SlideShare uma empresa Scribd logo
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000



TECNOCIÊNCIA E COMPLEXIDADE DA VIDA




                                                    EDGARD DE ASSIS CARVALHO
                  Professor do Departamento de Antropologia, Coordenador do Núcleo de Estudos da Complexidade da PUC-SP



                  Resumo: O princípio responsabilidade abre a possibilidade de uma ética planetária fundada no religamento,
                  na compreensão, na magnanimidade e na resistência. Mediante estas práticas, fundadas na inseparabilidade
                  da cultura científica e da cultura das humanidades, coloca-se a possibilidade da restauração sustentável de
                  Gaia, mesmo que cenários do futuro encontrem-se ainda atrelados ao desenvolvimento unidimensional da
                  biotecnologia, da robótica e da neurotecnologia.
                  Palavras-chave: ética e ciência; mudança tecnológica.




A
          cisão entre a cultura científica e a das humanida-              cional-lógico-dedutivos e mítico-imaginários se
          des permanece intocada até os dias de hoje. Pro-                retroalimentassem mutuamente.
          duto da visão cartesiana e newtoniana que se                       A insistência de Snow de que era preciso agir rápido e
constituiu em paradigma do mundo ocidental, essas duas                    repensar a educação em moldes menos especializados e
culturas não se intercomunicam, cada uma vivendo às                       fragmentados, e isso do ensino fundamental à universida-
custas dos escombros da outra. Malgrado os esforços de                    de, não encontrou eco em planejadores e gestores, que se
múltiplas áreas do conhecimento em rejuntar saberes e                     incumbiram de implantar o divórcio entre tecnologia e
repensar o objeto complexo, essas iniciativas são dissipa-                humanismo, entre razão e desrazão. É bem verdade que o
ções, brechas que não conseguem abalar o sólido edifício                  termo cultura tem múltiplas acepções, que vão desde refi-
das dualidades instaladas e consolidadas no universo da                   namento e sofisticação, até soberba e erudição. Se o con-
política, da economia e da própria ciência. Em 1959,                      ceito tivesse deixado de lado essas acepções e passasse a
Charles Snow soube melhor do que ninguém avaliar os                       ser identificado simplesmente com a práxis cognitiva pla-
efeitos deletérios dessa incomunicabilidade, ao afirmar que               netária gerada por grupos sociais múltiplos, a distinção
“quando esses dois sentidos se desenvolvem separados,                     entre cultura científica e humanista certamente cairia por
nenhuma sociedade é capaz de pensar com sabedoria”                        terra. É claro que quando olhamos de frente para esse pla-
(Snow, 1995:72).                                                          neta globalizado, que inclui e exclui por uma dialética
   A existência de uma terceira cultura formada pelas ciê-                perversa e fóbica, batemos de frente na velocidade
ncias da sociedade, que se incumbisse de manter boas re-                  unidimensional e irreversível do progresso, instalada a
lações tanto com cientistas quanto com literatos, deixou-                 partir da revolução mercantil do século 16, consolidada
se contaminar pelo estigma da separação. Com isso, o                      com a revolução industrial do século 18 e solidificada com
panteon do conhecimento redividiu-se de novo, constituído                 a revolução digital do 20.
agora pelas ciências da natureza, pelas ciências da cultu-                   Opondo definitivamente magia e ciência, a idéia de
ra e pelo imaginário presente nas artes, na literatura e na               progresso ganhou força, passando a reprimir qualquer tipo
poesia. Incomunicáveis, essas três galáxias foram conta-                  de cognição que não fosse regida pela causalidade e pelo
minadas pelo desenvolvimento fantástico da tecnociência,                  determinismo e não aspirasse atingir verdades paradig-
que selou de vez as mais variadas formas de dominação                     máticas consensuais. O chamado paradoxo neolítico che-
do homem sobre a natureza, impedindo que itinerários ra-                  ga a parecer inocente quando se depara com a voracidade



                                                                     26
TECNOCIÊNCIA E COMPLEXIDADE DA VIDA


que o controle da natureza apresentou nos tempos moder-               Essas potencialidades pervertidas das tecnologias ga-
nos. Mesmo que se assuma cognitiva e politicamente com             nham expressão máxima no sistema desigual de trocas que
Claude Lévi-Strauss (1962) a inexistência de diferença de          atravessa o planeta em sua totalidade. Ao analisá-las, René
natureza e grau entre os pensamentos mágico e científico,          Passet (1998:65) afirmou que “os fluxos transfronteiriços
a hipermodernidade preferiu concentrar-se apenas no                de mercadorias representam, em sua maioria, trocas inter
prometeísmo da ciência e da razão.                                 ou intra-firmas transnacionais”. Com isso, os Estados-
   A noção de progresso parece andar em crise e, como              Nações não conseguem mais controlar a massa das mer-
apontou Paolo Rossi, temas como a escravidão do homem,             cadorias e isso porque “os capitais circulam mais fácil e
a erosão da subjetividade, as extinções de espécies vege-          rapidamente do que as mercadorias” (Passet, 1998:65),
tais e animais retornaram à cena político-cultural de modo         como se estivessem submetidos a estrutura virtual
obsessivo, sinalizando a urgência de uma tomada de po-             invariante, situada além e aquém dos homens.
sição diante dessa geopolítica do caos. Ao que tudo indi-             Essa “nova ordem mundial” inundou de desigualda-
ca, “o que é moderno não coincide mais com o que é                 des todas as sociedades sem distinção de longitude ou
humano” (Rossi, 2000:97). Esse antagonismo entre                   latitude, aumentando os sem-emprego, os sem-terra, os
modernidade e humanidade fez com que a condição hu-                sem-teto. Todas estas ausências sociais, por vezes circun-
mana passasse a contar pouco diante da hegemonia da                dadas por uma vitimização e infantilização excessivas,
regulação das instituições, do narcisismo da política e da         repercutem a cada dia na pauperização do trabalho e da
arrogância da ciência. Por isso, “olhar para o futuro asse-        vida. Se deixadas a seu bel-prazer, conterão três possi-
melha-se a uma viagem oceânica em frágeis caravelas”               bilidades: ou o sistema se autodestrói, ou se recompõe
(Rossi, 2000:130).                                                 por soluções paliativas, ou se nega por uma utópica re-
   No contexto dessa viagem sem destino, a devastação              volta civil acionada pela legião dos estarrecidos do pla-
das águas, ares e terras espelha, de modo substantivo, a           neta. Na verdade, não há como identificar nesse espaço/
fragilidade dessas caravelas imaginárias, cujos conduto-           tempo geopolítico aonde se localizam os novos inimi-
res são aqueles que ainda acreditam nas forças de conjun-          gos do mundo, pois eles se encontram disseminados,
ção que solidarizam, fraternizam e universalizam. Mes-             como um monstro de múltiplas cabeças, entre os setores
mo diante de mares bravios e da pirataria escondida em             constitutivos das classes dominantes que detêm o con-
potentes submarinos, essa consciência telúrica ampliou-            trole do poderio nuclear, do narcotráfico, do crime or-
se consideravelmente a partir dos anos 70, consubs-                ganizado, da desfaçatez midiática e dos cinismos da re-
tanciando-se em inúmeros encontros transnacionais que,             presentação política.
sem diabolizarem a noção de desenvolvimento, passaram                 A world culture, expressão crítica utilizada por
a postular que ele deveria ser norteado pela sustentabili-         Ramonet (1998), que deslocalizou unidades de produção
dade. “O desenvolvimento é durável se as gerações futu-            e aglutinou unidades de consumo conspícuo, gerou um
ras herdam um meio ambiente cuja qualidade seja pelo               espaço econômico transnacional e transpolítico capitanea-
menos igual ao das gerações precedentes” (Ramonet,                 do pelos EUA, Japão, União Européia, mesmo que terro-
1998:7).                                                           rismos, neonazismos, corrupções e até traições conjugais
   O ponto de partida de qualquer iniciativa regida pela           empanem o brilho que o bloco pretende exibir, nem sem-
sustentabilidade requer uma crítica contundente à civili-          pre com sucesso. Para que a reprodução dessa máquina
zação tecnológica, impelindo indivíduos e sociedades a             mortífera se amplie sem traumatismos, a comunicação e o
se mobilizarem contra a violentação da vida e a desola-            mercado passaram a ser os dois paradigmas estruturantes
ção da terra. O planeta sinaliza um certo cansaço diante           do pensamento, incumbidos de aplacar os dissidentes e
de vacas loucas, águas contaminadas, dejetos tóxicos, ca-          incensar os prosélitos.
tástrofes nucleares, andróides gênicos, máquinas espiri-              Essa pacificação e passividade tramadas nos gabinetes
tuais e próteses corpóreas siliconadas. Ao que tudo indi-          do poder instituído vêm esbarrando em alguns problemas,
ca, a mutação contemporânea, regida por uma taxa                   e isso porque a ampliação da insignificância do mundo
ampliada de acumulação material e imaterial que encanta            começa a exigir reflexões éticas sobre a ciência e a técni-
os “donos do poder”, vem gerando um desencantamento                ca. Em primeiro lugar, cabe pensar um pouco sobre o sig-
recalcado, cujos sintomas são visíveis a olhares mais com-         nificado dessa palavra. Quem se incumbiu dessa tarefa,
plexos e sensíveis.                                                de modo irretocável, foi Cornelius Castoriadis (1996). Não



