Este documento discute a pesquisa realizada sobre a Comunidade Quilombola do Povoado Cruz em Delmiro Gouveia, Alagoas. Os autores realizaram entrevistas e pesquisa bibliográfica para resgatar a história oral e aspectos culturais desta comunidade. Eles argumentam que o reconhecimento da diversidade cultural é essencial para promover a inclusão e a pluralidade no Brasil. A pesquisa visa valorizar a cultura de origem africana desta comunidade e contribuir para o debate sobre educação afro-brasileira.
Povoado cruz contribuições aos estudos dos quilombos
1. Revista Gestão Acadêmica Nova Esperança, v. 1, n. 2, p. 147-160, 2014
POVOADO CRUZ - CONTRIBUIÇÕES AOS ESTUDOS DOS QUILOMBOS
Wellington Amâncio Silva
Ecologia Humana e Gestão Socioambiental – UNEB/PPGEcoH. É vinculado ao grupo de
pesquisa “Memória, Identidade, Territorialidade, Educação do/no Campo e Espaços de
Sociabilidade” - OPARÁ. E-mail: welliamancio@hotmail.com
Juracy Marques
Doutor em Cultura e Sociedade, pós-doutor em Antropologia e em Ecologia Humana, Prof. da
UNEB – Universidade do Estado da Bahia e da FACAPE – Faculdade de Ciências Sociais
Aplicadas de Petrolina, Presidente da Sociedade Brasileira de Ecologia Humana - SABEH. E-
mail: juracymarques@yahoo.com.br
RESUMO
Observando os Parâmetros Curriculares Nacionais cuja “temática da pluralidade cultural diz respeito ao
conhecimento e à valorização das características étnicas e culturais dos diferentes grupos sociais”, frutos
de longos processos históricos, visou-se pesquisar no intuito de promover a cultura de matriz africana no
Estado de Alagoas, especificamente nos povoados do entorno de Delmiro Gouveia. Em vista disso,
pretendeu-se contribuir para o resgate da historia da Comunidade Quilombola do Povoado Cruz,
sobretudo da história oral, dos aspectos culturais e étnicos de afirmação pessoal e social daquela
comunidade. Para tal, foram levantados diversos dados, desde entrevistas, questionários, vídeos, memórias
orais, fotografias, por meio de pesquisa in lócus até estudos bibliográficos acerca do assunto.
Palavras-chave: Quilombos; Povoado Cruz; Delmiro Gouveia; Alagoas; Afrodescendente.
ABSTRACT
Observing the National Curricular Parameters whose "theme of cultural diversity with respect to
knowledge and appreciation of ethnic and cultural characteristics of different social groups," fruit of long
historical processes, was aimed at search in order to promote the culture of African origin in the Alagoas
(State from Brazil), specifically in the villages around Delmiro Gouveia (city from Northeast from Brazil,
in Alagoas State). In view of this, it aims to contribute to the rescue of the history of Community
Quilombo Povoado Cruz, especially oral history, cultural and ethnic aspects of personal and social
affirmation that community. To this end, various data were collected from interviews, questionnaires,
videos, oral memories, photographs, through research in locus until bibliographic studies on the subject.
Key words: Quilombo; Povoado Cruz; Delmiro Gouveia; Alagoas; Afrodescendant.
2. 148 SILVA, Wellington Amâncio da; MARQUES, Juracy
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1 INTRODUÇÃO
O problema específico deste artigo parte da afirmação de que vivemos paradigmas
científicos que já não têm mais (se é que já tiveram) propriedade de significar (ou ressignificar)
nossas relações com o outro, especificamente quanto à valorização da cultura afro- brasileira que
abarca valiosas ideias, conhecimentos populares e a própria historia-pátria das pessoas. A ciência
vigente, em sua teoria e método racionalista cartesiano, e em sua visão tecnocrata do mundo (que
é impregnada de racismo) nunca teve a intenção de ser um instrumento que prestigie e que
proponha uma alternativa multicultural de inclusão. Assim, na medida em que desenvolvemos
um resgate da historia quilombola local, esboça-se de forma intrínseca a este projeto algumas
contribuições aos debates acadêmicos sobre as questões paradigmáticas em ciências sociais.
