedicou-se aos contornos cognitivos do Princípio tastrófico ou a poluição do planeta nos constranjam a algo
Responsabilidade, foi mais do que enfático, ao advertir pior que a temperança” (Jonas, 1999:415). Esse algo pior
que a civilização técnica carrega consigo uma responsa- já pode ser constatado em diagnósticos que detectam e,
bilidade metafísica, pelo menos “desde que o homem tor- de certa forma, naturalizam a destruição planetária. A
nou-se perigoso não apenas para ele mesmo, mas para toda Nasa, por exemplo, já admite que gerações futuras pos-
a biosfera” (Jonas, 1990:261). A restauração da simbiose sam concentrar-se em “células de sobrevivência”, nas quais
homem/natureza é o primeiro passo a ser dado diante da chips e tamagochis substituirão plantas e animais e um
arquitetura do mal perpetrada por intelectos teórico-prá- banco espermático acabe de vez com as ambigüidades da
ticos. A nova obrigação de sujeitos éticos nasce dessa repressão sexual. Nessas cidades futuras, talvez só reste
agonia planetária considerada descartável por muitos. Essa aos homens supor que a vida exista em outros planetas e,
ameaça exige, antes de mais nada, “uma ética da conser- a partir daí, produzir uma terceira colonização, dessa vez
vação (…) do impedimento e não uma ética do progresso extraterrestre, que se exerceria sobre os sólos áridos de
e do aperfeiçoamento” (Jonas, 1990:266). Marte, ou os mares obscuros de Vênus (Santos, 2000:30).
Para Jonas, qualquer ampliação do potencial do Fundus O próprio diretor da agência espacial americana declarou
técnico de uma sociedade traz consigo um fardo ético que que o objetivo das missões, como a Mars Global Surveyor
implica sempre avaliar que o fazer, o saber e o poder nun- e a Mars Express, reside na ampliação da fronteira huma-
ca constituem apenas um para-si, mas um para-os-outros. na (Ball, 2000). Se as suspeitas da existência vierem a se
“Sacamos hipotecas sobre a vida futura por proveitos e concretizar como insistem os tecnocientistas, a voracida-
necessidades presentes e de curto prazo e, no que concerne de da exocolonização redefinirá o conceito de vida, como,
a isso, por necessidades na maioria das vezes autogeradas” aliás, já vem sendo ensaiado em encontros recentes que
(Jonas, 1999:411). Se o preço a pagar pela hipoteca é alto rediscutem as relações entre ciência, tecnologia e socie-
demais para ser resgatado pelas gerações futuras, nossas dade. “A vida é um mecanismo capaz de auto-replicar-se
decisões prático-mundanas trariam para o proscênio éti- e que evolui de forma darwiniana” (Ball, 2000:20).
co uma necessária solidariedade inter-humana e isso por- Considerações dessa natureza costumam ser ainda en-
que “as conclamações à responsabilidade crescem propor- tendidas como ficções científicas e, por isso, rotuladas
cionalmente aos feitos do poder” (Jonas, 1999:412). como acrimônicas e anódinas, constituindo-se em prefi-
Foi preciso que o planeta se apavorasse com a destrui- gurações e projeções de um futuro inglório que ninguém,
ção da biosfera para que riscos técnicos começassem a em sã consciência, deseja. Todo esse estranhamento diante
ser avaliados e criticados por organizações não-governa- do mundo vem provocando irritações visíveis em pensa-
mentais, como a Greenpeace e a Anistia Internacional, dores como Peter Sloterdijk (1998), quando referiu-se à
dentre outras, que lutam, com a força persuasiva que pos- perda do olfato dos teóricos diante das tendências globais
suem, contra a desmesura que tomou conta dos donos do do processo civilizatório ocidental. Drogados pela ansie-
poder, esses prometeus modernos para quem as amplia- dade do sucesso e intoxicados pela cultura da distração,
ções da técnica são sempre entendidas como irreversíveis. eles não conseguem mais estabelecer a interdependência
Sabe-se que a irreversibilidade sempre foi um problema entre vida, mundo e realidade. A “scienza nuova” da ci-
para um antropocentrismo decadente, sempre ignorante das dadania do mundo funda-se eticamente na formação de
lições de vida oferecidas pela dinâmica da natureza. Ma- “coalizões de atenção”, que lutem por uma qualidade
ravilhados porque desceram das árvores, perderam o rabo, evolutiva ampliada que perceba o planeta como “base única
copulam de frente e, mais do que tudo, porque falam, os para todas as hordas, povos, nações e círculos culturais”
homo-sapiens se perderam no horizonte crepuscular de (Sloterdijk, 1998:364).
