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Tempo do sacho
    Contar não é o meu forte... Nunca foi. Gosto mais de ouvir... E os
meus olhos rasgados, mas míopes, escondem-se em tudo nada
contra as pestanas escuras e seguem maravilhados os movimentos
inquietos dos lábios e das pálpebras dos que contam.
      Fui sempre assim. Em pequena, deitava-me ao sol, de braços
atrás da nuca, junto de um grupinho e ouvia... ouvia...
      - Tu não contas - diziam.
      - Não sei contar...
      E sorria-me para dentro. Sim, eu sabia contar... Mas contar
não era o meu forte. Tal como agora. Gostava, sim, e ouvir os
outros. E, depois, os braços saíam-me da nuca e deitavam-se sobre o
rosto. E ficava a plagiar as coisas que me contavam. Das moças
feias, fazia princesas lindas... Dos choros das crianças, risos de
mulheres... Da chuva, orvalho... E nos contos plagiados, tudo era
beleza, alegria, esperança...
      Mas, contar não é o meu forte... Gostava sim, de ouvir e,
depois, pintar a meu gosto novos contos. Ninguém sabia, e não
poderiam rir-se das minhas ingenuidades. Só o sol, certamente, por
entre a curvatura dos braços, vinha espreitar as imagens que
passavam no ar e a tremura dos meus lábios soletrando em silêncio
as frases mais adequadas... Frases que morriam, antes que alguém
mas ouvisse. Podiam rir-se...porque contar não é o meu forte.
      Mas, hoje, vou experimentar...
                                  *
      Sol a pino. E a estrada é poeira vermelha, ardente, toda a
desfazer-se em ruído e pedras, quando os carros passam, de
motores a roncar e pneus saltitantes. Quem vem de Sul para Norte,
sempre longe do mar, pode encontrar estradas assim. E ao vê-las,
esquece aquelas outras cinzentas, alcatroadas, brilhantes, luzidias,
onde apetece carregar no acelerador e desaparecer, além na
próxima curva muitas vezes rara...
      Todos os dias, eu olho a estrada coalhada de sol e pó, sentado
numa pedra sob uma nesga de sombra... Todos os dias, os vejo
passar aos grupos, cantando, de enxadas ao ombro, baixos, grossos,
de pernas curtas e braços musculosos. Morenos trigueiros como
azeitonas maduras. Elas, de saia estreita atada na cintura com um
largo pano negro. Avental farto. E um lenço na cabeça. Quase
sempre descalças e de luto vestidas. Só a blusa é clara. Eles... não
posso precisar o que costumam vestir. Mas vestem mal e a roupa é
toda remendada. A estrada é sinuosa. E, do alto, posso vê-los lá em
baixo a contornar o declive e ouvi-los também. São vozes arrastadas
mas alegres. E deixam sempre, no final da última frase, uma nota
baixa que se prolonga até morrer como um eco. Gosto de vê-los
passar. Desde maio, que os vejo assim aos magotes. É o tempo do
sacho.
     Às vezes, param no meio do caminho, perto de mim. Pousam
as enxadas e ficam aos grupos a bisbilhotar, a rir, a coçar, a
peguilhar uns com os outros. Eles com elas. Elas com eles. E
formam pares. Não vou afirmar que alguns namoriscam, mas, se
estivesse perto, por certo que veria os olhos do Manel procurarem
os da Rosa...
     Depois, quase sempre, aparece um homem de idade, de botas
altas à cavaleiro e colete justo. Chapéu na cabeça e gestos pesados.
Eles, então, dispersam e dizem à uma:
     - Bons dias, Ti Zé!...
     Deve ser o capataz. E a caminhada prossegue até lá cima, onde
as matas desaparecem e os campos cultivados surgem por milagre
de Deus.
     Perguntei, um dia, o que era o sacho.
     « - Ora, não sabe? Credo! Quando o milho cresce, é preciso
sachá-lo, desapontá-lo, tirar ervas daninhas. Não só ao milho, mas
às outras plantações. Então o encarregado contrata rapazes e
raparigas, que, de sacho na mão, revolvem a terra e catam as
plantas. Cantam todo o dia. Debruçados para a terra, sob o sol
escaldante, rostos suados e faces vermelhas, dizem à terra do seu
trabalho e à vida dos seus amores. No sacho conversa-se. Dizem-se
coisas... Contam-se coisas... Contam-se anedotas... Enterram-se
vivos e desenterram-se mortos... Mas o trabalho não para, nem os
movimentos perdem o ritmo. O terreno é extenso e o encarregado
não é para brincadeiras. Param para comer. Depois, a sesta. Uns
dormem. Outros, à sombra, puxam dos instrumentos e mostram as
habilidades musicais. E as vozes erguem-se no silêncio quente como
brados de vida e alegria. Vermelhos e fortes. Como a alma da gente
minhota. O verde salta nas malgas, espumoso e negro. Como
sangue. E as gargantas refrescam-se. Pelas três da tarde regressam
ao trabalho. E o encarregado, de braços na cintura grossa, vai de fila
em fila, a recomendar, a fiscalizar, a incitar com voz amiga mas
insistente. Há sempre aqueles que gostam de lançar desafios em
verso... E elas respondem. Ruborizadas e prestes. Mas sempre
arremetiças. E as gargalhadas sobem no ar. Gargalhadas fortes e
sonoras. Como os músculos deles; como as vozes delas».