Logo, nos perguntamos como a academia, em contrapartida dialógica, poderia contribuir
efetivamente tornando-se extensão destas comunidades e vise-versa.
Logo, visa-se também propiciar o resgate da história da Comunidade Quilombola do
Povoado Cruz, oportunizando a valorização dessa diversidade cultural afro-brasileira e a
promoção dos valores éticos, religiosos, sociais e culturais entre os docentes e discentes da
Universidade do Estado da Bahia – UNEB, iniciada no curso de Pedagogia, 2009-2013. Para tanto
outros dos nossos objetivos foram o de resgatar os aspectos históricos, sociais, econômicos e
culturais desta comunidade; fazer uma leitura inicialmente etnometodológica das relações que se
dão entre a comunidade em questão e a sociedade em geral; desenvolver projetos de ação que
busquem contribuir para a solução dos problemas chaves nesta comunidade e, dinamizar,
resgatar e afirmar sua memória e sua cultura de forma constante, através da proposta de uma
Fundação sob participação de diversos segmentos do quilombo e sociedade.
Isso se justifica, porque percebemos que a atenção que vem sendo dada, nos espaços
acadêmicos às culturas quilombolas, tem contribuído para oportunizar a inclusão e a afirmação
(política, cultural, econômica e artística) destas comunidades como forma de inclusão através da
qual poderão dialogar com igual teor de valorização. Por causa disso, é evidente a importância
desse projeto de pesquisa historiográfica e memorial à apreciação dos interessados em pesquisa
e extensão, especificamente das áreas de Educação Afro-Brasileira e Educação do Campo,
porque se completam. Em última instância, nossa abordagem deseja contribuir ainda para uma
proposta de visão - de mundo que denominamos “visão étnico-holística” -, do sujeito, da
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história e da sociedade ou comunidade. Essa forma de ver e agir tende a amenizar o fenômeno
da exclusão dos afrodescendentes. Partindo dessas premissas, procuraremos aqui apresentar
algumas contribuições ao tema partindo da historia oral da Comunidade Quilombolas do
Povoado Cruz como tentativa de ressignificação da nossa própria história, isto é, dos
delmirenses. Dessa forma, cremos que o presente texto trará a todos a oportunidade de
prestigiar os belos aspectos da história e da cultura da Comunidade Quilombola do Povoado
Cruz as quais nos delimitamos.
2 MATERIAL E MÉTODOS
Segundo Gil (2002), tendo em vista seus objetivos, a pesquisa explicativa tem a
preocupação central de identificar os fatores que determinam, ou que contribuem para a
ocorrência dos fenômenos. É o tipo que possibilita maior aprofundamento do conhecimento da
realidade, porque “representa” a razão e o porquê das coisas. Por isso, é do tipo mais complexo.
É através dos instrumentos de pesquisa de campo que iniciaremos esse trabalho levando
em consideração a devida possibilidade da bibliografia sobre o assunto. Com base nisso, citamos
Minayo (1994) quando assinala que ao elaborar um projeto de pesquisa, “o pesquisador estará
lidando com, no mínimo, três dimensões”, a saber: “Técnica: regras científicas para a construção
do projeto” (p.80), sem as quais o bom andamento e delineamento de um trabalho não poderá ser
realizado; “Ideológica: relaciona-se às escolhas do pesquisador, sempre tendo em vista o
momento histórico” - por isso mesmo, a ciência jamais será uma disciplina isenta de sentimento
(KUHN, 2009).
