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JanelasAbertas
Juracy de Oliveira Paixão
Direitos autorais, 2006, de Juracy de Oliveira Paixão
e-mail: actiojuris@fortalnet.com.br
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Paixão,Juracy de Oliveira
JanelasAbertas / Juracy de Oliveira Paixão – Fortaleza (CE)
ISBN
1.Irará(BA) –Anos 50/60
2.Anos 50/60 – Irará (BA)
I.Paixão,Juracy de Oliveira
II.Título
CDD
Índice para Catálogo Sistemático
Irará (BA) – Memórias
Anos 50/60 – Irará (BA)
Irará (BA) –Anos 50/60
Capa: Jair Dantas
Projeto Gráfico: Tiago Sena
Sumário
Agradecimentos 	 9
Dedicatória	 9
Apresentação	 11
Prefácio	 15
Janelas da Memória	 17
		 Passeio Matutino	 18
		 O Dia Seguinte	 22
		 A Cidade em Três Manhãs	 26
		 Os Caminhos que saem da Cidade	 30
		 Brincadeiras de Criança	 35
		 Fatias da Memória	 39
Cenas do Cotidiano	 43
	Os Dias passam e a Cidade vive	 44
	O que Fazer Hoje á Noite?	 46
	O Senadinho	 48
	Sábado é para a Feira	 50
	Domingo é dia...	 53
Fatos e Eventos	 57
	O Ciclo das festas	 58
	Festa da Padroeira - O Povo e o Credo	 61
	Rei Momo: Alegria para Todos	 64
	Tem Circo e Parque na Cidade	 65
	Na Igreja, da Quarta-feira de Cinzas ao Mês de Maio	 68
	As festas Juninas	 71
	Quebras na Rotina	 73
	Cosme & Damião	 76
	As Eleições de 62	 78
	Quando o Ginásio chegou	 81
Miscelânea	 85
		 Semelhanças	 86
		 Temos História?	 87
		 A Formação do Linguajar Iraraense	 88
		 Irará & Moscou e Saudosismo	 91
		 Tenho Saudades	 93
		 O Ontem e O Hoje	 95
Personagens Inesquecíveis	 99
		 Zé Freitas	 100
		 Jota Gomes	 101
		 A Trinca de Ases	 102
		 João Pechincha	 103
		 Seu Dodó da Quitanda	 104
		 Euclides Badaró	 105
		 Professora Aurelina	 106
		 Miguel Paes Coelho, o Crente	 108
		 Raul Cruz, o Delegado Comunista	 109
		 Alberto Nogueira	 110
		 Manoel Fogueteiro	 111
		 Lulu Tipógrafo	 112
		 Joana das Bonecas	 113
		 Valfredo Sapateiro	 114
		 Zé Estrela, O Funileiro	 115
		 Olavo, o Ferreiro	 116
		 Zequinha, o Rouxinol dos Metais	 117
		 Zé Petu e o Bar	 118
		 João Tanoeiro	 119
		 O boêmio Zé Vermelho	 120
A Linguagem Iraraense dos Anos 50/60 – Lista de Palavras	 123
Notas e Esclarecimentos	 201
Crítica após Leitura	 205
Agradecimentos
	 Agradeço a ajuda precisa das amigas Lindinalva Gomes Ferro e Nelzenete
MartinsGomes – Nete de Lito - e da comadre Peta–MarizéliaFerreira– por acor-
darem, na minha memória, lembranças adormecidas; a Leda e Clício Freitas,
que me socorreram quanto à lista dos alunos da primeira turma do Ginásio São Judas
Tadeu.
	 Agradeço às minhas irmãs Ivanete, Hilda e Jandira por fecharem os atalhos
que queriam me afastar da trilha definida. A Ivanete agradeço, ainda, pelas lições
de lingüística e pela correção dos inúmeros erros. Alguns desses erros persistem
por absurda teimosia minha, o que assumo com inteira e exclusiva responsabili-
dade. Agradeço, sobretudo, aAnitaeManoelzinho, por me terem concedido o privi-
légio de viver e crescer em Irará.
Dedicatória
	 DedicoessetrabalhoaomeuirmãoGilson,comquemaúnicadisputaselimitou
à posse por um badogue antes de chegarmos aos 12 anos de idade; à minha
saudosa irmã Leonilda, que me ensinou a ver no silêncio um profundo diálogo;
à minha esposa e companheira Maria Elizabethe, a brava cearense que me fez ser
esperançoso e perseverante; ao Povo Iraraense, razão maior desta minha ousadia.
Apresentação
	 Há mais de quatro décadas deixei o meu Irará e por vários anos lá não retornei.
Depois, tempo sim, tempo não, aparecia a título de abraçar os parentes e amigos,
olhar a velha casa paterna. Na verdade, o que queria rever era a minha cidade tal
e qual a sentia nos meus sonhos diuturnos. A partida foi conseqüência do que
me ensinara meu pai: ir à luta, com coragem e determinação. Nada diferente
do que fizeram muitos outros patrícios, por anos a fio.
	 Em outras plagas, mirei novas paisagens, colori muros com o ousado negro
do piche, conjuguei verbos plenos de esperança, ouvi discursos flamantes,
bafejei e fui bafejado por azares e sortes, quis mudar o mundo, fazer a verda-
deira revolução. A meu modo, a fiz: de vermelho pintei meu coração, cravando
nele foice e martelo, e orei no túmulo de Lenine, rogando ao deus revolucionário
pelo triunfo do socialismo em minha pátria. Cada muro que pichei, cada vez que
ergui os braços, cada panfleto que escrevi e distribuí, cada choro que me afogou
os olhos, calaram fundo na memória, preenchendo espaços ou substituindo
ilusões. Um canto, porém, do meu cinzento pensar jamais foi abalado: aquele que
registrou – como o bom carimbo em velho documento – as coisas que vi, ouvi
e participei no meu Irará querido.
	 A memória viva é a fonte de onde jorraram as páginas a seguir. Erros há, pois
errar é acertar a vida. Considere-se que a memória, mesmo quando viva, sofre
forte influência da imaginação e que somente essa é livre. Meu desejo é retratar
os fatos como vistos, ouvidos e participados, mas o desejo sempre é fruto
de alguma influência. Sei que, apesar dos percalços históricos, acredito na vitória
dos ideais pelos quais lutei e sofri. Nessa minha certeza, reside o meu Desejo
e a minha Razão. E o que é a Razão? Nada mais do que um termo de dicioná-
rio, sujeito às ideologias. A minha razão nasceu da teimosia dos meus sonhos
em busca da realidade. Sonhar faz bem, mesmo quando pesadelo, esse um alerta
para a atenção no risco. Sonha-se quando o subconsciente quer conversar,
meterpaponovona rotina do consciente. Do sonho para a realidade é uma simples
questão de ajuste. Dos meus sonhos e da minha realidade, tirei o registro que
as minhas palavras puseram no papel.
1111
Ao crer nos meus ideais, espero por derrotas a ladrilhar o caminho da vitória.
Parodiando Maquiavel, o mestre florentino, poderia dizer: jamais apregoe vitó-
rias prováveis. Antes, anuncie derrotas possíveis. Assim, quando o êxito vier,
seu mérito será redobrado.
	 Os jovens costumam, hoje, antecipar acertos e ganhos. Os velhos, esses com
olhos sofridos, falam de desastres e decepções. Ambos estão certos e errados à luz
da Lógica. Afinal, sempre fazemos algo desejando um ganho. Quando ocorre
a perda, essa pode causar uma frustrante decepção. O presente é, sempre, con-
seqüência dos ganhos e perdas do passado. E o futuro? Esse é um buraco negro
no azul do Tempo.
	 É nesse contexto de pensar que decidi por falar da minha cidade, registrando
o que dela mais me marcou nos melhores anos em que nela vivi. Meu registro
é uma visão do passado à luz do presente, vivido o passado.
	 Optei por um estilo que ouso chamar, na minha vaidade, de coloquial-barroco,
aquele que caça uma ortografia justa, mas deixa de lado a prepotência da Pontuação
Absoluta, da Concordância Rigorosa, da Semântica Elitista. Deixo-os de lado não
por ignorar seus méritos, mas por julgá-los inadequados ao meu objetivo. Sei que
tal perjúrio será motivo para arder em fogueira.
	 O período escolhido é aquele que entendo como o mais fértil e rico da história
pátria: os Anos 50 / 60 do Século XX. Foi nesses anos que explodiu no Brasil
os grandes movimentos de vanguarda, seja na cultura ou na política. Anos
do Teatro de Arena, dos CPCs universitários, dos festivais de música popular,
do Cinema Novo, da Vera Cruz, da Atlântida, da Cinedia, da Multifilmes, da criação
das centrais sindicais, como a CGT e CNTI, do Movimento Estudantil, das
Reformas de Base, das Ligas Camponesas, do enfrentamento das greves,
da Cadeia da Legalidade, dos Grupos dos Onze, enfim da divisão política
dasociedadebrasileiraemPovoversusElite.Anosquetiveraminíciocomogoverno
democrático de Getúlio Vargas, o Pai dos Pobres, vítima da oposição virulenta
de Carlos Lacerda e da UDN. Anos que foram testemunha da iniciante
industrialização do Brasil, sob a égide de Juscelino Kubitschek; anos que viram
Brasília nascer no vazio do cerrado; anos que vivenciaram a loucura do Homem
da Vassoura, aquele que renunciou após nove meses de governo, alegando
pressõesdeforçasocultas. Anos em que, por plebiscito democrático, o povo escolheu
a volta ao Presidencialismo, garantindo os poderes de João Goulart, o presidente
das Reformas de Base, alijado da poder pelo tacão dos militares golpistas.
	 Nesses anos, primeiro olhei Irará com olhos interrogativos, sem entender
o que se passava. Depois, com cérebro consciente, buscando explicação para
o que via. No final, com o coração a lamentar um futuro duvidoso que apagaria
das memórias os fatos vistos, ouvidos e vividos. Ao partir para o mundo, encontrei
as respostas que não tinha e aprendi a entender a minha gente e a minha cidade.
12
Agora, julgo-me no dever de resgatar minha dívida com meu tempo de Irará. Faço
esse resgate ora com leveza, ora com sarcasmo, mas sempre com a imaginação
a marcar o bom caminho. Penso, também, que as rápidas mudanças dos tempos
hodiernos tendem a apagar os fatos que passam. Desejo, com meu resgate,
manter com os da minha idade a recordação do bom passado e fazer com que
os mais jovens entendam por que o presente é como é. Afinal, a História é feita
de fragmentos, uns que se agregam, outros que se desmancham.
	 Dividi meu registro em cinco partes:
Janelas da Memória: minha visão da cidade, de sua estrutura e conteúdo,
no passado e no presente;
Cenas do Cotidiano: o dia-a-dia da cidade e de suas gentes;
Fatos e Eventos: acontecimentos de data marcada e aqueles eventuais,
mas modificadores da rotina;
Miscelânea: aspectos diversos que, de alguma forma, me levam aos Anos 50/60;
Personagens Inesquecíveis: homenagem a pessoas que, na minha ótica, marca-
ramoIrarádeentão.Aseleçãoficouacargodosmeussonhos.Umdesejo–quem
sabe – de ter sido eu mesmo cada um dos personagens retratados, essências puras
doqueconsiderovirtude,prazer,perseverança,caráter,consciência,humanidade,
alegria.
	 Nos textos, quase sempre utilizo o presente, pois é nele que me situo, naqueles
Anos de Ouro quase sufocados pela mais de uma década de terror ditatorial, mas
que sobrevivem como alicerce do tempos atuais e esperança de um futuro de paz
e prosperidade.
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Prefácio
	 Em “Janelas Abertas”, Juracy nos apresenta o Irará dos anos 50-60, espaço
humano, cultural e geográfico em que viveu sua infância e adolescência. São
páginasdeamorelembrançasqueretratamocotidianotranqüilodacidade,tecido
pelos afazeres de sua gente simples.
	 Andarilho da memória, o autor nos guia por ruas, becos e praças, reconstrói
o roteiro dos caminhos, vias de acesso e saída do núcleo urbano por onde, hoje,
a cidade avança, o moderno nascendo do antigo. Seus personagens inesquecíveis
são uma bela e merecida homenagem aos que, com seu trabalho e arte, garantiam
a sobrevivência honesta e supriam as necessidades da população, permitindo
vida e alegria. São marceneiros, ferreiros, alfaiates, tanoeiros, sapateiros e tantos
outros, donos de um saber fazer que o mundo atual vai extinguindo.
	 Através destas páginas, passa a vida de uma época. Sua leitura fará bem
a todos: aos que, como autor, viveram aquele tempo, de passeios nas Lajes, da
“Voz da Liberdade”, de serenatas e circos, das festas de fevereiro, São João e Natal;
aos mais jovens, que encontrarão aqui parte da história de Irará, importante
para compreender o presente, conhecer e preservar seu patrimônio, mesmo que
o tempo e a ação dos homens tenham destruído muitas das nossas coisas belas.
A todos, iraraenses ou não, será agradável ler estas “Janelas Abertas”, pois se trata
de uma narração onde se sente a forte presença do sentimento de ter chão, ter
raiz, tão necessário a todos os seres humanos.
Hilda Oliveira Paixão
JanelasAbertas
18
Janelas Abertas
Passeio Matutino
	 Férias. Segunda-feira. Aprovado no exame de admissão ao Ginásio São Judas
Tadeu recém-criado, o menino acorda disposto a uma boa caminhada. Quer dar
uma volta solitária pela cidade. Satisfeito o apetite matutino, chinelo de couro nos
pés, parte Rua de Baixo acima.
	 Logo no Beco do Mercado, vê o movimento na padaria de Zinho. Ao balcão,
o amigo Codinho e o colega Fernando na azáfama de despachar pães e bolachas.
Assobiando, o menino passa pelo depósito de Tiano, já pleno de agitação e agitação.
O depósito é vermelho, revolucionário, embora o menino não saiba, ainda, o motivo.
	 Esquina da Praça. No alto passeio de “A Violeta”, Zeca Caribé conversa,
animado, com Eduardo Portela, esse à porta de sua loja. “Certamente falam da boa
feira que tiveram no sábado passado”, imagina o menino. “Devem ter vendido muitos
metros, quiçá peças inteiras, de tricoline, cambraia, gorgorão, chita e chitão, até lona
xadrez e,quem sabe,fustão e flanela”.
	 A Praça. No meio do areião, o Abrigo de Amando. Cavalos atados às colunas
fazem a faraônica e inacabada construção parecer um albergue de beira de estrada.
Cães latem, a correr atrás de cadela no cio e mais atiçados pelas pedras lançadas
pela molecada. Parado na esquina da farmácia de Chaves, o menino observa
a confusão e torce pelo desfecho da perseguição dos cães à cadela. Gosta de ver
a cena, tantas vezes presenciada na fazenda do avô. Como o desfecho tarda, avança.
Ao balcão da loja de Éverton, avista Tom Zé a tamborilar com os dedos sobre
a madeira rija. Vê, também, mais para dentro, o companheiro de brincadeiras pas-
sadas, Augusto. Não estranha a ausência de Estela e Lúcia. Afinal, não é costume
moça de família ir para balcão. Um vozeirão chama-lhe a atenção: é Éverton,
um braço às costas, a conversar com Henrique na porta do bar. O assunto, aos
brados, refere-se à falta de luz, no domingo. Ouve Henrique responder: “Vai
ver que caiu um raio na linha que vem de Coração de Maria”. O menino concorda
em silêncio, adiantando o passo. Armazém de Cesário. Lá está o primo Antonilton,
balconista de couros e fivelas. Entra, cumprimenta o parente e sai, já que Deraldo
se encontra presente e não gosta de conversa fiada no armazém. O alarido da mo-
lecada e o latir dos cães atraíram à porta Alfredo e Jaime Franco. O menino pensa:
“Gente mais velha também gosta do desfecho.Não sou o único,embora mais moço”.Pen-
sa ou busca uma justificativa para seu gosto, encontrando-a na atitude dos mais
velhos!?
	 Esquina de Elísio. Braços cruzados às costas, Teófilo contempla o movimento
e o areião desde a porta de sua loja. Vizinho e conhecido, o menino ousa per-
guntar as horas. “Nove horas, meu filho”. Adoça o passo, já que ainda é cedo.
Na farmácia da esquina, a “Confiança”, avista as prateleiras conhecidas. Ao pé
do balcão, Dr. Ramalho passa instruções à empregada nova. Quer entrar mas
19
Parte I - Janelas da Memória
desiste, para não aguçar as lembranças. O mesmo impulso se dá em frente ao bar
vizinho, agora propriedade de Bráulio Miranda. Entra e pede um “abafa banca”.
Mira as mesas de sinuca e de bilhar, acaricia a bombonière lotada e sussurra para
si mesmo: “ainda vou vir aqui, à noite, tomar umas e jogar apostado”. Mal sabe
ele que, no futuro, irá cumprir com sobra aquele desejo de menino curioso.
Uma fila se forma na porta do Cartório de Guga. O que será!? Logo se lembra que
ouvira algo sobre tirar documentos para obter o título de eleitor, já que no ano
entrante haveria eleições. “Mas essas somente se darão lá pra outubro !!”, admira-se.
Na fila, somente tabaréus. Se soubesse o que significa “eleitor de cabresto”, teria en-
tendido a movimentação antecipada.
	 Rua Direita acima, cruza com Helena, esposa de Zé Carvalho, a conver-
sar com Profª. Eurídes, essa sua mestra do 5º ano primário. “Bom dia , profes-
sora.” “Bom dia, meu filho. Parabéns pelo resultado do exame de admissão”. Não fora
a timidez, o menino diria: “Devo a aprovação ao meu 5º ano com a senhora
e mais os outros quatro anos com a Profª. Aurelina”. Apenas sorri e segue. Avista
Fiinha à janela de sua casa e resolve bater um papinho. Afinal, tinham “trabalhado”
juntos na Farmácia Confiança. Pergunta se Humberto já está de todo curado
das queimaduras que sofrera no São João. “Está. Vai ficar ainda um bom tempo
com as marcas, Dr. Aloísio disse que, com o passar dos anos, deverão sumir”. Despede-se
da velha e boa companheira e avança. Adiante, vê porta entreaberta. Lembra-se
do convite que recebera quando ali estivera no ano anterior: “Entre, venha ver
a oficina”. Essa frase, convite instigante, haveria de acompanhar o menino em
definitivo, mesmo quando homem feito. Ali nascera seu gosto pela notícia, pela
impressão, pelo panfleto. Ali começara a avermelhar-se, sem que percebesse.
	 Na Esquina da Cadeia ouve o chamado de Joaquim Estrela, à janela dos
Correios e Telégrafos. Atende ao chamado, atravessando a rua. Sentia uma
verdadeira atração por aquela repartição pública. Gostava de ouvir o tic...tictic...
tic do aparelho de Código Morse, admirava a bateria de pilhas elétricas formada
por garrafas com ácido, achava as folhas de selos verdadeiras obras primas.
Joaquim Estrela entrega-lhe um envelope grosso. Imagina: “Deve ser do Instituto
Monitor. São as aulas que pedi, de desenho e de eletricidade”. Já fizera, por correspon-
dência, um curso de relojoaria e, agora, iria iniciar esses dois. “Apanho na volta,
quando for para casa”. Suspira. Precisa retornar ao passeio da direita, pois, logo
em seguida, está a casa de Lessa, pai de Eliane. Preferia olhar as janelas com
a segurança da largura da rua. Não sabe se seu amor platônico é correspon-
dido e tem receio de denunciar-se no caso de súbito encontro. Na Coletoria
Federal, entretém-se um pouco a conversar com o amigo Clício, que ali trabalha
como auxiliar. Acertam uma volta noturna de bicicleta, “quem sabe até o Cajueiro”.
No passeio da repartição, o coletor Raul bate animado papo com Pe. Valtério.
Esse fuma e sorri, com ar de vitória. É que acabaram de acertar um jogo de bara-
lho para a noite, como de hábito. O menino ouve o acerto entre o preposto
20
Janelas Abertas
do Governo e o procurador de Deus e faz sua escolha: torceria pela vitória do coletor
Raul, embora perceba no sorriso do padre a indicação da ajuda celestial. Como
aquilo lhe parece injusto, resolve, ali mesmo, rezar uma Ave Maria e pedir a ajuda
de Nsa. Sra. da Purificação para o patrão de Clício. Sendo ela a Mãe de Deus, certa-
mente tem poder sobre o Filho.
	 A Igreja Batista, no lado esquerdo da rua, está aberta, mas vazia. “Será que
o pastor viajou!? E Miguel Paes Coelho, será que já veio e já saiu!?”. O menino gosta dos
crentes, embora não encontre razão para seu gosto, oriundo que é de família
com tradição católica. Julgando-se um inteligente pensador, diz a si mesmo:
“A razão não passa de mero termo de dicionário, sujeito a ideologias. Gosto dos cren-
tes e pronto...”. Admira a conversa fluente de Miguel Paes Coelho e, se pudesse,
seria capaz de pagar para ouvir suas explanações. Ainda inexperiente, não
percebe que seu gosto pelos crentes vem da empatia com o crente Miguel.
No futuro, amigo de Ramon, filho de Miguel, passaria a ouvir as explanações mais
amiúde, na barbearia da Rua Manoel Julião.
	 Caminha. Em frente da bela casa da esquina da Rua Direita com a Praça
da Bandeira, ouve ruídos de martelo e serrote. ZéFreitasestá a fazerartee esta alegra
a esquina com sua rima inconfundível. O menino julga aquela casa como sendo
o seu segundo lar, tanto ali comparece. Jorge sai à porta e se falam por um breve
tempo. O menino é tentado a entrar, a ver o bater do macete sobre o formão, mas
retrai-se. Fica para outra hora, já que tem compromisso com a caminhada.
	 Prefeitura. Gente muita apinhada no passeio. Como sempre, benesses pater-
nalistas estão a ser distribuídas. Vislumbra à porta do belo prédio clássico, Amaro
Medeiros, charuto aceso, a “conversar” com Elísio Santana, cabeça erguida.
Conversa de PSD e UDN. Acha aquilo interessante, já que sabe serem os
dois duros adversários. À noite, durante a sopa, informaria ao pai a cena vis-
ta. Esse, do alto de seus anos de UDN, rebateria: “Conversando o quê, meu filho!?.
Deviam estar brigando, batendo boca, quebrando pau. Aqueles dois são como gato
e rato. Você nada entende de política”. O menino calar-se-ia e acataria a obser-
vação paterna. Chegaria até a lembrar-se de que vira os dois contendores com
dedos em riste, um na cara do outro. “Bem que papai tem razão. Deviam estar era
brigando feio”. No futuro, viria a constatar que, na chamada Política Nacional,
nada é mais comum do que antigos adversários se tornarem aliados a fim de
garantirem seus privilégios. O menino tem muito o que aprender.
	 Chuva. Aliás, chuvisco. Resolve voltar. Retomaria sua caminhada no dia
seguinte,justodaqueleponto,naPraçadaBandeira.Afinal,estádispostoavistoriar
toda a cidade e ainda falta meia Rua Direita, toda a Quixabeira, a Canta Galo,
a Mangabeira, a Manoel Julião e a velha Rua Nova, isso sem falar na Praça da Matriz.
Descendo, passa pelos Correios para recolher suas aulas e segue para casa pelo
passeio da esquerda. Na porta do Cartório de Guga, analisa os personagens da fila.
Todos com chapéu de palha, a indicar a roça como moradia.