                                                              27
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000


se trata, apenas, de uma insignificância na cultura ou na           vinculados a elas, à infra-estrutura tácita de conceitos e
política, mas também no pensamento e nos pensadores aco-            idéias que produziram e às ressonâncias reais e imaginá-
metidos pelo conformismo e pela apatia, incapazes de                rias que operaram. Mas é sempre bom relembrar que toda
enxergarem para além dos contornos do infinitamente                 essa herança cultural “é para as massas e não apenas para
pequeno, especialistas nos fragmentos do corpo, da alma,            intelectuais de torre de marfim” (Brody e Brody, 1999:25).
da sociedade, da mente.                                                 Revoluções científicas foi o nome dado a esse conjun-
    Para Castoriadis, torna-se prioritário desentranhar for-        to de alterações prodigiosas, produto de mentes inquie-
ças psíquicas capazes de bater de frente no progresso ins-          tas, dominadas pela pulsão da descoberta. Se seu resul-
trumental, nos cães de guarda do poder e em todos aque-             tado foi mais visível na ampliação da parafernália
les que, ao lado dos tiranos institucionais, impedem a              instrumental e mais oculto na planilha dos conceitos, o
emergência de uma criação imaginária radical. Por isso,             fato é que mudaram o estilo do entendimento do mundo,
em sua cosmovisão, os profissionais da política são mas-            introduziram certezas e semearam incertezas por todo lado.
sacrados sem clemência e seus desmandos, corrupções e               Com o humor de sempre, Freeman Dyson (1998:45) refe-
narcisismos denunciados implacavelmente. Algum para-                riu-se a dois estilos contrastantes que cercam a fabrica-
doxo insolucionável não conseguiu harmonizar conquis-               ção científica: “a organização e a disciplina rígidas repre-
tas democráticas e maravilhas científicas com a huma-               sentadas por Napoleão, o caos e liberdade criativos
nização da cultura. Ao contrário disso, ampliaram-se a              representados por Tolstoi. No mundo dos computadores,
resignação e a impotência diante da fatalidade da crise,            Napoleão é o pesado mainframe da IBM: Tolstoi é o hu-
sendo que a reunificação de cidadãos em torno de aspira-            milde Macintosh. A revolução da informática represen-
ções coletivas planetárias não se processou como se es-             tou uma saída das ambições napoleônicas de Von Neumann
perava. Diante da ampliação dos horrores políticos, eco-            em direção à anarquia tolstoiana da Internet”. Mesmo que
nômicos e culturais produzida pelo século XX, o sistema             Dyson credite à genética e à neurofisiologia o pódio cien-
planetário sepultou paixões e utopias, substituindo-as por          tífico do século XXI, napoleônicos e tolstoianos terão que
desesperanças e conformidades.                                      se unir para derrubar as fronteiras e entender a vida de
    Mesmo assim, é preciso resistir e criar condições de            modo menos linear e mais interdependente, de modo a
autonomia e liberdade para o pensamento e para a ação.              superar os efeitos que tecnologias civis e militares vêm
Para dizer a verdade ao poder e às cintilações dele ema-            provocando no crescimento das desigualdades. “O mal
nadas, não é mais possível pensar apenas como especia-              pode ser visto em muitas partes do mundo, especialmente
lista, mas como um “outsider vigilante”, que questiona a            nas grandes cidades das Américas do Norte e do Sul”
desumanização cultural. Como reitera Edward Said                    (Dyson, 1998:80).
(1996:33), é preciso experienciar cotidianamente a con-                 A tecnologia, enquanto modo de produção cercado por
dição de “intelectual exílico, que não responde à lógica            dispositivos instrumentais e de controle postos em ação
da convenção, mas à da audácia”, que transcende os con-             por predadores inventivos obstinados, criou uma forma
tornos sitiados de sua zona de saber e opta pela condição           inquisitorial que saqueou os tesouros do mundo natural,
de amador, preferindo “o risco da incerteza no domínio              atirando-os nos compartimentos do poder. Essa cultura
público – uma conferência, um livro, um artigo – ao espa-           fáustica, decadente e trágica, foi responsável pela “mon-
ço fechado e controlado pelos expertos e pelos profissio-           tagem de um mundo em miniatura, criado por nós, que se
nais” (Said, 1996:43).                                              moveria, tal como o Universo, graças à sua energia pró-
    O amadorismo a que se refere Said exige intelectuais            pria e obedecendo apenas à mão do homem” (Spengler,
polivalentes, universalistas e éticos, que enfrentem com            1993:102). O questionamento feito por Oswald Spengler,
vigor e determinação as contradições do cenário planetá-            em 1931, sobre essa megamáquina, que exibia uma po-
rio contemporâneo. Para isso, ciência e técnica devem ser           tência de domínio sem precedentes e atraía a fina flor de
entendidas num amplo circuito de ambivalências, mesmo               indivíduos mais dotados cognitivamente, resumia-se em
que as maiores descobertas da ciência, como a gravitação            saber quanto tempo seria ainda necessário para que sua
universal, a estrutura do átomo, a relatividade, o big-bang,        devoração e corrosão se concretizassem.
a mecânica quântica e a decifração do genoma, represen-                 A irreversibilidade do tempo incumbiu-se de mostrar
tem momentos irreversíveis que a história humana produ-             que a racionalidade e a racionalização padronizaram as
ziu sobre ela mesma. Por isso, queiramos ou não, estamos            relações humanas com velocidade máxima, como se as



                                                               28
TECNOCIÊNCIA E COMPLEXIDADE DA VIDA


palavras e as coisas dessem as costas para a segunda lei            dos, mas de propor uma política de civilização (Morin e
da termodinâmica. Desse modo, individualidade e proprie-            Naïr, 1997) que redefina a vida em comum, entenda o
dade passaram a ser entendidas como sinônimas, e isso               sapiens como meio, fim, objeto e sujeito da política e pro-
porque a diminuição do quantum de energia per capita des-           picie boas notícias para Gaia. Uma desaceleração nos ní-
pendido nos processos de trabalho não permitiu a amplia-            veis tecnológicos, acoplada a uma planilha de precauções
ção da criatividade, da liberdade e da autonomia. Como              ético-políticas, não seria impensável para uma renovação
acuradamente percebeu Herbert Marcuse (1999:103), “tal              de valores experimentais universalistas, que investissem
Utopia não seria um estado de felicidade perene. A indi-            na conservação, na frugalidade, na preservação e se recu-
vidualidade natural do homem é também a fonte de sua                sassem a reconhecer em Gaia um laboratório de experi-
aflição natural”.                                                   mentações mefistofélicas de cunho produtivista e inumano.
    Se o homem traz consigo a marca da felicidade e da afli-           Uma mudança de escala nesse laboratório sem super-
ção, do contingente e do necessário, do prazer e da dor, da         visores nomeados, fundada numa ética valorizadora da
dominação e da dependência, constata-se que essa dialética          convivência entre os seis bilhões de humanos que hoje
de ambivalências não permitiu a supressão do ‘cativeiro da          habitam o planeta, e que amanhã, por volta de 2025, so-
humanidade’, mesmo diante dos horrores cotidianos que o             marão entre 7,3 e 10,7 bilhões, segundo os últimos dados
planeta vem presenciando. É interessante constatar que,             divulgados pela ONU, poderia vir a restaurar o sentimento
tanto Marcuse quanto Spengler, mesmo situados em cam-               da totalidade e da harmonia, assim como a unidade entre
pos epistêmicos distintos, produziram essas reflexões en-           mente e matéria, entre ciência e vida tão desprezada ulti-
tre 1931 e 1941, como que prefigurando, cada um a seu               mamente. Foi esse o tom utilizado por Tseard Zoethout
modo, as conseqüências deletérias que o nazifacismo e o             (1999:38) que, ao considerar Spinoza um filósofo da to-
nacional-socialismo do terceiro Reich provocariam na alma           talidade, afirmou que “uma pessoa tem de olhar o mundo
da civilização planetária. Generalizou-se o mal-estar, em-          a partir do ‘ponto da eternidade’”. Essa maneira de olhar
bora nesse final milenar corações e mentes “eugênicas” se           é verdadeiramente uma arte de conhecimento que requer,
incumbam de direcionar o futuro da Terra para onde bem              acima de tudo, intuição intelectual. Somente assim será
pretenderem. O homo-sapiens 2000 se aparenta a um ven-              possível voltar a reconhecer que a totalidade nunca será
tríloquo acometido pela experiência da repetição e vacina-          capturada pela soma das partes, porque implica sempre a
do contra a experiência da criatividade. É possível que ve-         interconexão contraditória e indeterminada de todos os
nha a ser geneticamente correto e esterelizado, embora              eventos, sejam eles coisas ou idéias, fatos ou representa-
eticamente incorreto, discriminador e relativista.                  ções, amores ou desamores.
    Reinventou-se a natureza, computou-se o DNA, pro-                  Esse sentimento de totalidade requer uma revolução
cessou-se a informação em níveis surpreendentes, mas as             noológica que se defronte contra qualquer forma de colo-
concepções mecanicistas não foram superadas, malgrado               nização. Se esse processo histórico soube invadir as
as estruturas dissipativas, os fluxos de dispersão e as ten-        alteridades a partir de 1492, submetendo-as às imposições
dências reorganizatórias que cercam a impermanência de              do dominador, a segunda chegada de Colombo é agora
todos os sistemas vivos. “Com as novas tecnologias, os              representada pela biopirataria de culturas, plantas, animais.
seres humanos assumem o papel de artistas criativos (…)             Com a determinação que lhe é peculiar, Vandana Shiva
mas esse novo tipo de arte (…) é uma arte da imitação,              (1997) exemplificou essa colonização interior, referindo-
cheia de técnicas de cálculo racional, produção em massa            se ao patenteamento de células e genes realizado pelos
e personalização” (Rifkin, 1999:234). Caso a revolução              próprios homens de ciência. Entre os patenteamentos ce-
biotecnológica seja mesmo capaz de produzir uma revi-               lulares e os territoriais, é estabelecida apenas uma dife-
ravolta no sentido da existência, como acredita Jeremy              rença de natureza. Se os últimos classificavam as culturas
Rifkin, aprimorando os nexos da vida democrática em                 não ocidentais como inferiores, pré-lógicas e, portanto,
escala ampliada, os riscos de uma entropia e de uma de-             passíveis de apropriação indébita, os primeiros classifi-
sordem generalizadas poderão vir a ser minimizados, desde           cam os iguais como privados de vida e direitos, porque
que o mito do progresso e o antropocentrismo dele decor-            sofredores e desesperançados. “Terras e florestas, rios e
rente seja colocado em seu devido lugar.                            oceanos, a atmosfera como um todo foram colonizados,
    Não se trata mais de restaurar a carcomida querela en-          erodidos, poluídos. O capital agora tem que se lançar para
tre antigos e modernos, ou entre apocalípticos e integra-           novas colônias, para invadi-las e explorá-las, a fim de