Para tal, objetivamos, através do método dialético e da abordagem histórico-crítica,
levantar, por meio de pesquisa de campo e depois bibliográfica, o resgate da história oral e os
aspectos étnicos da comunidade acima epigrafada. Quanto às referências, assinala Gil (2002) que
“é desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos
científicos”, para desenvolver uma visão paralela dessa comunidade enquadrando seus aspectos
essências às discussões pertinentes, a fim de “recuperar” o conhecimento científico acumulado
sobre o problema. Cujos procedimentos remeteram principalmente à leitura convencional
(Pesquisa de fonte de papel). Essa pesquisa descritiva e qualitativa será feita a partir da leitura da
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realidade e principalmente da sua coleta de dados onde, por fim, tentaremos esboçar uma história
da Comunidade Quilombola do Povoado Cruz e de suas produções culturais.
3 PLURALIDADE CULTURAL E EDUCAÇÃO
Temos observado com grande entusiasmo o surgimento de um novo paradigma que
pode nortear a pedagogia e demais ciências humanas, principalmente nas áreas de Educação e
Ecologia e Etnicidade. Essa observação não termina aí, pois nossa participação se faz necessária
quando da satisfação dignificante em contribuir para o seu desenvolvimento. Nomes como
Paulo Freire (1981), Leonardo Boff (2004), Néstor García Canclini (2008), Fritjof Capra (1980),
Moacir Gadotti (2001), Jacques D’adesky (2001), são os precursores de um manifesto
globalizante onde ressoa as vozes da terra e dos seres da natureza, dos oprimidos e
desfavorecidos, dos apaixonados e dos bons em um coral uníssono conclamando a igualdade de
uma forma holística.
Nestes nos inspiramos e a partir de suas teorias lançamos um novo olhar sobre as
comunidades quilombola, como forma de contribuir para o fim de um erro histórico e para a o
reconhecimento dos seus valores e ideais. Em vista disso, citamos um conceito contido nos
Parâmetros Curriculares Nacionais ao assinalar com propriedade que:
A temática da Pluralidade Cultural diz respeito ao conhecimento e à
valorização das características étnicas e culturais dos diferentes grupos sociais
que convivem no território nacional, às desigualdades socioeconômicas e à
crítica às relações sociais discriminatórias e excludentes que permeiam a
sociedade brasileira. (PCNs, p.19).
O boicote ideológico, político e econômico às manifestações de caráter étnico e cultural
das comunidades quilombolas, por exemplo, constitui-se em uma violência quanto à pluralidade
de culturas no Brasil e um crime contra o afrodescendente. Não queremos dizer que o Brasil tem
muitas caras no sentido étnico – o que pode soar como separação, observação vertical, ou que o
país é constituído por blocos culturais herméticos, queremos postular que a valorização desta
Pluralidade Cultural constitui-se-á na restauração das características do país, visto que esta
“quer dizer a afirmação da diversidade como traço fundamental na construção de uma identidade
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nacional (p. 19)”, pois nossa identidade fora fragmentada através desses séculos de racismo
institucionalizado, sem a inclusão do outro.
Uma identidade é um corpo de características próprias construídas através de séculos de
relações sociais, de tentativas de erros e acertos, de aperfeiçoamentos e de relação do outro.
Falamos de unidade em diversidades, pois a comum união destas num só Brasil promoverá a
cidadania para todos. A respeito dessa unidade cultural o PCN deixa claro que: “que se
almeja, portanto (...) não é a divisão ou o esquadrinhamento da sociedade em grupos culturais
fechados” (...) (p.21). “A pluralidade de forma de vida”, pelo contrário, promove um
enriquecimento em vários aspectos e em várias instâncias da vida e do convívio igualitário como
forma emancipatória de uma nação em relação aos fatores internacionais de monopólio, de
hegemonia e de estereótipos. Porque a revisão de conceitos e o abandono (dado pelo
reconhecimento crítico) de certas tendências racistas nas pseudociências sejam elas racionalista
cartesiana, positivista ou empirista, promoverá em seguida nossa emancipação científica. Para
isso é preciso ter em mente o tamanho do projeto de transformação da sociedade, visto que não é
individual nem tarefa dos assim chamados intelectuais, porque “mudar mentalidades, superar o
preconceito e combater atitudes discriminatórias são finalidades que envolvem lidar com valores
reconhecidos e respeito mútuo, o que é tarefa para a sociedade como um todo”. (PCNs. p. 23).