21
Parte I - Janelas da Memória
	 Na Praça, vê que o desfecho entre cães e cadela já se deu. Agora, o que observa
é um casal de cachorros como que amarrados em sentido oposto, tal e qual está
habituado a presenciar na fazenda do seu avô. Sorri e ensimesma-se. Os moleques,
estes observam a cena calados e desconfiados. Alfredo e Jaime Franco não mais
estão à porta do armazém. O vento levanta poeira do areião da Praça. O sol,
agora a pino, mal se esconde sob a frondosa sombra do oiti que protege a bomba
de gasolina e sob as varandas do Abrigo de Amando. Dentro de pouco tempo,
a madorna tomaria conta da cidade. Agitação, apenas lá em Tiano,o depósito ver-
melho. Para tanto, basta que João Pechincha chegue, como de costume.
22
Janelas Abertas
O Dia Seguinte
	 Terça-feira, 8 horas da manhã. O menino pouco dormiu, a planejar nova
caminhada. Desjejum feito, parte em marcha batida para seu rumo. Subindo a Rua
de Baixo, dá-se no mesmo passeio com Dodó que, alegre, vai abrir a quitanda.
	 Na Praça, a ventania a levantar poeira. Como sempre, os comerciantes à porta
de seus negócios. No cartório de Guga, nova fila se formando. Disposto a não
copiar a véspera, o menino acelera o andar. Ao passar pela porta da cadeia,
um barulho de palmatória o surpreende: Paaa. Um ai sofrido chega-lhe aos
ouvidos. “Quem bate!? Quem apanha!?”. Um sopro de maturidade sussurra-lhe:
“Deve ser um Zé Ninguém, poderoso quando fardado, a pisar num Zé do Povo, calça
surrada e pés descalços, talvez um simples ladrão de galinha, desses que saem
nodesesperoparaarranjarcomquealimentarosseus”. O menino responde ao sussurro:
“É,com certeza só pode ser isso”. Segue constrangido.
	 Ei-lo na Praça da Bandeira. As benesses com o dinheiro público parecem con-
tinuar, indica a movimentação na porta da prefeitura. No coreto, um corre-corre
de crianças. Passarinhos alegram os ficus. O menino mira a fachada da prefeitura,
remira o coreto e uma tristeza dolorosa lhe toca a face ao contemplar aqueles belos
exemplares clássicos. Ali e com aquela idade, não sabe o porquê da dor.
	 Esquina de Alfredo Franco. O menino lembra-se dos cães da véspera.
Zé Leão quica bola no passeio de sua casa. Ao vê-lo, o jogador afirma: “Vou
bater um baba. Gilson vai?”. “Não sei. Acho que foi caçar de badogue”. De um rádio a
alto volume, ouve Adelaide Chiozzo: “Eu tou doente, moreno... doente eu tou, mo-
reno... cabeça inchada, moreno... dói... dói...dói...” A melodia o faz lembrar-se que já,
já, Jota Gomes porá no ar a Voz da Liberdade e haverá “Tornei-me um ébrio” na voz
de Vicente Celestino. É o Irará alegre e cantante do qual o menino tanto gosta.
	 Janelas ocupadas. Pequena, Corina e Nazinha, como de costume, espiam
o movimento da rua. O andante pára e as cumprimenta. Ali já esteve outras vezes,
a apreciar as maravilhas que as irmãs produzem em seu ateliê doméstico.
Uns não gostam, dizem que se trata apenas de cópias de coisas e bichos; outros
afirmam que são jóias de profundo valor artístico, o verdadeiro artesanato estilizado.
Comesses,omeninoconcorda.Admiraasirmãs,aliás,asvenera.Nãolheinteressa
se copiam ou criam; para ele, é arte pura e isso lhe basta. Um dia lerá o que escreveu
Pablo Neruda sobre os artistas populares: “Não creio na originalidade, que é mais
um fetiche criado em nossa época de demolição vertiginosa. Acredito na personalidade
através de qualquer linguagem, de qualquer forma, de qualquer sentido da criação artísti-
ca”. Conversa, fala da caminhada de ontem e de hoje, observa, com as artistas,
o sol a esconder-se entre as nuvens e segue.
	 Nota que não há fila na porta do cartório de Maia. “O que é que um faz, que
o outro não faz?!”. Mistérios da burocracia pátria. Professor Fernando, à porta,
23
Parte I - Janelas da Memória
brinda o dia com sua negritude primorosa e altaneira. O menino pensa,
ou melhor, reza: “Tomara que ele seja meu professor no Ginásio, ano que vem”. Será
e muito mais. Será farol a iluminar caminhos, guia a apontar obstáculos. Será mestre.
	 Lá está Raul Cruz debruçado na janela, a contemplar o tempo. O menino
sente-se feliz em vê-lo, embora mal o conheça. Cumprimenta-o com um aceno,
logo retribuído. Algo se forma ali, a rebentar anos depois.
	 Escolas Reunidas Gal. Juracy Montenegro Magalhães – Grupo Escolar
Dr.Juliano Moreira.“Que será que esses dois fizeram por Irará,meu Deus!?.Será que vieram
assentar os tijolos!?.Vou perguntar a papai, ele sempre tem resposta pra tudo”. Detém-se à
porta que tanto cruzou no seu 5º ano primário. Vê, como se lá estivessem de fato,
a Profª. Eurides, a Profª. Rilza, a Profª. Valdira, até a Profª. Antônia, que não ensi-
nava ali. Não vê as outras. Não vê ou não lembra !?
	 Praça da Matriz. Igreja de Nsa. Sra. da Purificação. Pelo peso da padroeira,
o templo deveria ser mais opulento, essa é a sua opinião. Lembra-se da magní-
fica igreja onde uma de suas irmãs foi batizada, em Salvador: ”Aquela sim é que
é igreja de santa importante...”.Por conversa dos mais velhos, soubera que a matriz
da cidade era um imponente templo na Praça do Comércio, que foi demolido
em nome da modernidade. “E modernidade exige destruição do belo??. Espero que
um dia não cismem de derrubar o mercado, que deve ser maior do que a velha
matriz”. Num repente, o menino medita: “Por que o Senhor do Universo precisa de
casas na terra? Por que se utiliza de procuradores?. Todo poderoso, deveria muito
bem servir-se das trombetas celestiais para comunicar-se diretamente com Seu povo”.
Mistérios da fé.
	 Posto de Puericultura. Gente amontoada pelas varandas, mais gente no pas-
seio. “Deve ser pra tomar vacina. Vai ver que não vieram na semana passada, ou
vieram e a vacina acabou. E se estiverem em jejum, ainda a essa hora!?”. Lembrou-se
que, na semana anterior, fora levado pelo pai para vacinar-se. Fora em jejum, pois
esse era o costume. No posto, o doutor informou que jejum somente se exige para
exames. No caso de vacina, tratava-se de invenção sem sentido, crendice. “Que
diabo é crendice??”.
	 O menino resolve descansar à sombra dos oitis da praça. Observa o obelisco
e conta o tempo. “Será que, ao completar-se mais cem anos, colocarão outro
degrau?.Não,acho que vão fazer outro monumento somente para trazer alguém de fora para
inaugurar”.
	 O cemitério. O menino mantém uma relação conflituosa com os mortos:
tem, simultaneamente, medo e curiosidade. Para ele, a morte está plena de in-
terrogações. “Se a morte é o fim da vida, por que só se fica famoso depois de morto?
Aí, é nome de rua, de praça, de cidade. Alguns, até, viram santos. De que adianta
ser santo depois de morto? Será que o morto famoso sabe que seu nome foi colocado
na praça?”. Apesar do medo, sente uma atração masoquista por aquele muro
gradeado, por aquele portão imponente. Aproxima-se. Sempre ouvira dizer
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Janelas Abertas
que há mortos que retornam na forma de guias. Resolve-se. Vai conversar com
os mortos, pedir conselhos, uma luz, a indicação de uma trilha. Pensa em rezar,
mas desiste. Já basta a Ave Maria gasta pela vitória do preposto do governo contra
o procurador de Deus na mesa de carteado. Quieto e mudo, apoia-se no portão
de ferro. No seu silencio interior, olhos fechados, vê um facho luminoso de verme-
lho intenso. Não entende a mensagem, mas percebe que se trata de uma rota longa
e sofrida que lhe cabe seguir. Apenas, terá que esperar a hora de por-se a caminho.
	 Sobrado dos Nogueira. A reforma para a instalação do Ginásio São Judas
Tadeu, filiado á Campanha Nacional de Educandários Gratuitos, vai de vento em
popa. O menino sente-se em aula já. “Qual matéria vai me agradar mais?”. De ante-
mão, escolhe História e Geografia. O tempo dirá se a escolha foi correta.
	 Casa Jesus, Maria e José. Anciãos com rostos amargurados às janelas.
“Será que Alberto Nogueira conseguiu arrecadar o suficiente para essa gente ter um
Natal?!. Se pudesse, daria ajuda”. Ah se o menino soubesse que uma grande,
incomensurável ajuda seria ele entrar e dialogar com aqueles amargurados rostos!
Seria um alimento, uma festa que nenhum dinheiro compraria.
	 Na Esquina do Campo vê a molecada, Zé Leão e Jurandi à frente, a caminho
do baba. Avista os muros do velho cemitério, mas sua mente se concentra a
olhar o que os olhos não vêem: o Lasca Gato, bem no início da Ladeira da Fon-
te da Nação. “Um dia, quando eu for maior, ainda vou ver o que tem nesse Lasca Gato
tão falado”. A questão, no entanto, não é de tamanho. Há uma idade na qual
já se aprendeu o suficiente para não correr riscos, mas ainda não se sabe o bastan-
te para aproveitar a vida.
	 Rua da Quixabeira. Lá está Djalma, a chinelar pela calçada. “Não vai pro baba?”.
“Vou pra oficina de Tonhó. Tou lá de aprendiz”. Na Esquina de Henrique, cruza com
Zé Luís. Não se falam, apenas se olham. “Se fosse Tonho Luís, eu ia parar pra conver-
sar.Esse aí tá mais pra pai do que pra companheiro”.“Lá vai Dego,sacola na mão.Certo que
vai pro balcão do irmão Tonhó”. Zinha, à janela, observa o passante, que observa a
valorosa mulher.
	 Silêncio na casa da Profª. Aurelina. Nas férias, somente um ou outro aluno ali
comparece para tomar banca. O menino sorri: “Nunca precisei de banca pra passar...”.
Lembra-se dos quatro anos que ali estudou, tomou bolo e chorou, mas aprendeu.
Ali se aprendia, nem que fosse na base da régua e da palmatória (não aquela que
imaginara existir na cadeia...).
	 Esquina de Arlindo Paes Coelho. “Interessante, nunca vi Nazi na porta
de sua venda. Também, ele não tem vizinho com quem bater papo. O jeito é ficar
lá por dentro a mexer nos peixes, na carne de sertão, nas enxadas, esperando um
freguês e torcendo pro dia acabar. Deve ser uma morrinha!!”. Avança pelo passeio
a fim de cumprimentar o colega Emanuel, balconista da loja de Pedro Martins.
A conversa é pouca, pois o dono não gosta de lero-lero no seu negócio. “Pareceque
aprendeu com Deraldo Bacelar ( ou foi o inverso?)”.
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Parte I - Janelas da Memória
	 Outra vez na praça, a velha casa onde morou lhe chama a atenção. É a segunda
após a esquina e continua fechada. Ali morou por quase dois anos, quando veio
para a cidade. Bem se lembra quando o pai adoeceu de tanto ficar até tarde
no bar. Por isso, vendeu o bar para Bráulio Miranda. Fez bem. A passo lento,
observa o consultório do Dr. Mendonça. O médico vinha de fora uma vez por
semana e ficava dois dias na cidade. Doentes, sempre havia, pois Dr. Aloísio não
dava conta de todos. Quem gostava era o pai, pois assim havia mais receitas para
despachar na Farmácia Confiança. Na farmácia de Chaves pensava-se da mesma
maneira. Pena que o pai vendeu a Confiança para Dr. Ramalho, pois o menino
gostava de passar o tempo ao balcão, ler as bulas dos remédios, ver o preparo
das drogas manipuladas. Ele e Fiinhatomavam conta do negócio, ela substituindo
o farmacêutico prático Zeca de Sergipe,que o pai trouxera de Feira de Santana.
	 Praça abaixo, vê-se na calçada de Piroca Brejão, casa cheia de vendeiros e qui-
tandeiros a se abastecerem. Ali o negócio era do bom e todos tinham crédito.
Ao menos, era o que ouvia do pai.
	 Mercado. Resolve entrar para ver se ainda há restos da feira. A não ser
na barraca e no balcão de carne, não se vê mais ninguém. O menino gosta do
mercado. Todos os sábados, lá comparece com a mãe, a fazer as compras. Avis-
ta uma porta aberta aos fundos e para lá se dirige. É hora de ir para casa que o
sol já está a pino. “Canta galo, Manoel Julião, Mangabeira e Rua Nova que esperem, pois
meus pés não são de aço”.
	 Já na Rua de Baixo, sente que o depósito de Olavo está com cheiro de cachaça
nova. Certamente chegara carga da“Dois Leões”e da desdobrada.
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Janelas Abertas
A Cidade em Três Manhãs
	 Quarta-feira. Lá vai o menino seguir a rota decidida. Saiu mais cedo, para ver
Valfredo abrir sua tenda. Mal chega à esquina do mercado com a Rua Canta Galo,
avista o artesão a manejar o molho de chaves. Nunca pensou em ser sapateiro, mas
sente entusiasmo pelo ofício. Acha que todo sapateiro é um artista. Lembra-se
de Zé Vermelho, que é cantor e corta-sola.
	 Inicia a descida da Canta Galo. Pedro Barbeiro já está na labuta, aparando
os escassos fios de uma careca da sociedade. O cheiro de água velva corta o beco.
João Pechincha já está no ponto, vendendo pule do bicho.“Será que hoje vai dar touro?
Sonhei com dois enormes chifres essa noite”. Ainda não jogou no bicho, mas
tem enorme curiosidade sobre como se dá o sorteio. “Que é limpo, tenho certe-
za, pois João Pechincha é homem de bem. Se não fosse, não freqüentaria o depósito
de Tiano”. No final da Canta Galo, a menina morena na janela da casa de Ma-
noel Cardoso chama-lhe a atenção, mas o amor platônico passa a borracha.
Ao menos, por enquanto.
	 Depósito de fumo. Os fardos, a saírem do carro-de-boi há pouco chegado,
acumulam-se na calçada. Lá dentro, a azáfama das manoqueiras a consertar
fardos rasgados. Pensa: “Cigarro e charuto dão muito dinheiro. Se não dessem,
não se plantaria tanto fumo.E se não plantassem,que fariam os pobres lavradores desse
sertão!? Todo mundo a cultivar mandioca, não haveria boca pra consumir. Acho que
iriam todos pra São Paulo”. É o que ouvira os maiores falarem.
	 Beco de Teófilo. Resolve descer até Manoel Fogueteiro. Dá de face com
os irmãos sergipanos, Zeca e Vavá, a discutirem sobre o preço do couro curti-
do. “Vai ver que subiu de preço. Vão ter que aumentar o cobrado pelos chinelos. Logo
agora, que estou precisando de um novo...”. Na porta de Maninha, Zé Pequeno olha
a rua. Não se falam, já que mal se conhecem. Pensa em entrar na casa de Joana,
a bonequeira, mas desiste. “Afinal, boneca é brinquedo de menina”. Algo o incomo-
da ao pensar assim, mas não sabe explicar a razão. Anos depois, descobriria que
naquela casa não se faziam bonecas mas arte, a mais bela e pura arte iraraense.
	 Fim da Rua de Baixo. Passa pelo portão da salgadeira de Pompílio e logo
está em frente à tenda de Mestre Cacimiro. Ali, estaca. O cheiro de madeira o faz
entrar. “Bom dia, mestre”. “Bom dia, menino. Passeando a essa hora?”. “É, tou dando
um giro pela cidade. O que é isso que estás montando?”. “É uma mesinha com gave-
tas, pra apoiar oratório que um freguês comprou em Feira. Já tou terminando. Logo
vou envernizar”. Segue e se dá em frente à tenda do fogueteiro. Ali é conhecido,
pois todo ano comparece para comprar fogos. Olha, vê o pouco movimento e
pensa: “deve ser porque o São João tá longe”. Retorna, para virar no beco de Éver-
ton, rumo ao pé de sabonete. No lado oposto, a jaqueira está coberta de frutos,
fora os caídos.
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Parte I - Janelas da Memória
	 Rua da Mangabeira. Esquina de Amélia. Cavalos de aluguel, arreados, aguar-
dam partida, certos de que serão esporados como de costume. A dona avisa:
”Os bichos são quase gente. Não precisa esporar. Basta atiçar a brida que eles avan-
çam sem serem maltratados”. O menino matuta: “Se esses cavalos falassem, diriam:
‘não adianta, Amélia. Eles pensam que a gente não sente. Metem a espora pra valer’.
O correto seria cobrar multa de quem devolvesse os animais com marcas de esporas”.
A Mangabeira é a rua mais bem falada da cidade. Na verdade se ouve homens
falando dela, e como se existisse somente à noite. “Ainda vou desvendar esse misté-
rio. Rua tão bonita de dia... tantas moças nas janelas...”.
	 Na esquina do cinema, resolve: vai andar pelas duas calçadas da Manoel Ju-
lião. Avança. Em frente á casa de Albertino, cruza com o primo Zé Nilton a sair
com uma bola debaixo do braço:“Vou bater um baba”. Pensa: “Como essa turma de
Gilson gosta de bola!. Eu prefiro caminhar, ver gente, ver casas”. Não sabe ele que da-
queles babas sairiam jogadores famosos como Renato de Ospício, Delcker de Guga
e, bem mais adiante, um goleiro chamado Dida, que seria da seleção canarinho.
	 João Tanoeiro, assobiando, limpa as gaiolas de sua orquestra de pássaros.
Omeninogostadofabricantedebarris;admiraocontrasteentreseujeitoestouvado
defalareocarinhoqueempregaaoalisarascostelasdemadeiradosvasosquefabrica.
Na tenda de Zé Estrela, o funileiro, pára e fica a contemplar o derreter de solda em
telha de barro cozido. Acha interessante aquele cortar, e virar, e bater, e soldar folha
de flandres. O menino vê o artesão passar todos os dias pedalando bicicleta Rua
de Baixo acima, vindo de seu sítio lá pras bandas do Cruzeiro da Queimada.
	 O retorno se dá no passeio da farmácia de Chaves. Zé Petu, ao vê-lo, inquire:
“Quer um abafa-banca, meu filho?”. Quis. Não entende por que todos os mais
velhos o chamam de meu filho. “Vai ver que é porque me acham quieto.
Não fazem idéia do vulcão que tenho na cabeça”.
	 Cinema. O cartaz anuncia: Domingo - Roy Rogers em “Cavalgada Selvagem”.
Decide que virá ao matinê dominical, mesmo que o pai não queira. Há de
se arranjar com a mãe. Já basta que perdera “Sete homens e um destino”, na semana
passada.
	 A velha Rua Nova é um poeirão, com o vendaval a ciscar. Pompílio, à porta
de casa, consulta uma folha de papel. “Deve estar verificando quem não pagou
o aluguel. Papai pagou, que eu vi”. O velho senhorio é dono de casas por toda
a cidade, inclusive de pontos comerciais como o de seu pai na Rua de Baixo.
Joãozinho Dantas despacha o burro com os camburões de leite. E condutor, claro.
“Tão tarde pra entregar leite. Será que não vai talhar?”.
	 Uma gritaria assusta o menino. É a molecada a atiçar Das Dores, que desce
a rua agitando os braços e falando sozinha. “E Lucinda, por onde andará?”.
Das Dores não mete medo. Lucinda sim, é braba!”. Antônio de Modesto cruza
a rua. “Certamente vai aplicar injeção, pela pressa com que anda”.
	 Capelinha. A porta semi-aberta chama os que passam. Interesse em entrar,
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Janelas Abertas
não tem. Não obstante, pára e observa: cabeças cobertas por véus, ora pretos,
ora brancos, ocupam os poucos assentos. “Será que também Deus está de férias,
por isso o povo desistiu da igreja e veio pra cá, a ver se ele aparece nessa casa
modesta?!”. Não avista o Procurador do Deus. Alguém puxa a reza e todos respon-
dem, numa mesmice sem reticências.
	 Esquina do Foro. Dr. Cândido, o Juiz de Direito, enfatiotado, conversa à porta
com Amaro Medeiros - charuto ao canto da boca - que mora quase em frente.
O menino imagina: “Juiz deve ser mais importante que político. No entanto, pelo
jeito, parece que o dono do charuto é quem passa instruções à autoridade, embora
um seja do PSD e o outro da UDN”. Questiona: “É certo juiz ter partido ?! E pra
quê o palitó e a gravata num calorão desse?!”. No outro lado da rua, em frente
à casa do padre Valtério, o Procurador de Deus, um caminhão chama sua atenção.
“Deve ser de Inácio, que mora vizinho. Vai ver ele está lá dentro tratando dos interesses
dos romeiros que virão para a festa de Dois de Fevereiro”.
	 Beco da Madalena. Estaca e fica observando animais com cangalhas con-
duzindo adobes. Uma tropa. “Quem será que está construindo? Na Rua de Baixo
não é, que não vi...”. Na Lagoa da Madalena fazem-se adobes de bom tamanho,
embora costumem rachar por estarem mal curtidos. A pressa em vender é tanta...
O menino olha os quintais à frente. Os muros com detalhes torneados da casa
de Pedro Martins contrastam com as rústicas paredes brancas do lado oposto.
Uma paisagem que se vê em outros cantos da cidade, exceto nas ruas da Quixabeira
e da Mangabeira, essas só de pobres e remediados.
	 O menino conclui que viu toda a cidade. Senta-se na borda da calçada e diz
a si mesmo: “Como é pequena a minha terra! Eu a corri de ponta a ponta em três
manhãs. Se fosse no frio de julho, teria visto tudo em um só dia...”.
	 O menino engana-se. O que viu nas três manhãs em que bateu pernas foi
donos de vendas, quitandas e armazéns, fachadas com janelas semi-abertas,
repartições a exigir fila, políticos a distribuir benesses, Zé Ninguém a bater em
Zé do Povo, Procurador de Deus a acertar jogo de cartas com Preposto
do Governo, cães a ladrar e a se encangar, molecada a abusar de doida, autoridade
a receber instruções de político...
	 Não viu a Cidade. Bem verdade que sentiu o calor dos “meu filho” que
escutou, que se enlevou com as rimas do martelo e do serrote de Zé Freitas, que
recebeu nos olhos o porte soberano do Professor Fernando, que acolheu no ar
o aceno de Raul Cruz, que sentiu a agitação no depósito de Tiano, que se
empolgou com a solidariedade dos que iam bater baba, que se entristeceu com
os rostos amargurados nas janelas da Casa Jesus, Maria e José, que deu pela falta
de Miguel Paes Coelho no templo batista, que viu Zé Estrela derretendo solda em
telha de barro cozido, que ouviu o assobio de João Tanoeiro limpando as gaiolas
de sua orquestra de pássaros, que aprovou o gosto do abafa-banca de Zé Petu, que
se lembrou ser Zé Vermelho cantor e artista, que espiou Valfredo abrindo seu ateliê
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Parte I - Janelas da Memória
de mágicas, que se alegrou por não precisar tomar banca com a Profª. Aurelina,
que viu Olavo renovar o estoque de “Dois Leões”, que sentiu o cheiro de pólvora
na tenda de Manoel Foqueteiro, que apreciou a mesinha feita por Mestre Cacimiro,
que se emocionou ao ver o sol em companhia das irmãs artistas da Rua Direita,
que se arrependeu por não ter entrado na casa de Joana Bonequeira, que recebeu
dos mortos a indicação de um caminho a seguir... .
