O turista que não queria ser turista visita o mercado do Funchal
1. Check out
O turista que não quer ser turista
CARLOS LOPES
do hotel que as alojou. Imagine-se a
riqueza sonora e semântica de um
marroquino (de Agadir) a falar
português com sotaque madeirense.
E era invejável o modo como se
mostrava firme e feliz no seu
projecto de vida: “Gosto muito da
Madeira, estou aqui há quase cinco
anos e conto ficar pelo menos mais
outros cinco. Tenho sido muito bem
tratado e eu também trato todos
bem”, dizia, enquanto acenava a
várias pessoas conhecidas que
passavam junto à marina. “Nunca
senti racismo ou outra violência por
não ser daqui. Se calhar, somos
todos daqui. E de todo o lado.”
Além desta sabedoria, Abdel tinha
uma paciência infinita. Posou,
fotografou e afastou-se divertido do
pequeno grupo quando a maliciosa
vendedora Maria José discorreu
sobre certas frutas (de formas
fálicas) e as nomeou como “filho
dentro”, “consolo de viúva” e outras
designações ainda mais malandras.
Neste roteiro, houve ainda tempo
e disposição para ver os enormes
atuns e os peixes-espadas pretos,
longilíneos e apetitosos, e para
confirmar que afinal sempre havia
clientes da terra no mercado do
Funchal. Sem complexos,
compraram-se bolbos de estrelícias
para as fazer crescer no continente.
No Porto e mais a sul.
Até foi possível alguém se
emocionar com a história de um
jovem padeiro que se apaixonara há
muito tempo pela filha do chefe da
lota que morava ao cimo da Rua
Latino Coelho, por trás do mercado.
“tão turístico”? “As coisas são Um amor proibido, com namoro
Rita Pimenta
caríssimas, os madeirenses nem vão
Até foi possível arriscado à janela, que resultou em
“Não vou ao lá. É tudo a preço de turista.” alguém se emocionar dez filhos nascidos em várias
mercado do Seja. Nós vamos. com a história de um latitudes. Alguns na Madeira, outros
Funchal. É muito Foi assim que cinco turistas que jovem padeiro que se bem mais longe. “Se calhar, somos
turístico.” A não se importaram de o ser se viram apaixonara há muito todos daqui. E de todo o lado.”
convicção era tal privadas da companhia de uma Por sobrevivência ou negócio e
que não se ousaria turista que não queria sê-lo (embora
tempo pela filha do como tantos outros locais no
contrariar, embora já tivesse visitado várias vezes o chefe da lota que mundo, o mercado é turístico, sim.
houvesse vontade. Afinal, estava-se Funchal e outros locais na Madeira, morava ao cimo da Rua Mas há quem pouco se importe com
em trabalho e havia um programa sempre a convite de promotores... Latino Coelho, por trás classificações e se centre mais no
definido à partida que deveria ser turísticos). do mercado. Um amor que os espaços representam para
cumprido, nem que fosse por O mercado é colorido, como quem os habita.
respeito ao anfitrião (tivesse ele ou quase todos. Mas aqui, tratando-se
proibido, com namoro A padaria do rapaz apaixonado
não interesses comerciais). de Portugal, há cores e cheiros arriscado à janela, que (agora também pastelaria) ainda lá
E como poderia alguém que não diferentes. Desce-se em latitude e os resultou em dez filhos está. Foi ali que se escolheu comprar
se considerava turista ter tanta trópicos aproximam-se. Logo, as nascidos em várias vários bolos de mel. Para turista.
certeza de que o espaço era assim cores ficam mais vivas, os cheiros latitudes. Alguns na
activam-se e os sabores intensificam-
se. Por isso, são só dez da manhã,
Madeira, outros bem mais
não se ingeriu álcool e já se está longe. “Se calhar, somos
embriagado. No entanto, não se todos daqui. E de todo o
chegou ainda à famosa (e turística!) lado.”
poncha.
Como verdadeiras e assumidas
turistas, fizeram-se acompanhar de
um guia, o impecável e profissional
Abdel, relações públicas exemplar
42 • Sábado 2 Maio 2009 • Fugas