                                                               29
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000


garantir sua acumulação futura. Essas novas colônias são           nela, para que seja possível exercitar a parcimônia diante
os espaços interiores dos corpos das mulheres [e também            de apetites vorazes e incontrolados.
dos homens], plantas e animais” (Shiva, 1997:13).                     Torna-se crucial que assumamos com Jonas a necessi-
    Esse deslocamento estratégico da colonização passou            dade da temperança antes que seja tarde demais. “Nós
a exigir que a ética da vida ocupe cientistas e técnicos de        podemos até chegar a reduzir a extensão da voragem e
modo inabalável e definitivo. Hans Jonas (1990) que, desde         voltar a viver com menos, antes que um esgotamento ca-
1979, dedicou-se aos contornos cognitivos do Princípio             tastrófico ou a poluição do planeta nos constranjam a algo
Responsabilidade, foi mais do que enfático, ao advertir            pior que a temperança” (Jonas, 1999:415). Esse algo pior
que a civilização técnica carrega consigo uma responsa-            já pode ser constatado em diagnósticos que detectam e,
bilidade metafísica, pelo menos “desde que o homem tor-            de certa forma, naturalizam a destruição planetária. A
nou-se perigoso não apenas para ele mesmo, mas para toda           Nasa, por exemplo, já admite que gerações futuras pos-
a biosfera” (Jonas, 1990:261). A restauração da simbiose           sam concentrar-se em “células de sobrevivência”, nas quais
homem/natureza é o primeiro passo a ser dado diante da             chips e tamagochis substituirão plantas e animais e um
arquitetura do mal perpetrada por intelectos teórico-prá-          banco espermático acabe de vez com as ambigüidades da
ticos. A nova obrigação de sujeitos éticos nasce dessa             repressão sexual. Nessas cidades futuras, talvez só reste
agonia planetária considerada descartável por muitos. Essa         aos homens supor que a vida exista em outros planetas e,
ameaça exige, antes de mais nada, “uma ética da conser-            a partir daí, produzir uma terceira colonização, dessa vez
vação (…) do impedimento e não uma ética do progresso              extraterrestre, que se exerceria sobre os sólos áridos de
e do aperfeiçoamento” (Jonas, 1990:266).                           Marte, ou os mares obscuros de Vênus (Santos, 2000:30).
    Para Jonas, qualquer ampliação do potencial do Fundus          O próprio diretor da agência espacial americana declarou
técnico de uma sociedade traz consigo um fardo ético que           que o objetivo das missões, como a Mars Global Surveyor
implica sempre avaliar que o fazer, o saber e o poder nun-         e a Mars Express, reside na ampliação da fronteira huma-
ca constituem apenas um para-si, mas um para-os-outros.            na (Ball, 2000). Se as suspeitas da existência vierem a se
“Sacamos hipotecas sobre a vida futura por proveitos e             concretizar como insistem os tecnocientistas, a voracida-
necessidades presentes e de curto prazo e, no que concerne         de da exocolonização redefinirá o conceito de vida, como,
a isso, por necessidades na maioria das vezes autogeradas”         aliás, já vem sendo ensaiado em encontros recentes que
(Jonas, 1999:411). Se o preço a pagar pela hipoteca é alto         rediscutem as relações entre ciência, tecnologia e socie-
demais para ser resgatado pelas gerações futuras, nossas           dade. “A vida é um mecanismo capaz de auto-replicar-se
decisões prático-mundanas trariam para o proscênio éti-            e que evolui de forma darwiniana” (Ball, 2000:20).
co uma necessária solidariedade inter-humana e isso por-              Considerações dessa natureza costumam ser ainda en-
que “as conclamações à responsabilidade crescem propor-            tendidas como ficções científicas e, por isso, rotuladas
cionalmente aos feitos do poder” (Jonas, 1999:412).                como acrimônicas e anódinas, constituindo-se em prefi-
    Foi preciso que o planeta se apavorasse com a destrui-         gurações e projeções de um futuro inglório que ninguém,
ção da biosfera para que riscos técnicos começassem a              em sã consciência, deseja. Todo esse estranhamento diante
ser avaliados e criticados por organizações não-governa-           do mundo vem provocando irritações visíveis em pensa-
mentais, como a Greenpeace e a Anistia Internacional,              dores como Peter Sloterdijk (1998), quando referiu-se à
dentre outras, que lutam, com a força persuasiva que pos-          perda do olfato dos teóricos diante das tendências globais
suem, contra a desmesura que tomou conta dos donos do              do processo civilizatório ocidental. Drogados pela ansie-
poder, esses prometeus modernos para quem as amplia-               dade do sucesso e intoxicados pela cultura da distração,
ções da técnica são sempre entendidas como irreversíveis.          eles não conseguem mais estabelecer a interdependência
Sabe-se que a irreversibilidade sempre foi um problema             entre vida, mundo e realidade. A “scienza nuova” da ci-
para um antropocentrismo decadente, sempre ignorante das           dadania do mundo funda-se eticamente na formação de
lições de vida oferecidas pela dinâmica da natureza. Ma-           “coalizões de atenção”, que lutem por uma qualidade
ravilhados porque desceram das árvores, perderam o rabo,           evolutiva ampliada que perceba o planeta como “base única
copulam de frente e, mais do que tudo, porque falam, os            para todas as hordas, povos, nações e círculos culturais”
homo-sapiens se perderam no horizonte crepuscular de               (Sloterdijk, 1998:364).
uma existência prosaica demais. Demasiadamente huma-                  Se, para isso, for preciso reconhecer explicitamente o
nos, precisam reencontrar-se com a natureza, diluírem-se           fracasso do ser humano, que isso seja feito de uma vez. “O



                                                              30
TECNOCIÊNCIA E COMPLEXIDADE DA VIDA


ser humano poderia até mesmo ser definido como a criatu-            táfora criada por Mary Shelley em 1818 (1985) fosse
ra que fracassou em seu ser-animal (…) e em seu permane-            teletransportada para 2000, poder-se-ia supor que felici-
cer-animal (Sloterdijk, 2000:34). Acusado de professar um           dade e virtuosidade são invariantes da alma e que a
determinismo genético e totalitário, por problematizar al-          tecnociência, por mais pretensiosa que seja, não tem o
gumas das conseqüências advindas da evolução biotécnica,            direito de impedir que elas floresçam nas criações huma-
as novas regras do parque humano terão que polemizar so-            nas, sejam elas reais ou imaginárias.
bre o velho humanismo antropocêntrico e reler a longa his-
tória das relações entre animalidade e humanidade, assim
como experienciar a incerteza das fronteiras entre as histó-        REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
rias da natureza e da cultura. O que está colocado em xe-
que é o caráter derrisório da noção de humanidade. A                BALL, P. “Sueños poco realistas de la Nasa para Marte”. El Pais, 21/09/2000.
                                                                    BRODY, D.E. e BRODY, A.R. As sete maiores descobertas científicas da his-
humanitas não implica apenas amizade e entendimento, mas               tória. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo, Cia. das Letras, 1999.
também reconhecimento do poder de homens sobre homens.              CASTORIADIS, C. La montée de l’insignifiance. Les carrefours du labyrinthe
“A história real da clareira (…) consiste, portanto, de duas           IV. Paris, Seuil, 1996.

narrativas maiores que convergem em um perspectiva co-              DYSON, F. Mundos imaginados. Trad. Claudio W. Abramo. São Paulo, Cia. das
                                                                       Letras, 1998.
mum, a saber, a explicação de como o animal sapiens se              JONAS, H. Le principe responsabilité. Une éthique pour la civilisation
tornou o homem sapiens” (Sloterdijk, 2000:33) e, simulta-              technologique. Trad. Jean Greisch. Paris, Flammarion, 1990.
neamente, demens.                                                    __________ . “Por que a técnica moderna é um objeto para a ética”. Trad.
                                                                        Oswaldo Giaccoia Jr. Natureza Humana, Revista Internacional de Filoso-
    Essa perspectiva comum requer um outro modo de pen-                 fia e Práticas Psicoterápicas. São Paulo, Educ, v.1, n.2, 1999, p.407-422.
sar e fazer, uma aceitação da responsabilidade social des-          LÉVI-STRAUSS, C. La pensée sauvage. Paris, Plon, 1962.
tinada a impedir que a política do pior floresça. Esse é o          MARCUSE, H. Tecnologia, guerra e fascismo. Trad. Maria Cristina Vidal Borba.
                                                                       São Paulo, Editora Unesp, 1999.
papel reservado a intelectuais capazes de identificar, no
                                                                    MORIN, E. e NAÏR, S. Une politique de civilisation. Paris, Arléa, 1997.
largo espectro das tensões sociais, uma utopia social viá-          PASSET, R. “Potentialités pervertis des technologies”. Manière de Voir, 38. Le
vel, uma arquitetura, ou seja, um paradigma da coerência               monde diplomatique, mars-avril 1998, p.64-69.
construtiva que recombine tensões e integridades, razões            RAMONET, I. Geopolítica do caos. Trad. Guilherme J. de Freitas Teixeira.
                                                                       Petrópolis, Vozes, 1998.
e desrazões. Trata-se, em resumo, de agir e participar sem-
                                                                     __________ . “Pour l’avenir de l’humanité”. Manière de voir, 38. Le monde
pre que possível, mesmo que a perdição seja grande e a                  diplomatique. Ravages de la technoscience, mars-avril 1998, p.7.
tentação do refúgio paranóico maior ainda. A imagem do              RIFKIN, J. O século da biotecnologia. A valorização dos genes e a reconstru-
                                                                        ção do mundo. Trad. Arão Shapiro. São Paulo, Makron Books, 1999.
cientista ambicioso, isolado da natureza e dos afetos, cria-
                                                                    ROSSI, P. Naufrágios sem espectador. A idéia de progresso. Trad. Álvaro
dor de criaturas, deve ser superada, para dar lugar ao cien-           Lorencini. São Paulo, Editora da Unesp, 2000.
tista amoroso, capaz de fazer dialogar o sensato e o in-            SAID, E.W. Des intellectuels et du pouvoir. Paris, Seuil, 1996.
sensato que sempre marcou a aventura humana.                        SANTOS, R. “Uma viagem ao futuro assustador previsto pelos cientistas da
                                                                       NASA”. Valor, 8, 9 e 10 de dezembro de 2000.
    Com isso, talvez seja possível aplacar os monstros da
                                                                    SHELLEY, M. Frankenstein: o moderno Prometeu. Trad. Miécio Araujo Honkis.
razão e perceber que a vida é bela, apesar das desavenças              Porto Alegre, L & PM, 1985.
e domesticações que a historialidade imprimiu ao cientis-           SHIVA, V. “The second coming of Columbus”. Resurgence, n.182, may-june 1997,
                                                                        p.12-14.
ta, compelindo-o a optar entre um racionalismo redutor e
                                                                    SLOTERDIJK, P. Extrañamiento del mundo. Trad. Eduardo Bera. Valencia, Pre-
um idealismo apaixonado. “Faça-me feliz e eu serei de                  Textos, 1998.
novo virtuoso” foi o apelo desesperado que o monstro                 __________ . Regras para o parque humano. Uma resposta à carta de Heidegger
dirigiu a Victor Frankenstein para que o deixasse viver,                sobre o humanismo. Trad. José Oscar de Almeida Marque. São Paulo, Esta-
                                                                        ção Liberdade, 2000.
malgrado os ódios e desprezos que todos lhe dirigiam. O             SNOW, C.P. As duas culturas e uma segunda leitura. Trad. Geraldo G. de Sou-
criador não se deu conta que o monstro, considerado com                za/Renato de A. Rezende. São Paulo, Edusp, 1995.
um fragoroso erro experimental, era o duplo dele mesmo.             SPENGLER, O. O homem e a técnica. Trad. João Botelho. Lisboa, Guimarães
                                                                       eds. 1993.
Deixando-o sucumbir, devorou-se a si próprio e mergu-               ZOETHOUT, T. “A philosopher of wholeness”. Resurgence, n.196, sep.-oct. 1999,
lhou definitivamente na infelicidade da hubris. Se a me-               p.37-38.