	 Contudo não viu a enorme cidade que fervilha por todas as tendas e oficinas,
que se emoldura nas bonecas e desenhos, que se entristece aos berros de “Badaró”,
que palpita nos corações vermelhos ainda escondidos, que chora ao imaginar
o que o futuro reserva ao velho prédio da prefeitura e ao solene coreto da Praça
da Bandeira, que lastima a perda da velha matriz, que faz música ao tilintar
de copos e garrafas, que estremece ao passar a Filarmônica, que teme pelo futuro
do velho mercado, que sua ao lavar roupa na Fonte da Nação, que constrói
peças maravilhosas a partir do barro bem pisado, que canta fantasiada de Germino
Curador, que dança com os passos de João Chagas, que faz ritmo com o agogô
deSóChumbo,quebrincaaosomdotrombonedeZequinha,queseenchedealegria
a cada sábado que chega e passa. Para ver essa Cidade Multifacetada, não
bastarão ao menino três manhãs. Será preciso toda uma vida a fim de constatar
que ela se renova todos os dias, todos os meses, todos os anos. Que faz arte, faz
cultura, faz história.
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Janelas Abertas
Os Caminhos da Cidade
	 Até meados do século passado, Irará possuía oito caminhos. Por eles chega-
vam os tropeiros, cantavamos carros-de-bois, esquipavam os animais de montaria,
vagavam os andarilhos com alpercatas de sola e relho. Por eles aventuravam-se
os caminhões. Veias e intestinos da Vida Urbana, por esses caminhos entravam
os cereais, as frutas e as verduras; saíam o fumo e os emigrantes – riquezas da terra
e das gentes.
	 Passada quase uma década, o menino que fizera a Cidade em Três Manhãs,
agora rapaz, iria fazer os caminhos que circulavam a Urbis. Para fazê-los, saíra
em busca de rumo e mundo.
I – O Caminho do Cruzeiro da Queimada
	 Descida a Rua de Baixo, a marcha pelo lado esquerdo ladeia a área da salga-
deira de Pompílio tendo à direita a bucólica vista do sítio dos Portela. Logo ouve-se
o bater do macete no formão, a indicar que Mestre Cacimiro apronta mais uma
encomenda. Em frente à tenda do artífice, a casa de Pedro Barbeiro a confrontar-se
com a tenda de Manoel Fogueteiro. O cheiro de pólvora e de rosalgar atesta que
o São João vai ser farto e colorido.
	 Bons espaços caminhados, logo constata-se azáfama no sítio de Antoninho:
Sampaio a selar cavalo, a carroça d’água a ser abastecida, o catavento a girar, girar.
	 O Caminhoestreita-se para maior intimidade com o aglomerado de casas nas
posses de João de Bila. Adiante, na curva que se destina à Conceição, a piçarra solta
denuncia que a Prefeitura andou tapando buracos deixados pelo último toró,
a fim de facilitar a passagem da marinete.
	 Amarchadeixaacurvaesegueemfrente,rumoàssombrasdoCruzeiro.Umolhar
à esquerda mostra o sítio de Zulmiro com seu cajueiral a enfrentar o mormaço.
	 Parada na capelinha para acender vela em prol de chuva que não chega. O sol,
a meio pino, projeta os braços da cruz no chão arenoso, que o capim não cobre.
	 O Cruzeiro da Queimada avisa ao andarilho que a cidade ficou para trás e que
dali em diante só se verá enxada a cortar o chão crestado na dura labuta pela
mandioca e pelo fumo.
II – O Caminho do Retiro
	 Na encruzilhada que dá acesso ao sítio de Antoninho, dobra-se á direita,
bem em frente à chácara de Possidônio. Pasto de um lado, coqueiros e jaqueiras
do outro, logo o andarilho há que deparar-se com a varanda alambradada da
casa onde morou Manoelzinho da Paixão, quando deixou o Leãozinho e veio morar
na Rua a fim de educar os filhos. A velha casa coroa o cume da ladeira.
	 Descida a pique permeada de voçorocas que a chuva do ano passado deixou
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Parte I - Janelas da Memória
como herança, a ladeira dá-se, na baixada, com o riacho que conduz o vinhoto
do alambique. No pasto à direita, um mar de flores silvestres, que dançam ao
embalo das borboletas e ao som do vento que sopra – morno às oito, quente
à tarde. Os cavalos a pastar interrompem o banquete para mirar o andarilho, que
desce ao encontro do fétido rego de água poluída.
	 Passada a tosca ponte, a subida íngreme conduz ao Retiro se a marcha seguir
em frente, mas dar-se-á no Povoado de Santo Antônio se o desejo de ver a nascente
dita milagrosa for maior que o de conhecer o antigo Povoado de São Simão.
	 O Caminho do Retiro faz as terras iraraenses parecerem poucas, tão logo
se chega às plagas de Coração-de-Maria.
III – O Caminho da Fonte-da-Nação
	 Final da Quixabeira, na esquina da Casa Jesus, Maria e José. Se o destino
é a Praça do Coreto, dobra-se à direita. Sendo os olhos pra ver paisagem, quebra-se
à esquerda. Vencendo os olhos, dá-se um encontro de contrastes: o Campo de Bola
- onde a moçada bate baba – faz parelha com o velho cemitério de muros sombrios
embora gradeados à moda clássica. Um abraço da alegria dos jovens brincantes
na solidão dos que deixaram a vida para ingressarem nos sete palmos da eternidade.
	 Por trás do Campo de Bola, a salgadeira de Amadeu bem no cume da ladeira.
	 Chão bem conhecido dos boêmios noctívagos, logo se vê o Largo do Lasca-
Gato, com suas casinhas de janela e porta – de dia moça à janela, de noite rapaz
à porta. Se o andarilho desviar os olhos para afastar a tentação e meter pé a descer
a ladeira, encontrará, na meia rampa e à esquerda, o desvio para a Fonte-da-Nação.
O cantar das lavadeiras sempre alegra os que chegam e aproximar-se é ver gente
sofrida a divertir-se na labuta de todo dia. No verde da grama, a roupa da
cidade posta ao sol, na quara indispensável ao branco almejado. Nas bordas
da velha fonte, aguadeiros enchem os barris que irão mitigar a sede dos moradores
da Rua: é esperar e ver os jumentos partirem – arqueados – ladeira acima,
em cada costado quarenta litros. A quantos iraraenses sedentos a Fonte-da-Nação
já saciou? Cálculo para entendido em estatística. O certo é que, seja inverno
ou verão, haja seca ou chova toró, a Fonte-da-Nação cumpre sua bendita sina.
	 Continuar a descida é apreciar, nas laterais, o verde intenso do capim
a realçar a galharia cinza dos juazeiros, araçazeiros e cajueiros. Na baixada,
o Alambique Dois Leões solta fumaça como se fosse locomotiva e o vento espalha
o ativo odor da cana fermentada. Cruzando-se o riacho, o vinhoto assusta por
escurecer o fio-d’água. Há que subir a rampa íngreme para deslumbrar-se com
os campos coloridos por onde o gado pasta. Não fosse a cerca – a indicar pro-
priedade – e a aventura conduziria o andarilho até as sombras da capoeira
distante – isso se as vacas paridas o permitissem. Chegada ao topo, a trilha conduz
ao aconchego do Povoado da Caroba.Voltar os olhos significa vislumbrar o casario
da cidade como se fosse uma miragem em deserto verde.
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Janelas Abertas
	 O Caminho da Fonte-da-Nação é a nossa Trilha de Santiago de Compostela:
permite o andarilho cumprimentar a alegria da moçada no baba, ensimesmar-se
com a solidão dos mortos, deixar-se tentar pelas atrações do Lasca-Gato, fanta-
siar a mente ao canto melancólico das lavadeiras, ver a vida brotar na fonte que
não seca, embriagar-se ao odor da cana a fermentar, entristecer-se com a turvação
do fio-d’água poluído pelo vinhoto, acalentar-se diante das vacas a mugir, cons-
tranger-se ao sentir os limites que a cerca impõe, despedir-se - com saudade -
do casario distante e apressar-se para ver o sol se pôr à sombra da igrejinha
da Caroba,como se chegado fosse ao templo de Santiago na milenária Compostela.
IV – O Caminho das Lajes
	 Dá-se adeus à Rua mal se desce a calçada do Posto de Puericultura. A sombra
do Obelisco parece apontar a rota: a vereda suburbana tem seus limites no arame
farpado que registra as roças da redondeza. Se o dia for propício, o andarilho terá
grande chance de cruzar com Raul Cruz a retornar do Bongue. À direita, o jardim
da chácara dos Gomes chama atenção pela variedade de flores. O pau-a-pique in-
dica curral e ordenha. A vereda é larga, com areia bem assentada, já que por ali
transita a marinete com destino a Feira-de-Santana.
	 Tomando-se à esquerda, na encruzilhada que leva à estação-do-trem, logo
se avista a Escola Rural, arrodeada de terra seca e descoberta. Curva fechada
à frente, o mato catingueiro indica solo entristecido. Vá se crer que naquela rus-
ticidade haja uma cachoeira como a das Lajes! É embicar mato a baixo para ver
e crer, tal qual São Tomé: no sair do cipoal, lajedos majestosos gretados por sécu-
los de água corrente brilham em espelho cristalino. A queda d’água – pequena
mas formosa – faz nascer da terra ressequida o verde das trepadeiras, provoca o
abrir de flores - salão de borboletas - permite que lagartixas se cumprimentem
na luxúria da pedra lisa e brilhante.
	 O andarilho, que nas Lajesse refrescou à saciedade –olhos e sede – pode mar-
char picada acima para encontrar o Rumo,povoado de gente simples, tez queimada
e pele a demonstrar o quanto pode o sol. Há que ver o pau-a-pique a arrimar
cabritos, porcos soltos no quim quim de quem tem fome, rolinhas fogo apagou
na monotonia do seu umrurum, galinhas a ciscar no terreiro, que a sombra de pé
de fruta-pão protege.
	 A aventura leva à Vila de Quaresma, último baluarte das terras iraraenses
antes que se chegue à influência de Feira-de-Santana.
V – O Caminho do Cajueiro
	 O CaminhodoCajueiro é irmão mabaço do CaminhodasLages.Basta chegar-se à
encruzilhada da estação-do-trem – cadê o trem que não vem - e seguir em frente
para dar-se no aglomerado de pequenos sítios acolhedores e ensombreados.
Adiante, a casa de Manoel Pinheiro, respeitado abatedor de boi. Antes, o quase
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Parte I - Janelas da Memória
esconderijo de Pedro de Tiano, já comunista declarado.
	 Na capoeira rala que limita o fim da jornada, vislumbra-se o que resta
ao catingueiro: mato espinhento, chão pedregoso, água só de chuva e quando
São Pedro chora, sol renitente a não querer se pôr, anoitecer com o cio cio das
cigarras e o agouro das corujas. Dali não se vê a Rua, que parece esconder seu
rosto com vergonha de mostrar-se ao subúrbio. Este, altaneiro, espera chegar
o sábado para apresentar o suor do seu esforço: aipim, galinha gorda, beiju
de tapioca e massa, caju colhido no pé, jaca dura e mole, no açougue carne-de-boi
bem talhada.
	 O Caminho do Cajueiro é um retrato vivo de como a Rua esconde a dureza dos
seus arredores, mas deles depende para sua própria sobrevivência.
VI – O Caminho do Corte
	 A Cidade Nova põe fim ao arruado. Seguir a velha estrada de Água Fria
é encontrar a dura caatinga que se estende para o norte. Logo se vê terra fatiada
como bolo em festa de aniversário. É o corte da estrada-de-ferro.
	 Como a ameaçar cumprir uma promessa de décadas, a paisagem violentada
faz sonhar-se com o trem – que não vem que não vem que não vem. O andari-
lho espera que o apito chegue na mesma rapidez com que se fez o corte. Afinal
a estação está quase pronta e na vala aberta basta assentar-se os dormentes
e os trilhos. Terra devastada em nome da civilização, da modernidade: há que
trocar-se a duvidosa e apertada boléia do caminhão pelo anunciado conforto nos
vagões da Maria Fumaça.
	 Na rota, somente terra nua a mostrar suas entranhas: raízes secas, pedras
a despencar, xiquexiques a apoiar-se na beira da ribanceira.
	 A decisão de seguir pela paisagem inóspita levará o andarilho ao vento frio
das noites da Barra – aí sim a esperar o apito incerto do trem que passa ás sete.
Na estação já se encontram quebra-queixo, amendoim torrado, beiju de massa
e piaba frita, todos a esperar os passageiros que seguem para Serrinha, Senhor
do Bonfim e Juazeiro. Depois, é aguardar o trem das nove da manhã, com as
gentes que se destinam a Aramari, Alagoinhas, Catu e Calçada. Na Barra mesmo,
descem uns dois e talvez subam outros tantos.
	 Cruzados os trilhos, é alcançar o belo templo que ornamenta a história
da velha Vila deÁgua Fria, aquela que já foi cidade e há de voltar a ser.
VII – O Caminho da Lagoa da Madalena
	 A Praça do Coreto abraça a Rua Nova bem no Beco de Pedro Martins. Ali se
inicia a trilha que leva a Ouriçangas, Ouriçanguinhas, Aramari e Alagoinhas.
	 Há que ver-se, logo nos primeiros trezentos passos, a chácara de Elesbão,
ensombreada por frondosas fruteiras. Avista-se o curral e escuta-se o mugir
das vacas à espera da ordenha.
34
Janelas Abertas
	 Seguir a rota é ver o Caminho apertar-se no canyon abrupto. O acidente – ou
incidente? – topográfico impede o admirar-se as pastagens verdejantes que imperam
ás margens da viela. Na ladeira, há que evitar-se os regos das voçorocas.
	 Na baixada, a Lagoa da Madalena, na soberba de quem dispõe de água e na
humildade de quem se deixa usar: lavadeiras, oleiros e pescadores disputam as bei-
ras enlameadas da lagoa. No meio do lençol que brilha, um ou outro aguapé mostra a
cara, a amedrontar a fartura.
	 Adobes recém-moldados secam ao sol, fazendo coro com as roupas a quarar.
Latas d’água na cabeça,as Marias sobem o Morro do Cruzeiro sem cansar.
	 No largo do Povoado, o leprosário escancara a piedade de Alberto Nogueira e
o andarilho medita sobre os Mandamentos da Lei de Deus, por Moisés escritos na
Pedra Sagrada.
	 O Caminho segue contornando fazendas e apontando horizontes: O Rato;
a Pedras de Amando; a Pedras de Tiago; a Umbaúba; ao longe o morro que esconde
o arruado da Vila de Pedrão, mal deixando ver-se a torre da velha igreja.
	 Maisumacurva,umadescida,umarampa,outracurva,umasubidaeeisOuriçan-
gas, na pachorra de quem não tem pressa pelo correr do tempo.
	 Do alto, bem em frente da igreja secular, vale olhar o vale e avistar a paisagem
que o canyon do Caminho não deixou vislumbrar.
VIII – O Caminho da Mangabeira
	 É pegar a esquina do cinema que vai sair na Mangabeira. O seguir em frente vai
dar na roça. Se cortar passadas pelo Pé de Sabonete, é dobrar à direita bem na casa
de Amélia - aquela que aluga cavalos selados - e logo verá a casa de Valfredo. A rota
para a roça está na marca de patas pelo chão de areia.
	 O Caminho da Mangabeira mostra a intenção da Cidade em estender-se para as
bandas do verde e plano. O subúrbio pequenino finda no sítio de Olavo. Dali pra
frente é cerca, mato e ladeira, até o desembocar no Rio Seco, aos pés da Pedras de
Amando e logo após o massapé da Picada.
	 O andarilho, se for menino, pode abusar do badoque, que a cada dez passos tem
passarinho na cerca; pode abastar-se no caju, que os pés carregados margeiam a trilha.
No andar seguro, chega-se à encruzilhada. Há que desviar-se dos despachos que ali são
deitados – certamente para o bem dos cães vadios, já que mal, nessa terra, não se deseja.
	 O Caminho da Mangabeira – direção clara de para onde a cidade irá - tem o privi-
légio de não ser caminho para pneus. Suas areias soltas, suas margens ensombreadas,
sua encruzilhada com despachos somente se abrem para o pisar dos cavalos, o cantar
dos carros-de-bois e o passo ligeiro e certo dos andarilhos. Não por acaso, seu início
mais usual se dá no Pé de Sabonete.
35
Parte I - Janelas da Memória
Brincadeiras de Criança
	 Nada mais triste do que choro de idoso; nada mais alegre do que brincadeira
de criança. A capacidade de adaptar-se às circunstâncias, a imaginação para criar
opções, a habilidade para o aprendizado rápido, a resistência para o repetir sem
cansar-se, a perseverança no insistir até ganhar, a manha para dobrar os mais
velhos: ser criança é diversidade, bom humor, tenacidade, paixão e amor.
	 Na metade do Século XX, as brincadeiras de criança se assemelhavam em
todos os recantos, notadamente nas pequenas cidades e na zona rural. Brincava-se
então como o fizeram os mais velhos cinqüenta anos antes, apenas acrescentada a
evolução do vestir-se, calçar-se, comunicar-se, ousar. Em nosso pequeno Irará,
onde as opções de lazer em nada se diferenciavam das demais comunidades
interioranas, as brincadeiras de crianças seguiam a tradição das tias e tios, mães
e pais, avós e avôs. As variáveis ficavam por conta da alegria e da coragem pró-
prias das crianças, da largura da rua ou da altura do passeio.
	 Na roça, as brincadeiras eram, de uma certa maneira, imitações do que
faziam os adultos, com os limites que os meios disponíveis estabeleciam. Brinca-
va-se de derrubar tanajura – “cai, cai, tanajura, na panela de gordura”; apanhavam-se
borboletas usando-se caçapas de pano atadas a uma vara - soltava-se o inseto
após a captura: o prazer residia no apanhar; armava-se arapuca para aprisionar
pássaros e roedores - aqueles para a gaiola e estes para a panela; pescava-se piaba
com vara e anzol pequenos; subia-se em árvore para colher frutos; tirava-se casa
de abelha para chupar o mel; caçava-se com badoque para apurar a pontaria
e ajudar no rancho; tomava-se banho no tanque - ou na biqueira quando a chuva
caía. Sobretudo brincava-se no alimentar as criações, varrer o terreiro, cortar ma-
naíva, raspar mandioca, tirar água da fonte, torrar castanhas, tirar leite de cabra
ou de vaca, colocar sementes nas covas – meninos com chapéu de palha, meninas
com touca de sacaria. Ainda bem que brincadeira de roça não segregava sexo
nem cor – a não ser em casa de fazendeiro.
	 Na cidade, os costumes impunham às meninas o brincar sob a barra da saia
da mãe, mas libertava os meninos para a rua e o quintal.
	 Em casa, as meninas imitavam suas mães, fazendo-se elas mesmas mãezinhas
de suas bonecas. Com caixas vazias montavam sala, quarto, cama. Num monó-
logo quase diálogo, ralhavam, ninavam e orientavam suas filhas feitas de pano.
E as bonecas pareciam compreender, de tão atentas que se punham: olhos arre-
galados, lábios tensos, braços estendidos. As mãezinhas mais atiradas até mama-
deira ousavam preparar para seus rebentos, numa realidade que simulava sonhos.
O que se via, passadas as horas, era mãesefilhas, fatigadas, buscarem no aconchego
da cama a letargia do sono reconfortante.
	 Meninas brincavam de boneca – melhor seria dizer se fotografavam - de casi-
36
Janelas Abertas
nha,de fazer debuxo com papel de seda. Quando mais crescidas, aventura-
vam-se no bordado e no croché e até arriscavam costurar à mão.
	 Meninos, esses mais capetas e mais libertos, cedo tomavam o caminho da
aventura, da busca pelo desconhecido: a estrepolia no trapézio armado no quin-
tal, o domínio no volteio do papagaio solto, os lances ensaiados com a bola de
meia, o esquipar no cavalinho de cabo de vassoura.
	 Meninos atiravam-se a soltar papagaio, usar andadeira de lata e arame, andar
sobre perna-de-pau, jogar gude e botão, soltar pião, aparar e catar pedrinhas de
uma a cinco, imitar artista e bandido num faroeste amador, soltar barquinho na
enxurrada, apostar no pauzinho. Quando mais taludos, partiam para o baba e a
bicicleta. Cansados e sujos, arriavam à espera da merenda.
	 Engraçado: meninas imitavam o dia-a-dia das mamães, mas meninos desco-
nheciam os afazeres de seus papais. Mal do gênero ou do sexo?
	 As brincadeiras urbanas ousavam separar os sexos, apesar de algumas prefe-
rirem o enturmar-se de meninas e meninos.
	 As brincadeiras do entumar-se eram: picula, jogo de peteca, lançar ioiô, girar
de cabra-cega, fazer aroda, pular opasso-passo, adivinhar oqueéoqueé, saber emque
mãoestá, trançar cordão nos dedos, pular corda, saltar amarelinha. Amadurecidos,
todos iam ler revistas de quadrinhos. Amadurecidos ou convencidos!?
	 Meninas e meninos – sejam da roça ou da cidade – brincam, crescem, amam
e se reproduzem para tudo recomeçar como sempre aconteceu desde que gente
apareceu no mundo.
	 Os tempos mudaram, as brincadeiras são outras, a tecnologia domina. Mas,
quem não lacrimeja os olhos ao lembrar-se criança a brincar ? Quem resiste a
uma cantiga de roda? Crianças ouvem, aprendem e repetem; adultos escutam e se
emocionam; idosos arrancam da memória o que os ouvidos percebem, cortam o
choro e partem para o sonho bem desejado.
	
	 “Ciranda,cirandinha,vamos todos cirandar.
	 Vamos dar a meia volta,volta e meia vamos dar.
		 O anel que tu me deste era vidro e se quebrou.
		 O amor que tu me tinhas era pouco e se acabou.”
					
					 “Atirei o pau no gato-to.
					 Mas o gato-to não morreu-reu-reu.
						 Dona Chica-ca admirou-se-se
						 Do miau,do miau que o gato deu”
	 “Capelinha de melão
	 É de São João;
	 É de cravo,
	 É de rosa,
	 É de manjericão.”
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Parte I - Janelas da Memória
	 “Eu sou pobre,pobre,pobre,
	 De marré,marré,marré.
	 Eu sou pobre,pobre,pobre,
	 De marré desci.
		 Eu sou rica,rica,rica,
		 De marré,marré,marré.
		 Eu sou rica,rica,rica,
		 De marré,desci.”
					 “Fui no tororó,
					 Beber água,não achei.
					 Encontrei bela morena,
					 Que no tororó deixei.
						 Aproveite,minha gente,
						 Que uma noite não é nada;
						 Se não for dormir agora,
						 Dormirá de madrugada.”
	 “O cravo brigou com a rosa
	 Debaixo de uma sacada;
	 O cravo saiu ferido,
	 A rosa despedaçada!”
		 O cravo ficou doente,
		 A rosa foi visitar;
		 O cravo deu um suspiro,
		 A rosa pôs-se a chorar.”
					 “Pai Francisco entrou na roda,
					 Tocando seu violão:
					 Dararão,dão,dão! Dararão,dão,dão!
					 Vem de lá‘seu’delegado,
					 Pai Francisco vai pra prisão.
						 Como ele vem todo requebrado,
						 parece um boneco desengonçado!”
	 “Passarás,não passarás,
	 Algum‘dele’há de ficar;
	 Se não for o da frente,
	 Há de ser o de trás,trás.
		 Bom barqueiro,bom barqueiro
		 Que me deixes eu passar;
		 Tenho filhos pequeninos
		 Que não posso sustentar.”
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Janelas Abertas
	 “Teresinha de Jesus
	 Deu uma queda e foi ao chão;
	 Acudiram três cavalheiros,
	 Todos três chapéu na mão.
		 O primeiro foi seu pai,
		 O segundo seu irmão,
		 O terceiro foi aquele
		 A quem Teresa deu a mão.”
					 “Fui à Espanha buscar o meu chapéu,
					 Azul e branco da cor daquele céu!
					 Ora palma,palma,palma!
					 Ora pé,pé,pé!
