2. E D I T O R I A L
A revista Cidadania & Meio Ambiente
é uma publicação da Câmara de Cultura
Telefax (21)2487-4128
(21) 8197-6313 . 8549-1269
cultura@camaradecultura.org
www.camaradecultura.org
Diretora
Editor
Subeditor
Projeto Gráfico
Regina Lima
regina@camaradecultura.org
Hélio Carneiro
carneiro@camaradecultura.org
Henrique Cortez
henrique@camaradecultura.org
Lucia H. Carneiro
lucia@camaradecultura.org
Representante em Brasilia
Armazem Eventos e Publicidade
PABX (61) 30348677
atendimento@armazemeventos.com.br
Colaboraram nesta edição
Abner Ceniceros Aviña
Alex Prud’Homme
Caio Hamburguer
Ellen K. Pikitch
Flávio José Rocha da Silva
Gloria De Las Fuentes Lacavex
Haidé Maria Hupfer
Helio Carneiro
James A. Estes
José Eli da Veiga
Lester Brown
Lucia Graves
Newton Figueiredo
Ricardo Abramovay
Roberto Naime
Sidney Graggan(NSF)
Visite o portal EcoDebate
www.ecodebate.com.br
Uma ferramenta de incentivo ao conhe-cimento
e à reflexão através de notícias,
informações, artigos de opinião e
artigos técnicos, sempre discutindo
cidadania e meio ambiente, de forma
transversal e analítica.
Cidadania & Meio Ambiente também
pode ser lida e/ou baixada em pdf no
portal www.ecodebate.com.br
A Revista Cidadania & Meio Ambiente não
se responsabiliza pelos conceitos e opiniões
emitidos em matérias e artigos assinados.
Editada e impressa no Brasil.
Caros Amigos,
Não bastassem as alterações climáticas naturais responsáveis por seguidas
extinções em massa, a partir do momento em que o homem passou a
caçar foi iniciado um irreversível processo de degradação ambiental via
desequilíbrio da cadeia alimentar planetária, fato que agora atinge seu pa-roxismo.
O estudo Redução Trófica no Planeta Terra, publicado na revista
Science, explica como ocorreu o processo e como os grandes animais,
consumidores de ponta da cadeia alimentar, influenciam de forma decisi-va
a estrutura, a função e a biodiversidade dos ecossistemas naturais.
A pesquisa do clima terrestre há 35 milhões de anos também se torna
ferramenta balizadora do que o futuro imediato nos reserva, no plano das
mudanças climáticas, se persistirmos no modelo de desenvolvimento emis-sor
de gases de efeito estufa. No cenário climático remoto, os altos índices
atmosféricos de CO2 aqueciam os trópicos em mais 5 a 10oC do que as
médias atuais, enquanto as regiões polares eram 15 a 20oC mais quentes.
Segundo os climatologistas que assinam o estudo Perspectives , a continuar o
aquecimento global, a espécie humana e os ecossistemas globais correm o
risco de enfrentar um sufocante quadro climático nunca antes vivenciado.
As repercussões mais alarmantes das atuais mudanças climáticas já são sen-tidas
nos processos de desertificação e de escassez de água, e na geopolíti-ca
alimentar. O resultado pode ser constatado na miséria, na fome e nas
migrações em massa de milhões de habitantes no Chifre da África (Somá-lia,
Sudão, Etiópia). É definitivamente chegada a hora de redefinir como
pensamos, consumimos e valorizamos a água. E não apenas a água doce,
já que o ecossistema marinho também está em perigo: a Grande Mancha
de Lixo Plástico do Pacífico prova a necessidade de despertarmos para o
consumo consciente. O que só acontece quando se aprende a identificar
produtos e comportamentos ecologicamente responsáveis, como sinaliza
nesta edição o artigo Produtos verdes: mais transparência para o consumidor.
A economia de baixo carbono que se busca implantar deve ser sustentada
no conhecimento, não na destruição da natureza. Para tanto, temos de
buscar aconselhamento nos melhores conhecedores do meio ambiente –
os povos indígenas. Por coexistir milhares de anos em contato direto com
a natureza e nela praticarem de forma intuitiva e espontânea o conceito de
desenvolvimento sustentável, os indígenas têm muito a ensinar sobre o uso
dos recursos naturais.
Encerramos esta edição com um alerta sobre o glifosato, a substância química
central do herbicida Roundup, o mais usado na agricultura mundial. Segundo
relatório divulgado pela organização Earth Open Source, a partir de evidências
fornecidas por fontes independentes, o herbicida precisa passar por urgente revi-são
das normas regulatórias referentes a seu uso, pois é acusado de ser danoso ao
meio ambiente e causar anomalias em fetos de animais e de humanos.
Hélio Carneiro
Editor
ISSN217-630X
977217763007 034
3.
4. 4
Nº 34 – 2011– ANO VI
Capa: Planeta seco por GADL
5
9
10
14
16
18
20
23
24
26
28
30
Lixo plástico: o terror dos oceanos
Um redemoinho de sacos, garrafas, redes de pesca e outros detritos plásticos envenena
o ecossistema marinho: flora e fauna são vítimas do impacto do atual consumismo inconsciente.
Descubra a dimensão e a gravidade desse problema ambiental. Por Hélio Carneiro
Princípio Responsabilidade e Consumo Consciente
O consumo consciente levanta hipóteses de uma nova fase civilizatória, onde o cidadão
esclarecido e engajado pratica uma seleção natural de agentes culturais através do seu gesto
consciente de consumo. Por Roberto Naime e Haide Maria Hupfer
Escassez & Fome: a nova geopolítica alimentar
Vive-se hoje um quadro geopolítico extremamente perigoso e potencialmente explosivo, já que
a oferta mundial de alimentos não deve acompanhar as exigências alimentares coletivamente
crescentes, fato que prenuncia um século 21 de “guerras por comida”. Por Lester Brown
Produtos verdes: mais transparência para o consumidor
Para surfar na onda verde e promover uma imagem ecologicamente responsável de produtos
e serviços, muitas organizações se valem do greenwashing, que muitas vezes não passa
de maquiagem verde. Confira aqui como triar o joio do trigo. Por Newton Figueiredo
Terra – o passado tórrido prenuncia o clima futuro?
Novas modelagens matemáticas permitem estudar os primeiros tempos climáticos da Terra
e ajudam a compreender o que a humanidade poderá enfentar brevemente se a emissão
de gases de efeito estufa continuar a aumentar. Por Sidney Graggan(NSF)
Povos indígenas & proteção ambiental
Os povos indígenas têm longa experiência na gestão dos recursos ambientais por coexistirem
diretamente com a natureza e praticarem espontaneamente o conceito de desenvolvimento
sustentável. Por Gloria Aurora De Las Fuentes Lacavex e Abner Ceniceros Aviña
Economia de baixo carbono: o desafio brasileiro
O Brasil pode continuar desempenhando papel de destaque na oferta de commodities
ao mesmo tempo em que transita para uma economia de baixo carbono baseada
no conhecimento, não na destruição da natureza. Por Ricardo Abramovay
O Xingu do século 21ameaçado
No Xingu, homens e mulheres não são arrogantes donos do mundo. São parte da cadeia
interligada e interdependente da vida planetária. Para o índio, homem e natureza evoluem
juntos, percepção que pode nos ensinar uma nova dimensão existencial. Por Caio Hamburguer
Triplo desafio à Economia Verde
Num manifesto ecopragmático, o ecólogo americano Stewart Brand postula a renovação da
política através de uma corrente que encaminhe soluções práticas aos grandes desafios atuais:
população, clima e biodiversidade. Por José Eli da Veiga
Prevendo um planeta mais seco
Na esteira das alterações ambientais, os climatologistas anunciam um flagelo em andamento –
a seca. Para prevenir essa progressão galopante, o autor alerta que precisamos redefinir como
pensamos, valorizamos e consumimos a água. Por Alex Prud’Homme
Grandes predadores: vitais para o ecossistema
A diminuição dos grandes predadores vem provocando, desde tempos imemoriais, mudanças
dramáticas na cadeia alimentar dos ecossistemas terrestres, com reflexos na degradação do
solo, da água, da vegetação e da atmosfera. Por Drs. Ellen K. Pikitch e James A. Estes
Roundup causa anomalia em fetos
A substância química central do herbicida mais usado na agricultura mundial volta ao banco
dos réus após a liberação, pela Earth Open Source, de relatório que aponta os graves riscos do
glifosato ao ser humano. Por Lucia Graves
5. P O L U I Ç Ã O
LIXO PLÁSTICO
o terror dos oceanos
por Helio Carneiro
m redemoinho de sacos, garra-fas,
redes de pesca e outros de-tritos
plásticos envenena o ecos-
Não apenas em Midway, mas em to-dos
os oceanos e mares, as espécies
que vivem no e do habitat marinho es-tão
morrendo em número surpreendente,
vítimas do impacto do atual consumis-mo
inconsciente. As dolorosas imagens
de Jordan alertam para uma crise eco-lógica
em grande parte invisível e in-compreensível,
mas implacável.
Confira a devastadora dimensão do
“maior lixão do planeta”, e saiba
porque ele ganha volume a cada
novo dia, como se forma, sua com-posição
e gravidade, e o que pode-mos
fazer para estancar o crescimento
deste desastre ambiental.
Chris Jordan/Ars Eletronica
Usistema marinho do oceano Pacífico
Norte. Para documentar os efeitos ne-fastos
da Grande Mancha de Lixo do Pa-cífico,
o fotógrafo Chris Jordan visitou o
atol Midway, no coração da Grande Man-cha,
e de lá trouxe imagens de filhotes de
albatroz mortos em consequência dos de-tritos
plásticos ingeridos.
Nada foi encenado: as imagens retra-tam
fielmente o conteúdo do estômago
dos corpos em decomposição encontra-dos
nas praias. Sequer uma única peça
de plástico em qualquer das imagens
colhidas foi rearranjada, aplicada, ma-nipulada,
organizada ou alterada.
Cidadania&MeioAmbiente 5
6. A GRANDE MANCHA DE LIXO DO PACÍFICO
Nem todo lixo termina em vazadouro ou é
reciclado. Grande parte acaba nos rios, lago-as,
praias e, infelizmente, nos oceanos, para
constituir a Grande Mancha de Lixo do Pací-fico
6
– hoje o maior aterro sanitário da Terra.
Ela se estende por centenas de milhares de
kilômetros do Pacífico Norte, formando um
lixão nebuloso e flutuante em alto-mar. É
símbolo do maior problema mundial: o plás-tico,
que começa em mãos humanas acaba
dentro dos oceanos, muitas vezes nos es-tômagos
ou ao redor dos corpos das espé-cies
que vivem no e do habitat marinho.
Muitos dizem que a mancha é uma “ilha de
lixo”, um grande equívoco no dizer de Holly
Bamford, diretora do Programa de Detritos
Marinhos do The National Oceanic and
Atmospheric Administration (NOAA),
agência federal norte-americana que estu-da
os oceanos e a atmosfera (www.nooa.
gov). “Se fosse apenas uma grande massa,
nosso trabalho seria muito mais fácil”,
deplora Bamford.
Ao invés de “ilha flutuante”, a Grande
Mancha é uma espécie de “galáxia de lixo”
povoada por bilhões de pequenas ilhas de
lixo subaquáticas dissimuladas ou espalha-das
por muitos quilômetros. E isso torna
difícil dizer com total precisão a dimensão
real da mancha, apesar da muito citada afir-mação
de que ela é tão grande quanto o
estado americano do Texas.
“Se é mesmo do tamanho do estado do Te-xas,
como dizem, então é do tamanho da
França, embora possa vir a ser até mesmo
do tamanho de um continente. O mais gra-ve
é que a mancha não é uma massa uni-forme,
mas muitas massas dispersas. E mes-mo
não podendo precisar sua real dimen-são,
sabemos que seu principal componen-te
é o plástico. E é aí que começam os pro-blemas”,
informa Holly.
PLÁSTICO: UM DESASTRE ECOLÓGICO
Contrariamente a outros lixos, o plástico não
é biodegradável, ou seja, os microorganis-mo
que digerem outras substâncias não re-conhecem
o plástico como comida, deixan-do-
o flutuar para sempre. E o que ocorre?
A luz solar realiza a “fotodegração” dos po-límeros
plásticos, reduzindo o material a pe-quenos
pedaços, fato que só piora as coi-sas.