                                                               31

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Ciência Ambiental e Interdisciplinaridade - Fundamentos
Ciência Ambiental e Interdisciplinaridade - FundamentosCiência Ambiental e Interdisciplinaridade - Fundamentos
Ciência Ambiental e Interdisciplinaridade - Fundamentos
Vitor Vieira Vasconcelos
 
Aprendizes e Feiticeiros - A Era dos Extremos - Eric Hobsbawn
Aprendizes e Feiticeiros - A Era dos Extremos - Eric HobsbawnAprendizes e Feiticeiros - A Era dos Extremos - Eric Hobsbawn
Aprendizes e Feiticeiros - A Era dos Extremos - Eric Hobsbawn
Vitor Vieira Vasconcelos
 
O que é a ciência
O que é a ciênciaO que é a ciência
O que é a ciência
unesp
 
O peso das ilusões
O peso das ilusõesO peso das ilusões
O peso das ilusões
Dea Conti
 
Tecnologia e Seleção - Laymert Garcia dos Santos
Tecnologia e Seleção - Laymert Garcia dos SantosTecnologia e Seleção - Laymert Garcia dos Santos
Tecnologia e Seleção - Laymert Garcia dos Santos
Matheus Passavante
 
A crise da filosofia culturalista
A crise da filosofia culturalistaA crise da filosofia culturalista
A crise da filosofia culturalista
Carlos Nepomuceno (Nepô)
 
O ramo brasileiro da Antropologia Cognitiva Canadense
O ramo brasileiro da Antropologia Cognitiva CanadenseO ramo brasileiro da Antropologia Cognitiva Canadense
O ramo brasileiro da Antropologia Cognitiva Canadense
Carlos Nepomuceno (Nepô)
 
Aula 05
Aula 05Aula 05
Aula 05
luccy18
 
“Vidas sem valor” considerações sobre a política da alemanha nazista destinad...
“Vidas sem valor” considerações sobre a política da alemanha nazista destinad...“Vidas sem valor” considerações sobre a política da alemanha nazista destinad...
“Vidas sem valor” considerações sobre a política da alemanha nazista destinad...Rômulo Machado
 
Ciência com consciência
Ciência com consciênciaCiência com consciência
Ciência com consciência
tatisoares77
 
Diagramacao de Livro
Diagramacao de LivroDiagramacao de Livro
Diagramacao de Livro
Juliani Pavan
 
Divulgação científica e cidadania
Divulgação científica e cidadaniaDivulgação científica e cidadania
Divulgação científica e cidadaniaYurij Castelfranchi
 
Jamais fomos modernos cap 4
Jamais fomos modernos cap 4Jamais fomos modernos cap 4
Jamais fomos modernos cap 4
Malton de Oliveira Fuckner
 
02 EA como ferramenta p uma engenharia mais conciente
02   EA como ferramenta p uma engenharia mais conciente02   EA como ferramenta p uma engenharia mais conciente
02 EA como ferramenta p uma engenharia mais conciente
Edio Neto Lemes
 
O conhecimento do conhecimento científico(Morin)
O conhecimento do conhecimento científico(Morin)O conhecimento do conhecimento científico(Morin)
O conhecimento do conhecimento científico(Morin)
Francione Brito
 

Mais procurados (20)

Ciência Ambiental e Interdisciplinaridade - Fundamentos
Ciência Ambiental e Interdisciplinaridade - FundamentosCiência Ambiental e Interdisciplinaridade - Fundamentos
Ciência Ambiental e Interdisciplinaridade - Fundamentos
 
Aprendizes e Feiticeiros - A Era dos Extremos - Eric Hobsbawn
Aprendizes e Feiticeiros - A Era dos Extremos - Eric HobsbawnAprendizes e Feiticeiros - A Era dos Extremos - Eric Hobsbawn
Aprendizes e Feiticeiros - A Era dos Extremos - Eric Hobsbawn
 
Macro revolução cientítica
Macro revolução cientíticaMacro revolução cientítica
Macro revolução cientítica
 
Ciencia
CienciaCiencia
Ciencia
 
O que é a ciência
O que é a ciênciaO que é a ciência
O que é a ciência
 
O peso das ilusões
O peso das ilusõesO peso das ilusões
O peso das ilusões
 
Tecnologia e Seleção - Laymert Garcia dos Santos
Tecnologia e Seleção - Laymert Garcia dos SantosTecnologia e Seleção - Laymert Garcia dos Santos
Tecnologia e Seleção - Laymert Garcia dos Santos
 
A crise da filosofia culturalista
A crise da filosofia culturalistaA crise da filosofia culturalista
A crise da filosofia culturalista
 
Ciência com consciência
Ciência com consciênciaCiência com consciência
Ciência com consciência
 
O ramo brasileiro da Antropologia Cognitiva Canadense
O ramo brasileiro da Antropologia Cognitiva CanadenseO ramo brasileiro da Antropologia Cognitiva Canadense
O ramo brasileiro da Antropologia Cognitiva Canadense
 
Aula 05
Aula 05Aula 05
Aula 05
 
Artigo racismo sexismo e eugenia
Artigo racismo sexismo e eugeniaArtigo racismo sexismo e eugenia
Artigo racismo sexismo e eugenia
 
“Vidas sem valor” considerações sobre a política da alemanha nazista destinad...
“Vidas sem valor” considerações sobre a política da alemanha nazista destinad...“Vidas sem valor” considerações sobre a política da alemanha nazista destinad...
“Vidas sem valor” considerações sobre a política da alemanha nazista destinad...
 
Ciência com consciência
Ciência com consciênciaCiência com consciência
Ciência com consciência
 
Diagramacao de Livro
Diagramacao de LivroDiagramacao de Livro
Diagramacao de Livro
 
Divulgação científica e cidadania
Divulgação científica e cidadaniaDivulgação científica e cidadania
Divulgação científica e cidadania
 
A Cor Da Ciencia
A Cor Da CienciaA Cor Da Ciencia
A Cor Da Ciencia
 
Jamais fomos modernos cap 4
Jamais fomos modernos cap 4Jamais fomos modernos cap 4
Jamais fomos modernos cap 4
 
02 EA como ferramenta p uma engenharia mais conciente
02   EA como ferramenta p uma engenharia mais conciente02   EA como ferramenta p uma engenharia mais conciente
02 EA como ferramenta p uma engenharia mais conciente
 
O conhecimento do conhecimento científico(Morin)
O conhecimento do conhecimento científico(Morin)O conhecimento do conhecimento científico(Morin)
O conhecimento do conhecimento científico(Morin)
 

Semelhante a Tecnociência

Texto32 P7
Texto32 P7Texto32 P7
Texto32 P7renatotf
 
Ai urgencia de um ethos mundial
Ai urgencia de um ethos mundialAi urgencia de um ethos mundial
Ai urgencia de um ethos mundialInês Sagula
 
Hermes no ciberespaço completo - 22.06.2011
Hermes no ciberespaço   completo - 22.06.2011Hermes no ciberespaço   completo - 22.06.2011
Hermes no ciberespaço completo - 22.06.2011claudiocpaiva
 
Pequeno Tratado de Subversão da Ordem
Pequeno Tratado de Subversão da OrdemPequeno Tratado de Subversão da Ordem
Pequeno Tratado de Subversão da Ordem
Giba Canto
 
Muq - simionatto. as expressões ideoculturais da crise capitalista na atualid...
Muq - simionatto. as expressões ideoculturais da crise capitalista na atualid...Muq - simionatto. as expressões ideoculturais da crise capitalista na atualid...
Muq - simionatto. as expressões ideoculturais da crise capitalista na atualid...
maisumaquestao
 
Teoria do Conhecimento
Teoria do ConhecimentoTeoria do Conhecimento
Teoria do Conhecimento
Marta Cunha
 
Hermes introdução - hermes e a complexidade da comunicação 13.05.2011
Hermes   introdução - hermes e a complexidade da comunicação 13.05.2011Hermes   introdução - hermes e a complexidade da comunicação 13.05.2011
Hermes introdução - hermes e a complexidade da comunicação 13.05.2011claudiocpaiva
 
Aula 02 formação da sociedade brasileira o homem moderno
Aula 02   formação da sociedade brasileira o homem modernoAula 02   formação da sociedade brasileira o homem moderno
Aula 02 formação da sociedade brasileira o homem modernoElizeu Nascimento Silva
 
O Cenário Social de The Walking Dead: a catarse do grande público com os risc...
O Cenário Social de The Walking Dead: a catarse do grande público com os risc...O Cenário Social de The Walking Dead: a catarse do grande público com os risc...
O Cenário Social de The Walking Dead: a catarse do grande público com os risc...
Professor Belinaso
 
Novo_Livro_Prof_Sousa_Lara-63555972 (1).docx
Novo_Livro_Prof_Sousa_Lara-63555972 (1).docxNovo_Livro_Prof_Sousa_Lara-63555972 (1).docx
Novo_Livro_Prof_Sousa_Lara-63555972 (1).docx
EduardoNeto70
 
Alimentação feminina
Alimentação femininaAlimentação feminina
Alimentação feminina
Thaís Gama
 
Comunicação humana - lÍNGUA PORTUGUESA ENSINO MÉDIO
Comunicação humana - lÍNGUA PORTUGUESA ENSINO MÉDIOComunicação humana - lÍNGUA PORTUGUESA ENSINO MÉDIO
Comunicação humana - lÍNGUA PORTUGUESA ENSINO MÉDIO
ssuser39999f1
 