      Ao anoitecer, regressam. É a descer e, por isso, a marcha
ligeira. Mas os cantares são mais arrastados. E elas ficam para trás.
Mais separadas deles. E o capataz fecha o cortejo. Regressam todos.
Mais morenos, mais musculosos, mais sujos; cobertos de terra. Mas
os olhos são searas ondulantes, e os dentes parecem de neve.
      Na encruzilhada, depois do declive, param. Batem as
Trindades, lentamente, docemente como um apelo do Alto. E eles
tiram as enxadas do ombro e benzem-se num movimento ritmado e
certo. O silêncio é oiro de oração. Quase súplica. E o encarregado
quebra-o:
      - Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!...
      A jaculatória é um chamamento de novo à vida feita de terra
dura e suja.
      - Té manhã!...
      - Adeus!
      - Adeus, ó Rosa!
      - Té manhã Toino!
      E vão-se todos separados. Cada carreiro escrito no solo é para
eles uma avenida que os conduz ao aconchego do lar, ao sossego, ao
caldo fumegante, à cama de lençóis de linho áspero. Cada um
contará, em casa as últimas novidades sabidas no sacho:
casamentos, batizados mortórios, pegas d'água, zangas, etc. Eles e
elas.
      E, amanhã, voltarão a subir a estrada vermelha, poeirenta, sob
o sol a pino. Que o sol, cá em cima, nasce mais cedo e vem direito à
estrada por onde eles passam aos grupos, a cantar, a peguilhar, a
dizer ao Sol os seus amores e a nós o seu trabalho...
      É o tempo do sacho.
                                                           Maria Helena Amaro
                                             In, «Maria Mãe», 1973, p. 102-104.
                    Data da conclusão da edição no blogue – 9 de janeiro de 2013
                                       http://mariahelenaamaro.blogspot.com/

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Tempo do Sacho

  • 1. Tempo do sacho Contar não é o meu forte... Nunca foi. Gosto mais de ouvir... E os meus olhos rasgados, mas míopes, escondem-se em tudo nada contra as pestanas escuras e seguem maravilhados os movimentos inquietos dos lábios e das pálpebras dos que contam. Fui sempre assim. Em pequena, deitava-me ao sol, de braços atrás da nuca, junto de um grupinho e ouvia... ouvia... - Tu não contas - diziam. - Não sei contar... E sorria-me para dentro. Sim, eu sabia contar... Mas contar não era o meu forte. Tal como agora. Gostava, sim, e ouvir os outros. E, depois, os braços saíam-me da nuca e deitavam-se sobre o rosto. E ficava a plagiar as coisas que me contavam. Das moças feias, fazia princesas lindas... Dos choros das crianças, risos de mulheres... Da chuva, orvalho... E nos contos plagiados, tudo era beleza, alegria, esperança... Mas, contar não é o meu forte... Gostava sim, de ouvir e, depois, pintar a meu gosto novos contos. Ninguém sabia, e não poderiam rir-se das minhas ingenuidades. Só o sol, certamente, por entre a curvatura dos braços, vinha espreitar as imagens que passavam no ar e a tremura dos meus lábios soletrando em silêncio as frases mais adequadas... Frases que morriam, antes que alguém mas ouvisse. Podiam rir-se...porque contar não é o meu forte. Mas, hoje, vou experimentar... * Sol a pino. E a estrada é poeira vermelha, ardente, toda a desfazer-se em ruído e pedras, quando os carros passam, de motores a roncar e pneus saltitantes. Quem vem de Sul para Norte, sempre longe do mar, pode encontrar estradas assim. E ao vê-las, esquece aquelas outras cinzentas, alcatroadas, brilhantes, luzidias, onde apetece carregar no acelerador e desaparecer, além na próxima curva muitas vezes rara... Todos os dias, eu olho a estrada coalhada de sol e pó, sentado numa pedra sob uma nesga de sombra... Todos os dias, os vejo passar aos grupos, cantando, de enxadas ao ombro, baixos, grossos, de pernas curtas e braços musculosos. Morenos trigueiros como azeitonas maduras. Elas, de saia estreita atada na cintura com um largo pano negro. Avental farto. E um lenço na cabeça. Quase