A escola pode contribuir grandemente tendo em vista a atual oportunidade de mudar sua
tendência histórica e unilateral de reproduzir ideologias de classes hegemônicas. Ainda hoje,
“amparada pelo consenso daquilo que se impôs como se fosse verdadeiro, o chamado,
criticamente, ‘mito da democracia racial’, a escola muitas vezes silencia diante de situações que
fazem seus alunos alvo de discriminação, transformando-se facilmente em espaço de
consolidação de estigmas”. (ibid. p. 24), esse fato tem inculcado nos alunos, vítimas ou não
destes traumas, concepções saturadas de erro que reforçam o distanciamento abismal entre pobres
e ricos entre oportunidades e abandono social. No entanto, “combater o racismo, trabalhar pelo
fim da desigualdade social e racial, empreender reeducação das relações étnico-raciais não são
tarefas exclusivas da escola”. (DCN, p.14).
Quando do processo de pesquisa de campo observamos que no livreto “Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana”, havia uma definição para a compreensão do termo “étnico”:
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Na expressão étnico-racial, serve para marcar que essas relações tensas devidas
a diferenças na cor da pele e traços fisionômicos são também devido à
raiz cultural plantada na ancestralidade africana, que difere em visão de
mundo, valores e princípios das origens indígenas, européias e asiáticas. (p. 13).
Esses valores e princípios típicos da origem indígena comuns à localidade, não entraram
em conflito como os valores e princípios de ancestralidade africana. Em vista disso, os
primeiros descendentes quilombolas que ali acamparam se relacionaram com os ancestrais
indígenas e os absorveram cultural e geneticamente, não perdendo, portanto, suas características
essenciais quanto à etnoculturalidade. No entanto, a cultura de matiz áfrica caracterizada pelo
nome de “quilombo” e não pelo nome de aldeia é o que ficou para nós como referência ao
passado daquela localidade, mesmo não havendo indícios de cultura quilombola, visto que essa
foi, em muitos locais, absorvida pela cultura comum.
Em ultima instância, quanto às matizes culturais inerentes a uma etnia específica, foi
observado que os moradores do povoado perderam esses matizes de forma que em 2010 já não é
claramente possível definir o que era quilombola e o que não era. Mesmo tendo sua
ancestralidade africana e indígena, é visível que absorveram a cultura comum veiculada pelos
meios de comunicação disponíveis, estando de tal forma, “urbanizados”, a ponto de não se
identificarem e se reconhecerem na e com as manifestações quilombolas. Isso se caracterizaria
em uma série de preconceitos velados contra a cultura afro-brasileira?
Geograficamente, o povoado se expandiu a partir da comunidade quilombola, e desta só
restam resquícios arquitetônicos muito degradados que demonstram construções em alvenaria.
Hoje, o povoado quilombola Cruz traz essas lembranças a partir dos mais velhos, não
apresentando o desejo de resgatar a cultura ancestral quilombola pelos jovens; “são somente
lembranças que se apagam entre as novas gerações de moradores”..., visto que todo o povoado
tem mais ou mesmo as características culturais da cidade de Delmiro Gouveia. Este fato reforça a
tese de Muniz Sodré ao assinalar que a cultura de massa tem a tendência a apagar a cultura nativa
para tomar espaço. Assim a cultura nativa que se construiu a partir da terra e do modo de
produção agrário e de caça e pesca, não era uma afirmação cultural - salvo a pesca artesanal. Além
desta, o que possibilitava sua manutenção econômica eram os benefícios de aposentadorias, o
salário de quem trabalha no município, a Bolsa Escola, a Bolsa Família, etc. É certo que esses
benefícios, que causam boa impressão, a acessibilidade e facilidade aos meios de comunicação
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eletrônicos tenham contribuído a esquecer algumas características essências de etnicidade
quilombola a ponto de não a identificarmos, à priori, em seus traços mais gerais.