					 Ora roda,roda,roda!
					 Caranguejo peixe é!”
	 “A canoa virou,
	 Deixá-la virar,
	 Foi por causa de Fulana,
	 Que não soube remar.
		 Se eu fosse um peixinho,
		 E soubesse nadar,
		 Eu tirava Fulana
		 Do fundo do mar.”
					 “Escravos de Jó jogavam caxangá:
					 Tira,bota,deixa o Zé Pereira ficar.
					 Guerreiros com guerreiros fazem
					 zigue-zigue-zá!”
	 “Se essa rua,se essa rua fosse minha...
	 Eu mandava,eu mandava ladrilhar...
	 Com pedrinhas,com pedrinhas de brilhantes...
	 Para o meu,para o meu benzinho passar...”
As cantigas falam por si. Não cabe dizer mais nada.
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Parte I - Janelas da Memória
Fatias da Memória
	 Vida Doméstica – Almanaque Capivarol - O Cruzeiro – Manchete – Almana-
que Bristol – Guri - Gibi – Almanaque Tico-Tico – Capitão Marvel – Mandrake –
Superman – Tarzan – Fantasma – Batman  Robim – Zorro – Homem Sub-
marino – Cavaleiro Negro – Tom  Jerry – Pateta – Tio Patinhas – Pernalonga
– Pato Donald – Popeye – Luluzinha  Bolinha – Zé Carioca.
	 Gorgorão – Chita – Bulgariana – Tafetá – Chitão – Tricoline – Casimira –
Algodãozinho – Bramante – Organdi – Madrasto – Fustão – Tropical – Gabar-
dine - Brim – Cetim - Linho – Cambraia – Filó – Musselina – Piquê – Mescla
- Veludo.
	 Sabonete Eucalol – Água Velva – Brilhantina Glostora - Vaselina Perfumada
Ruth - Pasta Dental Kolynos – Sabonete Lifebuoy – Batom Coty – Rouge Royal Briar
– Leite de Colônia ArthurStudart– Talco Johnsons– Loção após o Banho Cashemere
Bouquet – Pó de Arroz Helena Rubinstein.
	 Chapéus Ramenzzoni – Sapatos Clark – Chapéus Prada – Calçados Conga 7 Vi-
das – Calças Banlon- Camisas Volta ao Mundo.
	 Radiolas RCAVictor– Camas Patente– Rádios Phillips– Cobertores DormeBem
- Louças Nadir– Máquinas de Costura Singer– Candeeiros Aladin- Talheres Sesam
– Filtros Lorenzzetti – Lampiões Petromax.
	 Lâminas de barbear Gillette Blue Blade – Lápis Faber – Canetas Parker – Cani-
vetes Corneta – Despertadores Westclock – Lança-Perfume Rodouro - Relógios de
algibeira Omega – Navalhas Sollinger - Lanternas Eveready – Tesouras Mundial.
	 Inseticida Detefon – Vassouras Fiel – Formicida Tatu – Chumbos Brasil - Que-
rosene Jacaré – Velas Estearina - Creolina Cruzwaldina – Enxadas Tupi.
	 Cigarros Trocadero, Astória, Continental, Yolanda Branco, Yolanda Azul, Hollywood,
Colúmbia – Charutos Suerdieck – Fósforos Olho.
	 Palitos Monroe – Azeite Gallo – Goiabada Peixe – Óleo de Algodão Sanbra
– Biscoitos Pilar – Queijo Palmyra – Sardinhas Setubal – Biscoitos Águia Central
– Manteiga Cruzeiro do Sul – Biscoitos Tupy - Farinha de Arroz Arrozina - Salsichas
Wilson – Óleo Guarani - Chocolate Diamante Negro – Mortadela Swift - Café São
Paulo – Chocolate em pó Toddy – Fermento Royal – Corante Colorau – Amido de
Milho Maizena Duryea – Avéia Quaker.
	 Jurubeba Leão do Norte – Aguardente Dois Leões – Vermuth Cinzano – Vinho
Barbera– Conhaque de Alcatrão SãoJoãodaBarra– Aguardente Carioca– Vermuth
Martini– Jurupinga Gerin– Aguardente Jacaré- Genebra Ferradas– Gin Gerin– Co-
nhaque Macieira.
	 GuaranáFratelliVita–Sukita–GasosadeLimão-LaranjaTurva–Crush–Grappete.
	 Pastilhas Valda - Tiro Seguro – Leite de Magnésia de Phillips – Rubraton – Xarope de
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Janelas Abertas
Ipecacuanha–VioletadeGenciana-AssaFétida–ReguladorGesteira–SaúdedasCrianças
- Licor de Cacau Xavier – Eparema – Azul de Metileno - Robusterina – Capivarol - Postafen
– Maracujina – Saúde da Mulher – Pomada Minâncora –Água Rubinat – Elixir Paregórico
– Aguardente Alemã – Óleo de Copaíba – Bicarbonato de Sódio - Biotônico Fontoura – Es-
sência de Cânfora - Vinho Reconstituinte Silva Araújo – Calcigenol Irradiado – Essência de
Terebintina - Elixir de Salsaparrilha – Bálsamo de Benguê - Regulador Xavier – Coramina
- Óleo de Fígado de Bacalhau - Xarope Bromil – Kusuk – Pílulas de Vida do Dr. Ross – Sal
de Frutas Eno – Gotas Milagrosas de Santa Terezinha – Sabonete Sulfuroso Ross – Óleo de
Rícino - Colírio Moura Brasil - Ácido Fênico – Essência de Cravo – Melhoral – Benzetacil
– Phimatosan – Streptomicina Squibb - Capiloton – PolvilhoAntisséptico Granado.
	 O Direito de Nascer (Mamãe Dolores, Albertinho Limonta, Tereza Cristina) – Edifício
Balança Mas Não Cai (O Primo Rico e o Primo Pobre,Ofélia) – Jerônimo,o Herói do Sertão
- Repórter Esso – Jararaca  Ratinho – Alvarenga  Ranchinho – Zé Trindade – Oscarito
– Grande Otelo.
	 Omar Shariff – Peter O’Toole – Zza Zza Gabor – Sofia Loren – Gina Lolobri-
gida – Sarita Montiel – Doris Day – Rocky Lane – Roy Rogers – Buck Jones – Kid
Colt – John Mc Brown – Tyrone Power – Rock Hudson - Brigitte Bardot – Virna
Lise – Simone Signoret – Ava Gardner – Monica Vitti – Marlene Dietrich – Anita
Ekberg – Marcello Mastroianni – Charles Bronson – Burt Lancaster – Dean Mar-
tin – Lana Turner – Maurice Chevalier – Grace Kelly – Libertad Lamarc – Marlon
Brando – Mireille Mathieu – Vittorio de Sica – Cláudia Cardinale.
	 O Conde de Montecristo – O Gordo e o Magro – O Renegado – Sete Homens
e um Destino – Os Dez Mandamentos – O Pagador de Promessas – Exodus – Spartacus
– Helena de Tróia – Ulisses,o Navegador – Capitão Gancho – E o Vento Levou – Cleópatra
– O Incêndio de Roma- Marcelino, Pão e Vinho – La Violetera – Pear Harbor - Moisés
– Os Doze Trabalhos de Hércules – Lampião Rei do Cangaço – Jerônimo – E Deus
criou a Mulher – Apache – Moby Dick – O Anjo Azul – A Doce Vida – A Queda do
Império Romano - Redenção – Lawrence de Arábia – O Corcunda de Notre Dame
– Orfeu do Carnaval – Cantando na Chuva - Eles e Elas – Estranho no Paraíso – Ali Babá
e os Quarenta Ladrões.
	 Agostinho dos Santos – Vicente Celestino – Nelson Gonçalves - Carlos
Galhardo – Augusto Calheiros – Luís Gonzaga – Anísio Silva – Angela Maria
– Cauby Peixoto – Dalva de Oliveira – Dircinha Batista – Altemar Dutra – Emili-
nha Borba – Maysa – Ataulfo Alves – Bienvenido Granda – Carmélia Alves – Nat
King Cole – Cláudia Barroso- Dick Farney – Inezita Barroso – Miltinho – Nora
Nei – Zezé Gonzaga – Ray Charles – Dolores Duran – Charles Aznavour.
	 Senhora - A Escrava Isaura – Vidas Secas – Helena – O Homem que Calculava – Os
Sertões – Vinte Mil Léguas Submarinas – A Volta ao Mundo em Oitenta Dias – O Sítio do
PicapauAmarelo–OGuarani–Jubiabá–OsMiseráveis–SãoJorgedosIlhéus–NossaVida
Sexual-AsFábulasdeEsopo–D’ArtagnaneosTrêsMosqueteiros–ACarne–DomQuixote
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Parte I - Janelas da Memória
de La Mancha - Viagens de Gulliver – Cyrano de Bergerac – O Morro dos Ventos Uivantes
–DezDiasqueAbalaramoMundo–ViladosConfins–GrandeSertão:Veredas–Germinal
–OsLusíadas–OsIrmãosKaramazov–Decamerão–OCavaleirodaEsperança–Cascalho
– Gabriela,Cravo e Canela.
	 ANoitedomeubem–Quequerestudemim?–Mariadosmeuspecados–Baladatriste
–Tardefria–Eusonheiquetuestavastãolinda–Atirasteumapedra–Conceição–Adeusa
do asfalto – Cinco letras que choram – Ninguém é de ninguém – Senhor da floresta – Salão
grenat–Apequeninacruzdoteurosário–Sorrisdaminhador–Bonecacobiçada-Ninguém
me ama – Camisa listrada – A volta do boêmio – Alguém me disse –Asa branca – Cabeça
inchada–Olhaprocéumeuamor–Risque–Sabiálánagaiola–DoloresSierra–Ficacomi-
go esta noite – Dos meus braços tu não sairás – Meu vício é você – Escultura – Pensando em
ti – Naquela mesa – Deusa da minha rua - Hoje quem paga sou eu – Quero beijar-te ainda
– Luar de Paquetá – Muié de oio azul – Cabocla serrana – Coração materno – Renúncia em
prantos – Porta aberta - Patativa – Na casa branca da serra – Luar do sertão – Cintura fina
–Assum preto – Riacho do navio – Mané fogueteiro –– Maringá – Casinha pequenina – In-
teresseira – Mulher de trinta – Babalu – tornei-me um ébrio – Madame Pompadour – Cai a
tarde – Devolve – Maria dos meus pecados – Meu mundo caiu.
Cenas do Cotidiano
44
Janelas Abertas
Os Dias passam e a Cidade vive
	 Cada dia, o passar das horas e dos acontecimentos – uns, invariáveis; outros,
cheios de surpresa.
	 Novembro. O mormaço a anunciar um toró que não cai. Os escolares, logo
às sete horas, leite tomado e pão comido, partem para os seus suplícios. Os da
Profª. Aurelina, sem farda, mas com capanga a estufar tabuada, caderno de cali-
grafia, pedra de escrever, pena de bico grosso e merenda. Nas segundas, na mão
vai também o tinteiro levado pra casa na sexta. Os do Grupo Escolar – aquele
com nome de político e médico – com a mesma carga e mais o fardamento azul
e branco. O caminho, todo mundo sabe e quem não sabe pergunta. A rapaziada,
essa já está no batente dos balcões ou nos banquinhos das tendas. Um ou outro
filho da fina flor vagueia pelas ruas em busca do que fazer ou do que aprontar.
	 Comércio. Nas vendas, em cada porta do lado da sombra, um negociante
a prosar com quem passa, ansiando por um freguês que entre. Os do lado do sol
somente vão pro bate papo depois do meio dia, quando o astro rei dá a costu-
meira sopa. Nos bares, quase ninguém, pois farra e jogo só de noite. Mal e mal se
vende, de dia, uns abafa-banca, uns copos de refresco de limão, umas cordas de
bombom de mel. Já nas padarias – duas – o movimento é pesado das seis às oito:
sai pão italiano, sovado e cacetinho; sai bolacha fofa, de coco e de sal.
	 Se fosse quarta-feira, haveria de ter caminhão a descarregar charque, quero-
sene, peixe seco e até caixas de enxadas nas portas das vendas. Por volta das onze
horas chega o “carro da Souza Cruz” que vem de Feira: pára de porta em porta das
casas do comércio. Metade da carga é arriada nos armazéns de Piroca Brejão e de
Alfredo Franco. “Um quase mundo, aqueles dois”, pensam os vendeiros.
	 Meio dia. A romaria reside em fechar os negócios e partir pro almoço.
Na segunda se liquida o que sobrou do banquete de domingo: um resto de
malassado, feijão preto ou mulatinho com miúdos de porco, farofa - essa nova
– salada de alface colhida no quintal e sobremesa de doce de leite. Satisfeito
o apetite, quem tem empregado pra reabrir o negócio fica pr’uma madorna até
as duas – uns até as três.
	 E a garotada? Essa, retornada da escola e almoçada, prepara-se para pin-
tar e bordar. A picula ocupa os cantos da casa na brincadeira do esconde-esconde.
Os que preferem cabra-cega vão pro quintal, que tem mais espaço e o “cego” não
corre risco de se chocar contra portas e paredes. ”Quebra-pote?” Não, isso é coisa
pra dia de festa e somente lá na Praça. Vez por outra, a turma vai à porta ver se
o homem do quebra-queixo aparece, ou mesmo aquele do amendoim torrado.
Na falta dos dois, o jeito é esperar a hora da merenda.
	 Negócios abertos, donos retornados da soneca, buzina em cada ponto
o “carro do Café São Paulo”, também vindo de Feira. A meninada que observa o
movimento pensa: ”Feira de Santana deve ser um lugarão. Tudo que aqui não tem
vem de lá. Deve dar uns cinco Irará”.
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Parte II - Cenas do Cotidiano
	 De tardezinha Joaquim Estrela desce rua a entregar as cartas chegadas. A uns
avisa: ”Tem registrado. É preciso passar lá na agência pra assinar o recibo”.
	 Logo a marinete aponta lá pras bandas de Antoninho. Todo mundo – ao
menos os interessados e os curiosos – vai pro ponto vizinho à loja de Teófi-
lo. Chegado o coletivo, é receber e dar abraço, comprar jornal, mala a cair do
bagageiro alto, pacotes, sacolas, embrulhos e bugigangas outras cansadas da
longa viagem de meio dia. “O condutor disse que do Birimbau pra cá tá uma
buraqueira só”. – “E pra lá?” – “Bem, tão abrindo estrada nova e tem um desvio com
muita lama perto de São Sebastião”. A viagem pode ser longa e cansativa, mas,
toda manhã cedinho, por volta das seis horas, tem gente no ponto tomando
arroz-doce e pongando na marinete, que sai quase lotada – a lotação se completa
em Coração de Maria – para a Bahia.
	 Nas casas, por todo o dia, o trabalho é duro: há que ferver o leite, aquele
espumoso trazido à porta em camburão de alumínio, por jumento bem equi-
pado; coar o café em coador de cambraia, com o pó sacudido fora; varrer tudo
com vassoura de piaçava, exceto o quintal, que se varre com vassoura de pindo-
ba após ciscar as folhas secas; preparar as panelas e pô-las no fogo pra requen-
tar as sobras do Domingo, que não se vai perder assim; servir o almoço e lavar
os pratos, bem lavados graças às folhas de caiçara; arrumar a merenda pra tur-
ma miúda, nem que seja gemada com farinha de mandioca; passar a roupa seca
ao sol da manhã, com barrufada pra tirar os encolhidos e economizar as brasas
do ferro; acompanhar o aguadeiro na entrega da água nova com barris vindos
em lombo de jegue ou com latas enchidas no tanque da carroça, tudo abastecido
na mais que bendita Fonte da Nação; agüentar a algazarra da criançada a brincar,
sem faltar o “lhe boto de castigo”; dar e tomar banho, alguns com cuia retirando
água de lata cheia na cisterna; arranjar algo para a sopa da boca da noite – pode
ser que saia mingau de fubá de milho em vez de sopa.
	 Seis horas da tarde. A Voz da Liberdade, sob o eficiente comando de Jota Go-
mes, anuncia a ”Ave Maria”, hoje a clássica, de Gounod.
	 As tarefas de casa seguem a rotina: logo será hora de servir a sopa - ou
o seu substituto eventual - arrumar a cozinha para o dia seguinte, ao menos la-
var o que se sujou durante a sopa, fiscalizar a garotada que foi brincar na rua
e mantê-la perto de casa, esperar que os maridos liberem o rádio para a novela de
todo dia – “que hoje Isabel Cristina vai pro convento”.
	 Na espera, prosar com a vizinha, de porta pra janela: “Ouvi falar que de-
pois-de-amanhã vai ter leilão pra arranjar dinheiro pra Festa da Padroeira.”
– “Tão cedo assim!?” - “Também acho, mas o padre é muito prevenido”. Umas pen-
sam, apenas pensam: “Mais uma embromação, essa estória de leilão pra Festa”. Pen-
sam, não dizem, e participam, ao menos oferecendo umas galinhas da capoeira,
uns bolos de araruta, até uns frascos de doce de araçá e umas garrafas de licor de
jenipapo. Julgam que, com suas ofertas - mesmo na dúvida quanto ao bom uso
dos recursos - garantem lugar no céu, apesar dos pecados não redimidos.
	 Anoitecida a cidade, a conversa é outra.
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Janelas Abertas
O que Fazer Hoje à Noite?
Boca-da-Noite. A meninada agita-se a pensar no que fazer após a sopa.
No tempo dos lampiões a gás, com as ruas escuras, o jeito era brincar nas varandas
dos fundos das casas, sentados em esteira de pindoba ou, quanto muito, ir para
a arrelia da casa vizinha, isso “se mamãe deixasse”. Agora é diferente: aqueles altos
postes, aqueles longos fios de cobre e aquelas “lâmpadas de vidro com uma faísca
dentro” deram novo sangue à vida noturna.
Meninas agrupadas na beira das calçadas brincam de trocar a roupa das bo-
necas – essas irmãs perfeitas, crias de Joana - como se o fizessem em si mesmas.
Meninos, mais ariscos, ensaiam um filme de cowboy nas esquinas em lusco-fusco
– uns bancando Buck Jones, outros, Roy Rogers. O difícil é a escolha dos bandidos
e índios – ninguém quer ser vilão. A solução fica por conta dos pauzinhos e azar
de quem perder.
Vez ou outra, a depender da enturmação, meninas e meninos se ajuntam
para a Brincadeira de Roda: - “Oh dona Maria, oh Mariazinha, que entrou na roda
e ficará sozinha” – “Sozinha eu não fico nem hei de ficar, pois eu tenho Toínho para
ser meu par”. A escolha do parceiro já indica uma empatia para uma relação fu-
tura mais profunda.
Completada a Roda – todos já entraram, escolheram seus pares e saíram
– parte-se para o descanso da Advinhação no aconchego das beiras: - “O que é o
que é que tem orelha mas não escuta?”–“É pau podre”. –“O que é o que é que sai tarde
e chega cedo?”–“É o sol”.
Os mais agitados, ainda meninas e meninos, preferem o pula-pula do Passo-
Passo na borda da calçada: “Bote aqui o seu pezinho,bote aqui ao pé do meu,e depois
não vá dizer que você se arrependeu”.
Para as moças e rapazes, o destino certo é voltear na Praça do Coreto: elas
para a direita, eles para a esquerda. A cada encontro, um riso, um piscar de olhos,
um relâmpago a incendiar corações ainda ingênuos. Duas, três noites assim
e os pares já se decidiram. Logo os bancos darão guarida ao “conversa vai,não vem;
conversa vem,não vai”. O que se vê são mãos trocando suores. Beijo na bochecha “só
no domingo que vem”, isso se não chover e “se mamãe me deixar sair”. Aí é que o ne-
gócio engancha: as futriqueiras de plantão logo fazem as mães das bem-aventura-
das criaturinhas saberem do “conversa vai” na Praça do Coreto e essas, esquecendo-
se do seus tempos de volteio, começam a botar gosto ruim: “Aquele rapaz não serve
pra você, minha filha. Ele nem é bom na escola. Se seu pai souber, a coisa vai ficar feia”.
Caso a criaturinha esteja mesmo a fim, o jeito é arriscar um encontro na volta da
escola, “se não chover”. A tão esperada chuva sertaneja passa a encarnar a desculpa
esfarrapada de quem quer mas não tem lá muita coragem.
A rapaziada mais crescida e já meio casca grossa bate firme nos bares: um jogo
47
Parte II - Cenas do Cotidiano
de sinuca ou bilhar regado a Jurupinga Gerim ou Conhaque de Alcatrão de São João
da Barra – os mais afoitos vão mesmo é de“Dois Leões” - ou um dominó agritalha-
do nas mesas das bodegas. Quem já está de namoro firme, daqueles de porta-de-
casa, já se ancorou: o agarra-agarra e o “me solte que aí vem gente” vão fazendo as
horas passarem. Na calçada, a bicicleta garante a saída rápida do amarrotado.
Dez horas da noite. Os decentes moços dos bares já partem para o Lasca-
Gato ou para a Mangabeira. No retorno, o jeito é molhar a güela no bar de Petu,
sempre de plantão.
E os mais velhos, o que fazem? Os homens, mal finda a ”Hora do Brasil”, par-
tem céleres para a reunião do Senadinho, na Praça do Comércio. Quem não é da
política, bate um carteado regado a genebra e tira-gosto de torreno. O carteado
é democrático, laico e conivente: jogam udenistas e pessedistas contra petebistas
e perrepistas; jogam o Procurador de Deus e o Delegado Comunista contra o Prepos-
to do Governo e o comerciante sonegador do Imposto de Consumo. Já as senhoras
- rádios liberados por seus fiéis maridos - escutam, ansiosas, mais um desfecho
da triste saga de Albertinho Limonta e Isabel Cristina, mais a conivência de Ma-
mãe Dolores: É “O Direito de Nascer” que faz a hora. Fofoca não, que isso “é coisa
de gente sem eira nem beira,futrica de quem não tem vergonha na cara”. Após a saga, al-
gumas quedam ao pé do rádio para se divertirem com as tretas do Primo Rico contra
o Primo Pobre ou com o bordão “Só abro a boca quando tenho certeza” do Fernandinho
e sua estimada esposa Ofélia – todos os quatro moradores do ”Edifício Balança mas não
Cai”. A Radio Nacional é, sem sombra de dúvida, um sucesso de audiência.
Finda a escuta viciada, restam às senhoras recolher a meninada, banhar
os pés e o rosto, rezar o terço e torcer por uma noite de bons sonhos, isso
se os galos da vizinhança deixarem e se não for noite de serenata. Os senhores,
fiéis maridos, encerradas as discussões no “parlamento”, retornam taciturnos mas
esperançosos, cigarro a pitar, para o aconchego de suas camas a esta hora já es-
quentadas. Na noite seguinte, tudo recomeça. Em algumas casas, no entanto, não
é de duvidar que o dia amanheça com barriga nova em franco progresso. Afinal,
a cidade precisa crescer e renovar-se.
48
Janelas Abertas
O Senadinho
Anoitecer. Invariavelmente, os homens dirigem-se às suas casas, para
a obrigação de ouvir “A Voz do Brasil” pelas ondas curtas dos rádios com olho
mágico. Afinal, o noticiário oficial é a principal fonte de informação sobre
os acontecimentos políticos do país e não poderia existir meio mais fidedigno
para a avaliação dos parlamentares eleitos pelos votos da imensa maioria de ta-
baréus do que as notícias da Agência Nacional. O eleitor sabe o que seus eleitos
dizem fazer, na medida em que esses divulgam o que querem que seus eleitores
saibam. Assim marcha o país e a política nacional, tal e qual em dias futuros.