Desse jeito, o plástico nunca desapa-rece:
torna-se microscópico e acaba entran-do
A Grande Mancha de Lixo do Pacífico
é formada por fragmentos de plástico
e de outros materiais deitados ao mar
nos quatro cantos do mundo e aglo-merados
numa “galáxia de lixo” pelas
correntes marinhas no Redemoinho
Subtropical do Pacífico Norte.
na cadeia alimentar de todos os organis-mos
marinhos e, por extensão, na cadeia
alimentar humana.
O plástico constitui 90% de todo o lixo que
bóia nos oceanos do mundo. O Programa
Ambiental das Nações Unidas (PNUMA) es-timou,
em 2006, que cada milha quadrada do
oceano abriga 46.000 pedaços de plástico flu-tuante.
Em algumas áreas, a quantidade de
polímeros supera a de plâncton por uma rela-ção
de seis para um. Dos mais de 100 bilhões
de quilogramas de plástico que o mundo pro-duz
por ano, cerca de 10% acabam no ocea-no,
e 70% se depositam no fundo do oceano.
O resto flutua, e boa parte termina nos rede-moinhos
e nas manchas de lixo maciças.
Cerca de 80% dos detritos da Grande Man-cha
de Lixo do Pacífico são oriundos dos con-tinentes,
boa parte de sacos, garrafas e ou-tros
produtos de plástico. Redes de pesca
perdidas nos oceanos constituem outros 10%
de todo o lixo marinho – nada menos que
705.000 toneladas, segundo as estimativas. O
lixo restante provém de embarcações de lazer,
plataformas de petróleo offshore e grandes
navios de carga que despejam no mar, a cada
ano, o conteúdo de 10.000 containers rechea-dos
de luvas de jardinagem, computadores,
resinas de polímeros, brinquedos... Mas, ape-sar
dessa diversidade – e da abundância de
vidro, metal e borracha no lixão oceânico flu-tuante
– a maior parte do material ainda é plás-tico,
uma vez que tudo mais afunda ou biode-grada
antes de chegar à mancha.
Mas o Pacífico não é o único a sofrer este
tipo de poluição. No excelente relatório Plas-tic
Debris in the World’s Oceans (publica-do
pela organização Greenpeace, em 2/11/
2006, e que pode ser baixado em www.-
greenpeace.org/international), informa que
o fenômeno verificado no Pacífico ocorre
com características semelhantes em todos
os mares. O Mediterrâneo, por exemplo,
agora tem parte do seu leito forrado de plás-tico.
Todas as águas salgadas são vítimas
da insustentável cultura do desperdício e
da não reciclagem.
COMO SE FORMA A MANCHA DE LIXO?
A Terra tem cinco a seis grandes redemoi-nhos
oceânicos – enormes espirais de água
salina –, que se formam pela colisão de cor-rentes.
O maior de todos é o Redemoinho
Subtropical do Pacífico Norte, que preen-che
quase todo o espaço entre o Japão e a
Califórnia. Na parte superior deste redemo-inho,
a algumas centenas de quilômetros
ao norte do Havaí, as águas quentes do
Pacífico Sul colidem com as águas mais fri-as
do norte. Conhecida como Zona de Con-vergência
Subtropical do Pacífico Norte, é
ali que o lixo se deposita.
Para os estudiosos da questão, esta zona de
convergência assemelha-se a uma “megaro-dovia
de lixo” (cerca de 13.000 peças por km2,
segundo o Programa das Nações Unidas para
o Meio Ambiente (Pnuma), que estende os re-síduos
de plástico num alongado corredor
unindo de leste a oeste dois redemoinhos co-nhecidos
como a Mancha de Lixo Oriental e a
Ocidental. São esses dois sistemas que dão
vida à Grande Mancha de Lixo do Pacífico.
Dependendo de sua origem, pode levar vári-os
anos para os detritos chegarem a esta
área. O plástico pode ser levado do interior
dos continentes ao mar através de esgotos,
córregos e rios, ou simplesmente despejado
no litoral. Não importa a maneira, mas ao cabo
de uma viagem de seis a sete anos, o plásti-co
passa a girar entre os redemoinhos, tam-bém
alimentado pelas redes de pesca e ou-tros
resíduos. Um dos mais conhecidos des-pejos
de detritos ocorreu em 1992, quando
28.000 patinhos de plástico foram jogados
às águas do Oceano Pacífico. Até hoje os
brinquedinhos continuam a ser desovados
nas praias de todo o mundo.
POR QUE PLÁSTICO É UM GRAVE PROBLEMA?
O lixo marinho ameaça a saúde ambiental
de várias maneiras, a saber:
Andréa Maschietto/MercuryNews
Fonte:NOAA
7. Este “redemoinho” concentra 2,4 milhões de peças de plástico, volume
equivalente ao total de quilos de poluentes plásticos que adentram os
oceanos a cada hora. Todas as peças de plástico que compõem esta foto
foram coletadas por Chris Jordan na Grande Massa de Lixo do Pacífico.
Cidadania&MeioAmbiente 7
Gyre /Chris Jordan’Sg.
O Capitão Charles Moore, “descobridor”
da Grande Mancha, numa praia do Pacífico
coalhada de detritos plásticos despejados
pelo redemoinho de lixo em suspensão.
Algalita Marine Research Foundation
❚ Armadilhas. O crescente número de redes de
pesca de plástico perdidas ou abandonadas é
um dos detritos marinhos mais perigosos. As
redes envolvem focas, tartarugas e outros ani-mais,
causando “afogamento”. Esse quadro é
conhecido como “pesca fantasma”. Com o
aumento de pescadores que usam essas redes
– de alta durabilidade e baixo custo – nos paí-ses
desenvolvimento, mais redes são perdidas
ou abandonadas nas águas... e muitas conti-nuam
a “pescar por conta própria” durante
anos. As mais perigosas são as redes com bói-as
ancoradas no fundo do mar e que com cen-tenas
de metros de profundidade.
Qualquer espécie marinha pode ser amea-çada
pelo plástico, mas as tartarugas pare-cem
ser as mais suscetíveis. Além de serem
capturadas por redes de pesca fantasmas,
elas frequentemente engolem sacos plásti-cos
ao confundi-los com medusas (água-viva),
sua principal presa. E já se registrou
casos de tartarugas que tiveram seus cor-pos
deformados ao crescerem enforcados
por anéis plásticos.
❚ Restos superficiais diminutos. Grânulos de
resina plástica constituem outro componente
comum do lixo marinho. Em todo o mundo, os
grânulos de uso industrial são transportados,
derretidos e moldados em objetos de
plástico. Sendo pequenos e abundantes, eles
podem facilmente se perder ao longo da ca-deia
produtiva, acabando no mar. Eles ten-dem
a flutuar e fotodegradar, ação que leva
muitos anos. Nesse meio tempo, os grânulos
causam estragos, especialmente nas aves
marinhas, como o albatroz de cauda curta.
Nas ilhas do Pacífico, os albatrozes dei-xam
suas crias em terra quando saem para
vasculhar a superfície do oceano em bus-ca
de alimento rico em proteínas – espe-cialmente
ovas –, pequenos pontos a
boiar logo abaixo da superfície e, infeliz-mente,
muito semelhantes a grânulos de
resina. Os bem-intencionados albatrozes
colhem as pelotas – junto com isqueiros
e outros detritos flutuantes – e voltam à
terra para alimentar com plástico indiges-to
seus filhotes, que morrem de fome ou
com os órgãos rompidos. Encontrar filho-tes
de albatroz em decomposição com os
estômagos recheados de pedaços de plás-tico
deixou de ser fato raro.
❚ Fotodegradação. Como a luz solar que-bra
os detritos flutuantes, a água de su-perfície
engrossa com pedaços de plásti-co
em suspensão. E isso é ruim por uma
série de razões. Primeiro, pela “toxicida-de
inerente”. O plástico muitas vezes
contém substâncias químicas como o
bisfenol-A e corantes – comprovadamen-te
tóxicos para o meio ambiente e a saúde
–, toxinas que vazam para a água do
mar. Já foi demonstrado que o plástico
absorve da água do mar poluentes orgâ-nicos
pré-existentes, como os PCB, BPA
e outras toxinas, que podem entrar na ca-deia
alimentar se ingeridos acidentalmen-te
por espécies marinhas. Ao todo já se
contabilizaram cerca de 267 espécies in-toxicadas
por plástico.
O QUE PODEMOS FAZER?
O descobridor da Grande Mancha de Lixo
do Pacífico, o capitão Charles Moore, certa
vez afirmou que o esforço para limpar o oce-ano
“levaria à falência qualquer país e
continuaria liquidando a vida marinha
nas redes fantasmas”. Com isso, ele quis
dizer que a tarefa é extremamente difícil.
Entre as iniciativas globais, nacionais e in-ternacionais
que visam proteger os ocea-nos
dos detritos marinhos, a de maior al-cance
é a Convenção Internacional para a
Prevenção da Poluição por Navios
(MARPOL). Em 1988, este acordo recebeu
um Anexo vetando o despejo no mar de lixo
e de materiais plásticos provenientes de
navios; 122 países o ratificaram. Mesmo
com o cumprimento total do MARPOL, o
problema pesisitira, já que cerca de 80% do
lixo que envenena o mar provêm de fontes
terrestres. Outras ações incluem protoco-
8. los operacionais de limpeza da linha costei-ra
e do fundo do mar, bem como programas
de educação ambiental ministrados desde
o ingresso da criança na escola.
Alguns países já restringiram o uso de saco-las
de dados, eles são cobrados. Essa estraté-gia
ajuda a conscientizar, mas no quadro geral
da questão não passa de paliativo. Aumen-tar
a conscientização para o não uso de sa-cos
embalados em vidro, reduzir ao máximo os
produtos à base de petróleo e reabilitar a
velha sacola de pano são algumas suges-tões
Embora todas as ações sejam importan-tes,
Tal estratégia engloba cadeia a resíduo,
redução, reutilização, reciclagem, res-ponsabilidade
ecodesign. Só assim reduziríamos o uso
maciço de plásticos/sintéticos, usando-os
apenas quando absolutamente necessário.
A adoção de “plástico biodegradável”
poderá ser uma alternativa ambientalmen-te
segura quando esse material se degra-dar
Por ora, a solução mais efetiva é “fechar as
torneiras” na fonte. É imperioso o descarte
adequado do plástico via multiplicação das
instalações de reciclagem e das facilidades
de coleta nas coletividades. Além disso, a
sociedade como um todo tem de aprender a
exercer opções de compra não danosas ao
ambiente, a melhor reutilizar o que pode ser
reciclado, e a praticar o consumo conscien-te
e sustentável. ■
8
A METÁFORA DO SAQUINHO DE SUPERMERCADO
Há mais de uma década eu assinava uma revista científica que vinha embalada com
o tal plástico. Ele foi imediatamente para a composteira, o melhor lugar do mundo
para biodegradação, com água, microorganismos e nutrientes à vontade. Seis meses
depois me cansei. Tirei, lavei (estava intacto, como novo!) e o mandei para reciclagem.
Quando os supermercados começaram a usar o saquinho oxibiodegradável, de
novo peguei uma amostra, escrevi a data e coloquei na composteira. Tudo igual.
Agora fui mais longe: minha esposa grávida tirou uma foto com o saquinho e
nosso filho fará o mesmo, ano após ano. Este menino vai concluir o curso
superior e o saquinho oxibiodegradável estará igual.
Minha visão pessoal foi confirmada no artigo científico Polietileno degradável,
fantasia ou realidade, assinado por Roy et al – gente que entende muito mais de
química do que eu –, na Environmental Science & Technology, em abril de 2011.
Na verdade tudo que estes saquinhos fazem é que eles se despedaçam na presença
de calor, luz e oxigênio, mas em níveis muito superiores aos normais. Ainda pior, o
interior de lixões/aterros sanitários tem os três fatores muito baixos. De qualquer jeito,
você preferiria limpar um terreno baldio com 10 saquinhos ou 1000 pedacinhos?
A única função do saquinho oxibiodegradável é aplacar a consciência daqueles
que não conseguem organizar-se para usar uma sacola de compras igual a da
vovó-ir-à-feira, que resolve não só a poluição, mas também o problema de
carregar várias sacolinhas que machucam a mão e complicam a vida.
Em entrevista recente, James Lovelock (1) disse que preocupar-se com saquinhos é
como preocupar-se em arrumar as cadeiras do Titanic enquanto ele afunda. Ele
está certo que o saquinho é uma parte pequena do gasto de combustíveis fósseis
(de fato importa muito mais como você vai às compras do que como as carrega),
mas está errado na escolha da metáfora. O saquinho está mais para a orques-tra
do Titanic, que continuou tocando enquanto o barco afundava. Concreta-mente
não fez diferença, mas ajudou melhorando o espírito geral. Estranho
muito Lovelock criticar a luta contra os saquinhos, porque ele mesmo criou uma
importante metáfora ambiental – Gaia –, que mesmo não fazendo sentido al-gum,
fez muita gente pensar e agir melhor.