3.1 DISCUSSÃO CONCEITUAL
Antes de apresentar a comunidade a qual daremos inicio ao estudo de suas
características culturais e sociais, queremos circunscrever algumas definições a partir de certas
contribuições da antropologia cultural quando se diz, entre outros conceitos pertinentes, que
“cultura consiste nas formas de pensar, sentir e agir, socialmente adquiridas, dos membros de
uma determinada sociedade”, e ainda que “as culturas mantêm suas continuidade mediante
processos endoculturais”. (HARRIS, 1990, p.12). Por endoculturação se entende o processo de
amadurecimento e aprendizagem dos indivíduos através das várias fases da sua vida dentro de
sua comunidade, adquirindo paulatinamente os aspectos culturais característicos e, ao reproduzi-
los, contribui para a preservação desta. Quanto à forma de relacionar diferentes culturas, Cassirer
(1946, 1994) adverte que “não podemos “medir” a profundidade de uma rama especial da cultura
se não for precedida de uma análise descritiva. “A visão estrutural da cultura deve anteceder a
visão meramente histórica”, Pelo fato de que “todas as obras humanas surgem em particulares
condições históricas e sociais e não compreenderiam jamais estas condições especiais se não
fossemos capazes de captar os princípios estruturais gerais que se acham na base destas obras”.
(CASSIRER, 1997, p. 109).
Gilberto Freyre (1973) comentava acerca dos “traços que não são expressão pura ou
absoluta de uma raça ou sexo, mas principalmente de estratificação cultural, de harmonização do
homem com o meio, de ajustamento ecológico, de deformação social do indivíduo pelo grupo e
pelo meio”.
O característico do ser humano, aquilo que realmente o distingue, não é sua
natureza metafísica ou a física, mas seu agir. Este agir, o sistema de atividades
humanas, define e determina a esfera do ‘ser humano’. Linguagem, mito,
religião, arte, ciência, história são os elementos constitutivos, os diversos setores
desta esfera. (CASSIRER, apud ARLT, p. 81).
Laraia (1986) expõe alguns pontos de vista acerca do entendimento antropológico da
cultura explicando o conceito evolucionista de cultura humana assinalada por Boas (1987) que
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“desenvolveu o particularismo histórico, segundo o qual cada cultura segue os seus próprios
caminhos em função dos diferentes eventos históricos que enfrentou. (p.37). E expõe seu próprio
conceito (baseado numa tendência materialista histórico e dialético) ao afirma que “o homem é o
resultado do meio cultural em que foi socializado”, pois como assinala, “ele é um herdeiro de
um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridos pelas
numerosas gerações que o antecederam”. (p. 45). Partindo dessas premissas, é importante
observar que as representações culturais se dão essencialmente a partir do sujeito e de sua
ação no mundo, ao passo que analisar as manifestações culturais em si esvazia seus significados
e desemboca num relativismo, como afirmou Damatta (1997). Tomando como referência a
afirmativa de Cassirer (1946) quanto ao fato de não comparar antagonicamente ramas de
culturais diversas por causa de suas específicas funções sociais, é importante observar que o
sujeito social, dentro de uma cultura ainda não industrial, encontra subsídios, isto é, liberdades
para tornar-se sujeito histórico na medida em que se apropria com facilidade da sua cultura
para dar sentido a sua práxis, visto que a razão de ser desta é justamente tornar-se meio pelo
qual se dá à empatia entre os membros da comunidade em função das suas necessidades e
aspirações: essa cultura não é alienada, externa, outra, mas essencialmente se confunde com os
próprios sujeitos porque imanências.