	Findo o noticiário, as pernas masculinas partem para a Praça do Comércio,
a dar início aos ”trabalhos legislativos” do dia – aliás, da noite. A partida tem dupla
importância: dar quorum ao Senadinho e liberar os rádios para que os ouvidos
femininos escutem a novela “O Direito de Nascer”, pondo, assim, os olhos a chorar
diante das desventuras de Mamãe Dolores e Albertinho Limonta.
	O plenário instala-se na calçada entre o bar de Henrique e a loja de Éver-
ton. Os participantes, a média flor da política iraraense - já que a fina flor não se
presta ao mister de discutir; simplesmente manda – acomoda-se desde o ficar de
cócoras até o sentar-se em banquinho trazido de casa. Henrique, vez ou outra,
contribui com umas poucas cadeiras. Éverton serve longo banco sem encosto.
	Bancadas? Predominam as da UDN e PSD, mas uns gatos pingados do PTB
ousam participar.
	Discute-se, com admirável paz e cordialidade, as notícias do dia – aquelas
ouvidas no rádio -, os acontecimentos locais relevantes, as recentes nomeações,
as perspectivas eleitorais dos derrotados e mais uma ou outra fofoca da oposição
e dos governantes. Não há ataques pessoais. Amanhecendo o novo dia, todos
terão que conviver em harmonia, e isso elimina a formação de desafetos. Palavra
de honra, o Senadinho da Praça é um exemplo de boa vizinhança. Ter cidadania
e ser politicamente correto ainda não entraram em vigor.
	Quem abre os debates? O primeiro a chegar, em conversa temporária com
Henrique, esse impassível à porta do seu bar. Como comerciante modelo que
é, aprova tudo com um simples baloiçar da cabeça – que a palavra é prata, mas
o silêncio é ouro. Seu desejo, na verdade, é que caia ao menos um chuvisco mais
forte: todos certamente entrarão no bar, ensejando a venda de umas cervejas,
dois ou três cálices de conhaque e algumas taças de vermute. Quem sabe, de tira-
gosto saia até uma lata de mortadela.
	Obviamente, e como costuma acontecer nas casas legislativas, todo mundo
sabe o partido de cada um. Nisso reside a arma para evitar-se a discussão ofen-
siva. Os indecisos, geralmente do PTB, logo aderem à ala governista. Nada mais
justo, pois cego só não enxerga com os olhos.
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Parte II - Cenas do Cotidiano
	Voz dissonante há e se chama Raul Cruz, comunista letrado, bem aceito por
todos. Afinal, quando não está delegado, está para ser. Raul Cruz funciona como
ponto de equilíbrio, melhor dizendo, mediador nas discussões mais acirradas.
A ser franco, conteúdo positivo nos debates somente há por força das suas interven-
ções. O resto é pessedista que critica udenista, que rebate sob os aplausos de petebista.
	No Senadinho, o andar das discussões costuma, vez por outra, motivar troca
de legendas, sobretudo dos mais flexíveis e menos dependentes. A ocorrência
assusta os donos do poder. Na ótica desses, aquele “parlamento” tem por obri-
gação representar o pensamento dominante na cidade e qualquer desvio poderá
criar dúvidas na massa votante. Fala-se que tanto Elízio Santana quanto Amaro
Medeiros enviam espias de confiança para as seções, com o intuito de registrar
as tendências de aliados e adversários.
	No centro da Praça, o Abrigo de Amando encarna a soberba do Palácio da
Alvorada e observa os debates com um sorriso de maledicência e menosprezo.
	Como se pode constatar, política também se faz em porta de botequim.
50
Janelas Abertas
O Sábado é para a Feira
	
Os preparativos começam cedo, ainda na sexta-feira.
Na cidade, os comerciantes aprontam as embalagens dos secos e molhados:
arroz, sal, café moído e em grãos, açúcar, tudo em pacotes de papel pardo com
peso de duas, uma e meia libra. Dendê e óleo de mamona em garrafas bem cheias
e devidamente limpas. Sabão, esse vai enrolado em papel de jornal, em peda-
ços de meia e de uma libra. Aprontam-se os cortes de charque, feitos enviesados
para ressaltar a largura da manta. Canela-em-lasca, pimenta-do-reino, cominho
e colorau vão em pequenos embrulhos de cinqüenta e cem gramas. Sexta-feira
deve entardecer com as prateleiras lotadas, os balcões arrumados. O estoque de
cachaça-com-folha estará no ponto e será preciso arranjar dinheiro miúdo para
o troco.
	Na roça, a azáfama é outra, mas com a mesma correria: ensaca-se o feijão,
a farinha, o milho, todos em sacos de quatro quartas. As frutas e raízes, da
batata-doce e aipim ao inhame, da melancia e mamão à laranja, todos são aco-
modados nos caçuás, protegidos por folha-de-bananeira. Os legumes e verduras,
da berinjela e chuchu ao tomate, do pimentão e couve ao repolho, dos móios
de coentro aos de hortelã, tudo é bem arrumado nos cestos devidamente forrados,
onde não falta espaço para as raízes e folhas pra chá e reza. Beijus, farinha-de-
tapioca, amendoim torrado e doces ocupam latas de flandre, aquelas de querosene
Jacaré a tempo asseadas. Mel-de-abelha enche garrafas que se aprumam nos
cantos vazios dos caçuás. Porrões, potes, panelas e frigideiras vão de amarrado,
no equilíbrio das cangalhas. Burro é quem leva, pois jumento trota muito e pode
quebrar a carga. Nos amarrados também seguem cestas, peneiras, colheres-de-
pau, esteiras, cuias, fumo-de-corda, até bocapios e cabaças pra água.
	Sábado. A cidade amanhece agitada. Açougues estocados desde cedo, com
a matança dada na madrugada. Às sete horas as vendas, quitandas, lojas, padarias,
bares e primos outros estão de portas escancaradas, donos a postos e caixeiros nos
balcões. Sempre há, em cada ponto, a expectativa de que a freguesia aumente.
Propaganda não há: o freguês certo vem na certa e sempre há aquele, duvidoso,
que poderá mudar de rumo. Se não choveu por ocasião do plantio, a safra poderá
não ser boa. Assim, cada negociante se prepara para abrir a caderneta do fiado,
pois o certo tem crédito garantido.
Na fazenda, no sítio, na roça de meia,os jumentos e burros são arreados ainda
à luz dos fifós. Cada cangalha com quatro sacos dos secos. No entremeio entre os
sacos de riba, o arrumado de cestos e latas até o limite do não cair e a um peso
que não estropie o bicho. Nos topes das cangalhas enfiam-se badogues. O resto,
ou o que têm os que não têm animal, vai na cabeça enrodilhada, com o equilíbrio
que o levar água da fonte pra casa já ensinou. Nos ombros, uma vara com nós
51
Parte II - Cenas do Cotidiano
se verga ao peso das gaiolas com coleiros, canários, sofrês, cardeais, bem-te-vis,
assanhaços, azulões, pintassilgos.
A Feira não se limita ao comércio das mercadorias dos da cidade e dos da
roça. Caminhões apinhados despejam um mundo de gente que vem de Água
Fria, da Caroba, do Retiro, de Pedrão, de Ouriçangas, de Conceição, de Pataíba
e até de Coração de Maria, Feira de Santana, Alagoinhas e Serrinha: gente do
município e de fora, que vem comprar e vender. E trazem livrinho de violeiro,
malas com decoração em couro, brincos e argolas de metal, molduras com figu-
ras de santo, jaleques, chapéus-de-couro, selas, bridas, cilhas, cabrestos e demais
tipos de arreios.
Para completar o cenário, os artesãos da cidade abancam, no chão forrado
por esteiras, alpercatas, botas, sapatos com solado de pneu, cintos de couro cur-
tido, fifós, ralos, formas para bolo, bandejas, assadeiras, camisas de chita, calças
de mescla e de brim, bonecas de pano, tudo aquilo que o lufa-lufa da semana
produziu nas tendas e oficinas.
O local é a Praça do Comércio em toda a sua grandeza. O movimento começa
cedo com o entrar dos caminhões, que se enfileiram nas laterais da Rua Direita.
Os animais, esses deixam suas cargas na Praça e vão, pachorrentos, pros quintais
de guarda a duzentos réis o dia.
A Feira é bem dividida e organizada. No mercado, os secos a granel, os beijus
e similares e os balcões dos açougues. Na calçada do lado da Praça, as bancas de
verduras e de legumes, os sacos de amendoim torrado e cozido, o milho cozido
e assado, as frutas e as raízes. No largo, as bancas e barracas, começando com
as de doces e bolos, depois as de carne-do-sol e moquecas de piaba. A seguir,
as bancas dos artesãos, as pilhas de malas e apetrechos de montaria. Lá pras
sombras das palmeiras, os livrinhos de violeiro, as molduras com santo e outras
miudezas. Tudo muito arrumadinho, espaço sobrando pro freguês passar, já que
só se compra o que se vê.
	Às oito, o mercado já despeja gente pelas calçadas. As donas-de-casa chegam
com suas sacolas de lona, a pechinchar a dúzia de beijus, a quarta de farinha,
o litro de feijão, o móio de coentro e de hortelã, a medida de tomate miúdo,
a dúzia de laranja e de lima, a mão de pimenta. As sacolas se enchem e as fregue-
sas se revezam. A cada banca que esvazia é um freguês que parte pr’uma venda,
quitanda, padaria ou loja, a fazer sua feira, essa pra roça. Nos açougues, a compra
é de patinho, chã-de-dentro e alcatra, que filé é coisa de cidade grande. Miúdos,
só no mercado de fato, lá na esquina do cinema com a Mangabeira.
Nas vendas, entre uma cachaça com alecrim e outra com cidreira, saem duas
libras de açúcar mascavo, duas de charque, meia libra de chumbo fino, um pacote
de foscro, cem gramas de colorau e cinco litros de gás. Nas lojas, o metro não
pára de medir cambraia, gorgorão, chita e algodãozinho alvejado. Até um ou dois
guarda-sóis são embalados pra viagem. Nas padarias, o que mais se pede é fari-
52
Janelas Abertas
nha pra bolo, pão sovado e bolacha fofa. Até nas farmácias tem gente a comprar:
remédio pra verme, pra dor dos quartos e pra tosse convulsa. Tiro Seguro, Pomada
Minâncora e Xarope Bromil saem às dúzias.
Na praça abarrotada, a meninada vagueia entre os amendoins torrados
e cozidos, quebra-queixo, cocadas e doces de leite, tal e qual formiga ao redor
de mingau derramado. Os trocados recebidos dos padrinhos e tias voam dos
mealheiros de barro pros bolsos das saias de chitão. Quem está de casamento
marcado pechincha mala, candeeiro, fazenda pro enxoval, alpercata pro forró,
vaselina perfumada pra assentar o pixaim. Os cachorros, todos com faro apura-
do, preferem circular ao redor das bancas dos açougues, onde às vezes salta um
pedaço de sebo ou voa um caco de osso. Já os gatos, sempre mais disciplinados,
acomodam-se na madorna embaixo das bancas de moqueca de piaba, a gozar do
odor garantido. A turma do sereno esgota o sortimento de livrinhos de violeiro,
bom começo pr’uma noitada de boemia.
A mercadoria urbana vai pra roça e de lá vem e fica aquela do suor sob
um sol a pino. O dinheiro circula, uns ganham, outros se endividam na caderneta
do fiado, mas de tudo se vende e de tudo se compra.
Por volta das cinco a Feira se finda, até sábado que vem. É recolher as coisas:
caçuás, barracas, esteiras de chão, sobras de mercadoria. A marcha pros cami-
nhões e quintais de guarda é o que se dá.
53
Parte II - Cenas do Cotidiano
Domingo é Dia...
A agitação do sábado contrasta com a tranqüilidade do domingo, que ama-
nhece sob o cantar dos galos e abre os olhos com o latir dos cães à procura,
ainda, dos restos da feira. Nas ruas, os varredores fingem que varrem as sobras
e esperam pela carroça de João de Bila para recolher os monturos. O povo, que
mal acordou, observa crítico e ensimesmado.
As padarias não dormem no ponto: desde as cinco e meia estão no batente.
O leiteiro circula como se o dia não fosse para o descanso - ao menos do jumen-
to. Por volta das oito, uma ou outra venda e quitanda abre meia porta, para cerrá-
la ao meio-dia. Já os bares e bodegas, esses são da domingueira: não somente
abrem como escancaram suas opções.
Nove horas. Os meninos tomam conta do terreiro: em todas as esquinas
a picula domina o anunciado sossego e a algazarra se faz rainha. Um grupo
de moços e moças, sacolas à mão, marcham rua acima em busca do Caminho de
Quaresma, acesso livre e público à água escorregadia das Lages. Vão fazer pique-
nique – é o que dizem. De repente, um sobressalto, um susto: Lucinda aparece,
picada e aos brados. A meninada recua ao passar da doida.
Às dez, Jota Gomes sobe a Praça, para fazer esperanças renascerem no espelho
de “A Voz da Liberdade”: Entra no ar o Matinal Boêmio, com o melhor de Orlando
Silva, Ângela Maria, Nelson Gonçalves, Cláudia Barroso, Ataulfo Alves, Ellen de
Lima, Augusto Calheiros, Inezita Barroso, Carlos Galhardo, Nora Nei, Anísio
Silva e tantas outras vozes da “dor de cotovelo”.
Almoço de domingo é banquete: cozido com o melhor da feira, feijão verde
- às vezes andu ou mangalô - pirão de farinha-de-mandioca escaldada na água
da couve e do repolho, ensopado e malassado, salada de alface com respingos
de coentro, vez por outra carneiro ou leitão. Na sobremesa reina a ambrosia,
sem desmerecer eventual doce-de-banana com calda, cravo e canela. O ritual
inclui um abre-apetite de conhaque, genebra ou jurubeba – as damas vão de licor
de jenipapo, aquele fabricado por Tiano.
Após o fausto, a madorna. A rede é o arrimo das crianças. Os mais velhos
– machos – vão curtir a pança cheia no aconchego de suas camas, aquelas com
colchão do macio capim miúdo. Já as damas, essas aproveitam o recesso – isso
depois do lavar, enxugar e arrumar pratos – para uma olhadela nos reclames
da“VidaDoméstica”oupararircomasarmaçõesde“OAmigodaOnça”naspáginas
de ”O Cruzeiro”, enquanto não chega a hora do café, por volta das três.
Cinema. Olavo capricha nos filmes: A Volta do Renegado, Sete Homens e Um
Destino, Jerônimo, Tarzan Rei dos Macacos, Sansão e Dalila, vez por outra uma pe-
lícula com as Rainhas do Rádio – Emilinha Borba e Dalva de Oliveira - ou com
Oscarito e Grande Otelo. O melhor do musical nacional, do drama e da aventura, o
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Memórias de Irará nos anos 50/60

  • 1.
  • 2.
  • 3.
  • 4.
  • 5.
  • 7. Direitos autorais, 2006, de Juracy de Oliveira Paixão e-mail: actiojuris@fortalnet.com.br Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Paixão,Juracy de Oliveira JanelasAbertas / Juracy de Oliveira Paixão – Fortaleza (CE) ISBN 1.Irará(BA) –Anos 50/60 2.Anos 50/60 – Irará (BA) I.Paixão,Juracy de Oliveira II.Título CDD Índice para Catálogo Sistemático Irará (BA) – Memórias Anos 50/60 – Irará (BA) Irará (BA) –Anos 50/60 Capa: Jair Dantas Projeto Gráfico: Tiago Sena
  • 8. Sumário Agradecimentos 9 Dedicatória 9 Apresentação 11 Prefácio 15 Janelas da Memória 17 Passeio Matutino 18 O Dia Seguinte 22 A Cidade em Três Manhãs 26 Os Caminhos que saem da Cidade 30 Brincadeiras de Criança 35 Fatias da Memória 39 Cenas do Cotidiano 43 Os Dias passam e a Cidade vive 44 O que Fazer Hoje á Noite? 46 O Senadinho 48 Sábado é para a Feira 50 Domingo é dia... 53 Fatos e Eventos 57 O Ciclo das festas 58 Festa da Padroeira - O Povo e o Credo 61 Rei Momo: Alegria para Todos 64 Tem Circo e Parque na Cidade 65 Na Igreja, da Quarta-feira de Cinzas ao Mês de Maio 68 As festas Juninas 71 Quebras na Rotina 73 Cosme & Damião 76 As Eleições de 62 78 Quando o Ginásio chegou 81
  • 9. Miscelânea 85 Semelhanças 86 Temos História? 87 A Formação do Linguajar Iraraense 88 Irará & Moscou e Saudosismo 91 Tenho Saudades 93 O Ontem e O Hoje 95 Personagens Inesquecíveis 99 Zé Freitas 100 Jota Gomes 101 A Trinca de Ases 102 João Pechincha 103 Seu Dodó da Quitanda 104 Euclides Badaró 105 Professora Aurelina 106 Miguel Paes Coelho, o Crente 108 Raul Cruz, o Delegado Comunista 109 Alberto Nogueira 110 Manoel Fogueteiro 111 Lulu Tipógrafo 112 Joana das Bonecas 113 Valfredo Sapateiro 114 Zé Estrela, O Funileiro 115 Olavo, o Ferreiro 116 Zequinha, o Rouxinol dos Metais 117 Zé Petu e o Bar 118 João Tanoeiro 119 O boêmio Zé Vermelho 120 A Linguagem Iraraense dos Anos 50/60 – Lista de Palavras 123 Notas e Esclarecimentos 201 Crítica após Leitura 205
  • 10. Agradecimentos Agradeço a ajuda precisa das amigas Lindinalva Gomes Ferro e Nelzenete MartinsGomes – Nete de Lito - e da comadre Peta–MarizéliaFerreira– por acor- darem, na minha memória, lembranças adormecidas; a Leda e Clício Freitas, que me socorreram quanto à lista dos alunos da primeira turma do Ginásio São Judas Tadeu. Agradeço às minhas irmãs Ivanete, Hilda e Jandira por fecharem os atalhos que queriam me afastar da trilha definida. A Ivanete agradeço, ainda, pelas lições de lingüística e pela correção dos inúmeros erros. Alguns desses erros persistem por absurda teimosia minha, o que assumo com inteira e exclusiva responsabili- dade. Agradeço, sobretudo, aAnitaeManoelzinho, por me terem concedido o privi- légio de viver e crescer em Irará. Dedicatória DedicoessetrabalhoaomeuirmãoGilson,comquemaúnicadisputaselimitou à posse por um badogue antes de chegarmos aos 12 anos de idade; à minha saudosa irmã Leonilda, que me ensinou a ver no silêncio um profundo diálogo; à minha esposa e companheira Maria Elizabethe, a brava cearense que me fez ser esperançoso e perseverante; ao Povo Iraraense, razão maior desta minha ousadia.
  • 11.
  • 12. Apresentação Há mais de quatro décadas deixei o meu Irará e por vários anos lá não retornei. Depois, tempo sim, tempo não, aparecia a título de abraçar os parentes e amigos, olhar a velha casa paterna. Na verdade, o que queria rever era a minha cidade tal e qual a sentia nos meus sonhos diuturnos. A partida foi conseqüência do que me ensinara meu pai: ir à luta, com coragem e determinação. Nada diferente do que fizeram muitos outros patrícios, por anos a fio. Em outras plagas, mirei novas paisagens, colori muros com o ousado negro do piche, conjuguei verbos plenos de esperança, ouvi discursos flamantes, bafejei e fui bafejado por azares e sortes, quis mudar o mundo, fazer a verda- deira revolução. A meu modo, a fiz: de vermelho pintei meu coração, cravando nele foice e martelo, e orei no túmulo de Lenine, rogando ao deus revolucionário pelo triunfo do socialismo em minha pátria. Cada muro que pichei, cada vez que ergui os braços, cada panfleto que escrevi e distribuí, cada choro que me afogou os olhos, calaram fundo na memória, preenchendo espaços ou substituindo ilusões. Um canto, porém, do meu cinzento pensar jamais foi abalado: aquele que registrou – como o bom carimbo em velho documento – as coisas que vi, ouvi e participei no meu Irará querido. A memória viva é a fonte de onde jorraram as páginas a seguir. Erros há, pois errar é acertar a vida. Considere-se que a memória, mesmo quando viva, sofre forte influência da imaginação e que somente essa é livre. Meu desejo é retratar os fatos como vistos, ouvidos e participados, mas o desejo sempre é fruto de alguma influência. Sei que, apesar dos percalços históricos, acredito na vitória dos ideais pelos quais lutei e sofri. Nessa minha certeza, reside o meu Desejo e a minha Razão. E o que é a Razão? Nada mais do que um termo de dicioná- rio, sujeito às ideologias. A minha razão nasceu da teimosia dos meus sonhos em busca da realidade. Sonhar faz bem, mesmo quando pesadelo, esse um alerta para a atenção no risco. Sonha-se quando o subconsciente quer conversar, meterpaponovona rotina do consciente. Do sonho para a realidade é uma simples questão de ajuste. Dos meus sonhos e da minha realidade, tirei o registro que as minhas palavras puseram no papel. 1111
  • 13. Ao crer nos meus ideais, espero por derrotas a ladrilhar o caminho da vitória. Parodiando Maquiavel, o mestre florentino, poderia dizer: jamais apregoe vitó- rias prováveis. Antes, anuncie derrotas possíveis. Assim, quando o êxito vier, seu mérito será redobrado. Os jovens costumam, hoje, antecipar acertos e ganhos. Os velhos, esses com olhos sofridos, falam de desastres e decepções. Ambos estão certos e errados à luz da Lógica. Afinal, sempre fazemos algo desejando um ganho. Quando ocorre a perda, essa pode causar uma frustrante decepção. O presente é, sempre, con- seqüência dos ganhos e perdas do passado. E o futuro? Esse é um buraco negro no azul do Tempo. É nesse contexto de pensar que decidi por falar da minha cidade, registrando o que dela mais me marcou nos melhores anos em que nela vivi. Meu registro é uma visão do passado à luz do presente, vivido o passado. Optei por um estilo que ouso chamar, na minha vaidade, de coloquial-barroco, aquele que caça uma ortografia justa, mas deixa de lado a prepotência da Pontuação Absoluta, da Concordância Rigorosa, da Semântica Elitista. Deixo-os de lado não por ignorar seus méritos, mas por julgá-los inadequados ao meu objetivo. Sei que tal perjúrio será motivo para arder em fogueira. O período escolhido é aquele que entendo como o mais fértil e rico da história pátria: os Anos 50 / 60 do Século XX. Foi nesses anos que explodiu no Brasil os grandes movimentos de vanguarda, seja na cultura ou na política. Anos do Teatro de Arena, dos CPCs universitários, dos festivais de música popular, do Cinema Novo, da Vera Cruz, da Atlântida, da Cinedia, da Multifilmes, da criação das centrais sindicais, como a CGT e CNTI, do Movimento Estudantil, das Reformas de Base, das Ligas Camponesas, do enfrentamento das greves, da Cadeia da Legalidade, dos Grupos dos Onze, enfim da divisão política dasociedadebrasileiraemPovoversusElite.Anosquetiveraminíciocomogoverno democrático de Getúlio Vargas, o Pai dos Pobres, vítima da oposição virulenta de Carlos Lacerda e da UDN. Anos que foram testemunha da iniciante industrialização do Brasil, sob a égide de Juscelino Kubitschek; anos que viram Brasília nascer no vazio do cerrado; anos que vivenciaram a loucura do Homem da Vassoura, aquele que renunciou após nove meses de governo, alegando pressõesdeforçasocultas. Anos em que, por plebiscito democrático, o povo escolheu a volta ao Presidencialismo, garantindo os poderes de João Goulart, o presidente das Reformas de Base, alijado da poder pelo tacão dos militares golpistas. Nesses anos, primeiro olhei Irará com olhos interrogativos, sem entender o que se passava. Depois, com cérebro consciente, buscando explicação para o que via. No final, com o coração a lamentar um futuro duvidoso que apagaria das memórias os fatos vistos, ouvidos e vividos. Ao partir para o mundo, encontrei as respostas que não tinha e aprendi a entender a minha gente e a minha cidade. 12
  • 14. Agora, julgo-me no dever de resgatar minha dívida com meu tempo de Irará. Faço esse resgate ora com leveza, ora com sarcasmo, mas sempre com a imaginação a marcar o bom caminho. Penso, também, que as rápidas mudanças dos tempos hodiernos tendem a apagar os fatos que passam. Desejo, com meu resgate, manter com os da minha idade a recordação do bom passado e fazer com que os mais jovens entendam por que o presente é como é. Afinal, a História é feita de fragmentos, uns que se agregam, outros que se desmancham. Dividi meu registro em cinco partes: Janelas da Memória: minha visão da cidade, de sua estrutura e conteúdo, no passado e no presente; Cenas do Cotidiano: o dia-a-dia da cidade e de suas gentes; Fatos e Eventos: acontecimentos de data marcada e aqueles eventuais, mas modificadores da rotina; Miscelânea: aspectos diversos que, de alguma forma, me levam aos Anos 50/60; Personagens Inesquecíveis: homenagem a pessoas que, na minha ótica, marca- ramoIrarádeentão.Aseleçãoficouacargodosmeussonhos.Umdesejo–quem sabe – de ter sido eu mesmo cada um dos personagens retratados, essências puras doqueconsiderovirtude,prazer,perseverança,caráter,consciência,humanidade, alegria. Nos textos, quase sempre utilizo o presente, pois é nele que me situo, naqueles Anos de Ouro quase sufocados pela mais de uma década de terror ditatorial, mas que sobrevivem como alicerce do tempos atuais e esperança de um futuro de paz e prosperidade. • • • • • 13
  • 15.