As pessoas começam preferindo o saquinho oxibiodegradável, passam para a
sacola de compras, daí vão às compras de bicicleta, para terminar se perguntan-do
se precisam mesmo ir às compras.
Nota do Editor:
(1) James Lovelock, criador da teoria de Gaia e inventor do detector de captura de elétrons (ECD), que tornou possível
a detecção de gases CFC (clorofluorocarboneto e de outros nanopoluentes atmosféricos). Os artigos científicos de
Lovelock estão disponíveis em www.jameslovelock.org/page0.html
Efraim Rodrigues – Doutor pela Universidade de Harvard, Professor Associado de
Recursos Naturais da Universidade Estadual de Londrina, consultor do programa
FODEPAL da FAO-ONU, autor dos livros Biologia da Conservação e Histórias
Impublicáveis sobre trabalhos acadêmicos e seus autores.Também ajuda escolas do Vale
do Paraíba-SP, Brasília-DF, Curitiba e Londrina-PR a transformar lixo de cozinha em
adubo orgânico e a coletar água da chuva. E-mail: (efraim{at}efraim.com.br Texto publi-cado
em www.ecodebate.com.br (17/05/2011).
plásticas nos supermercados: ao invés
e recipientes de plástico através de cam-panhas,
estimular o consumo de produtos
a serem adotadas pelos que são sensí-veis
ao problema do lixo plástico.
a solução definitiva está na implemen-tação
de uma estratégia de resíduo res-ponsável,
ou seja, o conceito “Lixo Zero”.
de quem produz e
rapidamente em substâncias não pe-rigosas
ou tóxicas para o meio ambiente.
Hélio Carneiro – Editor de Cidadania & Meio
Ambiente. Fontes consultadas: PNUMA (Pro-grama
das Nações Unidas para o Meio Ambi-ente);
Captain Charles Moore (Out in the Paci-fic
Plastic is Geting Drastic – www.alguita.com);
David DeFranza (Message from the Gire –
www.thetreehug.com); Russell McLendonWed
e Jacob Silverman (www.howstuffworks.com);
David Martin Garcia (www.ecoportal.net);
Greenpeace (www.greenpeace.com); www.great
garbagepatch.org; David Friedlande (Chris
Jordan Takes Shots at the Trash Patch); Greg
Boustead (Appetite for Destruction); http://
plasticpollutioncoalition.org
“Faz muitos anos que venho percebendo que os chamados plásticos
biodegradáveis não entregam o que vendem.” Efraim Rodrigues
9. PRINCÍPIO RESPONSABILIDADE
E CONSUMO CONSCIENTE
O consumo consciente levanta hipóteses de uma nova fase civilizatória, de
um novo tipo de contratualismo onde o cidadão esclarecido e engajado
pratica uma seleção natural de agentes civilizatórios através do seu gesto
consciente de consumo.
por Roberto Naime e Haide Maria Hupfer
dos serviços da natureza em suas operações. E
os governos estão sendo cada vez mais cobrados
a regular a atividade empresarial em contornos
de contratualismo civilizatório, antes só imagi-nado
em termos de direitos civis e políticos. Este
é o cenário que vem se desenhando.
E neste contexto, a força dos indivíduos que exer-cem
uma ação contratualística informal, mas
muito eficiente, eliminando os agentes que per-cebem
como nocivos e estimulando os agentes
identificados como socioambientalmente respon-sáveis,
com inestimável auxílio das redes soci-ais,
representa uma realidade jamais antes imagi-nada.
Esse contratualismo pode ser percebido
no Princípio Responsabilidade defendido por
Hans Jonas. É a responsabilidade perante o de-ver
de existir. E a primeira de todas as responsa-bilidades
é garantir a possibilidade de que haja
responsabilidade.
No cotidiano atual, a maioria das corporações está
ciente de que, além de oferecer produtos e serviços
de qualidade deve contribuir para o desenvolvi-mento
sustentável, pois esta é uma concepção fun-damental
até mesmo para garantir sua sobrevivên-cia
e seu espaço no mercado de hoje e do futuro,
como se fosse um acordo constitucional não redigi-do,
mas muito eficaz e respeitado por todos.
Hans Jonas não traz uma receita para o Princí-pio
Responsabilidade. Ele mostra que a nature-za
do agir humano transformou-se. O consumo
consciente comporta um conteúdo inteiramente
novo cuja dimensão de significado ainda está longe
de ser a ideal, exigindo um fazer político e, con-sequentemente,
uma nova ética ambiental. ■
Cidadania&MeioAmbiente 9
S O C I E D A D E
Acivilização é um caminho sem volta para a
humanidade. Poderia se discutir longamente
a caminhada da humanidade desde o início da
epopéia civilizatória até os contratualistas que
começam com o exemplo mais evidenciado de
Thomas Hobbes no seu “Leviatã” e praticamen-te
não mais terminam.
A sociedade moderna está sempre discutindo
aprimoramentos contratualísticos e ninguém em
sã consciência pensa em alterar esta fase do ciclo
civilizatório, senão se pensa apenas em aperfei-çoar
os mecanismos da civilização.
Hans Jonas abre uma discussão ética sobre a
relação do homem com a natureza. Ao se depa-rar
com a exacerbação do antropocentrismo e
com a vulnerabilidade da natureza se dá conta de
que para evoluir é necessário trabalhar com uma
nova dimensão de responsabilidade. Assim, a
natureza como responsabilidade humana é sem
dúvida um novum apresentado por Hans Jonas
sobre uma nova teoria ética muito além do inte-resse
na manutenção da natureza.
O saber previdente torna-se um dever prioritário.
Para Hans Jonas, nenhuma ética anterior viu-se
obrigada a considerar a condição global da nature-za,
da vida humana e das questões intergeracionais.
Esse novo agir humano exige ir além do
antropocentrismo e dos interesses de uma gera-ção.
O princípio responsabilidade se estende para
mais além. Devemos ouvir a natureza e reconhe-cer
sua exigência como obrigatória, para além da
doutrina do agir, ou seja, da ética, até a doutrina
do existir das presentes e futuras gerações.
Os direitos ambientais e difusos são incluídos por
Norberto Bobbio e aceitos por todos como direitos
fundamentais de terceira geração. Não cabe aqui fi-car
discutindo a natureza jurídica das afirmações e
para isto existem pessoas de muito mais habilitada
formação e informação, capazes de desenvolver a
temática com pleno domínio e inegável brilhantismo.
Para nós, que trabalhamos profissionalmente com
questões ambientais e que de uma maneira ou outra
somos sujeitos de alguma forma de ambientalismo
ideológico, o consumo consciente levanta hipóteses
de uma nova fase civilizatória, de um novo tipo de
contratualismo onde o cidadão esclarecido e engajado
pratica uma seleção natural de agentes civilizatórios
através do seu gesto consciente de consumo.
Quando os consumidores ultrapassam os crité-rios
de preço e fazem do seu gesto de consumo
uma atitude que consideram ou percebem como
engajada, escolhendo comprar de uma empresa
que possui mais práticas sustentáveis, ou quan-do
levam em conta a cadeia produtiva de tudo
que consomem, considerando os impactos am-bientais
identificados nas diversas fases do pro-cesso,
estes consumidores estão exercendo um
contratualismo informal que vai manter no mer-cado
a todos os agentes percebidos como res-ponsáveis
e que favorecem a vida e vai excluir do
mesmo mercado todos os agentes que considera
nocivos e que não favorecem a vida.
Estes consumidores que estão atentos a práticas
mais sustentáveis são os consumidores do futu-ro.
Este exército desarmado, esta polícia não
coercitiva não é constituída por poucos oníricos
ou lunáticos. Este exército tem crescido cada vez
mais, e representa o número de pessoas preocu-padas
com a qualidade de vida. Em um mundo
globalizado, um mundo cada vez mais complexo
e veloz, onde as redes sociais tem um papel cada
vez mais destacados, tanto as organizações como
as pessoas só evoluem com práticas inspiradas
no que se convenciona denominar sustentabili-dade.
O que há em comum nestas práticas pode
ser resumida em três conceitos trabalhados por
Hans Jonas: totalidade, continuidade e futuro.
Será cada vez menos provável, desenhar cenários
econômicos que ignorem as questões socioambien-tais.
Assim as culturas empresariais estão cada vez
mais ecléticas e abrangentes, observando o mundo
em uma visão holística que determina o estabeleci-mento
de concessões que antes eram inimagináveis.
Os mercados estão revendo suas lógicas de re-torno
sobre investimento, assumindo os custos
Haide Maria Hupffer é Doutora em Direito, inte-grante
do corpo docente do Mestrado em Qualida-de
Ambiental e do Curso de Direito da Universidade
Feevale, e autora de Ensino Jurídico: Um novo ca-minho
a partir da Hermenêutica. Roberto Naime é
Doutor em Geologia Ambiental, integrante do cor-po
docente do mestrado e doutorado em Qualidade
Ambiental da Universidade Feevale, e colunista do
portal www.ecodebate.com.br.
10. a nova geopolítica alimentar
que a oferta mundial de alimentos não deve acompanhar o crescente
consumo à mesa. O século 21 prenuncia “guerras por comida”.
Nos EUA, quando os preços mundi
10
À medida que terra e água se tornam mais escassas, a temperatura da
Terra aumenta e a segurança alimentar se deteriora, cria-se um qua-dro
geopolítico extremamente perigoso e potencialmente explosivo, já
por Lester Brown
ais do trigo sobem 75%, como no
ano passado, isso significa a dife-rença
entre um pão de US$2 e um de, talvez,
US$2,10. Contudo, para quem vive em Nova
Délhi, Índia, essa exorbitante alta de preços
é crucial: a duplicação do preço mundial sig-nifica
que o trigo custa duas vezes mais.
Bem-vindos à nova economia alimentar de
2011: os preços estão subindo, mas o impac-to
não será sentido de maneira equitativa.
Para os americanos, que gastam menos de
um décimo da sua renda no supermercado, a
alta do preço dos alimentos é apenas um in-cômodo,
não uma calamidade. Mas para os
2 bilhões de pessoas mais pobres do plane-ta,
que gastam de 50% a 70% de sua renda
em alimento, essa disparada dos preços pode
significar apenas uma – não duas – refei-ções
ao dia. E os que mal conseguem se se-gurar
nos degraus mais baixos da escada
econômica global correm o risco de despen-car
de vez. Isso pode contribuir – e tem con-tribuído
– para revoluções e insurgências.
Com a quebra de safra prevista para este
ano, com governos do Oriente Médio e da
África cambaleando em função das altas
de preços, e com mercados nervosos en-frentando
um choque após outro, os ali-mentos
rapidamente se tornaram um con-dutor
oculto da política mundial. E crises
como esta vão se tornar cada vez mais co-muns.
A nova geopolítica dos alimentos
parece muito mais vulnerável do que era.
A escassez é a nova norma.
Até pouco tempo, as súbitas altas de pre-ços
não tinham tanta importância, pois ra-
ESCASSEZ & FOME:
Colin Crowley /Save the Children
P O L Í T I C A A L I M E N T A R
11. Cidadania&MeioAmbiente 11
pidamente os preços dos alimentos volta-vam
aos níveis mais baixos, fato que aju-dou
a moldar a estabilidade do final do sé-culo
20 em boa parte do planeta. Agora, po-rém,
tanto as causas como as consequênci-as
são sinistramente diferentes. Lamenta-velmente,
as atuais altas de preços são cau-sadas
por tendências que estão contribu-indo
tanto para o aumento da demanda como
dificultando o aumento da produção – en-tre
elas, a rápida expansão da população
mundial, os aumentos de temperatura que
ressecam plantações e o esgotamento de
poços de irrigação.
Mais alarmante ainda, o mundo está per-dendo
sua capacidade de mitigar o efeito
da escassez. É por isso que a crise dos ali-mentos
de 2011 é genuína, e por isso ela
poderá trazer consigo novas combinações
de revoltas do pão e revoluções políticas. E
se as sublevações que saudaram os dita-dores
Zine al-Abidine Ben Ali, na Tunísia;
Hosni Mubarak, no Egito; e Muamar Kada-fi,
na Líbia, não forem o fim da história, mas
seu começo? Preparem-se, agricultores e
chanceleres, para uma nova era em que a
escassez mundial de alimentos vai moldar
cada vez mais a política global.