Costa manuel-da-silva-e-neves-josc3a9-pinheiro-orgs-tecnologia-e-configurac3a...
Costa manuel-da-silva-e-neves-josc3a9-pinheiro-orgs-tecnologia-e-configurac3a...Costa manuel-da-silva-e-neves-josc3a9-pinheiro-orgs-tecnologia-e-configurac3a...
Costa manuel-da-silva-e-neves-josc3a9-pinheiro-orgs-tecnologia-e-configurac3a...
José Pinheiro-Neves
 
Renovar a teoria crítica
Renovar a teoria críticaRenovar a teoria crítica
Renovar a teoria críticaLívia Willborn
 
Da infungibilidade do marxismo final 123
Da infungibilidade do marxismo   final 123Da infungibilidade do marxismo   final 123
Da infungibilidade do marxismo final 123Roberto Cesar Cunha
 
WOLMER A.C & WOLKMER Ma Fatima- Pluralismo jurídico y Constitucionalismo ema...
WOLMER A.C & WOLKMER Ma Fatima- Pluralismo jurídico y Constitucionalismo ema...WOLMER A.C & WOLKMER Ma Fatima- Pluralismo jurídico y Constitucionalismo ema...
WOLMER A.C & WOLKMER Ma Fatima- Pluralismo jurídico y Constitucionalismo ema...
j g
 
Santos boaventura de s. & cunha teresa (ed). colóquio internacional epis...
Santos boaventura de s. & cunha teresa (ed). colóquio internacional epis...Santos boaventura de s. & cunha teresa (ed). colóquio internacional epis...
Santos boaventura de s. & cunha teresa (ed). colóquio internacional epis...
j g
 
Santos boaventura de s. & cunha teresa (ed). colóquio internacional epis...
Santos boaventura de s. & cunha teresa (ed). colóquio internacional epis...Santos boaventura de s. & cunha teresa (ed). colóquio internacional epis...
Santos boaventura de s. & cunha teresa (ed). colóquio internacional epis...
j g
 

Semelhante a Tecnociência (20)

Texto32 P7
Texto32 P7Texto32 P7
Texto32 P7
 
Ai urgencia de um ethos mundial
Ai urgencia de um ethos mundialAi urgencia de um ethos mundial
Ai urgencia de um ethos mundial
 
Hermes no ciberespaço completo - 22.06.2011
Hermes no ciberespaço   completo - 22.06.2011Hermes no ciberespaço   completo - 22.06.2011
Hermes no ciberespaço completo - 22.06.2011
 
O mundo rumo ao colapso total
O mundo rumo ao colapso totalO mundo rumo ao colapso total
O mundo rumo ao colapso total
 
Pequeno Tratado de Subversão da Ordem
Pequeno Tratado de Subversão da OrdemPequeno Tratado de Subversão da Ordem
Pequeno Tratado de Subversão da Ordem
 
Muq - simionatto. as expressões ideoculturais da crise capitalista na atualid...
Muq - simionatto. as expressões ideoculturais da crise capitalista na atualid...Muq - simionatto. as expressões ideoculturais da crise capitalista na atualid...
Muq - simionatto. as expressões ideoculturais da crise capitalista na atualid...
 
Teoria do Conhecimento
Teoria do ConhecimentoTeoria do Conhecimento
Teoria do Conhecimento
 
Hermes introdução - hermes e a complexidade da comunicação 13.05.2011
Hermes   introdução - hermes e a complexidade da comunicação 13.05.2011Hermes   introdução - hermes e a complexidade da comunicação 13.05.2011
Hermes introdução - hermes e a complexidade da comunicação 13.05.2011
 
Aula 02 formação da sociedade brasileira o homem moderno
Aula 02   formação da sociedade brasileira o homem modernoAula 02   formação da sociedade brasileira o homem moderno
Aula 02 formação da sociedade brasileira o homem moderno
 
O Cenário Social de The Walking Dead: a catarse do grande público com os risc...
O Cenário Social de The Walking Dead: a catarse do grande público com os risc...O Cenário Social de The Walking Dead: a catarse do grande público com os risc...
O Cenário Social de The Walking Dead: a catarse do grande público com os risc...
 
Novo_Livro_Prof_Sousa_Lara-63555972 (1).docx
Novo_Livro_Prof_Sousa_Lara-63555972 (1).docxNovo_Livro_Prof_Sousa_Lara-63555972 (1).docx
Novo_Livro_Prof_Sousa_Lara-63555972 (1).docx
 
Haveravidaapós internet
Haveravidaapós internetHaveravidaapós internet
Haveravidaapós internet
 
Alimentação feminina
Alimentação femininaAlimentação feminina
Alimentação feminina
 
Comunicação humana - lÍNGUA PORTUGUESA ENSINO MÉDIO
Comunicação humana - lÍNGUA PORTUGUESA ENSINO MÉDIOComunicação humana - lÍNGUA PORTUGUESA ENSINO MÉDIO
Comunicação humana - lÍNGUA PORTUGUESA ENSINO MÉDIO
 
Costa manuel-da-silva-e-neves-josc3a9-pinheiro-orgs-tecnologia-e-configurac3a...
Costa manuel-da-silva-e-neves-josc3a9-pinheiro-orgs-tecnologia-e-configurac3a...Costa manuel-da-silva-e-neves-josc3a9-pinheiro-orgs-tecnologia-e-configurac3a...
Costa manuel-da-silva-e-neves-josc3a9-pinheiro-orgs-tecnologia-e-configurac3a...
 
Renovar a teoria crítica
Renovar a teoria críticaRenovar a teoria crítica
Renovar a teoria crítica
 
Da infungibilidade do marxismo final 123
Da infungibilidade do marxismo   final 123Da infungibilidade do marxismo   final 123
Da infungibilidade do marxismo final 123
 
WOLMER A.C & WOLKMER Ma Fatima- Pluralismo jurídico y Constitucionalismo ema...
WOLMER A.C & WOLKMER Ma Fatima- Pluralismo jurídico y Constitucionalismo ema...WOLMER A.C & WOLKMER Ma Fatima- Pluralismo jurídico y Constitucionalismo ema...
WOLMER A.C & WOLKMER Ma Fatima- Pluralismo jurídico y Constitucionalismo ema...
 
Santos boaventura de s. & cunha teresa (ed). colóquio internacional epis...
Santos boaventura de s. & cunha teresa (ed). colóquio internacional epis...Santos boaventura de s. & cunha teresa (ed). colóquio internacional epis...
Santos boaventura de s. & cunha teresa (ed). colóquio internacional epis...
 
Santos boaventura de s. & cunha teresa (ed). colóquio internacional epis...
Santos boaventura de s. & cunha teresa (ed). colóquio internacional epis...Santos boaventura de s. & cunha teresa (ed). colóquio internacional epis...
Santos boaventura de s. & cunha teresa (ed). colóquio internacional epis...
 

Mais de Everson Rodrigues

Poster versao final ciência sem fronteiras
Poster  versao final ciência sem fronteirasPoster  versao final ciência sem fronteiras
Poster versao final ciência sem fronteirasEverson Rodrigues
 
Internacionalização de atividades em p&d
Internacionalização de atividades em p&dInternacionalização de atividades em p&d
Internacionalização de atividades em p&dEverson Rodrigues
 
Ciência,tecnologia e informação
Ciência,tecnologia e informaçãoCiência,tecnologia e informação
Ciência,tecnologia e informaçãoEverson Rodrigues
 
Obstaculos de investimento em p&d em empresas no brasil
Obstaculos de investimento em p&d em empresas no brasilObstaculos de investimento em p&d em empresas no brasil
Obstaculos de investimento em p&d em empresas no brasilEverson Rodrigues
 
A internacionalização da economia no brasil
A internacionalização da economia no brasilA internacionalização da economia no brasil
A internacionalização da economia no brasilEverson Rodrigues
 
A internacionalização da economia no brasil
A internacionalização da economia no brasilA internacionalização da economia no brasil
A internacionalização da economia no brasilEverson Rodrigues
 
A internacionalização da economia no brasil
A internacionalização da economia no brasilA internacionalização da economia no brasil
A internacionalização da economia no brasilEverson Rodrigues
 
Apresentação do projeto ciência sem fronteiras
Apresentação do projeto ciência sem fronteirasApresentação do projeto ciência sem fronteiras
Apresentação do projeto ciência sem fronteirasEverson Rodrigues
 
Apresentação do projeto ciência sem fronteiras
Apresentação do projeto ciência sem fronteirasApresentação do projeto ciência sem fronteiras
Apresentação do projeto ciência sem fronteirasEverson Rodrigues
 
País constrói pontes entre ciências e indústrias
País constrói pontes entre ciências e indústriasPaís constrói pontes entre ciências e indústrias
País constrói pontes entre ciências e indústrias
Everson Rodrigues
 
País constrói pontes entre ciências e indústrias
País constrói pontes entre ciências e indústriasPaís constrói pontes entre ciências e indústrias
País constrói pontes entre ciências e indústriasEverson Rodrigues
 

Mais de Everson Rodrigues (12)

Poster versao final ciência sem fronteiras
Poster  versao final ciência sem fronteirasPoster  versao final ciência sem fronteiras
Poster versao final ciência sem fronteiras
 
23032012
2303201223032012
23032012
 
Internacionalização de atividades em p&d
Internacionalização de atividades em p&dInternacionalização de atividades em p&d
Internacionalização de atividades em p&d
 
Ciência,tecnologia e informação
Ciência,tecnologia e informaçãoCiência,tecnologia e informação
Ciência,tecnologia e informação
 
Obstaculos de investimento em p&d em empresas no brasil
Obstaculos de investimento em p&d em empresas no brasilObstaculos de investimento em p&d em empresas no brasil
Obstaculos de investimento em p&d em empresas no brasil
 
A internacionalização da economia no brasil
A internacionalização da economia no brasilA internacionalização da economia no brasil
A internacionalização da economia no brasil
 
A internacionalização da economia no brasil
A internacionalização da economia no brasilA internacionalização da economia no brasil
A internacionalização da economia no brasil
 
A internacionalização da economia no brasil
A internacionalização da economia no brasilA internacionalização da economia no brasil
A internacionalização da economia no brasil
 
Apresentação do projeto ciência sem fronteiras
Apresentação do projeto ciência sem fronteirasApresentação do projeto ciência sem fronteiras
Apresentação do projeto ciência sem fronteiras
 