  • 2. sempre descalças e de luto vestidas. Só a blusa é clara. Eles... não posso precisar o que costumam vestir. Mas vestem mal e a roupa é toda remendada. A estrada é sinuosa. E, do alto, posso vê-los lá em baixo a contornar o declive e ouvi-los também. São vozes arrastadas mas alegres. E deixam sempre, no final da última frase, uma nota baixa que se prolonga até morrer como um eco. Gosto de vê-los passar. Desde maio, que os vejo assim aos magotes. É o tempo do sacho. Às vezes, param no meio do caminho, perto de mim. Pousam as enxadas e ficam aos grupos a bisbilhotar, a rir, a coçar, a peguilhar uns com os outros. Eles com elas. Elas com eles. E formam pares. Não vou afirmar que alguns namoriscam, mas, se estivesse perto, por certo que veria os olhos do Manel procurarem os da Rosa... Depois, quase sempre, aparece um homem de idade, de botas altas à cavaleiro e colete justo. Chapéu na cabeça e gestos pesados. Eles, então, dispersam e dizem à uma: - Bons dias, Ti Zé!... Deve ser o capataz. E a caminhada prossegue até lá cima, onde as matas desaparecem e os campos cultivados surgem por milagre de Deus. Perguntei, um dia, o que era o sacho. « - Ora, não sabe? Credo! Quando o milho cresce, é preciso sachá-lo, desapontá-lo, tirar ervas daninhas. Não só ao milho, mas às outras plantações. Então o encarregado contrata rapazes e raparigas, que, de sacho na mão, revolvem a terra e catam as plantas. Cantam todo o dia. Debruçados para a terra, sob o sol escaldante, rostos suados e faces vermelhas, dizem à terra do seu trabalho e à vida dos seus amores. No sacho conversa-se. Dizem-se coisas... Contam-se coisas... Contam-se anedotas... Enterram-se vivos e desenterram-se mortos... Mas o trabalho não para, nem os movimentos perdem o ritmo. O terreno é extenso e o encarregado não é para brincadeiras. Param para comer. Depois, a sesta. Uns dormem. Outros, à sombra, puxam dos instrumentos e mostram as habilidades musicais. E as vozes erguem-se no silêncio quente como brados de vida e alegria. Vermelhos e fortes. Como a alma da gente minhota. O verde salta nas malgas, espumoso e negro. Como sangue. E as gargantas refrescam-se. Pelas três da tarde regressam ao trabalho. E o encarregado, de braços na cintura grossa, vai de fila em fila, a recomendar, a fiscalizar, a incitar com voz amiga mas
  • 3. insistente. Há sempre aqueles que gostam de lançar desafios em verso... E elas respondem. Ruborizadas e prestes. Mas sempre arremetiças. E as gargalhadas sobem no ar. Gargalhadas fortes e sonoras. Como os músculos deles; como as vozes delas». Ao anoitecer, regressam. É a descer e, por isso, a marcha ligeira. Mas os cantares são mais arrastados. E elas ficam para trás. Mais separadas deles. E o capataz fecha o cortejo. Regressam todos. Mais morenos, mais musculosos, mais sujos; cobertos de terra. Mas os olhos são searas ondulantes, e os dentes parecem de neve. Na encruzilhada, depois do declive, param. Batem as Trindades, lentamente, docemente como um apelo do Alto. E eles tiram as enxadas do ombro e benzem-se num movimento ritmado e certo. O silêncio é oiro de oração. Quase súplica. E o encarregado quebra-o: - Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!... A jaculatória é um chamamento de novo à vida feita de terra dura e suja. - Té manhã!... - Adeus! - Adeus, ó Rosa! - Té manhã Toino! E vão-se todos separados. Cada carreiro escrito no solo é para eles uma avenida que os conduz ao aconchego do lar, ao sossego, ao caldo fumegante, à cama de lençóis de linho áspero. Cada um contará, em casa as últimas novidades sabidas no sacho: casamentos, batizados mortórios, pegas d'água, zangas, etc. Eles e elas. E, amanhã, voltarão a subir a estrada vermelha, poeirenta, sob o sol a pino. Que o sol, cá em cima, nasce mais cedo e vem direito à estrada por onde eles passam aos grupos, a cantar, a peguilhar, a dizer ao Sol os seus amores e a nós o seu trabalho... É o tempo do sacho. Maria Helena Amaro In, «Maria Mãe», 1973, p. 102-104. Data da conclusão da edição no blogue – 9 de janeiro de 2013 http://mariahelenaamaro.blogspot.com/