DEMANDA E PRODUÇÃO
A duplicação dos preços mundiais dos
grãos desde o início de 2007 foi impelida
principalmente por dois fatores: o cresci-mento
acelerado da demanda e a dificul-dade
crescente de expandir rapidamente
a produção. O resultado é um mundo que
parece chocantemente distinto da genero-sa
economia mundial de grãos do século
passado. Como será a geopolítica dos ali-mentos
numa nova era dominada pela es-cassez?
Mesmo neste estágio inicial, pode-mos
ver ao menos os contornos gerais da
economia alimentar emergente.
No lado da demanda, os agricultores agora
enfrentam claras fontes de crescente pressão.
A primeira é o crescimento populacional. A
cada ano, os agricultores do mundo precisam
alimentar 80 milhões de pessoas adicionais,
quase todas em países em desenvolvimento.
A população mundial quase dobrou desde
1970 e está a caminho de 9 bilhões em mea-dos
do século. Ao mesmo tempo, os EUA,
que um dia conseguiram atuar como um
amortecedor global contra safras ruins, ago-ra
estão convertendo quantidades imensas
de grãos em combustível para veículos, em-bora
“
o consumo mundial de grãos c que
gira em torno de 2,2 bilhões de toneladas
métricas por ano – esteja crescendo em ve-locidade
acelerada. Mas a taxa em que os
EUA estão convertendo grãos em etanol
tem crescido ainda mais rapidamente.
Essa capacidade massiva de converter
grãos em combustível significa que o preço
dos grãos está agora atrelado ao preço do
petróleo. Assim, se o petróleo sobe para
US$ 150 o barril ou mais, o preço dos grãos
acompanhará a alta, já que se torna mais
lucrativo converter grãos em substitutos do
petróleo. E esse não é um fenômeno ape-nas
americano: o Brasil, que destila etanol
de cana-de-açúcar, é o segundo maior pro-dutor
depois dos EUA, enquanto a União
Europeia, que pretende obter 10% de sua
energia de transporte de energias renová-veis,
em sua maioria biocombustíveis até
2020, também está desviando terras de cul-turas
alimentares para fins energéticos.
ESCASSEZ DE ÁGUA
Essa não é apenas uma história sobre a de-manda
crescente por alimentos. Do esgota-mento
de lençóis freáticos à erosão de so-los
e às consequências do aquecimento
global, tudo significa que a oferta mundial
de alimentos provavelmente não acompa-nhará
nossos apetites coletivamente cres-centes.
Tome-se o caso da mudança climá-tica:
a regra prática entre ecologistas da
produção vegetal é que, para cada 1oC de
aumento da temperatura acima do ótimo para
a estação de crescimento, os agricultores
podem esperar uma quebra de 10% no ren-dimento
dos grãos. Essa relação foi confir-mada
dramaticamente durante a onda de
calor de 2010, na Rússia, que reduziu a sa-fra
de grãos do país em quase 40%.
Com a elevação das temperaturas, os lençóis
freáticos estão diminuindo na medida em que
os agricultores bombeiam em excesso para
irrigação. Isso infla artificialmente a produção
de alimentos no curto prazo, criando uma bo-lha
alimentar que estoura quando os aquífe-ros
são esgotados e o bombeamento é neces-sariamente
reduzido à taxa de recarga.
No conjunto, mais da metade da população
mundial vive em países onde os lençóis fre-áticos
estão diminuindo. O Oriente Médio
árabe politicamente convulsionado é a pri-meira
região geográfica onde a produção de
grãos atingiu o pico e começou a declinar
por escassez de água, apesar de as popula-ções
continuarem a crescer. A produção de
grãos já está diminuindo na Síria e no Iraque
e, em breve, poderá declinar no Iêmen. Mas
as maiores bolhas alimentares estão na Índia
e na China. Como esses países enfrentarão a
escassez inevitável quando os aquíferos fo-rem
esgotados? Ao mesmo tempo em que
estamos secando nossos poços, também
maltratamos nossos solos, criando novos
desertos. A erosão do solo decorrente do
excesso de cultivo e do manejo indevido da
terra está solapando a produtividade de um
terço das terras cultiváveis do mundo.
Qual a gravidade disso? Imagens de satéli-te
mostram duas novas e imensas bacias
de areia: uma se estendendo pelo norte e o
oeste da China e oeste da Mongólia, a ou-tra
cruzando a África Central. A civilização
pode sobreviver à perda de suas reservas
de petróleo, mas não pode sobreviver à
perda de suas reservas de solo.
Nesta era de retração dos suprimentos ali-mentícios
mundiais, a capacidade de culti-var
alimentos está rapidamente se tornan-do
uma nova forma de alavancagem geo-política,
e os países estão tratando de ga-rantir
seus próprios interesses paroquiais
às custas do bem comum.
TERRAS ESTRANGEIRAS
Temendo não ser capaz de comprar os grãos
necessários no mercado, alguns países mais
ricos, liderados pela Arábia Saudita, Coreia
Jakob Dall/Danish Red Cross
No conjunto,
mais da metade da
população mundial
vive em países onde
os lençóis freáticos
estão diminuindo.”
12. 12
Lester R. Brown é presidente do Earth Policy
Institute (www.earth-policy.org). O artigo The New
Geopolitics of Food foi publicado originalmente
na revista Foreign Policy (www.foreignpolicy.com)
edição de maio/junho 2011.
do Sul e China, tomaram, em 2008, a medida
incomum de comprar ou arrendar terras em
outros países para cultivar grãos para si pró-prios.
A maioria dessas compras de terras é
na África, onde alguns governos arrendam
terras cultiváveis por menos de US$ 2,5 por
hectare/ano. Entre os principais destinos
estão Etiópia e Sudão, países onde milhões
de pessoas estão sendo sustentadas pelo
Programa Mundial de Alimentos da ONU.
Muitos dos acordos de terras foram feitos se-cretamente
e, na maioria dos casos, a terra en-volvida
já estava em uso por aldeões quando
foi vendida ou arrendada. Com frequência, os
que já estavam cultivando a terra não foram
consultados nem sequer informados dos no-vos
acordos. A hostilidade local a essas apro-priações
de terra é a regra, não a exceção.
Em 2007, quando os preços dos alimentos
começaram a subir, o governo chinês assi-nou
um acordo com as Filipinas para arren-dar
1 milhão de hectares de terras destina-das
a cultivar alimentos que seriam embar-cados
para a China. Quando a notícia va-zou,
o clamor público obrigou Manila a sus-pender
o acordo. Um clamor parecido aba-lou
Madagascar, onde uma empresa sul-coreana,
a Daewoo Logistics, havia tenta-do
obter direitos sobre mais de 1,2 milhão
de hectares. Notícias sobre o acordo ajuda-ram
a criar um furor político que derrubou o
governo e obrigou o cancelamento do tra-to.
Aliás, poucas coisas são mais propen-sas
a alimentar insurgências do que privar
pessoas de suas terras. Equipamentos agrí-colas
são facilmente sabotados. Os cam-pos
de grãos maduros queimam rapidamen-te
quando se lhes ateia fogo.
Essas aquisições representam um investi-mento
potencial de estimados US$50 bilhões
em agricultura nos países em desenvolvi-mento.
Então, perguntamos: no que isso
ampliará a produção mundial de alimentos?
Não sabemos, mas a análise do Banco Mun-dial
indica que somente 37% dos projetos
serão dedicados a culturas alimentares. A
maior parte da terra adquirida até agora será
usada para produzir biocombustíveis e ou-tras
culturas de interesse industrial.
Mesmo que alguns desses projetos acabem
por aumentar a produtividade da terra, quem
se beneficiará? Se virtualmente todos os insu-mos
– equipamentos agrícolas, fertilizantes,
pesticidas, sementes – são comprados do ex-terior
e se toda a produção é enviada para fora
“
do país, a contribuição para a economia do
país hospedeiro será mínima. Por enquanto, as
apropriações de terras contribuíram mais
para provocar agitação social do que para
aumentar a produção de alimentos.
DISPUTA
Ninguém sabe onde chegará essa crescente
competição por suprimentos alimentares,
mas o mundo parece estar se afastando da
cooperação internacional que evoluiu por
décadas, depois da 2ª Guerra, para a filo-sofia
de cada país por si. O nacionalismo
alimentar poderá ajudar a garantir supri-mentos
aos países ricos, mas pouco fará
para melhorar a segurança alimentar do
planeta. Aliás, os países de baixa renda que
hospedam terras arrendadas ou importam
grãos provavelmente sofrerão uma deteri-oração
de sua situação alimentar.
Depois da carnificina de duas guerras mun-diais
e dos descaminhos econômicos que
levaram à Grande Depressão, os países se
uniram, em 1945, para criar a ONU, ao final-mente
perceber que no mundo moderno não
podemos viver em isolamento por mais ten-tador
que isso possa parecer. O Fundo Mo-netário
Internacional foi criado para ajudar a
gerir o sistema monetário e promover a esta-bilidade
econômica e o progresso. As agên-cias
especializadas da ONU, da Organização
Mundial de Saúde (OMS), da Organização
para Agricultura e Alimentação (FAO) têm
importantes papéis no mundo de hoje. Tudo
isso promoveu a cooperação internacional.
Mas embora a FAO colete e analise dados
agrícolas globais e forneça assistência téc-nica,
não há nenhum esforço organizado
para garantir uma adequação dos suprimen-tos
mundiais de alimentos.
O presidente francês Nicolas Sarkozy está
propondo lidarmos com a alta dos preços
dos alimentos via redução da especulação
nos mercados de commodities. Por útil que
isso possa ser, trata apenas os sintomas da
insegurança alimentar crescente, não as cau-sas,
como o crescimento populacional e as
mudanças climáticas. O mundo precisa se
concentrar hoje não só na política agrícola,
mas numa estrutura que a integre a políticas
energética, demográfica e hídrica, que afe-tam
diretamente a segurança alimentar.
PERIGO
Isso, porém, não está ocorrendo. Em vez dis-so,
à medida que terra e água se tornam mais
escassas, que a temperatura da Terra sobe e
a segurança alimentar mundial se deteriora,
instala-se uma geopolítica perigosa de es-cassez
de alimentos. A apropriação de terra,
de água e a compra de grãos diretamente de
produtores em países exportadores são hoje
parte integrante de uma luta global de poder
por segurança alimentar.
Com estoques de grãos baixos e a volatilida-de
climática aumentando, os riscos crescem.
Hoje estamos à beira da ruptura do sistema
alimentar, que poderá se manifestar a qual-quer
momento. Talvez não tenhamos sorte para
sempre. O que hoje está em questão é se o
mundo conseguirá ir além de se concentrar
nos sintomas da deterioração da situação ali-mentar
e atacar suas causas subjacentes.
Se não conseguirmos aumentar o rendimento
agrícola com menos água e conservar os solos
férteis, muitas áreas agrícolas deixarão de ser
viáveis. E isso vai muito além dos agricultores.
Se não conseguirmos agir de forma rápida e
emergencial para estabilizar o clima, talvez não
sejamos capazes de evitar uma disparada dos
preços dos alimentos. Se não conseguirmos
acelerar o declínio demográfico e estabilizar a
população mundial, as filas de famintos conti-nuarão
a aumentar. A hora de agir é agora –
antes que a crise dos alimentos de 2011 se tor-ne
a nova normalidade. ■
A erosão do solo
decorrente do excesso
de cultivo e do manejo
indevido da terra
está solapando
a produtividade de
um terço das áreas
cultiváveis do mundo.”
14. Produtos “verdes”:
mais transparência para o consumidor
14
Para surfar na onda
verde e promover
uma imagem eco-logicamente
res-ponsável
de produ-tos
e serviços, mui-tas
organizações se
valem do green-washing.
No entan-to,
declarar-se eco-friendly
ou ambien-talmente
sustentá-vel
muitas vezes
não passa de ma-quiagem
verde.
Confira aqui como
triar o joio do trigo.
por Newton Figueiredo
Diversas pesquisas realizadas no Brasil
e no mundo continuam confirmando
que nós, brasileiros, somos a nação mais
preocupada com as consequências das mu-danças
climáticas, e que uma boa parcela
da população está disposta até a pagar mais
por produtos que possam ajudar a cons-truir
uma sociedade mais justa e com me-lhor
qualidade de vida.
Várias empresas têm identificado uma nova
forma de melhorar a rentabilidade ao ofere-cer
produtos que atenderiam essa nova de-manda
por parte dos consumidores. Já ou-tras
pesquisas indicam que o consumidor
está cada vez mais informado e espera que
o varejo seja um filtro de ética e de respon-sabilidade
socioambiental na seleção de
produtos que lhe são oferecidos.