Apresentação do projeto ciência sem fronteiras
Apresentação do projeto ciência sem fronteirasApresentação do projeto ciência sem fronteiras
Apresentação do projeto ciência sem fronteiras
 
País constrói pontes entre ciências e indústrias
País constrói pontes entre ciências e indústriasPaís constrói pontes entre ciências e indústrias
País constrói pontes entre ciências e indústrias
 
País constrói pontes entre ciências e indústrias
País constrói pontes entre ciências e indústriasPaís constrói pontes entre ciências e indústrias
País constrói pontes entre ciências e indústrias
 

Tecnociência

  • 1. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 TECNOCIÊNCIA E COMPLEXIDADE DA VIDA EDGARD DE ASSIS CARVALHO Professor do Departamento de Antropologia, Coordenador do Núcleo de Estudos da Complexidade da PUC-SP Resumo: O princípio responsabilidade abre a possibilidade de uma ética planetária fundada no religamento, na compreensão, na magnanimidade e na resistência. Mediante estas práticas, fundadas na inseparabilidade da cultura científica e da cultura das humanidades, coloca-se a possibilidade da restauração sustentável de Gaia, mesmo que cenários do futuro encontrem-se ainda atrelados ao desenvolvimento unidimensional da biotecnologia, da robótica e da neurotecnologia. Palavras-chave: ética e ciência; mudança tecnológica. A cisão entre a cultura científica e a das humanida- cional-lógico-dedutivos e mítico-imaginários se des permanece intocada até os dias de hoje. Pro- retroalimentassem mutuamente. duto da visão cartesiana e newtoniana que se A insistência de Snow de que era preciso agir rápido e constituiu em paradigma do mundo ocidental, essas duas repensar a educação em moldes menos especializados e culturas não se intercomunicam, cada uma vivendo às fragmentados, e isso do ensino fundamental à universida- custas dos escombros da outra. Malgrado os esforços de de, não encontrou eco em planejadores e gestores, que se múltiplas áreas do conhecimento em rejuntar saberes e incumbiram de implantar o divórcio entre tecnologia e repensar o objeto complexo, essas iniciativas são dissipa- humanismo, entre razão e desrazão. É bem verdade que o ções, brechas que não conseguem abalar o sólido edifício termo cultura tem múltiplas acepções, que vão desde refi- das dualidades instaladas e consolidadas no universo da namento e sofisticação, até soberba e erudição. Se o con- política, da economia e da própria ciência. Em 1959, ceito tivesse deixado de lado essas acepções e passasse a Charles Snow soube melhor do que ninguém avaliar os ser identificado simplesmente com a práxis cognitiva pla- efeitos deletérios dessa incomunicabilidade, ao afirmar que netária gerada por grupos sociais múltiplos, a distinção “quando esses dois sentidos se desenvolvem separados, entre cultura científica e humanista certamente cairia por nenhuma sociedade é capaz de pensar com sabedoria” terra. É claro que quando olhamos de frente para esse pla- (Snow, 1995:72). neta globalizado, que inclui e exclui por uma dialética A existência de uma terceira cultura formada pelas ciê- perversa e fóbica, batemos de frente na velocidade ncias da sociedade, que se incumbisse de manter boas re- unidimensional e irreversível do progresso, instalada a lações tanto com cientistas quanto com literatos, deixou- partir da revolução mercantil do século 16, consolidada se contaminar pelo estigma da separação. Com isso, o com a revolução industrial do século 18 e solidificada com panteon do conhecimento redividiu-se de novo, constituído a revolução digital do 20. agora pelas ciências da natureza, pelas ciências da cultu- Opondo definitivamente magia e ciência, a idéia de ra e pelo imaginário presente nas artes, na literatura e na progresso ganhou força, passando a reprimir qualquer tipo poesia. Incomunicáveis, essas três galáxias foram conta- de cognição que não fosse regida pela causalidade e pelo minadas pelo desenvolvimento fantástico da tecnociência, determinismo e não aspirasse atingir verdades paradig- que selou de vez as mais variadas formas de dominação máticas consensuais. O chamado paradoxo neolítico che- do homem sobre a natureza, impedindo que itinerários ra- ga a parecer inocente quando se depara com a voracidade 26
  • 2. TECNOCIÊNCIA E COMPLEXIDADE DA VIDA que o controle da natureza apresentou nos tempos moder- Essas potencialidades pervertidas das tecnologias ga- nos. Mesmo que se assuma cognitiva e politicamente com nham expressão máxima no sistema desigual de trocas que Claude Lévi-Strauss (1962) a inexistência de diferença de atravessa o planeta em sua totalidade. Ao analisá-las, René natureza e grau entre os pensamentos mágico e científico, Passet (1998:65) afirmou que “os fluxos transfronteiriços a hipermodernidade preferiu concentrar-se apenas no de mercadorias representam, em sua maioria, trocas inter prometeísmo da ciência e da razão. ou intra-firmas transnacionais”. Com isso, os Estados- A noção de progresso parece andar em crise e, como Nações não conseguem mais controlar a massa das mer- apontou Paolo Rossi, temas como a escravidão do homem, cadorias e isso porque “os capitais circulam mais fácil e a erosão da subjetividade, as extinções de espécies vege- rapidamente do que as mercadorias” (Passet, 1998:65), tais e animais retornaram à cena político-cultural de modo como se estivessem submetidos a estrutura virtual obsessivo, sinalizando a urgência de uma tomada de po- invariante, situada além e aquém dos homens. sição diante dessa geopolítica do caos. Ao que tudo indi- Essa “nova ordem mundial” inundou de desigualda- ca, “o que é moderno não coincide mais com o que é des todas as sociedades sem distinção de longitude ou humano” (Rossi, 2000:97). Esse antagonismo entre latitude, aumentando os sem-emprego, os sem-terra, os modernidade e humanidade fez com que a condição hu- sem-teto. Todas estas ausências sociais, por vezes circun- mana passasse a contar pouco diante da hegemonia da dadas por uma vitimização e infantilização excessivas, regulação das instituições, do narcisismo da política e da repercutem a cada dia na pauperização do trabalho e da arrogância da ciência. Por isso, “olhar para o futuro asse- vida. Se deixadas a seu bel-prazer, conterão três possi- melha-se a uma viagem oceânica em frágeis caravelas” bilidades: ou o sistema se autodestrói, ou se recompõe (Rossi, 2000:130). por soluções paliativas, ou se nega por uma utópica re- No contexto dessa viagem sem destino, a devastação volta civil acionada pela legião dos estarrecidos do pla- das águas, ares e terras espelha, de modo substantivo, a neta. Na verdade, não há como identificar nesse espaço/ fragilidade dessas caravelas imaginárias, cujos conduto- tempo geopolítico aonde se localizam os novos inimi- res são aqueles que ainda acreditam nas forças de conjun- gos do mundo, pois eles se encontram disseminados, ção que solidarizam, fraternizam e universalizam. Mes- como um monstro de múltiplas cabeças, entre os setores mo diante de mares bravios e da pirataria escondida em constitutivos das classes dominantes que detêm o con- potentes submarinos, essa consciência telúrica ampliou- trole do poderio nuclear, do narcotráfico, do crime or- se consideravelmente a partir dos anos 70, consubs- ganizado, da desfaçatez midiática e dos cinismos da re- tanciando-se em inúmeros encontros transnacionais que, presentação política. sem diabolizarem a noção de desenvolvimento, passaram A world culture, expressão crítica utilizada por a postular que ele deveria ser norteado pela sustentabili- Ramonet (1998), que deslocalizou unidades de produção dade. “O desenvolvimento é durável se as gerações futu- e aglutinou unidades de consumo conspícuo, gerou um ras herdam um meio ambiente cuja qualidade seja pelo espaço econômico transnacional e transpolítico capitanea- menos igual ao das gerações precedentes” (Ramonet, do pelos EUA, Japão, União Européia, mesmo que terro- 1998:7). rismos, neonazismos, corrupções e até traições conjugais O ponto de partida de qualquer iniciativa regida pela empanem o brilho que o bloco pretende exibir, nem sem- sustentabilidade requer uma crítica contundente à civili- pre com sucesso. Para que a reprodução dessa máquina zação tecnológica, impelindo indivíduos e sociedades a mortífera se amplie sem traumatismos, a comunicação e o se mobilizarem contra a violentação da vida e a desola- mercado passaram a ser os dois paradigmas estruturantes ção da terra. O planeta sinaliza um certo cansaço diante do pensamento, incumbidos de aplacar os dissidentes e de vacas loucas, águas contaminadas, dejetos tóxicos, ca- incensar os prosélitos. tástrofes nucleares, andróides gênicos, máquinas espiri- Essa pacificação e passividade tramadas nos gabinetes tuais e próteses corpóreas siliconadas. Ao que tudo indi- do poder instituído vêm esbarrando em alguns problemas, ca, a mutação contemporânea, regida por uma taxa e isso porque a ampliação da insignificância do mundo ampliada de acumulação material e imaterial que encanta começa a exigir reflexões éticas sobre a ciência e a técni- os “donos do poder”, vem gerando um desencantamento ca. Em primeiro lugar, cabe pensar um pouco sobre o sig- recalcado, cujos sintomas são visíveis a olhares mais com- nificado dessa palavra. Quem se incumbiu dessa tarefa, plexos e sensíveis. de modo irretocável, foi Cornelius Castoriadis (1996). Não 27