  • 16. Prefácio Em “Janelas Abertas”, Juracy nos apresenta o Irará dos anos 50-60, espaço humano, cultural e geográfico em que viveu sua infância e adolescência. São páginasdeamorelembrançasqueretratamocotidianotranqüilodacidade,tecido pelos afazeres de sua gente simples. Andarilho da memória, o autor nos guia por ruas, becos e praças, reconstrói o roteiro dos caminhos, vias de acesso e saída do núcleo urbano por onde, hoje, a cidade avança, o moderno nascendo do antigo. Seus personagens inesquecíveis são uma bela e merecida homenagem aos que, com seu trabalho e arte, garantiam a sobrevivência honesta e supriam as necessidades da população, permitindo vida e alegria. São marceneiros, ferreiros, alfaiates, tanoeiros, sapateiros e tantos outros, donos de um saber fazer que o mundo atual vai extinguindo. Através destas páginas, passa a vida de uma época. Sua leitura fará bem a todos: aos que, como autor, viveram aquele tempo, de passeios nas Lajes, da “Voz da Liberdade”, de serenatas e circos, das festas de fevereiro, São João e Natal; aos mais jovens, que encontrarão aqui parte da história de Irará, importante para compreender o presente, conhecer e preservar seu patrimônio, mesmo que o tempo e a ação dos homens tenham destruído muitas das nossas coisas belas. A todos, iraraenses ou não, será agradável ler estas “Janelas Abertas”, pois se trata de uma narração onde se sente a forte presença do sentimento de ter chão, ter raiz, tão necessário a todos os seres humanos. Hilda Oliveira Paixão
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  • 19. 18 Janelas Abertas Passeio Matutino Férias. Segunda-feira. Aprovado no exame de admissão ao Ginásio São Judas Tadeu recém-criado, o menino acorda disposto a uma boa caminhada. Quer dar uma volta solitária pela cidade. Satisfeito o apetite matutino, chinelo de couro nos pés, parte Rua de Baixo acima. Logo no Beco do Mercado, vê o movimento na padaria de Zinho. Ao balcão, o amigo Codinho e o colega Fernando na azáfama de despachar pães e bolachas. Assobiando, o menino passa pelo depósito de Tiano, já pleno de agitação e agitação. O depósito é vermelho, revolucionário, embora o menino não saiba, ainda, o motivo. Esquina da Praça. No alto passeio de “A Violeta”, Zeca Caribé conversa, animado, com Eduardo Portela, esse à porta de sua loja. “Certamente falam da boa feira que tiveram no sábado passado”, imagina o menino. “Devem ter vendido muitos metros, quiçá peças inteiras, de tricoline, cambraia, gorgorão, chita e chitão, até lona xadrez e,quem sabe,fustão e flanela”. A Praça. No meio do areião, o Abrigo de Amando. Cavalos atados às colunas fazem a faraônica e inacabada construção parecer um albergue de beira de estrada. Cães latem, a correr atrás de cadela no cio e mais atiçados pelas pedras lançadas pela molecada. Parado na esquina da farmácia de Chaves, o menino observa a confusão e torce pelo desfecho da perseguição dos cães à cadela. Gosta de ver a cena, tantas vezes presenciada na fazenda do avô. Como o desfecho tarda, avança. Ao balcão da loja de Éverton, avista Tom Zé a tamborilar com os dedos sobre a madeira rija. Vê, também, mais para dentro, o companheiro de brincadeiras pas- sadas, Augusto. Não estranha a ausência de Estela e Lúcia. Afinal, não é costume moça de família ir para balcão. Um vozeirão chama-lhe a atenção: é Éverton, um braço às costas, a conversar com Henrique na porta do bar. O assunto, aos brados, refere-se à falta de luz, no domingo. Ouve Henrique responder: “Vai ver que caiu um raio na linha que vem de Coração de Maria”. O menino concorda em silêncio, adiantando o passo. Armazém de Cesário. Lá está o primo Antonilton, balconista de couros e fivelas. Entra, cumprimenta o parente e sai, já que Deraldo se encontra presente e não gosta de conversa fiada no armazém. O alarido da mo- lecada e o latir dos cães atraíram à porta Alfredo e Jaime Franco. O menino pensa: “Gente mais velha também gosta do desfecho.Não sou o único,embora mais moço”.Pen- sa ou busca uma justificativa para seu gosto, encontrando-a na atitude dos mais velhos!? Esquina de Elísio. Braços cruzados às costas, Teófilo contempla o movimento e o areião desde a porta de sua loja. Vizinho e conhecido, o menino ousa per- guntar as horas. “Nove horas, meu filho”. Adoça o passo, já que ainda é cedo. Na farmácia da esquina, a “Confiança”, avista as prateleiras conhecidas. Ao pé do balcão, Dr. Ramalho passa instruções à empregada nova. Quer entrar mas
  • 20. 19 Parte I - Janelas da Memória desiste, para não aguçar as lembranças. O mesmo impulso se dá em frente ao bar vizinho, agora propriedade de Bráulio Miranda. Entra e pede um “abafa banca”. Mira as mesas de sinuca e de bilhar, acaricia a bombonière lotada e sussurra para si mesmo: “ainda vou vir aqui, à noite, tomar umas e jogar apostado”. Mal sabe ele que, no futuro, irá cumprir com sobra aquele desejo de menino curioso. Uma fila se forma na porta do Cartório de Guga. O que será!? Logo se lembra que ouvira algo sobre tirar documentos para obter o título de eleitor, já que no ano entrante haveria eleições. “Mas essas somente se darão lá pra outubro !!”, admira-se. Na fila, somente tabaréus. Se soubesse o que significa “eleitor de cabresto”, teria en- tendido a movimentação antecipada. Rua Direita acima, cruza com Helena, esposa de Zé Carvalho, a conver- sar com Profª. Eurídes, essa sua mestra do 5º ano primário. “Bom dia , profes- sora.” “Bom dia, meu filho. Parabéns pelo resultado do exame de admissão”. Não fora a timidez, o menino diria: “Devo a aprovação ao meu 5º ano com a senhora e mais os outros quatro anos com a Profª. Aurelina”. Apenas sorri e segue. Avista Fiinha à janela de sua casa e resolve bater um papinho. Afinal, tinham “trabalhado” juntos na Farmácia Confiança. Pergunta se Humberto já está de todo curado das queimaduras que sofrera no São João. “Está. Vai ficar ainda um bom tempo com as marcas, Dr. Aloísio disse que, com o passar dos anos, deverão sumir”. Despede-se da velha e boa companheira e avança. Adiante, vê porta entreaberta. Lembra-se do convite que recebera quando ali estivera no ano anterior: “Entre, venha ver a oficina”. Essa frase, convite instigante, haveria de acompanhar o menino em definitivo, mesmo quando homem feito. Ali nascera seu gosto pela notícia, pela impressão, pelo panfleto. Ali começara a avermelhar-se, sem que percebesse. Na Esquina da Cadeia ouve o chamado de Joaquim Estrela, à janela dos Correios e Telégrafos. Atende ao chamado, atravessando a rua. Sentia uma verdadeira atração por aquela repartição pública. Gostava de ouvir o tic...tictic... tic do aparelho de Código Morse, admirava a bateria de pilhas elétricas formada por garrafas com ácido, achava as folhas de selos verdadeiras obras primas. Joaquim Estrela entrega-lhe um envelope grosso. Imagina: “Deve ser do Instituto Monitor. São as aulas que pedi, de desenho e de eletricidade”. Já fizera, por correspon- dência, um curso de relojoaria e, agora, iria iniciar esses dois. “Apanho na volta, quando for para casa”. Suspira. Precisa retornar ao passeio da direita, pois, logo em seguida, está a casa de Lessa, pai de Eliane. Preferia olhar as janelas com a segurança da largura da rua. Não sabe se seu amor platônico é correspon- dido e tem receio de denunciar-se no caso de súbito encontro. Na Coletoria Federal, entretém-se um pouco a conversar com o amigo Clício, que ali trabalha como auxiliar. Acertam uma volta noturna de bicicleta, “quem sabe até o Cajueiro”. No passeio da repartição, o coletor Raul bate animado papo com Pe. Valtério. Esse fuma e sorri, com ar de vitória. É que acabaram de acertar um jogo de bara- lho para a noite, como de hábito. O menino ouve o acerto entre o preposto
  • 21. 20 Janelas Abertas do Governo e o procurador de Deus e faz sua escolha: torceria pela vitória do coletor Raul, embora perceba no sorriso do padre a indicação da ajuda celestial. Como aquilo lhe parece injusto, resolve, ali mesmo, rezar uma Ave Maria e pedir a ajuda de Nsa. Sra. da Purificação para o patrão de Clício. Sendo ela a Mãe de Deus, certa- mente tem poder sobre o Filho. A Igreja Batista, no lado esquerdo da rua, está aberta, mas vazia. “Será que o pastor viajou!? E Miguel Paes Coelho, será que já veio e já saiu!?”. O menino gosta dos crentes, embora não encontre razão para seu gosto, oriundo que é de família com tradição católica. Julgando-se um inteligente pensador, diz a si mesmo: “A razão não passa de mero termo de dicionário, sujeito a ideologias. Gosto dos cren- tes e pronto...”. Admira a conversa fluente de Miguel Paes Coelho e, se pudesse, seria capaz de pagar para ouvir suas explanações. Ainda inexperiente, não percebe que seu gosto pelos crentes vem da empatia com o crente Miguel. No futuro, amigo de Ramon, filho de Miguel, passaria a ouvir as explanações mais amiúde, na barbearia da Rua Manoel Julião. Caminha. Em frente da bela casa da esquina da Rua Direita com a Praça da Bandeira, ouve ruídos de martelo e serrote. ZéFreitasestá a fazerartee esta alegra a esquina com sua rima inconfundível. O menino julga aquela casa como sendo o seu segundo lar, tanto ali comparece. Jorge sai à porta e se falam por um breve tempo. O menino é tentado a entrar, a ver o bater do macete sobre o formão, mas retrai-se. Fica para outra hora, já que tem compromisso com a caminhada. Prefeitura. Gente muita apinhada no passeio. Como sempre, benesses pater- nalistas estão a ser distribuídas. Vislumbra à porta do belo prédio clássico, Amaro Medeiros, charuto aceso, a “conversar” com Elísio Santana, cabeça erguida. Conversa de PSD e UDN. Acha aquilo interessante, já que sabe serem os dois duros adversários. À noite, durante a sopa, informaria ao pai a cena vis- ta. Esse, do alto de seus anos de UDN, rebateria: “Conversando o quê, meu filho!?. Deviam estar brigando, batendo boca, quebrando pau. Aqueles dois são como gato e rato. Você nada entende de política”. O menino calar-se-ia e acataria a obser- vação paterna. Chegaria até a lembrar-se de que vira os dois contendores com dedos em riste, um na cara do outro. “Bem que papai tem razão. Deviam estar era brigando feio”. No futuro, viria a constatar que, na chamada Política Nacional, nada é mais comum do que antigos adversários se tornarem aliados a fim de garantirem seus privilégios. O menino tem muito o que aprender. Chuva. Aliás, chuvisco. Resolve voltar. Retomaria sua caminhada no dia seguinte,justodaqueleponto,naPraçadaBandeira.Afinal,estádispostoavistoriar toda a cidade e ainda falta meia Rua Direita, toda a Quixabeira, a Canta Galo, a Mangabeira, a Manoel Julião e a velha Rua Nova, isso sem falar na Praça da Matriz. Descendo, passa pelos Correios para recolher suas aulas e segue para casa pelo passeio da esquerda. Na porta do Cartório de Guga, analisa os personagens da fila. Todos com chapéu de palha, a indicar a roça como moradia.
  • 22. 21 Parte I - Janelas da Memória Na Praça, vê que o desfecho entre cães e cadela já se deu. Agora, o que observa é um casal de cachorros como que amarrados em sentido oposto, tal e qual está habituado a presenciar na fazenda do seu avô. Sorri e ensimesma-se. Os moleques, estes observam a cena calados e desconfiados. Alfredo e Jaime Franco não mais estão à porta do armazém. O vento levanta poeira do areião da Praça. O sol, agora a pino, mal se esconde sob a frondosa sombra do oiti que protege a bomba de gasolina e sob as varandas do Abrigo de Amando. Dentro de pouco tempo, a madorna tomaria conta da cidade. Agitação, apenas lá em Tiano,o depósito ver- melho. Para tanto, basta que João Pechincha chegue, como de costume.
  • 23. 22 Janelas Abertas O Dia Seguinte Terça-feira, 8 horas da manhã. O menino pouco dormiu, a planejar nova caminhada. Desjejum feito, parte em marcha batida para seu rumo. Subindo a Rua de Baixo, dá-se no mesmo passeio com Dodó que, alegre, vai abrir a quitanda. Na Praça, a ventania a levantar poeira. Como sempre, os comerciantes à porta de seus negócios. No cartório de Guga, nova fila se formando. Disposto a não copiar a véspera, o menino acelera o andar. Ao passar pela porta da cadeia, um barulho de palmatória o surpreende: Paaa. Um ai sofrido chega-lhe aos ouvidos. “Quem bate!? Quem apanha!?”. Um sopro de maturidade sussurra-lhe: “Deve ser um Zé Ninguém, poderoso quando fardado, a pisar num Zé do Povo, calça surrada e pés descalços, talvez um simples ladrão de galinha, desses que saem nodesesperoparaarranjarcomquealimentarosseus”. O menino responde ao sussurro: “É,com certeza só pode ser isso”. Segue constrangido. Ei-lo na Praça da Bandeira. As benesses com o dinheiro público parecem con- tinuar, indica a movimentação na porta da prefeitura. No coreto, um corre-corre de crianças. Passarinhos alegram os ficus. O menino mira a fachada da prefeitura, remira o coreto e uma tristeza dolorosa lhe toca a face ao contemplar aqueles belos exemplares clássicos. Ali e com aquela idade, não sabe o porquê da dor. Esquina de Alfredo Franco. O menino lembra-se dos cães da véspera. Zé Leão quica bola no passeio de sua casa. Ao vê-lo, o jogador afirma: “Vou bater um baba. Gilson vai?”. “Não sei. Acho que foi caçar de badogue”. De um rádio a alto volume, ouve Adelaide Chiozzo: “Eu tou doente, moreno... doente eu tou, mo- reno... cabeça inchada, moreno... dói... dói...dói...” A melodia o faz lembrar-se que já, já, Jota Gomes porá no ar a Voz da Liberdade e haverá “Tornei-me um ébrio” na voz de Vicente Celestino. É o Irará alegre e cantante do qual o menino tanto gosta. Janelas ocupadas. Pequena, Corina e Nazinha, como de costume, espiam o movimento da rua. O andante pára e as cumprimenta. Ali já esteve outras vezes, a apreciar as maravilhas que as irmãs produzem em seu ateliê doméstico. Uns não gostam, dizem que se trata apenas de cópias de coisas e bichos; outros afirmam que são jóias de profundo valor artístico, o verdadeiro artesanato estilizado. Comesses,omeninoconcorda.Admiraasirmãs,aliás,asvenera.Nãolheinteressa se copiam ou criam; para ele, é arte pura e isso lhe basta. Um dia lerá o que escreveu Pablo Neruda sobre os artistas populares: “Não creio na originalidade, que é mais um fetiche criado em nossa época de demolição vertiginosa. Acredito na personalidade através de qualquer linguagem, de qualquer forma, de qualquer sentido da criação artísti- ca”. Conversa, fala da caminhada de ontem e de hoje, observa, com as artistas, o sol a esconder-se entre as nuvens e segue. Nota que não há fila na porta do cartório de Maia. “O que é que um faz, que o outro não faz?!”. Mistérios da burocracia pátria. Professor Fernando, à porta,
  • 24. 23 Parte I - Janelas da Memória brinda o dia com sua negritude primorosa e altaneira. O menino pensa, ou melhor, reza: “Tomara que ele seja meu professor no Ginásio, ano que vem”. Será e muito mais. Será farol a iluminar caminhos, guia a apontar obstáculos. Será mestre. Lá está Raul Cruz debruçado na janela, a contemplar o tempo. O menino sente-se feliz em vê-lo, embora mal o conheça. Cumprimenta-o com um aceno, logo retribuído. Algo se forma ali, a rebentar anos depois. Escolas Reunidas Gal. Juracy Montenegro Magalhães – Grupo Escolar Dr.Juliano Moreira.“Que será que esses dois fizeram por Irará,meu Deus!?.Será que vieram assentar os tijolos!?.Vou perguntar a papai, ele sempre tem resposta pra tudo”. Detém-se à porta que tanto cruzou no seu 5º ano primário. Vê, como se lá estivessem de fato, a Profª. Eurides, a Profª. Rilza, a Profª. Valdira, até a Profª. Antônia, que não ensi- nava ali. Não vê as outras. Não vê ou não lembra !? Praça da Matriz. Igreja de Nsa. Sra. da Purificação. Pelo peso da padroeira, o templo deveria ser mais opulento, essa é a sua opinião. Lembra-se da magní- fica igreja onde uma de suas irmãs foi batizada, em Salvador: ”Aquela sim é que é igreja de santa importante...”.Por conversa dos mais velhos, soubera que a matriz da cidade era um imponente templo na Praça do Comércio, que foi demolido em nome da modernidade. “E modernidade exige destruição do belo??. Espero que um dia não cismem de derrubar o mercado, que deve ser maior do que a velha matriz”. Num repente, o menino medita: “Por que o Senhor do Universo precisa de casas na terra? Por que se utiliza de procuradores?. Todo poderoso, deveria muito bem servir-se das trombetas celestiais para comunicar-se diretamente com Seu povo”. Mistérios da fé. Posto de Puericultura. Gente amontoada pelas varandas, mais gente no pas- seio. “Deve ser pra tomar vacina. Vai ver que não vieram na semana passada, ou vieram e a vacina acabou. E se estiverem em jejum, ainda a essa hora!?”. Lembrou-se que, na semana anterior, fora levado pelo pai para vacinar-se. Fora em jejum, pois esse era o costume. No posto, o doutor informou que jejum somente se exige para exames. No caso de vacina, tratava-se de invenção sem sentido, crendice. “Que diabo é crendice??”. O menino resolve descansar à sombra dos oitis da praça. Observa o obelisco e conta o tempo. “Será que, ao completar-se mais cem anos, colocarão outro degrau?.Não,acho que vão fazer outro monumento somente para trazer alguém de fora para inaugurar”. O cemitério. O menino mantém uma relação conflituosa com os mortos: tem, simultaneamente, medo e curiosidade. Para ele, a morte está plena de in- terrogações. “Se a morte é o fim da vida, por que só se fica famoso depois de morto? Aí, é nome de rua, de praça, de cidade. Alguns, até, viram santos. De que adianta ser santo depois de morto? Será que o morto famoso sabe que seu nome foi colocado na praça?”. Apesar do medo, sente uma atração masoquista por aquele muro gradeado, por aquele portão imponente. Aproxima-se. Sempre ouvira dizer
  • 25. 24 Janelas Abertas que há mortos que retornam na forma de guias. Resolve-se. Vai conversar com os mortos, pedir conselhos, uma luz, a indicação de uma trilha. Pensa em rezar, mas desiste. Já basta a Ave Maria gasta pela vitória do preposto do governo contra o procurador de Deus na mesa de carteado. Quieto e mudo, apoia-se no portão de ferro. No seu silencio interior, olhos fechados, vê um facho luminoso de verme- lho intenso. Não entende a mensagem, mas percebe que se trata de uma rota longa e sofrida que lhe cabe seguir. Apenas, terá que esperar a hora de por-se a caminho. Sobrado dos Nogueira. A reforma para a instalação do Ginásio São Judas Tadeu, filiado á Campanha Nacional de Educandários Gratuitos, vai de vento em popa. O menino sente-se em aula já. “Qual matéria vai me agradar mais?”. De ante- mão, escolhe História e Geografia. O tempo dirá se a escolha foi correta. Casa Jesus, Maria e José. Anciãos com rostos amargurados às janelas. “Será que Alberto Nogueira conseguiu arrecadar o suficiente para essa gente ter um Natal?!. Se pudesse, daria ajuda”. Ah se o menino soubesse que uma grande, incomensurável ajuda seria ele entrar e dialogar com aqueles amargurados rostos! Seria um alimento, uma festa que nenhum dinheiro compraria. Na Esquina do Campo vê a molecada, Zé Leão e Jurandi à frente, a caminho do baba. Avista os muros do velho cemitério, mas sua mente se concentra a olhar o que os olhos não vêem: o Lasca Gato, bem no início da Ladeira da Fon- te da Nação. “Um dia, quando eu for maior, ainda vou ver o que tem nesse Lasca Gato tão falado”. A questão, no entanto, não é de tamanho. Há uma idade na qual já se aprendeu o suficiente para não correr riscos, mas ainda não se sabe o bastan- te para aproveitar a vida. Rua da Quixabeira. Lá está Djalma, a chinelar pela calçada. “Não vai pro baba?”. “Vou pra oficina de Tonhó. Tou lá de aprendiz”. Na Esquina de Henrique, cruza com Zé Luís. Não se falam, apenas se olham. “Se fosse Tonho Luís, eu ia parar pra conver- sar.Esse aí tá mais pra pai do que pra companheiro”.“Lá vai Dego,sacola na mão.Certo que vai pro balcão do irmão Tonhó”. Zinha, à janela, observa o passante, que observa a valorosa mulher. Silêncio na casa da Profª. Aurelina. Nas férias, somente um ou outro aluno ali comparece para tomar banca. O menino sorri: “Nunca precisei de banca pra passar...”. Lembra-se dos quatro anos que ali estudou, tomou bolo e chorou, mas aprendeu. Ali se aprendia, nem que fosse na base da régua e da palmatória (não aquela que imaginara existir na cadeia...). Esquina de Arlindo Paes Coelho. “Interessante, nunca vi Nazi na porta de sua venda. Também, ele não tem vizinho com quem bater papo. O jeito é ficar lá por dentro a mexer nos peixes, na carne de sertão, nas enxadas, esperando um freguês e torcendo pro dia acabar. Deve ser uma morrinha!!”. Avança pelo passeio a fim de cumprimentar o colega Emanuel, balconista da loja de Pedro Martins. A conversa é pouca, pois o dono não gosta de lero-lero no seu negócio. “Pareceque aprendeu com Deraldo Bacelar ( ou foi o inverso?)”.