Porém, há grande dificuldade de uma cultura em sua etnicidade perdurar diante da ação
invasiva da Indústria Cultural e sua coação capitalista, justamente porque como a cultura de
massa vem à escola para reforças dicotomias e comparar, de forma desonesta, a cultural de
uma comunidade é tida como inferior à cultura (institucionalizante) que estará a serviço da
classe hegemônica – cultura de massa tende a homogeneizar culturas diferentes e etnias
sufocando as possibilidades e emancipação e construção de identidades.
Dessa forma, nos perguntamos até que ponto fora preservado o ethos cultural da
Comunidade Quilombola do Povoado Cruz, a partida de seus ancestrais (primeiro da comitiva de
Dom Pedro II e logo após, do Quilombo dos Palmares)? E, o quanto é possível observar
com segurança essas matizes em relação à cultura comum do Município de Delmiro Gouveia,
visto que é natural ocorrer intercâmbio, ou mesmo, uma ceder espaço a outra?
É característico da cultura ser dinâmica, o que se relaciona com a extraordinária
mobilidade humana. A cultura de um grupo parece sempre animada de uma
espécie de impulso de expansão ou de disseminação e de uma grande capacidade
de contagiar a cultura de outro grupo. (FREYRE, 1973, p. 12).
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Segundo Christiano Barros (2008), “hoje o conceito atual de quilombola é mais
amplo para reparar uma injustiça histórica. Quilombolas são grupos étnicos constituídos
principalmente por uma população negra, que se autodefinem a partir das relações com a terra,
do parentesco, do território, da ancestralidade, das tradições e as práticas culturais próprias".
Partindo dessas premissas, é possível resgatar ou recompor a tradição anterior através da
história oral, das músicas, das danças, dos contos, e até mesmo, da culinária, das vestes e das
expressões verbais, sendo que aqui priorizamos a história oral como forma de recuperar as
vivências e interpretações dos fatos passados, mesmo quando cotejamos com a cultura alheia
posterior:
(...) a história oral de vida é o relato de um narrador sobre sua existência através
do tempo. Os acontecimentos vivenciados são relatados, experiências e valores
transmitidos, a par dos fatos da vida pessoal. Através da narrativa de uma
história de vida, se delineiam as relações com os membros de seu grupo, de sua
profissão, de sua camada social, da sociedade global, que cabe ao pesquisador
desvendar. (LANG 1996, p. 34, apud. CASSIB)
Estudar a comunidade, mesmo tendo em vista a necessidade de fugir dos “vícios”
métodos-teóricos da ciência racionalista, isto é, ao investigar tal comunidade, seu povo e sua
cultura como objetos, temos outro agravante: ainda nos recaem certos cuidados psicológicos
condicionantes quando “ao estudar as diferenças culturais é importante ‘manter-se em guarda’
diante dos hábitos mentais chamados etnocentrismo. (HARRIS, 1990, p. 12), pois, quanto a
sua forma ideológica “devemos estar alerta contra a política etnocêntrica que às vezes toma o
nome da Ciência em vão” (FREYRE, 1973, p. 09). Em vista disso é possível antever a
dificuldade do ofício de pesquisar culturas tradicionais, principalmente quando da necessidade de
olhar sob prisma da Antropologia, Ainda gostaríamos de reforçar os cuidados quanto ao
entendimento de cultura popular sem generalizá-la ou compará-la como inferior à cultura
elitista, já que essa última bebe geralmente na fonte popular. O senso comum afirma que
esta última é mais elaborada, mas sofisticada (expressão vazia) e mais racional, entretanto, sob
quais aspectos a cultura popular é inferior a qualquer outra cultura? Ora, a cultura popular não
é estática, visto que:
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O "popular" não está contido em conjuntos de elementos que bastaria identificar,
repertoriar e descrever. Ele qualifica, antes de mais nada, um tipo de relação,
um modo de utilizar objetos ou normas que circulam na sociedade, mas que são
recebidos, compreendidos e manipulados de diversas maneiras. Tal constatação
desloca necessariamente o trabalho do historiador, já que o obriga a caracterizar,
não conjuntos culturais dados como "populares" em si, mas as modalidades
diferenciadas pelas quais eles são apropriados (CHARTIER, 1995, p. 06).