Seja por desconhecimento, por acreditar na
palavra do fornecedor ou mesmo por falta
de ética, os consumidores são bombardea-dos
por propagandas enganosas do tipo
“amigável ao meio ambiente”.
Contudo, temos que destacar três esforços,
realizados nos últimos dois anos, no sentido
de ajudar as empresas a desenvolverem uma
comunicação ética com o consumidor. A pri-meira
foi o lançamento, pioneiro no Brasil, do
Guia SustentaX de Comunicação Responsá-vel
com o Consumidor (1), em 2009. Em 2010, o
Conselho Empresarial Brasileiro para o Desen-volvimento
Sustentável (CBDES) lançou o Guia
de Comunicação e Sustentabilidade (2).
Apesar dessas iniciativas, inúmeras propa-gandas
e publicidades continuaram a vei-cular
na mídia impressa e digital produtos
ditos “ecologicamente corretos”, “amigá-veis
ao meio ambiente” e coisas dessa na-tureza,
muitos afrontando a inteligência de
pessoas medianamente informadas. Assim,
em boa hora, sai o terceiro esforço, agora
regulador: a nova regulamentação do Con-selho
de Autorregulamentação Publicitária
(CONAR) para a promoção de produtos
com apelos de sustentabilidade (3).
As pessoas estão ávidas para contribuir
para um mundo melhor e ter mais qualidade
de vida. E, muitas vezes, imaginando esta-rem
na direção correta, ao comprar algo que
lhe foi apresentado como “verde” ou “mais
ecológico” ou “mais sustentável’, acabam
contribuindo para negócios que não res-peitam
a sociedade, seja do ponto de vista
R E S P O N S A B I L I D A D E S O C I A L
15. REFERÊNCIAS DISPONÍVEIS EM:
(1)http://www.selosustentax.com.br/pdf/guia_sustentax.pdf.
(2)http://www.cebds.org.br/cebds/manualdesustenta
bilidade.pdf
(3) http://www.conar.org.br/html/noticias/070611.html
FOTOS ABERTURA: Toban Black / Ecolabs / Rainforest
Action Network / Shira Golding / Spike55151
Newton Figueiredo é fundador e presidente do
Grupo SustentaX, que desenvolve de forma inte-grada
o conceito de sustentabilidade para corpo-rações.
Mais informações: www.Grupo-
SustentaX.com.br Artigo publicado em
EcoDebate (13/7/2011); colaboração de Janaína
S. e Silva. Para saber mais sobre greenwashing,
recomendamos a leitura do dossiê Greenwashing
no Brasil, disponível em www.ideiasustentavel.
com.br/2010/10/greenwashing-no-brasil/2/
Cidadania&MeioAmbiente 15
social ou ambiental. São os chamados pro-dutos
verdes irresponsáveis, promovidos
por desconhecimento, omissão ou ainda por
“picaretas verdes”. As situações mais co-mumente
encontradas são:
1. FALTA DE COMPROVAÇÃO DE RESPONSABILI-DADE
SOCIAL DO FABRICANTE – Por exemplo,
objetos de decoração feitos na Índia, no Vi-etnam,
em Bangladesh e em outros pobres
países asiáticos, vendidos com frequência
em lojas e em sites. Ao comprar um objeto
desses, normalmente de baixa tecnologia in-trínseca,
que poderiam muito bem ser pro-duzidos
no Brasil, inclusive em comunida-des
carentes, o consumidor contribui para a
importação de miséria e mais violência em
nossas cidades. Nessa direção também são
importadas, por incrível que possa parecer,
“ecobags” de países como o Camboja! Mui-tas
vezes esquecemos que o impacto pode
levar à desindustrialização e ao aumento do
desemprego. Outro segmento importante é
o da confecção. Afinal, de nada adianta a
roupa ser feita de algodão orgânico certifi-cado
se a sua produção se dá de forma irres-ponsável
para com os trabalhadores da con-fecção.
De quem é a responsabilidade nes-ses
casos? Do varejista, pois é ele que dis-ponibiliza
o produto em sua prateleira e, por-tanto,
tem a responsabilidade de selecionar
o que irá vender. Essa é a verdadeira postura
de uma empresa sustentável ou, como ou-tras
gostam de se expressar, “eco-friendly”.
2. FALTA DE COMPROVAÇÃO DE RESPONSABILI-DADE
AMBIENTAL DO FABRICANTE – Aqui, a
preocupação é do mesmo diapasão da res-ponsabilidade
social. De nada adianta o al-godão
ser orgânico se sua produção ou
confecção que o utilizou contaminaram o
meio ambiente pela não destinação correta
dos resíduos da produção. Essa preocupa-ção
toma uma dimensão importante quan-do
o produto é importado de países que
não dispõe de uma legislação ambiental à
altura das necessidades atuais de proteção
da biodiversidade planetária. Hoje, o Brasil
tem, por força do valor de sua moeda, im-portado
de tudo, em especial de países asi-áticos
que, em sua maioria, têm legislações
menos rigorosas que a brasileira. Assim, ao
importar sem verificar a responsabilidade
socioambiental do fabricante estrangeiro,
o importador-varejista está, no mínimo, co-metendo
um procedimento não ético ao pro-mover
seu produto como “verde” para um
consumidor que, naturalmente, esperaria
que esse controle fosse feito.
“
3. FALTA DE COMPROVAÇÃO DA NÃO TOXIDADE
DO PRODUTO – Muitas empresas que se pro-põem
a atuar no oferecimento de produto
“verde”, “eco-friendy” ou “sustentável” por
vezes se esquecem de analisar adequada-mente
esse atributo essencial da sustentabi-lidade:
a toxidade à saúde humana e à bio-diversidade.
Outras, por ignorância ou ir-responsabilidade,
confundem o público ao
chamar a atenção para as características da
embalagem (reciclada, por exemplo) ou para
outros atributos, deixando de lado o que ver-dadeiramente
importa: o não comprometi-mento
da saúde do consumidor. Nesse caso,
os melhores exemplos estão na área de pro-dutos
de limpeza altamente tóxicos (desin-fetantes,
água sanitária…), propalados como
“mais sustentáveis” apenas porque suas
embalagens são de material reciclado! Ou-tros
chamam a atenção para o fato de serem
“biodegradáveis”, sem nada informarem
sobre os prejuízos à biodiversidade natural
nem sobre a toxidade em humanos. Ocorrên-cias
semelhantes são encontradas na área
de cosméticos, a começar pelos sabonetes e
xampus. De quem é a responsabilidade por
esses erros? Normalmente, das equipes de
compras (que não exigem comprovações) e
de algumas equipes de marketing, que que-rem
se aproveitar da onda verde.
4. FALTA DE COMPROVAÇÃO DE QUALIDADE –
Embora mais raro, esse problema ainda exis-te,
especialmente, na área de brindes. Conti-nua
em alguns segmentos do comércio um
entendimento, totalmente errôneo, de que
para se ter a imagem ligada às questões de
sustentabilidade é preciso vinculá-la à eco-logia,
rusticidade, primitivismo e aspectos
primários. A consequência é que passa a
ocorrer uma mistura desses conceitos com a
de baixa qualidade de produtos. É muito co-mum
irmos a eventos onde são distribuídas
horrorosas canetas feitas de bambu ou de
plástico reciclado. Consequência: desperdí-cio!
Vale a pena também, além dos aspectos
de design agradável, estar atento às ques-tões
relativas à durabilidade e ao desempe-nho,
especialmente de produtos importados,
pelas dificuldades de solução de problemas
e de recuperação de imagem em pós-venda.
A tendência do mercado de produtos susten-táveis
é de grande crescimento nos próximos
anos. A expansão de lojas físicas e virtuais
mostra que esse é um caminho lucrativo e
sem volta. Entretanto, é sempre bom ter em
mente que a reputação da marca será cons-truída
com ética e respeito junto ao consumi-dor.
Já passou a época do consumidor mal
informado. Hoje tudo está disponível on-line,
especialmente os comentários sobre a serie-dade
com que a empresa trata seus clientes.
Selecionar fornecedores responsáveis e ofe-recer
informações transparentes, verdadeiras,
seguras e consistentes para que o consumi-dor
possa tomar sua própria decisão de com-pra
será um dos caminhos para a diferencia-ção
competitiva, a fidelização de clientes e o
sucesso da marca. Uma das formas de encur-tar
o caminho será o de oferecer produtos já
avaliados no que se refere à sua sustentabili-dade.
Nesse caso, selos emitidos por tercei-ras
partes, como Conpet, Cerflor, Ecocert,
Procel e Sustentax são uma forte indicação
para o consumidor final da consistência das
afirmações de atributos de sustentabilidade e
uma forma de mitigar os riscos para a imagem
e os negócios do lojista. ■
Os consumidores
são bombardeados
por propagandas
enganosas do tipo
‘amigável ao meio
ambiente’.”
Fotdmike
16. As primeiros eras climáticas de nosso pla-neta
ajudam a compreender e antecipar
o que poderemos enfentar brevemente.
Novo estudo realizado por Jeffrey
16
Kiehl, do Centro Nacional para
Pesquisa Atmosférica (NCAR),
examina a relação entre a temperatura global
e os altos níveis de dióxido de carbono (CO2)
na atmosfera há dezenas de milhões de anos.
A análise conclui que a magnitude das mu-danças
climáticas no passado remoto da Terra
sugere que as temperaturas futuras podem
eventualmente subir muito mais do que o
previsto, se a sociedade continuar seu ritmo
de emissão de gases de efeito estufa (GEE).
Segundo Kiehl, se as emissões de CO2 con-tinuarem
no ritmo de emissão atual até o
final deste século 21, as concentrações at-mosféricas
de GEE atingirão os mesmos ní-veis
verificados há cerca de 30 a 100 mi-lhões
de anos atrás – quando a média da
temperatura global era 16oC acima dos ní-veis
pré-industriais. Kiehl informa que as
temperaturas globais podem levar séculos
ou milênios para ajustar-se totalmente em
resposta aos níveis mais elevados de CO2.
Segundo o estudo e com base em recentes
modelagens computadorizadas de proces-sos
geoquímicos, os níveis elevados de
CO2 podem permanecer na atmosfera por
dezenas de milhares de anos.
O estudo também indica que o sistema cli-mático
do planeta, em longos lapsos de tem-po,
pode se tornar pelo menos duas vezes
mais sensível ao CO2 – como prevêem as
modelagens – do que geralmente indicam as
tendências sobre o aquecimento de curto
prazo. Isso porque até mesmo os sofistica-dos
modelos computadorizados ainda não
foram capazes de incorporar, em seus ban-cos
dados, processos críticos como a perda
das camadas de gelo, que ocorre ao longo
de séculos ou milênios, e amplificar os efei-tos
precursores de aquecimento do CO2.
“Se não começarmos a trabalhar seria-mente
para reduzir as emissões de carbo-no,
vamos colocar o planeta numa trajetó-ria
nunca antes experimentada pela espé-cie
humana. Estaremos condenando a ci-vilização
a viver em um mundo totalmente
diferente e por várias gerações”, diz Kiehl.
O artigo Perspectives, publicado na revista
Science, reúne estudos recentes que exami-nam
vários aspectos do sistema climático
aos quais Khiel aplicou modelagem mate-mática
por ele estruturada para estimar as
temperaturas médias globais no passado
distante. Sua análise da resposta do siste-ma
climático a níveis elevados de CO2 é
apoiada por estudos anteriores.
“Esta pesquisa mostra que o espelhamento
das evidências de mudanças ambientais em
registros geológicos com modelos matemá-ticos
do clima futuro é crucial. Talvez as pa-lavras
de Shakespeare ‘o passado é o prólo-go’
também se apliquem ao clima”, lança
David Verardo, Diretor do Paleoclimate Pro-gram
do National Science Foundation (NSF).
Kiehl focou sua análise numa questão funda-mental:
qual foi a última vez que a atmosfera
da Terra conteve tanto dióxido de carbono
quanto no final do século passado e agora?
Se a sociedade continuar aumentando a quei-ma
de combustíveis fósseis no ritmo atual, os
níveis atmosféricos de dióxido de carbono
devem chegar a 900 a 1.000 partes por milhão
até o final deste século – valores muito acima
dos atuais 390 partes por milhão e 280 partes
por milhão dos tempos pré-industriais.
Uma vez que o CO2 é um gás de efeito estu-fa
que retém o calor na atmosfera da Terra,
ele é fundamental para regular o clima do
planeta. Sem o dióxido de carbono, o plane-ta
congelaria. Mas quando o nível atmosfé-rico
de CO2 aumenta, como por vezes acon-teceu
no passado geológico remoto, as tem-peraturas
globais aumentam dramaticamen-te
e gases de efeito estufa adicionais, tais
A Q U E C I M E N T O G L O B A L
TERRA o passado tórrido
prenuncia
17. O texto original Earth’s Hot Past: Prologue to
Future Climate? foi publicado em www.eoearth.
org (14/01/2011). Tradução e adaptação
C&MA. O texto do estudo de Kiehl, com o títu-lo
Perspectives, pode ser encontrado na edição
de junho 2011 jornal Science.