  • 3. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 se trata, apenas, de uma insignificância na cultura ou na vinculados a elas, à infra-estrutura tácita de conceitos e política, mas também no pensamento e nos pensadores aco- idéias que produziram e às ressonâncias reais e imaginá- metidos pelo conformismo e pela apatia, incapazes de rias que operaram. Mas é sempre bom relembrar que toda enxergarem para além dos contornos do infinitamente essa herança cultural “é para as massas e não apenas para pequeno, especialistas nos fragmentos do corpo, da alma, intelectuais de torre de marfim” (Brody e Brody, 1999:25). da sociedade, da mente. Revoluções científicas foi o nome dado a esse conjun- Para Castoriadis, torna-se prioritário desentranhar for- to de alterações prodigiosas, produto de mentes inquie- ças psíquicas capazes de bater de frente no progresso ins- tas, dominadas pela pulsão da descoberta. Se seu resul- trumental, nos cães de guarda do poder e em todos aque- tado foi mais visível na ampliação da parafernália les que, ao lado dos tiranos institucionais, impedem a instrumental e mais oculto na planilha dos conceitos, o emergência de uma criação imaginária radical. Por isso, fato é que mudaram o estilo do entendimento do mundo, em sua cosmovisão, os profissionais da política são mas- introduziram certezas e semearam incertezas por todo lado. sacrados sem clemência e seus desmandos, corrupções e Com o humor de sempre, Freeman Dyson (1998:45) refe- narcisismos denunciados implacavelmente. Algum para- riu-se a dois estilos contrastantes que cercam a fabrica- doxo insolucionável não conseguiu harmonizar conquis- ção científica: “a organização e a disciplina rígidas repre- tas democráticas e maravilhas científicas com a huma- sentadas por Napoleão, o caos e liberdade criativos nização da cultura. Ao contrário disso, ampliaram-se a representados por Tolstoi. No mundo dos computadores, resignação e a impotência diante da fatalidade da crise, Napoleão é o pesado mainframe da IBM: Tolstoi é o hu- sendo que a reunificação de cidadãos em torno de aspira- milde Macintosh. A revolução da informática represen- ções coletivas planetárias não se processou como se es- tou uma saída das ambições napoleônicas de Von Neumann perava. Diante da ampliação dos horrores políticos, eco- em direção à anarquia tolstoiana da Internet”. Mesmo que nômicos e culturais produzida pelo século XX, o sistema Dyson credite à genética e à neurofisiologia o pódio cien- planetário sepultou paixões e utopias, substituindo-as por tífico do século XXI, napoleônicos e tolstoianos terão que desesperanças e conformidades. se unir para derrubar as fronteiras e entender a vida de Mesmo assim, é preciso resistir e criar condições de modo menos linear e mais interdependente, de modo a autonomia e liberdade para o pensamento e para a ação. superar os efeitos que tecnologias civis e militares vêm Para dizer a verdade ao poder e às cintilações dele ema- provocando no crescimento das desigualdades. “O mal nadas, não é mais possível pensar apenas como especia- pode ser visto em muitas partes do mundo, especialmente lista, mas como um “outsider vigilante”, que questiona a nas grandes cidades das Américas do Norte e do Sul” desumanização cultural. Como reitera Edward Said (Dyson, 1998:80). (1996:33), é preciso experienciar cotidianamente a con- A tecnologia, enquanto modo de produção cercado por dição de “intelectual exílico, que não responde à lógica dispositivos instrumentais e de controle postos em ação da convenção, mas à da audácia”, que transcende os con- por predadores inventivos obstinados, criou uma forma tornos sitiados de sua zona de saber e opta pela condição inquisitorial que saqueou os tesouros do mundo natural, de amador, preferindo “o risco da incerteza no domínio atirando-os nos compartimentos do poder. Essa cultura público – uma conferência, um livro, um artigo – ao espa- fáustica, decadente e trágica, foi responsável pela “mon- ço fechado e controlado pelos expertos e pelos profissio- tagem de um mundo em miniatura, criado por nós, que se nais” (Said, 1996:43). moveria, tal como o Universo, graças à sua energia pró- O amadorismo a que se refere Said exige intelectuais pria e obedecendo apenas à mão do homem” (Spengler, polivalentes, universalistas e éticos, que enfrentem com 1993:102). O questionamento feito por Oswald Spengler, vigor e determinação as contradições do cenário planetá- em 1931, sobre essa megamáquina, que exibia uma po- rio contemporâneo. Para isso, ciência e técnica devem ser tência de domínio sem precedentes e atraía a fina flor de entendidas num amplo circuito de ambivalências, mesmo indivíduos mais dotados cognitivamente, resumia-se em que as maiores descobertas da ciência, como a gravitação saber quanto tempo seria ainda necessário para que sua universal, a estrutura do átomo, a relatividade, o big-bang, devoração e corrosão se concretizassem. a mecânica quântica e a decifração do genoma, represen- A irreversibilidade do tempo incumbiu-se de mostrar tem momentos irreversíveis que a história humana produ- que a racionalidade e a racionalização padronizaram as ziu sobre ela mesma. Por isso, queiramos ou não, estamos relações humanas com velocidade máxima, como se as 28
  • 4. TECNOCIÊNCIA E COMPLEXIDADE DA VIDA palavras e as coisas dessem as costas para a segunda lei dos, mas de propor uma política de civilização (Morin e da termodinâmica. Desse modo, individualidade e proprie- Naïr, 1997) que redefina a vida em comum, entenda o dade passaram a ser entendidas como sinônimas, e isso sapiens como meio, fim, objeto e sujeito da política e pro- porque a diminuição do quantum de energia per capita des- picie boas notícias para Gaia. Uma desaceleração nos ní- pendido nos processos de trabalho não permitiu a amplia- veis tecnológicos, acoplada a uma planilha de precauções ção da criatividade, da liberdade e da autonomia. Como ético-políticas, não seria impensável para uma renovação acuradamente percebeu Herbert Marcuse (1999:103), “tal de valores experimentais universalistas, que investissem Utopia não seria um estado de felicidade perene. A indi- na conservação, na frugalidade, na preservação e se recu- vidualidade natural do homem é também a fonte de sua sassem a reconhecer em Gaia um laboratório de experi- aflição natural”. mentações mefistofélicas de cunho produtivista e inumano. Se o homem traz consigo a marca da felicidade e da afli- Uma mudança de escala nesse laboratório sem super- ção, do contingente e do necessário, do prazer e da dor, da visores nomeados, fundada numa ética valorizadora da dominação e da dependência, constata-se que essa dialética convivência entre os seis bilhões de humanos que hoje de ambivalências não permitiu a supressão do ‘cativeiro da habitam o planeta, e que amanhã, por volta de 2025, so- humanidade’, mesmo diante dos horrores cotidianos que o marão entre 7,3 e 10,7 bilhões, segundo os últimos dados planeta vem presenciando. É interessante constatar que, divulgados pela ONU, poderia vir a restaurar o sentimento tanto Marcuse quanto Spengler, mesmo situados em cam- da totalidade e da harmonia, assim como a unidade entre pos epistêmicos distintos, produziram essas reflexões en- mente e matéria, entre ciência e vida tão desprezada ulti- tre 1931 e 1941, como que prefigurando, cada um a seu mamente. Foi esse o tom utilizado por Tseard Zoethout modo, as conseqüências deletérias que o nazifacismo e o (1999:38) que, ao considerar Spinoza um filósofo da to- nacional-socialismo do terceiro Reich provocariam na alma talidade, afirmou que “uma pessoa tem de olhar o mundo da civilização planetária. Generalizou-se o mal-estar, em- a partir do ‘ponto da eternidade’”. Essa maneira de olhar bora nesse final milenar corações e mentes “eugênicas” se é verdadeiramente uma arte de conhecimento que requer, incumbam de direcionar o futuro da Terra para onde bem acima de tudo, intuição intelectual. Somente assim será pretenderem. O homo-sapiens 2000 se aparenta a um ven- possível voltar a reconhecer que a totalidade nunca será tríloquo acometido pela experiência da repetição e vacina- capturada pela soma das partes, porque implica sempre a do contra a experiência da criatividade. É possível que ve- interconexão contraditória e indeterminada de todos os nha a ser geneticamente correto e esterelizado, embora eventos, sejam eles coisas ou idéias, fatos ou representa- eticamente incorreto, discriminador e relativista. ções, amores ou desamores. Reinventou-se a natureza, computou-se o DNA, pro- Esse sentimento de totalidade requer uma revolução cessou-se a informação em níveis surpreendentes, mas as noológica que se defronte contra qualquer forma de colo- concepções mecanicistas não foram superadas, malgrado nização. Se esse processo histórico soube invadir as as estruturas dissipativas, os fluxos de dispersão e as ten- alteridades a partir de 1492, submetendo-as às imposições dências reorganizatórias que cercam a impermanência de do dominador, a segunda chegada de Colombo é agora todos os sistemas vivos. “Com as novas tecnologias, os representada pela biopirataria de culturas, plantas, animais. seres humanos assumem o papel de artistas criativos (…) Com a determinação que lhe é peculiar, Vandana Shiva mas esse novo tipo de arte (…) é uma arte da imitação, (1997) exemplificou essa colonização interior, referindo- cheia de técnicas de cálculo racional, produção em massa se ao patenteamento de células e genes realizado pelos e personalização” (Rifkin, 1999:234). Caso a revolução próprios homens de ciência. Entre os patenteamentos ce- biotecnológica seja mesmo capaz de produzir uma revi- lulares e os territoriais, é estabelecida apenas uma dife- ravolta no sentido da existência, como acredita Jeremy rença de natureza. Se os últimos classificavam as culturas Rifkin, aprimorando os nexos da vida democrática em não ocidentais como inferiores, pré-lógicas e, portanto, escala ampliada, os riscos de uma entropia e de uma de- passíveis de apropriação indébita, os primeiros classifi- sordem generalizadas poderão vir a ser minimizados, desde cam os iguais como privados de vida e direitos, porque que o mito do progresso e o antropocentrismo dele decor- sofredores e desesperançados. “Terras e florestas, rios e rente seja colocado em seu devido lugar. oceanos, a atmosfera como um todo foram colonizados, Não se trata mais de restaurar a carcomida querela en- erodidos, poluídos. O capital agora tem que se lançar para tre antigos e modernos, ou entre apocalípticos e integra- novas colônias, para invadi-las e explorá-las, a fim de 29