  • 26. 25 Parte I - Janelas da Memória Outra vez na praça, a velha casa onde morou lhe chama a atenção. É a segunda após a esquina e continua fechada. Ali morou por quase dois anos, quando veio para a cidade. Bem se lembra quando o pai adoeceu de tanto ficar até tarde no bar. Por isso, vendeu o bar para Bráulio Miranda. Fez bem. A passo lento, observa o consultório do Dr. Mendonça. O médico vinha de fora uma vez por semana e ficava dois dias na cidade. Doentes, sempre havia, pois Dr. Aloísio não dava conta de todos. Quem gostava era o pai, pois assim havia mais receitas para despachar na Farmácia Confiança. Na farmácia de Chaves pensava-se da mesma maneira. Pena que o pai vendeu a Confiança para Dr. Ramalho, pois o menino gostava de passar o tempo ao balcão, ler as bulas dos remédios, ver o preparo das drogas manipuladas. Ele e Fiinhatomavam conta do negócio, ela substituindo o farmacêutico prático Zeca de Sergipe,que o pai trouxera de Feira de Santana. Praça abaixo, vê-se na calçada de Piroca Brejão, casa cheia de vendeiros e qui- tandeiros a se abastecerem. Ali o negócio era do bom e todos tinham crédito. Ao menos, era o que ouvia do pai. Mercado. Resolve entrar para ver se ainda há restos da feira. A não ser na barraca e no balcão de carne, não se vê mais ninguém. O menino gosta do mercado. Todos os sábados, lá comparece com a mãe, a fazer as compras. Avis- ta uma porta aberta aos fundos e para lá se dirige. É hora de ir para casa que o sol já está a pino. “Canta galo, Manoel Julião, Mangabeira e Rua Nova que esperem, pois meus pés não são de aço”. Já na Rua de Baixo, sente que o depósito de Olavo está com cheiro de cachaça nova. Certamente chegara carga da“Dois Leões”e da desdobrada.
  • 27. 26 Janelas Abertas A Cidade em Três Manhãs Quarta-feira. Lá vai o menino seguir a rota decidida. Saiu mais cedo, para ver Valfredo abrir sua tenda. Mal chega à esquina do mercado com a Rua Canta Galo, avista o artesão a manejar o molho de chaves. Nunca pensou em ser sapateiro, mas sente entusiasmo pelo ofício. Acha que todo sapateiro é um artista. Lembra-se de Zé Vermelho, que é cantor e corta-sola. Inicia a descida da Canta Galo. Pedro Barbeiro já está na labuta, aparando os escassos fios de uma careca da sociedade. O cheiro de água velva corta o beco. João Pechincha já está no ponto, vendendo pule do bicho.“Será que hoje vai dar touro? Sonhei com dois enormes chifres essa noite”. Ainda não jogou no bicho, mas tem enorme curiosidade sobre como se dá o sorteio. “Que é limpo, tenho certe- za, pois João Pechincha é homem de bem. Se não fosse, não freqüentaria o depósito de Tiano”. No final da Canta Galo, a menina morena na janela da casa de Ma- noel Cardoso chama-lhe a atenção, mas o amor platônico passa a borracha. Ao menos, por enquanto. Depósito de fumo. Os fardos, a saírem do carro-de-boi há pouco chegado, acumulam-se na calçada. Lá dentro, a azáfama das manoqueiras a consertar fardos rasgados. Pensa: “Cigarro e charuto dão muito dinheiro. Se não dessem, não se plantaria tanto fumo.E se não plantassem,que fariam os pobres lavradores desse sertão!? Todo mundo a cultivar mandioca, não haveria boca pra consumir. Acho que iriam todos pra São Paulo”. É o que ouvira os maiores falarem. Beco de Teófilo. Resolve descer até Manoel Fogueteiro. Dá de face com os irmãos sergipanos, Zeca e Vavá, a discutirem sobre o preço do couro curti- do. “Vai ver que subiu de preço. Vão ter que aumentar o cobrado pelos chinelos. Logo agora, que estou precisando de um novo...”. Na porta de Maninha, Zé Pequeno olha a rua. Não se falam, já que mal se conhecem. Pensa em entrar na casa de Joana, a bonequeira, mas desiste. “Afinal, boneca é brinquedo de menina”. Algo o incomo- da ao pensar assim, mas não sabe explicar a razão. Anos depois, descobriria que naquela casa não se faziam bonecas mas arte, a mais bela e pura arte iraraense. Fim da Rua de Baixo. Passa pelo portão da salgadeira de Pompílio e logo está em frente à tenda de Mestre Cacimiro. Ali, estaca. O cheiro de madeira o faz entrar. “Bom dia, mestre”. “Bom dia, menino. Passeando a essa hora?”. “É, tou dando um giro pela cidade. O que é isso que estás montando?”. “É uma mesinha com gave- tas, pra apoiar oratório que um freguês comprou em Feira. Já tou terminando. Logo vou envernizar”. Segue e se dá em frente à tenda do fogueteiro. Ali é conhecido, pois todo ano comparece para comprar fogos. Olha, vê o pouco movimento e pensa: “deve ser porque o São João tá longe”. Retorna, para virar no beco de Éver- ton, rumo ao pé de sabonete. No lado oposto, a jaqueira está coberta de frutos, fora os caídos.
  • 28. 27 Parte I - Janelas da Memória Rua da Mangabeira. Esquina de Amélia. Cavalos de aluguel, arreados, aguar- dam partida, certos de que serão esporados como de costume. A dona avisa: ”Os bichos são quase gente. Não precisa esporar. Basta atiçar a brida que eles avan- çam sem serem maltratados”. O menino matuta: “Se esses cavalos falassem, diriam: ‘não adianta, Amélia. Eles pensam que a gente não sente. Metem a espora pra valer’. O correto seria cobrar multa de quem devolvesse os animais com marcas de esporas”. A Mangabeira é a rua mais bem falada da cidade. Na verdade se ouve homens falando dela, e como se existisse somente à noite. “Ainda vou desvendar esse misté- rio. Rua tão bonita de dia... tantas moças nas janelas...”. Na esquina do cinema, resolve: vai andar pelas duas calçadas da Manoel Ju- lião. Avança. Em frente á casa de Albertino, cruza com o primo Zé Nilton a sair com uma bola debaixo do braço:“Vou bater um baba”. Pensa: “Como essa turma de Gilson gosta de bola!. Eu prefiro caminhar, ver gente, ver casas”. Não sabe ele que da- queles babas sairiam jogadores famosos como Renato de Ospício, Delcker de Guga e, bem mais adiante, um goleiro chamado Dida, que seria da seleção canarinho. João Tanoeiro, assobiando, limpa as gaiolas de sua orquestra de pássaros. Omeninogostadofabricantedebarris;admiraocontrasteentreseujeitoestouvado defalareocarinhoqueempregaaoalisarascostelasdemadeiradosvasosquefabrica. Na tenda de Zé Estrela, o funileiro, pára e fica a contemplar o derreter de solda em telha de barro cozido. Acha interessante aquele cortar, e virar, e bater, e soldar folha de flandres. O menino vê o artesão passar todos os dias pedalando bicicleta Rua de Baixo acima, vindo de seu sítio lá pras bandas do Cruzeiro da Queimada. O retorno se dá no passeio da farmácia de Chaves. Zé Petu, ao vê-lo, inquire: “Quer um abafa-banca, meu filho?”. Quis. Não entende por que todos os mais velhos o chamam de meu filho. “Vai ver que é porque me acham quieto. Não fazem idéia do vulcão que tenho na cabeça”. Cinema. O cartaz anuncia: Domingo - Roy Rogers em “Cavalgada Selvagem”. Decide que virá ao matinê dominical, mesmo que o pai não queira. Há de se arranjar com a mãe. Já basta que perdera “Sete homens e um destino”, na semana passada. A velha Rua Nova é um poeirão, com o vendaval a ciscar. Pompílio, à porta de casa, consulta uma folha de papel. “Deve estar verificando quem não pagou o aluguel. Papai pagou, que eu vi”. O velho senhorio é dono de casas por toda a cidade, inclusive de pontos comerciais como o de seu pai na Rua de Baixo. Joãozinho Dantas despacha o burro com os camburões de leite. E condutor, claro. “Tão tarde pra entregar leite. Será que não vai talhar?”. Uma gritaria assusta o menino. É a molecada a atiçar Das Dores, que desce a rua agitando os braços e falando sozinha. “E Lucinda, por onde andará?”. Das Dores não mete medo. Lucinda sim, é braba!”. Antônio de Modesto cruza a rua. “Certamente vai aplicar injeção, pela pressa com que anda”. Capelinha. A porta semi-aberta chama os que passam. Interesse em entrar,
  • 29. 28 Janelas Abertas não tem. Não obstante, pára e observa: cabeças cobertas por véus, ora pretos, ora brancos, ocupam os poucos assentos. “Será que também Deus está de férias, por isso o povo desistiu da igreja e veio pra cá, a ver se ele aparece nessa casa modesta?!”. Não avista o Procurador do Deus. Alguém puxa a reza e todos respon- dem, numa mesmice sem reticências. Esquina do Foro. Dr. Cândido, o Juiz de Direito, enfatiotado, conversa à porta com Amaro Medeiros - charuto ao canto da boca - que mora quase em frente. O menino imagina: “Juiz deve ser mais importante que político. No entanto, pelo jeito, parece que o dono do charuto é quem passa instruções à autoridade, embora um seja do PSD e o outro da UDN”. Questiona: “É certo juiz ter partido ?! E pra quê o palitó e a gravata num calorão desse?!”. No outro lado da rua, em frente à casa do padre Valtério, o Procurador de Deus, um caminhão chama sua atenção. “Deve ser de Inácio, que mora vizinho. Vai ver ele está lá dentro tratando dos interesses dos romeiros que virão para a festa de Dois de Fevereiro”. Beco da Madalena. Estaca e fica observando animais com cangalhas con- duzindo adobes. Uma tropa. “Quem será que está construindo? Na Rua de Baixo não é, que não vi...”. Na Lagoa da Madalena fazem-se adobes de bom tamanho, embora costumem rachar por estarem mal curtidos. A pressa em vender é tanta... O menino olha os quintais à frente. Os muros com detalhes torneados da casa de Pedro Martins contrastam com as rústicas paredes brancas do lado oposto. Uma paisagem que se vê em outros cantos da cidade, exceto nas ruas da Quixabeira e da Mangabeira, essas só de pobres e remediados. O menino conclui que viu toda a cidade. Senta-se na borda da calçada e diz a si mesmo: “Como é pequena a minha terra! Eu a corri de ponta a ponta em três manhãs. Se fosse no frio de julho, teria visto tudo em um só dia...”. O menino engana-se. O que viu nas três manhãs em que bateu pernas foi donos de vendas, quitandas e armazéns, fachadas com janelas semi-abertas, repartições a exigir fila, políticos a distribuir benesses, Zé Ninguém a bater em Zé do Povo, Procurador de Deus a acertar jogo de cartas com Preposto do Governo, cães a ladrar e a se encangar, molecada a abusar de doida, autoridade a receber instruções de político... Não viu a Cidade. Bem verdade que sentiu o calor dos “meu filho” que escutou, que se enlevou com as rimas do martelo e do serrote de Zé Freitas, que recebeu nos olhos o porte soberano do Professor Fernando, que acolheu no ar o aceno de Raul Cruz, que sentiu a agitação no depósito de Tiano, que se empolgou com a solidariedade dos que iam bater baba, que se entristeceu com os rostos amargurados nas janelas da Casa Jesus, Maria e José, que deu pela falta de Miguel Paes Coelho no templo batista, que viu Zé Estrela derretendo solda em telha de barro cozido, que ouviu o assobio de João Tanoeiro limpando as gaiolas de sua orquestra de pássaros, que aprovou o gosto do abafa-banca de Zé Petu, que se lembrou ser Zé Vermelho cantor e artista, que espiou Valfredo abrindo seu ateliê
  • 30. 29 Parte I - Janelas da Memória de mágicas, que se alegrou por não precisar tomar banca com a Profª. Aurelina, que viu Olavo renovar o estoque de “Dois Leões”, que sentiu o cheiro de pólvora na tenda de Manoel Foqueteiro, que apreciou a mesinha feita por Mestre Cacimiro, que se emocionou ao ver o sol em companhia das irmãs artistas da Rua Direita, que se arrependeu por não ter entrado na casa de Joana Bonequeira, que recebeu dos mortos a indicação de um caminho a seguir... . Contudo não viu a enorme cidade que fervilha por todas as tendas e oficinas, que se emoldura nas bonecas e desenhos, que se entristece aos berros de “Badaró”, que palpita nos corações vermelhos ainda escondidos, que chora ao imaginar o que o futuro reserva ao velho prédio da prefeitura e ao solene coreto da Praça da Bandeira, que lastima a perda da velha matriz, que faz música ao tilintar de copos e garrafas, que estremece ao passar a Filarmônica, que teme pelo futuro do velho mercado, que sua ao lavar roupa na Fonte da Nação, que constrói peças maravilhosas a partir do barro bem pisado, que canta fantasiada de Germino Curador, que dança com os passos de João Chagas, que faz ritmo com o agogô deSóChumbo,quebrincaaosomdotrombonedeZequinha,queseenchedealegria a cada sábado que chega e passa. Para ver essa Cidade Multifacetada, não bastarão ao menino três manhãs. Será preciso toda uma vida a fim de constatar que ela se renova todos os dias, todos os meses, todos os anos. Que faz arte, faz cultura, faz história.
  • 31. 30 Janelas Abertas Os Caminhos da Cidade Até meados do século passado, Irará possuía oito caminhos. Por eles chega- vam os tropeiros, cantavamos carros-de-bois, esquipavam os animais de montaria, vagavam os andarilhos com alpercatas de sola e relho. Por eles aventuravam-se os caminhões. Veias e intestinos da Vida Urbana, por esses caminhos entravam os cereais, as frutas e as verduras; saíam o fumo e os emigrantes – riquezas da terra e das gentes. Passada quase uma década, o menino que fizera a Cidade em Três Manhãs, agora rapaz, iria fazer os caminhos que circulavam a Urbis. Para fazê-los, saíra em busca de rumo e mundo. I – O Caminho do Cruzeiro da Queimada Descida a Rua de Baixo, a marcha pelo lado esquerdo ladeia a área da salga- deira de Pompílio tendo à direita a bucólica vista do sítio dos Portela. Logo ouve-se o bater do macete no formão, a indicar que Mestre Cacimiro apronta mais uma encomenda. Em frente à tenda do artífice, a casa de Pedro Barbeiro a confrontar-se com a tenda de Manoel Fogueteiro. O cheiro de pólvora e de rosalgar atesta que o São João vai ser farto e colorido. Bons espaços caminhados, logo constata-se azáfama no sítio de Antoninho: Sampaio a selar cavalo, a carroça d’água a ser abastecida, o catavento a girar, girar. O Caminhoestreita-se para maior intimidade com o aglomerado de casas nas posses de João de Bila. Adiante, na curva que se destina à Conceição, a piçarra solta denuncia que a Prefeitura andou tapando buracos deixados pelo último toró, a fim de facilitar a passagem da marinete. Amarchadeixaacurvaesegueemfrente,rumoàssombrasdoCruzeiro.Umolhar à esquerda mostra o sítio de Zulmiro com seu cajueiral a enfrentar o mormaço. Parada na capelinha para acender vela em prol de chuva que não chega. O sol, a meio pino, projeta os braços da cruz no chão arenoso, que o capim não cobre. O Cruzeiro da Queimada avisa ao andarilho que a cidade ficou para trás e que dali em diante só se verá enxada a cortar o chão crestado na dura labuta pela mandioca e pelo fumo. II – O Caminho do Retiro Na encruzilhada que dá acesso ao sítio de Antoninho, dobra-se á direita, bem em frente à chácara de Possidônio. Pasto de um lado, coqueiros e jaqueiras do outro, logo o andarilho há que deparar-se com a varanda alambradada da casa onde morou Manoelzinho da Paixão, quando deixou o Leãozinho e veio morar na Rua a fim de educar os filhos. A velha casa coroa o cume da ladeira. Descida a pique permeada de voçorocas que a chuva do ano passado deixou
  • 32. 31 Parte I - Janelas da Memória como herança, a ladeira dá-se, na baixada, com o riacho que conduz o vinhoto do alambique. No pasto à direita, um mar de flores silvestres, que dançam ao embalo das borboletas e ao som do vento que sopra – morno às oito, quente à tarde. Os cavalos a pastar interrompem o banquete para mirar o andarilho, que desce ao encontro do fétido rego de água poluída. Passada a tosca ponte, a subida íngreme conduz ao Retiro se a marcha seguir em frente, mas dar-se-á no Povoado de Santo Antônio se o desejo de ver a nascente dita milagrosa for maior que o de conhecer o antigo Povoado de São Simão. O Caminho do Retiro faz as terras iraraenses parecerem poucas, tão logo se chega às plagas de Coração-de-Maria. III – O Caminho da Fonte-da-Nação Final da Quixabeira, na esquina da Casa Jesus, Maria e José. Se o destino é a Praça do Coreto, dobra-se à direita. Sendo os olhos pra ver paisagem, quebra-se à esquerda. Vencendo os olhos, dá-se um encontro de contrastes: o Campo de Bola - onde a moçada bate baba – faz parelha com o velho cemitério de muros sombrios embora gradeados à moda clássica. Um abraço da alegria dos jovens brincantes na solidão dos que deixaram a vida para ingressarem nos sete palmos da eternidade. Por trás do Campo de Bola, a salgadeira de Amadeu bem no cume da ladeira. Chão bem conhecido dos boêmios noctívagos, logo se vê o Largo do Lasca- Gato, com suas casinhas de janela e porta – de dia moça à janela, de noite rapaz à porta. Se o andarilho desviar os olhos para afastar a tentação e meter pé a descer a ladeira, encontrará, na meia rampa e à esquerda, o desvio para a Fonte-da-Nação. O cantar das lavadeiras sempre alegra os que chegam e aproximar-se é ver gente sofrida a divertir-se na labuta de todo dia. No verde da grama, a roupa da cidade posta ao sol, na quara indispensável ao branco almejado. Nas bordas da velha fonte, aguadeiros enchem os barris que irão mitigar a sede dos moradores da Rua: é esperar e ver os jumentos partirem – arqueados – ladeira acima, em cada costado quarenta litros. A quantos iraraenses sedentos a Fonte-da-Nação já saciou? Cálculo para entendido em estatística. O certo é que, seja inverno ou verão, haja seca ou chova toró, a Fonte-da-Nação cumpre sua bendita sina. Continuar a descida é apreciar, nas laterais, o verde intenso do capim a realçar a galharia cinza dos juazeiros, araçazeiros e cajueiros. Na baixada, o Alambique Dois Leões solta fumaça como se fosse locomotiva e o vento espalha o ativo odor da cana fermentada. Cruzando-se o riacho, o vinhoto assusta por escurecer o fio-d’água. Há que subir a rampa íngreme para deslumbrar-se com os campos coloridos por onde o gado pasta. Não fosse a cerca – a indicar pro- priedade – e a aventura conduziria o andarilho até as sombras da capoeira distante – isso se as vacas paridas o permitissem. Chegada ao topo, a trilha conduz ao aconchego do Povoado da Caroba.Voltar os olhos significa vislumbrar o casario da cidade como se fosse uma miragem em deserto verde.
  • 33. 32 Janelas Abertas O Caminho da Fonte-da-Nação é a nossa Trilha de Santiago de Compostela: permite o andarilho cumprimentar a alegria da moçada no baba, ensimesmar-se com a solidão dos mortos, deixar-se tentar pelas atrações do Lasca-Gato, fanta- siar a mente ao canto melancólico das lavadeiras, ver a vida brotar na fonte que não seca, embriagar-se ao odor da cana a fermentar, entristecer-se com a turvação do fio-d’água poluído pelo vinhoto, acalentar-se diante das vacas a mugir, cons- tranger-se ao sentir os limites que a cerca impõe, despedir-se - com saudade - do casario distante e apressar-se para ver o sol se pôr à sombra da igrejinha da Caroba,como se chegado fosse ao templo de Santiago na milenária Compostela. IV – O Caminho das Lajes Dá-se adeus à Rua mal se desce a calçada do Posto de Puericultura. A sombra do Obelisco parece apontar a rota: a vereda suburbana tem seus limites no arame farpado que registra as roças da redondeza. Se o dia for propício, o andarilho terá grande chance de cruzar com Raul Cruz a retornar do Bongue. À direita, o jardim da chácara dos Gomes chama atenção pela variedade de flores. O pau-a-pique in- dica curral e ordenha. A vereda é larga, com areia bem assentada, já que por ali transita a marinete com destino a Feira-de-Santana. Tomando-se à esquerda, na encruzilhada que leva à estação-do-trem, logo se avista a Escola Rural, arrodeada de terra seca e descoberta. Curva fechada à frente, o mato catingueiro indica solo entristecido. Vá se crer que naquela rus- ticidade haja uma cachoeira como a das Lajes! É embicar mato a baixo para ver e crer, tal qual São Tomé: no sair do cipoal, lajedos majestosos gretados por sécu- los de água corrente brilham em espelho cristalino. A queda d’água – pequena mas formosa – faz nascer da terra ressequida o verde das trepadeiras, provoca o abrir de flores - salão de borboletas - permite que lagartixas se cumprimentem na luxúria da pedra lisa e brilhante. O andarilho, que nas Lajesse refrescou à saciedade –olhos e sede – pode mar- char picada acima para encontrar o Rumo,povoado de gente simples, tez queimada e pele a demonstrar o quanto pode o sol. Há que ver o pau-a-pique a arrimar cabritos, porcos soltos no quim quim de quem tem fome, rolinhas fogo apagou na monotonia do seu umrurum, galinhas a ciscar no terreiro, que a sombra de pé de fruta-pão protege. A aventura leva à Vila de Quaresma, último baluarte das terras iraraenses antes que se chegue à influência de Feira-de-Santana. V – O Caminho do Cajueiro O CaminhodoCajueiro é irmão mabaço do CaminhodasLages.Basta chegar-se à encruzilhada da estação-do-trem – cadê o trem que não vem - e seguir em frente para dar-se no aglomerado de pequenos sítios acolhedores e ensombreados. Adiante, a casa de Manoel Pinheiro, respeitado abatedor de boi. Antes, o quase
  • 34. 33 Parte I - Janelas da Memória esconderijo de Pedro de Tiano, já comunista declarado. Na capoeira rala que limita o fim da jornada, vislumbra-se o que resta ao catingueiro: mato espinhento, chão pedregoso, água só de chuva e quando São Pedro chora, sol renitente a não querer se pôr, anoitecer com o cio cio das cigarras e o agouro das corujas. Dali não se vê a Rua, que parece esconder seu rosto com vergonha de mostrar-se ao subúrbio. Este, altaneiro, espera chegar o sábado para apresentar o suor do seu esforço: aipim, galinha gorda, beiju de tapioca e massa, caju colhido no pé, jaca dura e mole, no açougue carne-de-boi bem talhada. O Caminho do Cajueiro é um retrato vivo de como a Rua esconde a dureza dos seus arredores, mas deles depende para sua própria sobrevivência. VI – O Caminho do Corte A Cidade Nova põe fim ao arruado. Seguir a velha estrada de Água Fria é encontrar a dura caatinga que se estende para o norte. Logo se vê terra fatiada como bolo em festa de aniversário. É o corte da estrada-de-ferro. Como a ameaçar cumprir uma promessa de décadas, a paisagem violentada faz sonhar-se com o trem – que não vem que não vem que não vem. O andari- lho espera que o apito chegue na mesma rapidez com que se fez o corte. Afinal a estação está quase pronta e na vala aberta basta assentar-se os dormentes e os trilhos. Terra devastada em nome da civilização, da modernidade: há que trocar-se a duvidosa e apertada boléia do caminhão pelo anunciado conforto nos vagões da Maria Fumaça. Na rota, somente terra nua a mostrar suas entranhas: raízes secas, pedras a despencar, xiquexiques a apoiar-se na beira da ribanceira. A decisão de seguir pela paisagem inóspita levará o andarilho ao vento frio das noites da Barra – aí sim a esperar o apito incerto do trem que passa ás sete. Na estação já se encontram quebra-queixo, amendoim torrado, beiju de massa e piaba frita, todos a esperar os passageiros que seguem para Serrinha, Senhor do Bonfim e Juazeiro. Depois, é aguardar o trem das nove da manhã, com as gentes que se destinam a Aramari, Alagoinhas, Catu e Calçada. Na Barra mesmo, descem uns dois e talvez subam outros tantos. Cruzados os trilhos, é alcançar o belo templo que ornamenta a história da velha Vila deÁgua Fria, aquela que já foi cidade e há de voltar a ser. VII – O Caminho da Lagoa da Madalena A Praça do Coreto abraça a Rua Nova bem no Beco de Pedro Martins. Ali se inicia a trilha que leva a Ouriçangas, Ouriçanguinhas, Aramari e Alagoinhas. Há que ver-se, logo nos primeiros trezentos passos, a chácara de Elesbão, ensombreada por frondosas fruteiras. Avista-se o curral e escuta-se o mugir das vacas à espera da ordenha.