Cidadania&MeioAmbiente 17
como vapor d’água e metano, alcançam a
atmosfera através de processos relaciona-dos
à evaporação e ao descongelamento.
O que leva a um aquecimento adicional.
As evidencias coletadas por Kiehl também
estão lastreadas na análise das estruturas
moleculares de materiais orgânicos
fossilizados que revelam terem os níveis de
dióxido de carbono chegado a 900-1.000 par-tes
por milhão há cerca de 35 milhões de
anos. Naquela época, as temperaturas em
todo o planeta foram substancialmente mais
quente do que atualmente, especialmente
nas regiões polares – mesmo com o Sol
emitindo energia ligeiramente mais fraca.
Então, os altos níveis de CO2 na atmosfera
aqueciam os trópicos em mais 5 a 10oC do
que as médias hoje verificadas. E as regi-ões
polares chegavam a ter 15 a 20 oC acima
das temperaturas atuais.
Os modelos matemáticos ensaidos por Kiehl
estabeleceram que a temperatura média anu-al
da Terra, há 30-40 milhões de anos, era de
cerca de 31 oC – substancialmente maior do
que a temperatura média pré-industrial, de
cerca de 15oC. O estudo também descobriu
que o CO2 pode ter duas vezes ou mais efei-to
sobre a temperatura global do que o atu-almente
previsto pelos modelos climáticos
computadorizados.
As mais destacadas modelagens computa-dorizadas
do mundo projetam que a dupli-cação
da atual taxa de CO2 atmosférico
impactaria um aquecimento na faixa de 0,5 a
1,0oC/watts/m2. (Esta unidade é a medida
da sensibilidade climática da Terra a mu-danças
por GEE.) No entanto, os dados pu-blicados
por Khiel mostram que o impacto
comparável de CO2 há 35 milhões de anos
foi de cerca de 2oC/watts/m2.
As modelagens computadorizadas conseguem
captar os efeitos de curto prazo do aumento de
CO2 na atmosfera. Mas o registro do passado
geológico da Terra abarca efeitos a longo pra-zo,
o que explica a discrepância nos resulta-dos.
O eventual derretimento das camadas de
gelo, por exemplo, leva a aquecimento adicio-nal,
pois as superfícies escuras expostas na
terra ou na água absorvem mais calor do que
as camadas de gelo. “Esta análise indica que
em escalas de tempo mais longas, nosso pla-neta
pode ser muito mais sensíveis a gases de
efeito estufa do que pensávamos”, alerta Kiehl.
Por essa razão, para implementar a acuracidade
de suas pesquisas, os climatologistas estão
adicionando a suas modelagens representa-ções
mais sofisticadas das camadas de gelo,
além de outros fatores.
Como estes avanços estão on-line, Kiehl
acredita que as modelagens computacionais
e os registros paleoclimáticos estão próximos
de um acordo, fato que evidenciará serem os
impactos do CO2sobre o clima ao longo do
tempo provavelmente muito mais substanci-ais
do que apontam os atuais dados. Pelo
fato de o CO2 estar sendo lançado à atmosfe-ra
a taxas nunca antes experimentadas, Kiehl
não pode estimar o tempo que o planeta leva-ria
para se aquecer plenamente.
No entanto, Kiehl – e pares – sabem que mes-mo
um sensível aquecimento tornará especial-mente
difícil a adaptação das sociedades e dos
ecossistemas às novas temperaturas. Se as
emissões continuarem em sua trajetória atual,
“a espécie humana e os ecossistemas globais
serão colocados em um quadro climático nun-ca
antes vivenciado na história humana”,
vaticina com propriedade o estudo. ■
por Sidney Graggan/National Science Foundation o clima futuro?
18. Um dos fatores a serem considera-dos
18
na conservação do meio ambi-ente
é a preservação da diversi-dade
cultural ou antropodiversidade, ten-do
em conta que autonomia das comunida-des
indígenas e desenvolvimento susten-tável
constituem binômio indissolúvel que
precisa ser preservado não só para o bem
do índio como o da humanidade como um
todo. Por essa razão, as agências internaci-onais
têm recomendado a manutenção das
populações rurais em seus sítios de origem
por constituírem ferramenta de apoio ao pla-nejamento
ordenado do território em cujo
desenho elas se incorporam como atores
sociais. Sem exceção, os grupos étnicos das
diferentes latitudes do mundo estão direta-mente
ligados à gestão adequada dos re-cursos
naturais. Por isso, os povos indíge-nas
foram incluídos na Estratégia de Con-servação
Mundial da União Internacional
para a Conservação da Natureza e dos Re-cursos
Naturais.
Em geral, os grupos étnicos têm longa ex-periência
na gestão dos recursos naturais,
uma vez que vivem desde tempos imemori-ais
em contato direto com a natureza, dela
obtendo os serviços para satisfazer suas
necessidades. Mesmo que não tenham de-finido
o conceito de desenvolvimento sus-tentável,
tais povos o vem praticando des-
E C O C I D A D A N I A
Povos autóctones
têm longa experiên-cia
na gestão dos
recursos ambientais
por coexistirem di-retamente
Povos indígenas & proteção ambiental
por Gloria Aurora De Las Fuentes Lacavex e Abner Ceniceros Aviña
com a
natureza e pratica-rem
espontanea-mente
o conceito de
desenvolvimento
sustentável.
de sempre. De acordo com dados arqueo-lógicos
obtidos por Michael D. Coe, em
1962, no México, por 14 mil anos o homem
vem gestando experiência no uso dos re-cursos
naturais. Esta experiência inclui o de-senvolvimento
em diferentes fases: caça,
coleta e agricultura primitiva.
Ao se estabelecerem as primeiras áreas na-turais
protegidas, a fim de impedir que a in-dustrialização,
as novas agrotecnologias e a
expansão demográfica prejudicassem sítios
que pareciam virgens da presença destruti-va
do homem, verificou-se que, em muitos
casos, tais espaços não careciam de habi-tantes,
pelo contrário, tais territórios alber-gavam
sociedades humanas autóctones.
A alegação de que para melhor preservar
estes locais é necessário remover os habi-tantes
originais ou estabelecer regulamen-tos
de proteção ambiental não leva em con-ta
que a relação entre tais comunidades e o
meio ambiente tem sido um dos principais
fatores de manutenção e preservação dos
nichos ecobiológicos lá existentes. Afinal,
foram os conhecimentos transmitidos de ge-ração
a geração que permitiram às ativida-des
das ditas sociedades serem economi-camente
sustentáveis ao estimular a contí-nua
renovação dos recursos naturais nas
áreas sob sua administração.
Os povos indígenas são os habitantes origi-nais
de muitas áreas hoje protegidas e/ou res-tritas
a atividades substancialmente nocivas
ao meio ambiente natural. Essas populações
contam com um conhecimento minucioso e
sofisticado do meio ambiente onde vivem,
saberes que a investigação científica atual
levaria anos para decifrar. Tais conhecimen-tos
são utilizados pelas comunidades para ide-alizar
a implementação de estratégias de de-senvolvimento
e de uso da natureza em seus
espaços de vida, ao mesmo tempo que pre-servam
o meio ambiente – não pela simples
idéia de conservação – mas por terem pleno
conhecimento e consciência de que a sobre-exploração
dos recursos impacta não apenas
a natureza, o ambiente e a paisagem, mas, em
última instância, compromete o sustento e o
próprio futuro de sua comunidade.
Os membros de uma cultura indígena estão
cientes do delicado equilíbrio entre os dife-rentes
seres. Isso pode ser percebido na
ideologia de muitos desses povos, basea-da
no princípio de que existe uma afinidade
entre os seres humanos e todos os outros
seres vivos na Terra.
Neste contexto podemos afirmar que as cul-turas
indígenas têm participado ativamente
da conservação ambiental em geral e da bio-diversidade
em particular. Por isso, é vital que
Francesco Muratori
19. REFERÊNCIA:
(1) Villoro, Luis. “En torno al derecho de autonomía de los
pueblos indígenas”, en Cultura y Derechos de los Pueblos
Indígenas de México. p.167
Gloria Aurora De Las Fuentes Lacavex e Abner
Ceniceros Aviña – Professores da Facultade de
Ciencias Administrativas y Sociales na Universidad
Autónoma de Baja California, México. Texto origi-nal
publicado em www.ecoportal.net
Cidadania&MeioAmbiente 19
tais comunidades permaneçam em seus sítios
de origem, para que suas práticas de obten-ção
de matérias-primas da natureza possam
apoiar os programas governamentais de pro-teção
ou restauração de áreas protegidas.
POVOS INDÍGENAS: O DIREITO À AUTONOMIA
O direito à autodeterminação dos povos foi
estabelecido ao final da Segunda Guerra Mun-dial,
pela Carta das Nações Unidas, que prevê,
nos artigos 1º e 55º o direito de todos os povos
à autodeterminação. Este conceito tem sido
reafirmado, como na Convenção das Nações
Africanas, em Nairóbi, em 1981. Desde então,
o direito internacional denuncia um problema
recorrente e ainda não resolvido adequadamen-te:
a relação entre direitos individuais, que re-metem
ao indivíduo, e direitos dos povos,
que remetem ao sujeito coletivo.
Os povos sujeitos ao Direito de Autodeter-minação
devem preencher certas caracte-rísticas,
em conformidade ao espírito da Car-ta
das Nações Unidas. Em primeiro lugar, a
comunidade deve constitutir uma cultura
distinta que se manifesta, entre outros fa-tores,
através de linguagem, de costumes
tradicionalmente aceitos, de estilos de vida,
de instituições sociais e de regras de
relacionamento. Em segundo, que os mem-bros
da comunidade tenham plena consci-ência
de pertencer a um povo vinculado a
um território geográfico natural.
RESERVAS: A SOLUÇÃO AMERICANA
Nos Estados Unidos, as reservas indíge-nas
são a forma de reconhecimento do di-reito
à autodeterminação dos povos, ou seja,
o reconhecimento da autoridade tribal. Em
muitas ocasiões, este sistema foi conside-rado
uma forma de apartheid, embora as
tribos não sejam obrigadas necessariamen-te
a residir em uma reserva, que vem a ser
uma extensão de terra gerida por tribos na-tivas,
sob a égide do Bureau de Assuntos
Indígenas, do Departamento do Interior dos
EUA (United States Department of the In-terior’s
Bureau of Indian Affair).
Há cerca de 300 reservas indígenas nos EUA,
o que significa que muitas das mais de 500
tribos reconhecidas não têm uma reserva,
embora algumas tenham mais de uma.
No exercício do poder investido pela Cons-tituição,
uma das primeiras leis aprovadas
pelo Congresso dos Estados Unidos foi a
Lei de Comércio e de Intercâmbio com os
Índios, de 1790. Ela especifica que apenas
o governo federal pode fazer acordos
com as tribos, colocando todos os aspec-tos
do intercâmbio entre índios e não-índi-os
sob controle federal.
Entre 1823 e 1831, três casos julgados pela
Suprema Corte Federal definiu os eixos da
legislação e da política indígena america-nas,
a saber:
❚ As tribos gozam de certo grau de sobera-nia
em virtude do seu estatuto político e
territorial original.
❚ Esta soberania pode estar sujeita à redu-ção
ou supressão pelo governo federal dos
EUA, mas não por governos estaduais.
❚ A soberania limitada das tribos e sua de-pendência
dos EUA impõem ao governo
federal a obrigação moral de cuidar das tri-bos,
devendo assumir a responsabilidade
pela saúde e bem-estar das comunidades.
Em razão da venda de terras, algumas reser-vas
foram seriamente fragmentadas. Cada
parcela de terra pertencente a grupos étni-cos
nativos da América do Norte é um en-clave
independente, e a mistura de proprie-dades
imobiliárias públicas e privadas aca-bou
criando graves problemas administrati-vos.
A unidade de governo com jurisdição
sobre reservas indígenas é o conselho tri-bal,
não as instâncias federal, estadual ou
municipal. E as reservas indígenas muitas
vezes contam com seus próprios sistemas
de governaça, que podem ou não reproduzir
as formas encontradas fora da reserva.