  • 5. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 14(3) 2000 garantir sua acumulação futura. Essas novas colônias são nela, para que seja possível exercitar a parcimônia diante os espaços interiores dos corpos das mulheres [e também de apetites vorazes e incontrolados. dos homens], plantas e animais” (Shiva, 1997:13). Torna-se crucial que assumamos com Jonas a necessi- Esse deslocamento estratégico da colonização passou dade da temperança antes que seja tarde demais. “Nós a exigir que a ética da vida ocupe cientistas e técnicos de podemos até chegar a reduzir a extensão da voragem e modo inabalável e definitivo. Hans Jonas (1990) que, desde voltar a viver com menos, antes que um esgotamento ca- 1979, dedicou-se aos contornos cognitivos do Princípio tastrófico ou a poluição do planeta nos constranjam a algo Responsabilidade, foi mais do que enfático, ao advertir pior que a temperança” (Jonas, 1999:415). Esse algo pior que a civilização técnica carrega consigo uma responsa- já pode ser constatado em diagnósticos que detectam e, bilidade metafísica, pelo menos “desde que o homem tor- de certa forma, naturalizam a destruição planetária. A nou-se perigoso não apenas para ele mesmo, mas para toda Nasa, por exemplo, já admite que gerações futuras pos- a biosfera” (Jonas, 1990:261). A restauração da simbiose sam concentrar-se em “células de sobrevivência”, nas quais homem/natureza é o primeiro passo a ser dado diante da chips e tamagochis substituirão plantas e animais e um arquitetura do mal perpetrada por intelectos teórico-prá- banco espermático acabe de vez com as ambigüidades da ticos. A nova obrigação de sujeitos éticos nasce dessa repressão sexual. Nessas cidades futuras, talvez só reste agonia planetária considerada descartável por muitos. Essa aos homens supor que a vida exista em outros planetas e, ameaça exige, antes de mais nada, “uma ética da conser- a partir daí, produzir uma terceira colonização, dessa vez vação (…) do impedimento e não uma ética do progresso extraterrestre, que se exerceria sobre os sólos áridos de e do aperfeiçoamento” (Jonas, 1990:266). Marte, ou os mares obscuros de Vênus (Santos, 2000:30). Para Jonas, qualquer ampliação do potencial do Fundus O próprio diretor da agência espacial americana declarou técnico de uma sociedade traz consigo um fardo ético que que o objetivo das missões, como a Mars Global Surveyor implica sempre avaliar que o fazer, o saber e o poder nun- e a Mars Express, reside na ampliação da fronteira huma- ca constituem apenas um para-si, mas um para-os-outros. na (Ball, 2000). Se as suspeitas da existência vierem a se “Sacamos hipotecas sobre a vida futura por proveitos e concretizar como insistem os tecnocientistas, a voracida- necessidades presentes e de curto prazo e, no que concerne de da exocolonização redefinirá o conceito de vida, como, a isso, por necessidades na maioria das vezes autogeradas” aliás, já vem sendo ensaiado em encontros recentes que (Jonas, 1999:411). Se o preço a pagar pela hipoteca é alto rediscutem as relações entre ciência, tecnologia e socie- demais para ser resgatado pelas gerações futuras, nossas dade. “A vida é um mecanismo capaz de auto-replicar-se decisões prático-mundanas trariam para o proscênio éti- e que evolui de forma darwiniana” (Ball, 2000:20). co uma necessária solidariedade inter-humana e isso por- Considerações dessa natureza costumam ser ainda en- que “as conclamações à responsabilidade crescem propor- tendidas como ficções científicas e, por isso, rotuladas cionalmente aos feitos do poder” (Jonas, 1999:412). como acrimônicas e anódinas, constituindo-se em prefi- Foi preciso que o planeta se apavorasse com a destrui- gurações e projeções de um futuro inglório que ninguém, ção da biosfera para que riscos técnicos começassem a em sã consciência, deseja. Todo esse estranhamento diante ser avaliados e criticados por organizações não-governa- do mundo vem provocando irritações visíveis em pensa- mentais, como a Greenpeace e a Anistia Internacional, dores como Peter Sloterdijk (1998), quando referiu-se à dentre outras, que lutam, com a força persuasiva que pos- perda do olfato dos teóricos diante das tendências globais suem, contra a desmesura que tomou conta dos donos do do processo civilizatório ocidental. Drogados pela ansie- poder, esses prometeus modernos para quem as amplia- dade do sucesso e intoxicados pela cultura da distração, ções da técnica são sempre entendidas como irreversíveis. eles não conseguem mais estabelecer a interdependência Sabe-se que a irreversibilidade sempre foi um problema entre vida, mundo e realidade. A “scienza nuova” da ci- para um antropocentrismo decadente, sempre ignorante das dadania do mundo funda-se eticamente na formação de lições de vida oferecidas pela dinâmica da natureza. Ma- “coalizões de atenção”, que lutem por uma qualidade ravilhados porque desceram das árvores, perderam o rabo, evolutiva ampliada que perceba o planeta como “base única copulam de frente e, mais do que tudo, porque falam, os para todas as hordas, povos, nações e círculos culturais” homo-sapiens se perderam no horizonte crepuscular de (Sloterdijk, 1998:364). uma existência prosaica demais. Demasiadamente huma- Se, para isso, for preciso reconhecer explicitamente o nos, precisam reencontrar-se com a natureza, diluírem-se fracasso do ser humano, que isso seja feito de uma vez. “O 30
  • 6. TECNOCIÊNCIA E COMPLEXIDADE DA VIDA ser humano poderia até mesmo ser definido como a criatu- táfora criada por Mary Shelley em 1818 (1985) fosse ra que fracassou em seu ser-animal (…) e em seu permane- teletransportada para 2000, poder-se-ia supor que felici- cer-animal (Sloterdijk, 2000:34). Acusado de professar um dade e virtuosidade são invariantes da alma e que a determinismo genético e totalitário, por problematizar al- tecnociência, por mais pretensiosa que seja, não tem o gumas das conseqüências advindas da evolução biotécnica, direito de impedir que elas floresçam nas criações huma- as novas regras do parque humano terão que polemizar so- nas, sejam elas reais ou imaginárias. bre o velho humanismo antropocêntrico e reler a longa his- tória das relações entre animalidade e humanidade, assim como experienciar a incerteza das fronteiras entre as histó- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS rias da natureza e da cultura. O que está colocado em xe- que é o caráter derrisório da noção de humanidade. A BALL, P. “Sueños poco realistas de la Nasa para Marte”. El Pais, 21/09/2000. BRODY, D.E. e BRODY, A.R. As sete maiores descobertas científicas da his- humanitas não implica apenas amizade e entendimento, mas tória. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo, Cia. das Letras, 1999. também reconhecimento do poder de homens sobre homens. CASTORIADIS, C. La montée de l’insignifiance. Les carrefours du labyrinthe “A história real da clareira (…) consiste, portanto, de duas IV. Paris, Seuil, 1996. narrativas maiores que convergem em um perspectiva co- DYSON, F. Mundos imaginados. Trad. Claudio W. Abramo. São Paulo, Cia. das Letras, 1998. mum, a saber, a explicação de como o animal sapiens se JONAS, H. Le principe responsabilité. Une éthique pour la civilisation tornou o homem sapiens” (Sloterdijk, 2000:33) e, simulta- technologique. Trad. Jean Greisch. Paris, Flammarion, 1990. neamente, demens. __________ . “Por que a técnica moderna é um objeto para a ética”. Trad. Oswaldo Giaccoia Jr. Natureza Humana, Revista Internacional de Filoso- Essa perspectiva comum requer um outro modo de pen- fia e Práticas Psicoterápicas. São Paulo, Educ, v.1, n.2, 1999, p.407-422. sar e fazer, uma aceitação da responsabilidade social des- LÉVI-STRAUSS, C. La pensée sauvage. Paris, Plon, 1962. tinada a impedir que a política do pior floresça. Esse é o MARCUSE, H. Tecnologia, guerra e fascismo. Trad. Maria Cristina Vidal Borba. São Paulo, Editora Unesp, 1999. papel reservado a intelectuais capazes de identificar, no MORIN, E. e NAÏR, S. Une politique de civilisation. Paris, Arléa, 1997. largo espectro das tensões sociais, uma utopia social viá- PASSET, R. “Potentialités pervertis des technologies”. Manière de Voir, 38. Le vel, uma arquitetura, ou seja, um paradigma da coerência monde diplomatique, mars-avril 1998, p.64-69. construtiva que recombine tensões e integridades, razões RAMONET, I. Geopolítica do caos. Trad. Guilherme J. de Freitas Teixeira. Petrópolis, Vozes, 1998. e desrazões. Trata-se, em resumo, de agir e participar sem- __________ . “Pour l’avenir de l’humanité”. Manière de voir, 38. Le monde pre que possível, mesmo que a perdição seja grande e a diplomatique. Ravages de la technoscience, mars-avril 1998, p.7. tentação do refúgio paranóico maior ainda. A imagem do RIFKIN, J. O século da biotecnologia. A valorização dos genes e a reconstru- ção do mundo. Trad. Arão Shapiro. São Paulo, Makron Books, 1999. cientista ambicioso, isolado da natureza e dos afetos, cria- ROSSI, P. Naufrágios sem espectador. A idéia de progresso. Trad. Álvaro dor de criaturas, deve ser superada, para dar lugar ao cien- Lorencini. São Paulo, Editora da Unesp, 2000. tista amoroso, capaz de fazer dialogar o sensato e o in- SAID, E.W. Des intellectuels et du pouvoir. Paris, Seuil, 1996. sensato que sempre marcou a aventura humana. SANTOS, R. “Uma viagem ao futuro assustador previsto pelos cientistas da NASA”. Valor, 8, 9 e 10 de dezembro de 2000. Com isso, talvez seja possível aplacar os monstros da SHELLEY, M. Frankenstein: o moderno Prometeu. Trad. Miécio Araujo Honkis. razão e perceber que a vida é bela, apesar das desavenças Porto Alegre, L & PM, 1985. e domesticações que a historialidade imprimiu ao cientis- SHIVA, V. “The second coming of Columbus”. Resurgence, n.182, may-june 1997, p.12-14. ta, compelindo-o a optar entre um racionalismo redutor e SLOTERDIJK, P. Extrañamiento del mundo. Trad. Eduardo Bera. Valencia, Pre- um idealismo apaixonado. “Faça-me feliz e eu serei de Textos, 1998. novo virtuoso” foi o apelo desesperado que o monstro __________ . Regras para o parque humano. Uma resposta à carta de Heidegger dirigiu a Victor Frankenstein para que o deixasse viver, sobre o humanismo. Trad. José Oscar de Almeida Marque. São Paulo, Esta- ção Liberdade, 2000. malgrado os ódios e desprezos que todos lhe dirigiam. O SNOW, C.P. As duas culturas e uma segunda leitura. Trad. Geraldo G. de Sou- criador não se deu conta que o monstro, considerado com za/Renato de A. Rezende. São Paulo, Edusp, 1995. um fragoroso erro experimental, era o duplo dele mesmo. SPENGLER, O. O homem e a técnica. Trad. João Botelho. Lisboa, Guimarães eds. 1993. Deixando-o sucumbir, devorou-se a si próprio e mergu- ZOETHOUT, T. “A philosopher of wholeness”. Resurgence, n.196, sep.-oct. 1999, lhou definitivamente na infelicidade da hubris. Se a me- p.37-38. 31