A essas modalidades de apropriação dos elementos que compõem sua cultura (do
campo) são diferenciadas do modelo de cultura da cidade que tem sua função maior como
reprodutivista dos modelos da classe dominante para a manutenção do status quo; Isso deve ser
levado em conta pelo pesquisador.
A respeito da cultura como “um dos termos mais difíceis de definir de maneira completa
e unívoca” (...), porque se “avulta e passeia sinuoso e esquivo, por todos os campos do saber”
(VANNUCCHI, p.22), requer cuidado quando à cultura se acrescenta o termo “popular”, e pode
ser “viciado” por concepções ideológicas que corrompem à exposição de realidades: Visto que
em nossa sociedade e sob a ótica do olhar hipertrofiado da cultura hegemônica temos alguns
exemplos:
O popular é nessa história o excluído: aqueles que não têm patrimônio ou não
conseguem que ele seja reconhecido e conservado; os artesãos que não chegam a
ser artistas, a individualizar-se, nem a participar do mercado de bens simbólicos
“legítimos”; os espectadores dos meios massivos que ficam de fora das
universidades e dos museus,”incapazes” de ler e olhar a alta cultura porque
desconhecem a história dos saberes e estilos (CANCLINI, 2008, p. 205).
Porém, é certo afirmar que dada cultura popular, especificamente ao ambiente
quilombola, primeiramente tem sua utilidade e significados imanentes ao seu estilo de vida, pois
evoluíram como representações simbólicas deste e neste ambiente, e ainda estão profundamente
ligadas ao modo de produção do campo quilombola, inter-relacionadas aos seus ritos e
linguagens, às suas tradições e mitos, e geralmente dinamizadas como artifícios inteligentes para
a manutenção do social, todos estes aspectos da cultura popular são coletivizados para
subsistência comum. Mas a apropriação da cultura pelos sujeitos dessas tradições por
endoculturação pode ser transformada quando sujeita à hibridação com elementos de outras
culturas como a cultura tipicamente indígena presente no Nordeste, ou mesmo posteriormente, a
cultura de massa, segundo a exposição dos indivíduos aos meios de comunicação, como TV,
Rádio, celular, que presentes na comunidade.
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3.2 A HISTÓRIA ORAL COMO REGISTRO DOS FATOS
A respeito de um dos mais importantes modos de reproduzir a cultura de uma forma
muito dinâmica, temos a História Oral, - com iniciais em letras maiúsculas no intuito de fazer
justiça, em importância e função, a Historia como disciplina e método. Suas representações,
grosso modo, se confundem com fato e mito, com objetividade e subjetividade, com coletividade
e individualidade e com passado e presente, de maneira que o sujeito é gestor da sua história e
colaborador (no sentido de co-labor) da história social do grupo ao qual convive, tornando o
existir, o ser e o agir uma relação multidimensional da história e do mito entre os seus. A
respeito do mito e do preconceito que se tem contra ele como, dito menos importante que a
história, Cassirer (1946) citando Max Miller, assinala que “o mito é inevitável, é natural e é uma
necessidade inerente da linguagem, se nós reconhecermos na linguagem uma forma exterior de
pensamento”. (p. 05), Aranha (2000) exemplifica através das tradições e rituais (casamento,
aniversários, festas de formaturas) presentes em nossa sociedade, que “o mito ainda faz parta de
da nossa sociedade, como uma das formas indispensável do existir humano” (p. 55). Logo,
valorizamos o mito, como representação das características particulares de uma sociedade,
levando em conta não o seu grau de “civilização”, mas em sua maneira de expressar-se e dar
significado as relações de igualdade entre seus membros, visto que é um dos aspectos da
cultura.