A assinatura do tratado com os índios Dela-ware,
em 1787, marcou o início de um período
de quase um século em que o governo federal
firmou mais de 650 acordos, 370 deles
confirmados. Os tratados geralmente contêm
cláusulas relativas à manutenção da paz, da
caça, da pesca e dos direitos dos índios, e o
reconhecimento, por parte das tribos, da au-toridade
do governo federal ou sua proteção.
A partir da década de 1820, os tratados passa-ram
a concentrar-se na transferência de terras
tribais e na criação de reservas, fato que se
refletiu na política de remoção e transferên-cia
dos índios para as terras do oeste, a fim de
facilitar a expansão territorial do país. A remo-ção
forçada das Cinco Tribus Civilizadas do
sudeste do Oklahoma, por exemplo, foi trági-ca:
a comunidade foi forçada a caminhar mais
de 2.800 milhas, no que ficou conhecido como
“Trail of Tears” (trilha das lágrimas).
No início da demarcação das reservas, as tri-bos
foram impedidas de praticar a caça como o
faziam ancestralmente, fato que levou seus
membros a ter de aprender e se adaptar às
práticas da agricultura de subsistência nas
novas terras, muitas nada ideais e outras total-mente
impróprias ao cultivo, o que trouxe a
fome a muitas etnías que haviam firmado tra-tado
com o governo federal. Por vezes, os
mesmos tratados incluíram acordos de con-cessão
de bens anuais a algumas tribos. Mas
a implementação desta política foi errática, e
não raro os bens nunca foram entregues.
Quando os EUA adquiriram do México os
territórios que hoje compreendem os esta-dos
do sudoeste do país, o governo federal
continuou a fazer acordos com as tribos da-quela
região. Esses tratados levaram à cria-ção
de um vasto sistema de reservas nos os
índios podem exercer os seus direitos à au-todeterminação.
De qualquer modo, a políti-ca
de criação de reservas foi controversa
desde o início, uma vez que estabelecidas de
forma compulsória e, em muitos casos, com
a oposição dos colonos brancos à dimen-são
das reservas demarcadas. ■
Os povos indígenas
crêem no princípio
de afinidade entre
os seres humanos e
todos os outros seres
vivos na Terra.”
“
Global Humanitaria
20. O Brasil pode continuar
desempenhando papel
de destaque na oferta de
commodities ao mesmo
tempo em que transita
para uma economia de
baixo carbono baseada
no conhecimento e não na
destruição da natureza.
por Ricardo Abramovay
20
Economia de baixo carbono:
O DESAFIO BRASILEIRO
IHU ON-LINE – COMO REPENSAR A POLÍTI-CA
ECONÔMICA BRASILEIRA A PARTIR DA QUES-TÃO
AMBIENTAL?
Ricardo Abramovay – O país tem hoje uma
situação privilegiada que pode usar de for-ma
inteligente ou desperdiçar. Este privilé-gio
exprime-se no fato de que a transição
para uma economia de baixo carbono – ca-paz
de compatibilizar seu crescimento com a
preservação dos serviços ecossistêmicos
básicos – pode ser levada adiante de forma
muito menos traumática que na maioria dos
países com a importância econômica do Bra-sil.
A matriz energética brasileira é dependente
de combustíveis fósseis em pouco mais de
50% (embora a presença das termelétricas
esteja aumentando de forma preocupante).
A média mundial é superior a 85% e a dos
países mais ricos do planeta ultrapassa 90%.
A redução no desmatamento da Amazônia
aumenta a probabilidade de que os compro-missos
internacionais quanto à emissão de
gases de efeito estufa sejam cumpridos.
O fundamental, então, é que estas vanta-gens
sejam utilizadas para fazer da socieda-de
brasileira um exemplo internacional na
relação entre economia e ecossistemas. Isso
se traduz por três elementos básicos.
Em primeiro lugar, é preciso que, da mes-ma
forma que está ocorrendo na União Eu-ropeia,
no Japão, na China e nos EUA, a
inovação industrial tenha por vetor funda-mental
a preocupação em reduzir ao mínimo
o uso de materiais e energia por unidade de
produto. Isso exige rastreamento mais apro-fundado
não só das emissões de gases de
efeito estufa, mas dos impactos da produ-ção
material sobre a biodiversidade e, de
maneira geral, sobre os materiais consumi-dos
pela indústria. Além da chamada pega-da
de carbono, é fundamental rastrear a
pegada de água e de todos os materiais
usados na produção.
O segundo elemento refere-se à Amazônia:
não é possível que ela continue sendo enca-rada
estrategicamente como o local de onde
se extraem minérios, onde se produz energia
e como o paraíso das commodities. É verda-de
que melhoram, nos últimos anos, as con-dições
de exploração de energia, minérios e
commodities. Mas ainda estamos a anos-luz
da recomendação de Bertha Becker e Carlos
Nobre, no documento de 2008 da Academia
Brasileira de Ciências, de construção de uma
D E S E N V O L V I M E N T O
Neil Palmer
21. economia baseada no conhecimento
da natureza, no uso sustentável da flo-resta
em pé. Estamos assim desperdi-çando
uma riqueza nacional fantástica
e, mais que isso, a oportunidade de
desenvolver um padrão de uso dos
recursos produtivos que pode ser
exemplar em termos internacionais.
O terceiro elemento refere-se ao pró-prio
padrão de consumo atual. A con-trapartida
da redução da pobreza e da
desigualdade é que deixa ainda mais
patente a insustentabilidade do padrão
de consumo que marca a sociedade bra-sileira.
Quem mora em São Paulo perce-be
que a aspiração e o verdadeiro culto
à propriedade de um automóvel indivi-dual,
sua transformação não numa utili-dade,
mas num valor é apenas um exem-plo
de que aumento da renda não con-duz
necessariamente a aumento do bem-es-tar.
Isso não significa que a renda dos mais
pobres deva parar de crescer. Significa que
os padrões de consumo atuais tão concen-trados
em produtos alimentares de má quali-dade,
num padrão de mobilidade urbana in-sustentável
e em formas de moradia apoia-das
em imenso desperdício, devem ser dis-cutidos
e modificados. O Plano Brasileiro de
Ação para Produção e Consumo Sustentá-veis
– PPCS, atualmente em consulta públi-ca,
é um avanço importante nesta direção.
IHU – A PRESIDENTE DILMA ROUSSEFF PRO-METEU
ERRADICAR A MISÉRIA E REDUZIR A POBRE-ZA
A APENAS 4% DA POPULAÇÃO ATÉ 2014.
O PAÍS TEM CONDIÇÕES DE CONTINUAR REDU-ZINDO
A POBREZA, CONSIDERANDO O ATUAL
MODELO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO?
R.A. – Há duas dimensões importantes nes-ta
pergunta. A primeira é que o sucesso
em cada passo adicional na luta contra a
pobreza é mais difícil que o passo anterior.
Os que se encontram em situação de misé-ria
absoluta são indivíduos e famílias – na
maior parte dos casos, famílias monopa-rentais
dirigidas por mulheres, com frequ-ência
por mulheres relativamente idosas –
distantes de redes básicas de solidarieda-de
capazes de suprir suas necessidades em
momentos mais críticos e de abrir horizon-tes
de mudança de vida em termos de em-prego
ou oportunidade de geração de ren-da.
Se a ideia é realmente zerar a miséria
absoluta, um caminho importante é a for-mação
de equipes de agentes de desen-volvimento
capacitados a dialogar com
estas famílias e, sobretudo, a lhes abrir con-tatos
O típico padrão de consumo
da sociedade brasileira torna
e oportunidades que permitam recu-perar
sua auto-estima e ampliar o horizonte
social em que vivem. Os custos de forma-ção
de uma rede de agentes de desenvolvi-mento
seriam certamente compensados pela
redução na demanda por atendimento de
urgência por parte destas famílias.
A segunda dimensão fundamental está na
necessidade de se avançar muito mais na luta
contra a desigualdade. Isso não depende
estritamente de política econômica e sim de
decisões que se referem à disponibilidade de
assistência de qualidade às crianças desde a
primeira infância e à qualidade do ensino pú-blico.
Mais que de renda, o Brasil é um país
em que ainda há uma profunda desigualdade
de expectativas entre os filhos dos ricos e os
que vêm de famílias pobres. O passo mais
importante para extirpar a miséria absoluta é
criar uma sólida rede de proteção à infância e
uma política consistente de aumento na qua-lidade
do ensino público e que permita que
todos tenham a aspiração de cursar as me-lhores
universidades e ingressar nos melho-res
postos do mercado de trabalho. Não se
pode deixar de mencionar também as diferen-ças
brutais na qualidade dos serviços de saú-de
de que desfrutam ricos e pobres no Brasil.
Isso é um elemento que não apenas desper-diça
vidas, mas que corrói o sentimento míni-mo
de solidariedade que deve marcar uma
sociedade democrática.
IHU – A ESTRATÉGIA DE MANTER O BRASIL
COMO O CELEIRO DO MUNDO ESTÁ NA CON-TRAMÃO
DA TERCEIRA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL
BASEADA NA BAIXA EMISSÃO DE CARBONO?
R.A. – O Brasil pode continuar desem-penhando
papel de destaque na oferta
de commodities, ao mesmo tempo em
que transita para uma economia de bai-xo
carbono baseada no conhecimento,
não na destruição da natureza. Os seg-mentos
mais esclarecidos do agronegó-cio
já se deram conta disso e não é por
outra razão que as mesas redondas da
soja, dos biocombustíveis e da pecuá-ria
avançaram tanto. A produção brasi-leira
de commodities sairá fortalecida de
uma decisão em que os próprios empre-sários
endossem uma política de des-matamento
zero em todos os biomas do
país e não só na Amazônia. Não é pos-sível
imaginar que seja necessário per-sistir
no desmatamento da caatinga
como base para a produção de gesso
ou de ferro gusa. O desmatamento é a
expressão do capitalismo brasileiro da
primeira metade do século XX, que, entre-tanto,
ainda tem uma força extraordinária.
Um dos grandes desafios dos próximos
anos é o fortalecimento de coalizões em-presariais
que façam da preservação dos
serviços ecossistêmicos básicos uma das
fontes fundamentais de inovação tecnoló-gica
e de ganhos econômicos. Mas, para
isso, é fundamental sinalizar que aumento
da produtividade e produção de qualidade
não combinam com devastação.
IHU – A PARTIR DA DESCOBERTA DE RESERVAS DO
PRÉ-SAL, QUAL DEVE SER A POSIÇÃO DO BRASIL
FRENTE À QUESTÃO ENERGÉTICA E AMBIENTAL?
R.A. – O ponto de partida para esta resposta
é a constatação da extraordinária eficiência
energética do petróleo. Thomas Homer-Dixon
e Nick Garrison, em Carbon Shift - How the
Twin Crisis of Oil Depletion and Climate
Change Will Define the Future (Random
House, Canada) não hesitam em afirmar que a
população mundial quadruplicou no último
século graças ao petróleo. “Convertemos pe-tróleo
em comida e comida em bilhões de
pessoas”, dizem eles. Três colheres de petró-leo
cru contêm tanta energia quanto oito ho-ras
de trabalho humano. No último século a
quantidade de energia por hectare nas terras
agrícolas aumentou cerca de 80 vezes. É ób-vio
que há inúmeras consequências negati-vas
no uso do petróleo, que vão da poluição
e das emissões de gases de efeito estufa até o
próprio poder das companhias petrolíferas.
Mas a verdade é que se trata de uma fonte de
energia com eficiência impressionante e da
qual a humanidade vai continuar dependente
ao menos durante todo o século XXI.
patente nossa
insustentabilidade.”
“
Angry Beth
Cidadania&MeioAmbiente 21
22. 22
Ricardo Abramovay é
mestre em Ciências Po-líticas
pela Universida-de
de São Paulo (USP),
doutor em Ciências
Econômicas pela Uni-versidade
de Campinas
(Unicamp). Coordena-dor
do Núcleo de Eco-nomia
Socioambiental
Só que com o próprio esgotamento
do petróleo a eficiência econômica
na extração vai sendo reduzida: em
1930, o retorno energético do inves-timento
em petróleo era de um para
100. Ou seja, cada unidade de ener-gia
gasta para extrair petróleo tradu-zia-
se em cem unidades de energia
obtidas. Hoje, a proporção caiu de
um para 17, a profundidade média
da extração subiu de 1000 para 2000
metros e o tamanho médio de um
novo campo diminuiu de 20 milhões
para um milhão de barris. Estes cus-tos
vão aumentar ainda mais como
decorrência do acidente de Macon-do,
o poço da BP que explodiu no
Golfo do México. Em reportagem no
Valor Econômico (17/11/2010), Sér-gio
Gabrielli, presidente da Petro-bras,
afirma que a indústria de pe-tróleo
tem deficiências no sistema
de segurança da exploração em águas pro-fundas.