uma existência prosaica demais. Demasiadamente huma- Se, para isso, for preciso reconhecer explicitamente o
nos, precisam reencontrar-se com a natureza, diluírem-se fracasso do ser humano, que isso seja feito de uma vez. “O
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6. TECNOCIÊNCIA E COMPLEXIDADE DA VIDA
ser humano poderia até mesmo ser definido como a criatu- táfora criada por Mary Shelley em 1818 (1985) fosse
ra que fracassou em seu ser-animal (…) e em seu permane- teletransportada para 2000, poder-se-ia supor que felici-
cer-animal (Sloterdijk, 2000:34). Acusado de professar um dade e virtuosidade são invariantes da alma e que a
determinismo genético e totalitário, por problematizar al- tecnociência, por mais pretensiosa que seja, não tem o
gumas das conseqüências advindas da evolução biotécnica, direito de impedir que elas floresçam nas criações huma-
as novas regras do parque humano terão que polemizar so- nas, sejam elas reais ou imaginárias.
bre o velho humanismo antropocêntrico e reler a longa his-
tória das relações entre animalidade e humanidade, assim
como experienciar a incerteza das fronteiras entre as histó- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ção do mundo. Trad. Arão Shapiro. São Paulo, Makron Books, 1999.
cientista ambicioso, isolado da natureza e dos afetos, cria-
ROSSI, P. Naufrágios sem espectador. A idéia de progresso. Trad. Álvaro
dor de criaturas, deve ser superada, para dar lugar ao cien- Lorencini. São Paulo, Editora da Unesp, 2000.
tista amoroso, capaz de fazer dialogar o sensato e o in- SAID, E.W. Des intellectuels et du pouvoir. Paris, Seuil, 1996.
sensato que sempre marcou a aventura humana. SANTOS, R. “Uma viagem ao futuro assustador previsto pelos cientistas da
NASA”. Valor, 8, 9 e 10 de dezembro de 2000.
Com isso, talvez seja possível aplacar os monstros da
SHELLEY, M. Frankenstein: o moderno Prometeu. Trad. Miécio Araujo Honkis.
razão e perceber que a vida é bela, apesar das desavenças Porto Alegre, L & PM, 1985.
e domesticações que a historialidade imprimiu ao cientis- SHIVA, V. “The second coming of Columbus”. Resurgence, n.182, may-june 1997,
p.12-14.
ta, compelindo-o a optar entre um racionalismo redutor e
SLOTERDIJK, P. Extrañamiento del mundo. Trad. Eduardo Bera. Valencia, Pre-
um idealismo apaixonado. “Faça-me feliz e eu serei de Textos, 1998.
novo virtuoso” foi o apelo desesperado que o monstro __________ . Regras para o parque humano. Uma resposta à carta de Heidegger
dirigiu a Victor Frankenstein para que o deixasse viver, sobre o humanismo. Trad. José Oscar de Almeida Marque. São Paulo, Esta-
ção Liberdade, 2000.
malgrado os ódios e desprezos que todos lhe dirigiam. O SNOW, C.P. As duas culturas e uma segunda leitura. Trad. Geraldo G. de Sou-
criador não se deu conta que o monstro, considerado com za/Renato de A. Rezende. São Paulo, Edusp, 1995.
um fragoroso erro experimental, era o duplo dele mesmo. SPENGLER, O. O homem e a técnica. Trad. João Botelho. Lisboa, Guimarães
eds. 1993.
Deixando-o sucumbir, devorou-se a si próprio e mergu- ZOETHOUT, T. “A philosopher of wholeness”. Resurgence, n.196, sep.-oct. 1999,
lhou definitivamente na infelicidade da hubris. Se a me- p.37-38.
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