A história oral é socializada através dos mecanismos das reminiscências, das
emotividades, da memória involuntária e da Memória, dos gestos, dos cantos e poemas verbais,
sendo todos estes eficientíssimos mecanismos pedagógicos de aprendizagem e reflexão, intensos
em sua formação ética e funcional para a vida comunitária, assim, sua história não é alienada
porque não gesta fora do indivíduo e segundo intentos alheios.
Ainda, a História Oral propicia aos membros da comunidade, a elaboração e o
desenvolvimento de significados e caminhos através de senhas específicas que ativam
reminiscências no interlocutor e na comunidade a partir, por exemplo, de uma cantiga, ou de uma
descrição de um fato do passado, sendo que estas reminiscências são trazidas à existência
(cultura) geralmente pela fala dos idosos, (que são respeitados não por se tornarem
“oráculos” da tradição oral). Então, no campo de estudo dos aspectos étnicos das comunidades
quilombolas, a história não pode ser fragmentada para uma análise simplista, visto que por estar
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interligada aos vários aspectos daquela comunidade torna-se o esteio pelo qual essa se
caracteriza: “É evidente que compilar fontes orais é uma atividade que aponta para a conexão
existente entre todos os aspectos da história e não para as divisões entre elas”. (THOMPSON,
1992, p.92).
Quanto à estrutura da história escrita em sua acepção cartesiana, entendemos que esta é
mais cumulativa – porque tende a registrar em arquivos “estáticos” as memórias de uma
sociedade, por outro lado, a história oral se refaz e se recria sem perder a essência dos
acontecimentos passados. Assim, assinalamos um pensamento de Ecléa Bosi (1994), ao sugerir
que “o que foi não é uma coisa revista por nosso olhar, nem é uma ideia inspecionada por nosso
espírito – é alargamento das fronteiras do presente” (p. 18). Dessa forma, entendendo o ontem e
o hoje como uma relação constante que nos trás a ideia de existir, de ser e de agir, quebrando a
“lógica” dicotômica do arcaico e do moderno como coisas à parte, para serem “contempladas”.
Outro aspecto interessante da oralidade é que as comunidades mais isoladas da
“civilização” não vêem ainda a necessidade de registrar sua história de forma convencional
mesmo quando a escola e outras instituições pregam o contrário – o que é uma tensão ideológica
de forças. Dentro dessa lógica, há quem afirme que existam histórias para serem escritas
e histórias para serem contadas. Se assim for, as histórias escritas representariam a versão de
realidade dos vencedores em detrimento da verdade dos vencidos; e as histórias orais
representariam a versão de realidade de uma comunidade para si – sendo que esta comunidade
por estar ligada ao campo e não à cidade, não se interessa em discutir verdades distintas, visto
que a verdade, primeiro brota da terra através dos preciosos mantimentos e em seguida se
manifesta através do trabalho e sua da cooperação, por fim, é representada culturalmente nas
celebrações de gratidão em face da bonança da natureza. Entretanto, pelos aspectos culturais do
ser humano, ele “está além da natureza e, no entanto, permanece parte dela” (ARLT, 2008, p.
191), este “além da natureza” refere-se ao fato da capacidade do sujeito observar
externamente ao mesmo tempo em que é “parte dela” sendo impossível desassociação, não
pode existir nas dicotomias entre cultura e natureza.
A oralidade promove uma capacidade diferenciada de memória. Os mecanismos de
memorização específicos da fala demonstram uma habilidade mental incomum de fazer vir à tona
fatos passados de maneira muito vívida, por exemplo, ao aconselhar os mais jovens ou ao
resgatar a história dos antepassados. Esse tipo memória é incorporado à outra: a escola, que é
13. Povoado Cruz - Contribuições aos Estudos... 159
Revista Gestão Acadêmica Nova Esperança, v. 1, n. 2, p. 147-160, 2014
justificada à comunidade quilombola a necessidade de ler e escrever enquanto forma de aquisição
de conhecimentos qualitativos e quantitativos reprodutivistas; pela educação informal (ou
genuinamente do campo), propicia-se conhecimentos apenas “qualitativos produtivos”.
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