Corrigir estas deficiências significa
aumentar os custos da exploração.
A este inevitável aumento no preço do pe-tróleo
acrescenta-se, é claro, a necessária
cobrança pelas consequências destrutivas
das emissões de gases de efeito. Ainda mais
se forem levados em conta os trabalhos do
mais importante especialista da NASA no
assunto, James Hansen, de que não basta
estancar as emissões, é necessário reduzir
o nível de concentração de gases de efeito
estufa na atmosfera se quisermos legar a
nossos filhos ecossistemas mais ou menos
próximos ao que conhecemos. O resultado
é que o petróleo ficará mais caro em função
de sua escassez, de seus crescentes cus-tos
de exploração e dos riscos a que esta
exploração se associa. Além disso, o uso
do petróleo deverá ser taxado por seus im-pactos
negativos sobre a biosfera. Claro que
haverá um imenso esforço de captação de
carbono, mas isso só vai contribuir para en-carecer
as emissões, já que não se seques-tra
carbono gratuitamente.
O grande problema é que, apesar de tudo
isso, nada indica, por enquanto, que as ener-gias
alternativas poderão substituir o pe-tróleo
como fonte de crescimento para a
economia mundial. Uma conclusão possí-vel
desta constatação é que este crescimen-to
terá que ser contido, sobretudo para os
países mais ricos do planeta cujas necessi-dades
básicas já foram atingidas e que já
possuem a infraestrutura necessária a uma
vida social digna. O que chama a atenção é
que a ideia de que deve haver limites ao
crescimento econômico, repudiada como
quase folclórica no início da década passa-da,
ganha um prestígio crescente nos cír-culos
de negócios e entre alguns dos mais
importantes economistas contemporâneos.
IHU – O PETRÓLEO DO PRÉ-SAL PODE FI-NANCIAR
A TRANSIÇÃO DO BRASIL PARA UMA
ECONOMIA COM MENOR EMISSÃO DE CARBO-NO?
COMO?
R.A. – Mesmo que do ponto de vista inter-nacional
o desafio estratégico esteja na re-dução
das emissões de gases de efeito estu-fa,
seria insensato não organizar a explora-ção
do pré-sal, tendo em vista o inevitável
aumento da demanda mundial por petróleo.
O importante é que parte significativa dos
recursos do pré-sal seja dirigida para acele-rar
a transição do Brasil para uma economia
de baixo carbono, de maneira que os usuári-os
dos resultados da exploração do pré-sal
respondam pelo pagamento dos direitos de
emissão ligados a seu uso.
É fundamental que se ampliem os investimen-tos
em ciência e tecnologia ligadas ao conhe-cimento
dos mais importantes biomas do país
para que o uso sustentável da biodiversida-de,
a economia da floresta em pé, a economia
do conhecimento da natureza possam ganhar
escala e influir sobre o próprio padrão de cres-cimento
da economia brasileira.
IHU – QUE HERANÇAS O GOVERNO LULA
DEIXA PARA O ATUAL PRESIDÊNCIA?
R.A. – A contribuição mais impor-tante
do governo Lula é de natu-reza
institucional e se exprime em
três realizações decisivas. A pri-meira
refere-se à independência da
Polícia Federal. É uma instituição
respeitada e que leva adiante suas
investigações de forma totalmen-te
legal e profissional. O resultado
é um avanço inédito na luta con-tra
a corrupção em todos os ní-veis
e por todo o país. Onde há
eventuais abusos de autoridade,
o país dispõe de mecanismos cla-ros
para coibir. A segunda refere-se
ao Ministério Público: de orga-nização
meio folclórica e radicalói-de
tornou-se hoje uma instituição
coesa atuando em áreas que vão
da corrupção ao meio ambiente, e
atraindo para si alguns dos melho-res
jovens talentos. O terceiro ele-mento
importante refere-se ao próprio fun-cionalismo.
O aumento na quantidade de
”
gestores públicos melhorou de forma im-pressionante
a qualidade da máquina esta-tal.
Dizer que nos últimos anos ampliaram-se
os gastos com pessoal é um equívoco,
pois não é esta a origem dos problemas do
financiamento do Estado brasileiro e não
leva em conta que gestores bem formados
e bem pagos fortalecem justamente o cará-ter
republicano do Estado. Quando se
acrescentam a estes elementos institucio-nais
o avanço na luta contra a pobreza e a
desigualdade o resultado é que o país está
em condições excepcionalmente favoráveis
para enfrentar seu mais importante desafio
econômico: mudar a qualidade de seu cres-cimento
como base para aprofundar a luta
contra a pobreza e a desigualdade. ■
(NESSA), atua no Programa de pesquisa Dinâ-micas
Territoriais Rurais do Centro Latino-ame-ricano
para el Deserrollo Rural (RIMISP), do
Chile, e do International Development Resear-ch
Center (IDRC), do Canadá. Entrevista con-cedida
à IHU On-Line, publicação do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade
do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São
Leopoldo, RS, em 22/11/2010.
“ Seria insensato não explorar o
pré-sal em vista do aumento de
demanda mundial por petróleo.
Minplanpac
23. homem e nature-za
evoluem juntos. P O V O S I N D Í G E N A S
Cidadania&MeioAmbiente 23
O Xingu do século 21
Em 2011, o Parque Indígena do Xingu
está fazendo 50 anos. Algo profundo
mudou na minha percepção de mundo en-quanto
conhecia o parque e sua história du-rante
a produção do filme “Xingu”. Sem dúvi-da,
é um dos maiores patrimônios do Brasil - e
nós, brasileiros, não temos a menor ideia do
que ele representa e do que está protegido ali.
Criado em 1961, é a primeira reserva de grandes
proporções no Brasil. Abriga povos de cultura
riquíssima e filosofia milenar, que vivem em
equilíbrio, preservando seu modo de vida, sua
dignidade, sua cultura e vasta sabedoria, assi-milando
só o que vale a pena do “mundo de
fora”, sempre em sintonia com a natureza exu-berante.
Um verdadeiro santuário social, ambi-ental
e histórico no coração do Brasil.
Mas não estamos falando só de preservação
do passado e da natureza. O que está sendo
protegido ali é o futuro. Não o futuro visto
com os óculos velhos, sujos e antiquados
que enxergam o progresso da mesma maneira
como enxergavam nossos bisavós na Revo-lução
Industrial, mas o futuro do século 21.
Esse talvez seja o maior patrimônio do Brasil
hoje. Mais valioso que todo o petróleo, soja,
por Caio Hamburguer
Carlos Império Hamburger é diretor de cine-ma
e televisão. Atualmente finaliza o filme
“Xingu”, sobre a criação do Parque Indígena.
Artigo publicado em Folha de S. Paulo (6/02/
2011) e socializado por Gilvander Moreira, frei
Carmelita, no www.ecodebate.com.br
carne, ferro que tiramos do nosso solo, ou
todo automóvel, motocicleta, geladeira que
fabricamos. O que está protegido ali é um
novo paradigma de como o ser humano pode
e deve viver. Não estou dizendo que preci-samos
morar em ocas, dormir em redes, to-mar
banho no rio e andar nus. Falo de algo
mais profundo. Algo novo para nós, ditos
civilizados, que nascemos e fomos criados
como os donos do planeta. Arrogantes e
prepotentes, nos transformamos no maior
agente destruidor do nosso próprio habitat.
Um exército furioso de destruição. Um vírus
que se multiplica e ataca, transformando e
destruindo tudo o que encontra em seu ca-minho
na presunção de que estamos cons-truindo
um mundo melhor, mais seguro, mais
confortável, mais rentável.
No Xingu, progresso tem outro significa-do.
No Xingu, homens e mulheres não vi-vem
como donos do mundo, não foram cri-ados
com essa arrogância. Vivem como parte
da cadeia de vida do planeta, e essa cadeia
é interligada e interdependente. O “progres-so”
e o bem-estar dos homens estão liga-dos
ao equilíbrio dessa cadeia. Para os ín-dios,
homem e natureza evoluem juntos.
GOLPE BAIXO
Mas a megausina de Belo Monte quer repre-sar
o rio Xingu. O rio que é a alma e a base da
vida das comunidades indígenas da região.
Um golpe baixo, em nome do progresso. Pro-gresso
com os velhos parâmetros dos sécu-los
19 e 20, que tem levado o mundo ao co-lapso
social e ambiental. É isso que quere-mos?
Se nossos dirigentes e a sociedade
como um todo se interessassem em enten-der
a filosofia, a cultura e a inteligência dos
povos indígenas, abortariam qualquer pro-jeto
que os ameaçasse. E poderíamos inau-gurar
novo paradigma de progresso.
O progresso do equilíbrio. Seríamos a van-guarda
mundial do século 21. Essa é a de-manda.
Essa é nossa chance. Sejamos co-rajosos,
ousados, visionários. Como foram
os que lutaram pela criação do Parque do
Xingu há 50 anos. ■
AMEAÇADO
No Xingu, homens e
mulheres não são ar-rogantes
donos do
mundo. São parte da
cadeia interligada e in-terdependente
da vida
planetária. Para o ín-dio,
Mário Vilela/Funai.
International Rivers
Xingu
Barragens propostas
24. À IDEOLOGIA
Num manifesto ecopragmático, o ecólogo americano Stewart
Brand postula a renovação da política através de uma corrente
que encaminhe soluções práticas aos grandes desafios atuais:
população, clima e biodiversidade.
Os frustrantes resultados do proje
24
por José Eli da Veiga
to político dos verdes decorrem de
apego umbilical às iniciais reações
aos impactos ambientais do produtivismo
e do consumismo das sociedades contem-porâneas.
Ficaram presos a sentimentalis-mos
que não se traduzem em políticas ca-pazes
de galvanizar as amplas bases soci-ais
que até agora apoiaram a decadente so-cialdemocracia.
Precisam com urgência da
ajuda de uma corrente irmã que venha a
renovar a vida política por assumir a postu-ra
pragmática intrínseca aos engenheiros.
Uma corrente que encaminhe soluções prá-ticas
a grandes desafios – como o popula-cional,
o climático, e o da biodiversidade –
com sólidos alicerces nos avanços científi-cos,
principalmente em três questões: a ge-nética,
a nuclear e a urbana.
Foi essa a conclusão a que chegou o sep-tuagenário
ecólogo americano Stewart
Brand após longuíssima e abnegada mili-tância
verde. Esteve com a vanguarda da
contracultura antes de lançar o legendário
Whole Earth Catalog, em 1968, que rece-beu
o National Book Award, em 1972. A ele
adicionou a pioneira revista CoEvolution
Quarterly, a partir de 1974. Ambos duraram
até um claro ponto de mutação em meados
dos anos 1980, a partir do qual Brand pas-sou
a se empenhar na formulação de cená-rios
futuristas, criando a Global Business
Network, parte do Monitor Group, e mais
tarde a The Long Now Foundation, da qual
permanece presidente.
No entanto, o fato biográfico indispensá-vel
ao entendimento dessa trajetória foi,
com certeza, sua experiência, entre 1975 e
1983, de assessor direto do governador
democrata da Califórnia Jerry Brown, que
acaba de voltar ao posto. Foi dessa colabo-ração
que saiu o exitoso programa de efici-ência
energética, que hoje permite a um
californiano consumir muito menos energia
que os demais americanos, com metade das
emissões per capita de gases de efeito es-tufa.
Mesmo com um aumento da renda per
capita de 80% em três décadas, a demanda
Tornley
de energia californiana não se alterou, en-quanto
aumentava 50% em outros estados.
Na assessoria de Jerry Brown, uma das prin-cipais
funções de Brand foi organizar diálo-gos
do governador com expressivos inte-lectuais
das mais diversas especialidades.
Em 1977, por exemplo, eles ouviram de Ja-mes
Watson, um dos pais da descoberta da
estrutura do DNA, uma confissão de arre-pendimento
sobre a célebre conferência de
geneticistas de Fevereiro de 1975, em Asilo-mar,
da qual havia sido um dos coordenado-res.
Ele já percebera que haviam sido exage-radas
as restrições propostas nessa confe-rência,
que logo depois foram adotadas por
muitas instituições de saúde, e que, naquele
exato momento, estavam sendo debatidas
pela assembleia legislativa da Califórnia.
Talvez seja por isso que a questão dos trans-gênicos
apareça no “manifesto” de Stewart
Brand como uma das mais impiedosas críti-cas
que os verdes já tiveram oportunidade
de receber. Começa dizendo que a oposição
D E S E N V O L V I M E N T O
TRIPLO
DESAFIO
VERDE