  • 35. 34 Janelas Abertas Seguir a rota é ver o Caminho apertar-se no canyon abrupto. O acidente – ou incidente? – topográfico impede o admirar-se as pastagens verdejantes que imperam ás margens da viela. Na ladeira, há que evitar-se os regos das voçorocas. Na baixada, a Lagoa da Madalena, na soberba de quem dispõe de água e na humildade de quem se deixa usar: lavadeiras, oleiros e pescadores disputam as bei- ras enlameadas da lagoa. No meio do lençol que brilha, um ou outro aguapé mostra a cara, a amedrontar a fartura. Adobes recém-moldados secam ao sol, fazendo coro com as roupas a quarar. Latas d’água na cabeça,as Marias sobem o Morro do Cruzeiro sem cansar. No largo do Povoado, o leprosário escancara a piedade de Alberto Nogueira e o andarilho medita sobre os Mandamentos da Lei de Deus, por Moisés escritos na Pedra Sagrada. O Caminho segue contornando fazendas e apontando horizontes: O Rato; a Pedras de Amando; a Pedras de Tiago; a Umbaúba; ao longe o morro que esconde o arruado da Vila de Pedrão, mal deixando ver-se a torre da velha igreja. Maisumacurva,umadescida,umarampa,outracurva,umasubidaeeisOuriçan- gas, na pachorra de quem não tem pressa pelo correr do tempo. Do alto, bem em frente da igreja secular, vale olhar o vale e avistar a paisagem que o canyon do Caminho não deixou vislumbrar. VIII – O Caminho da Mangabeira É pegar a esquina do cinema que vai sair na Mangabeira. O seguir em frente vai dar na roça. Se cortar passadas pelo Pé de Sabonete, é dobrar à direita bem na casa de Amélia - aquela que aluga cavalos selados - e logo verá a casa de Valfredo. A rota para a roça está na marca de patas pelo chão de areia. O Caminho da Mangabeira mostra a intenção da Cidade em estender-se para as bandas do verde e plano. O subúrbio pequenino finda no sítio de Olavo. Dali pra frente é cerca, mato e ladeira, até o desembocar no Rio Seco, aos pés da Pedras de Amando e logo após o massapé da Picada. O andarilho, se for menino, pode abusar do badoque, que a cada dez passos tem passarinho na cerca; pode abastar-se no caju, que os pés carregados margeiam a trilha. No andar seguro, chega-se à encruzilhada. Há que desviar-se dos despachos que ali são deitados – certamente para o bem dos cães vadios, já que mal, nessa terra, não se deseja. O Caminho da Mangabeira – direção clara de para onde a cidade irá - tem o privi- légio de não ser caminho para pneus. Suas areias soltas, suas margens ensombreadas, sua encruzilhada com despachos somente se abrem para o pisar dos cavalos, o cantar dos carros-de-bois e o passo ligeiro e certo dos andarilhos. Não por acaso, seu início mais usual se dá no Pé de Sabonete.
  • 36. 35 Parte I - Janelas da Memória Brincadeiras de Criança Nada mais triste do que choro de idoso; nada mais alegre do que brincadeira de criança. A capacidade de adaptar-se às circunstâncias, a imaginação para criar opções, a habilidade para o aprendizado rápido, a resistência para o repetir sem cansar-se, a perseverança no insistir até ganhar, a manha para dobrar os mais velhos: ser criança é diversidade, bom humor, tenacidade, paixão e amor. Na metade do Século XX, as brincadeiras de criança se assemelhavam em todos os recantos, notadamente nas pequenas cidades e na zona rural. Brincava-se então como o fizeram os mais velhos cinqüenta anos antes, apenas acrescentada a evolução do vestir-se, calçar-se, comunicar-se, ousar. Em nosso pequeno Irará, onde as opções de lazer em nada se diferenciavam das demais comunidades interioranas, as brincadeiras de crianças seguiam a tradição das tias e tios, mães e pais, avós e avôs. As variáveis ficavam por conta da alegria e da coragem pró- prias das crianças, da largura da rua ou da altura do passeio. Na roça, as brincadeiras eram, de uma certa maneira, imitações do que faziam os adultos, com os limites que os meios disponíveis estabeleciam. Brinca- va-se de derrubar tanajura – “cai, cai, tanajura, na panela de gordura”; apanhavam-se borboletas usando-se caçapas de pano atadas a uma vara - soltava-se o inseto após a captura: o prazer residia no apanhar; armava-se arapuca para aprisionar pássaros e roedores - aqueles para a gaiola e estes para a panela; pescava-se piaba com vara e anzol pequenos; subia-se em árvore para colher frutos; tirava-se casa de abelha para chupar o mel; caçava-se com badoque para apurar a pontaria e ajudar no rancho; tomava-se banho no tanque - ou na biqueira quando a chuva caía. Sobretudo brincava-se no alimentar as criações, varrer o terreiro, cortar ma- naíva, raspar mandioca, tirar água da fonte, torrar castanhas, tirar leite de cabra ou de vaca, colocar sementes nas covas – meninos com chapéu de palha, meninas com touca de sacaria. Ainda bem que brincadeira de roça não segregava sexo nem cor – a não ser em casa de fazendeiro. Na cidade, os costumes impunham às meninas o brincar sob a barra da saia da mãe, mas libertava os meninos para a rua e o quintal. Em casa, as meninas imitavam suas mães, fazendo-se elas mesmas mãezinhas de suas bonecas. Com caixas vazias montavam sala, quarto, cama. Num monó- logo quase diálogo, ralhavam, ninavam e orientavam suas filhas feitas de pano. E as bonecas pareciam compreender, de tão atentas que se punham: olhos arre- galados, lábios tensos, braços estendidos. As mãezinhas mais atiradas até mama- deira ousavam preparar para seus rebentos, numa realidade que simulava sonhos. O que se via, passadas as horas, era mãesefilhas, fatigadas, buscarem no aconchego da cama a letargia do sono reconfortante. Meninas brincavam de boneca – melhor seria dizer se fotografavam - de casi-
  • 37. 36 Janelas Abertas nha,de fazer debuxo com papel de seda. Quando mais crescidas, aventura- vam-se no bordado e no croché e até arriscavam costurar à mão. Meninos, esses mais capetas e mais libertos, cedo tomavam o caminho da aventura, da busca pelo desconhecido: a estrepolia no trapézio armado no quin- tal, o domínio no volteio do papagaio solto, os lances ensaiados com a bola de meia, o esquipar no cavalinho de cabo de vassoura. Meninos atiravam-se a soltar papagaio, usar andadeira de lata e arame, andar sobre perna-de-pau, jogar gude e botão, soltar pião, aparar e catar pedrinhas de uma a cinco, imitar artista e bandido num faroeste amador, soltar barquinho na enxurrada, apostar no pauzinho. Quando mais taludos, partiam para o baba e a bicicleta. Cansados e sujos, arriavam à espera da merenda. Engraçado: meninas imitavam o dia-a-dia das mamães, mas meninos desco- nheciam os afazeres de seus papais. Mal do gênero ou do sexo? As brincadeiras urbanas ousavam separar os sexos, apesar de algumas prefe- rirem o enturmar-se de meninas e meninos. As brincadeiras do entumar-se eram: picula, jogo de peteca, lançar ioiô, girar de cabra-cega, fazer aroda, pular opasso-passo, adivinhar oqueéoqueé, saber emque mãoestá, trançar cordão nos dedos, pular corda, saltar amarelinha. Amadurecidos, todos iam ler revistas de quadrinhos. Amadurecidos ou convencidos!? Meninas e meninos – sejam da roça ou da cidade – brincam, crescem, amam e se reproduzem para tudo recomeçar como sempre aconteceu desde que gente apareceu no mundo. Os tempos mudaram, as brincadeiras são outras, a tecnologia domina. Mas, quem não lacrimeja os olhos ao lembrar-se criança a brincar ? Quem resiste a uma cantiga de roda? Crianças ouvem, aprendem e repetem; adultos escutam e se emocionam; idosos arrancam da memória o que os ouvidos percebem, cortam o choro e partem para o sonho bem desejado. “Ciranda,cirandinha,vamos todos cirandar. Vamos dar a meia volta,volta e meia vamos dar. O anel que tu me deste era vidro e se quebrou. O amor que tu me tinhas era pouco e se acabou.” “Atirei o pau no gato-to. Mas o gato-to não morreu-reu-reu. Dona Chica-ca admirou-se-se Do miau,do miau que o gato deu” “Capelinha de melão É de São João; É de cravo, É de rosa, É de manjericão.”
  • 38. 37 Parte I - Janelas da Memória “Eu sou pobre,pobre,pobre, De marré,marré,marré. Eu sou pobre,pobre,pobre, De marré desci. Eu sou rica,rica,rica, De marré,marré,marré. Eu sou rica,rica,rica, De marré,desci.” “Fui no tororó, Beber água,não achei. Encontrei bela morena, Que no tororó deixei. Aproveite,minha gente, Que uma noite não é nada; Se não for dormir agora, Dormirá de madrugada.” “O cravo brigou com a rosa Debaixo de uma sacada; O cravo saiu ferido, A rosa despedaçada!” O cravo ficou doente, A rosa foi visitar; O cravo deu um suspiro, A rosa pôs-se a chorar.” “Pai Francisco entrou na roda, Tocando seu violão: Dararão,dão,dão! Dararão,dão,dão! Vem de lá‘seu’delegado, Pai Francisco vai pra prisão. Como ele vem todo requebrado, parece um boneco desengonçado!” “Passarás,não passarás, Algum‘dele’há de ficar; Se não for o da frente, Há de ser o de trás,trás. Bom barqueiro,bom barqueiro Que me deixes eu passar; Tenho filhos pequeninos Que não posso sustentar.”
  • 39. 38 Janelas Abertas “Teresinha de Jesus Deu uma queda e foi ao chão; Acudiram três cavalheiros, Todos três chapéu na mão. O primeiro foi seu pai, O segundo seu irmão, O terceiro foi aquele A quem Teresa deu a mão.” “Fui à Espanha buscar o meu chapéu, Azul e branco da cor daquele céu! Ora palma,palma,palma! Ora pé,pé,pé! Ora roda,roda,roda! Caranguejo peixe é!” “A canoa virou, Deixá-la virar, Foi por causa de Fulana, Que não soube remar. Se eu fosse um peixinho, E soubesse nadar, Eu tirava Fulana Do fundo do mar.” “Escravos de Jó jogavam caxangá: Tira,bota,deixa o Zé Pereira ficar. Guerreiros com guerreiros fazem zigue-zigue-zá!” “Se essa rua,se essa rua fosse minha... Eu mandava,eu mandava ladrilhar... Com pedrinhas,com pedrinhas de brilhantes... Para o meu,para o meu benzinho passar...” As cantigas falam por si. Não cabe dizer mais nada.
  • 40. 39 Parte I - Janelas da Memória Fatias da Memória Vida Doméstica – Almanaque Capivarol - O Cruzeiro – Manchete – Almana- que Bristol – Guri - Gibi – Almanaque Tico-Tico – Capitão Marvel – Mandrake – Superman – Tarzan – Fantasma – Batman Robim – Zorro – Homem Sub- marino – Cavaleiro Negro – Tom Jerry – Pateta – Tio Patinhas – Pernalonga – Pato Donald – Popeye – Luluzinha Bolinha – Zé Carioca. Gorgorão – Chita – Bulgariana – Tafetá – Chitão – Tricoline – Casimira – Algodãozinho – Bramante – Organdi – Madrasto – Fustão – Tropical – Gabar- dine - Brim – Cetim - Linho – Cambraia – Filó – Musselina – Piquê – Mescla - Veludo. Sabonete Eucalol – Água Velva – Brilhantina Glostora - Vaselina Perfumada Ruth - Pasta Dental Kolynos – Sabonete Lifebuoy – Batom Coty – Rouge Royal Briar – Leite de Colônia ArthurStudart– Talco Johnsons– Loção após o Banho Cashemere Bouquet – Pó de Arroz Helena Rubinstein. Chapéus Ramenzzoni – Sapatos Clark – Chapéus Prada – Calçados Conga 7 Vi- das – Calças Banlon- Camisas Volta ao Mundo. Radiolas RCAVictor– Camas Patente– Rádios Phillips– Cobertores DormeBem - Louças Nadir– Máquinas de Costura Singer– Candeeiros Aladin- Talheres Sesam – Filtros Lorenzzetti – Lampiões Petromax. Lâminas de barbear Gillette Blue Blade – Lápis Faber – Canetas Parker – Cani- vetes Corneta – Despertadores Westclock – Lança-Perfume Rodouro - Relógios de algibeira Omega – Navalhas Sollinger - Lanternas Eveready – Tesouras Mundial. Inseticida Detefon – Vassouras Fiel – Formicida Tatu – Chumbos Brasil - Que- rosene Jacaré – Velas Estearina - Creolina Cruzwaldina – Enxadas Tupi. Cigarros Trocadero, Astória, Continental, Yolanda Branco, Yolanda Azul, Hollywood, Colúmbia – Charutos Suerdieck – Fósforos Olho. Palitos Monroe – Azeite Gallo – Goiabada Peixe – Óleo de Algodão Sanbra – Biscoitos Pilar – Queijo Palmyra – Sardinhas Setubal – Biscoitos Águia Central – Manteiga Cruzeiro do Sul – Biscoitos Tupy - Farinha de Arroz Arrozina - Salsichas Wilson – Óleo Guarani - Chocolate Diamante Negro – Mortadela Swift - Café São Paulo – Chocolate em pó Toddy – Fermento Royal – Corante Colorau – Amido de Milho Maizena Duryea – Avéia Quaker. Jurubeba Leão do Norte – Aguardente Dois Leões – Vermuth Cinzano – Vinho Barbera– Conhaque de Alcatrão SãoJoãodaBarra– Aguardente Carioca– Vermuth Martini– Jurupinga Gerin– Aguardente Jacaré- Genebra Ferradas– Gin Gerin– Co- nhaque Macieira. GuaranáFratelliVita–Sukita–GasosadeLimão-LaranjaTurva–Crush–Grappete. Pastilhas Valda - Tiro Seguro – Leite de Magnésia de Phillips – Rubraton – Xarope de
  • 41. 40 Janelas Abertas Ipecacuanha–VioletadeGenciana-AssaFétida–ReguladorGesteira–SaúdedasCrianças - Licor de Cacau Xavier – Eparema – Azul de Metileno - Robusterina – Capivarol - Postafen – Maracujina – Saúde da Mulher – Pomada Minâncora –Água Rubinat – Elixir Paregórico – Aguardente Alemã – Óleo de Copaíba – Bicarbonato de Sódio - Biotônico Fontoura – Es- sência de Cânfora - Vinho Reconstituinte Silva Araújo – Calcigenol Irradiado – Essência de Terebintina - Elixir de Salsaparrilha – Bálsamo de Benguê - Regulador Xavier – Coramina - Óleo de Fígado de Bacalhau - Xarope Bromil – Kusuk – Pílulas de Vida do Dr. Ross – Sal de Frutas Eno – Gotas Milagrosas de Santa Terezinha – Sabonete Sulfuroso Ross – Óleo de Rícino - Colírio Moura Brasil - Ácido Fênico – Essência de Cravo – Melhoral – Benzetacil – Phimatosan – Streptomicina Squibb - Capiloton – PolvilhoAntisséptico Granado. O Direito de Nascer (Mamãe Dolores, Albertinho Limonta, Tereza Cristina) – Edifício Balança Mas Não Cai (O Primo Rico e o Primo Pobre,Ofélia) – Jerônimo,o Herói do Sertão - Repórter Esso – Jararaca Ratinho – Alvarenga Ranchinho – Zé Trindade – Oscarito – Grande Otelo. Omar Shariff – Peter O’Toole – Zza Zza Gabor – Sofia Loren – Gina Lolobri- gida – Sarita Montiel – Doris Day – Rocky Lane – Roy Rogers – Buck Jones – Kid Colt – John Mc Brown – Tyrone Power – Rock Hudson - Brigitte Bardot – Virna Lise – Simone Signoret – Ava Gardner – Monica Vitti – Marlene Dietrich – Anita Ekberg – Marcello Mastroianni – Charles Bronson – Burt Lancaster – Dean Mar- tin – Lana Turner – Maurice Chevalier – Grace Kelly – Libertad Lamarc – Marlon Brando – Mireille Mathieu – Vittorio de Sica – Cláudia Cardinale. O Conde de Montecristo – O Gordo e o Magro – O Renegado – Sete Homens e um Destino – Os Dez Mandamentos – O Pagador de Promessas – Exodus – Spartacus – Helena de Tróia – Ulisses,o Navegador – Capitão Gancho – E o Vento Levou – Cleópatra – O Incêndio de Roma- Marcelino, Pão e Vinho – La Violetera – Pear Harbor - Moisés – Os Doze Trabalhos de Hércules – Lampião Rei do Cangaço – Jerônimo – E Deus criou a Mulher – Apache – Moby Dick – O Anjo Azul – A Doce Vida – A Queda do Império Romano - Redenção – Lawrence de Arábia – O Corcunda de Notre Dame – Orfeu do Carnaval – Cantando na Chuva - Eles e Elas – Estranho no Paraíso – Ali Babá e os Quarenta Ladrões. Agostinho dos Santos – Vicente Celestino – Nelson Gonçalves - Carlos Galhardo – Augusto Calheiros – Luís Gonzaga – Anísio Silva – Angela Maria – Cauby Peixoto – Dalva de Oliveira – Dircinha Batista – Altemar Dutra – Emili- nha Borba – Maysa – Ataulfo Alves – Bienvenido Granda – Carmélia Alves – Nat King Cole – Cláudia Barroso- Dick Farney – Inezita Barroso – Miltinho – Nora Nei – Zezé Gonzaga – Ray Charles – Dolores Duran – Charles Aznavour. Senhora - A Escrava Isaura – Vidas Secas – Helena – O Homem que Calculava – Os Sertões – Vinte Mil Léguas Submarinas – A Volta ao Mundo em Oitenta Dias – O Sítio do PicapauAmarelo–OGuarani–Jubiabá–OsMiseráveis–SãoJorgedosIlhéus–NossaVida Sexual-AsFábulasdeEsopo–D’ArtagnaneosTrêsMosqueteiros–ACarne–DomQuixote
  • 42. 41 Parte I - Janelas da Memória de La Mancha - Viagens de Gulliver – Cyrano de Bergerac – O Morro dos Ventos Uivantes –DezDiasqueAbalaramoMundo–ViladosConfins–GrandeSertão:Veredas–Germinal –OsLusíadas–OsIrmãosKaramazov–Decamerão–OCavaleirodaEsperança–Cascalho – Gabriela,Cravo e Canela. ANoitedomeubem–Quequerestudemim?–Mariadosmeuspecados–Baladatriste –Tardefria–Eusonheiquetuestavastãolinda–Atirasteumapedra–Conceição–Adeusa do asfalto – Cinco letras que choram – Ninguém é de ninguém – Senhor da floresta – Salão grenat–Apequeninacruzdoteurosário–Sorrisdaminhador–Bonecacobiçada-Ninguém me ama – Camisa listrada – A volta do boêmio – Alguém me disse –Asa branca – Cabeça inchada–Olhaprocéumeuamor–Risque–Sabiálánagaiola–DoloresSierra–Ficacomi- go esta noite – Dos meus braços tu não sairás – Meu vício é você – Escultura – Pensando em ti – Naquela mesa – Deusa da minha rua - Hoje quem paga sou eu – Quero beijar-te ainda – Luar de Paquetá – Muié de oio azul – Cabocla serrana – Coração materno – Renúncia em prantos – Porta aberta - Patativa – Na casa branca da serra – Luar do sertão – Cintura fina –Assum preto – Riacho do navio – Mané fogueteiro –– Maringá – Casinha pequenina – In- teresseira – Mulher de trinta – Babalu – tornei-me um ébrio – Madame Pompadour – Cai a tarde – Devolve – Maria dos meus pecados – Meu mundo caiu.
  • 43.
  • 45. 44 Janelas Abertas Os Dias passam e a Cidade vive Cada dia, o passar das horas e dos acontecimentos – uns, invariáveis; outros, cheios de surpresa. Novembro. O mormaço a anunciar um toró que não cai. Os escolares, logo às sete horas, leite tomado e pão comido, partem para os seus suplícios. Os da Profª. Aurelina, sem farda, mas com capanga a estufar tabuada, caderno de cali- grafia, pedra de escrever, pena de bico grosso e merenda. Nas segundas, na mão vai também o tinteiro levado pra casa na sexta. Os do Grupo Escolar – aquele com nome de político e médico – com a mesma carga e mais o fardamento azul e branco. O caminho, todo mundo sabe e quem não sabe pergunta. A rapaziada, essa já está no batente dos balcões ou nos banquinhos das tendas. Um ou outro filho da fina flor vagueia pelas ruas em busca do que fazer ou do que aprontar. Comércio. Nas vendas, em cada porta do lado da sombra, um negociante a prosar com quem passa, ansiando por um freguês que entre. Os do lado do sol somente vão pro bate papo depois do meio dia, quando o astro rei dá a costu- meira sopa. Nos bares, quase ninguém, pois farra e jogo só de noite. Mal e mal se vende, de dia, uns abafa-banca, uns copos de refresco de limão, umas cordas de bombom de mel. Já nas padarias – duas – o movimento é pesado das seis às oito: sai pão italiano, sovado e cacetinho; sai bolacha fofa, de coco e de sal. Se fosse quarta-feira, haveria de ter caminhão a descarregar charque, quero- sene, peixe seco e até caixas de enxadas nas portas das vendas. Por volta das onze horas chega o “carro da Souza Cruz” que vem de Feira: pára de porta em porta das casas do comércio. Metade da carga é arriada nos armazéns de Piroca Brejão e de Alfredo Franco. “Um quase mundo, aqueles dois”, pensam os vendeiros. Meio dia. A romaria reside em fechar os negócios e partir pro almoço. Na segunda se liquida o que sobrou do banquete de domingo: um resto de malassado, feijão preto ou mulatinho com miúdos de porco, farofa - essa nova – salada de alface colhida no quintal e sobremesa de doce de leite. Satisfeito o apetite, quem tem empregado pra reabrir o negócio fica pr’uma madorna até as duas – uns até as três. E a garotada? Essa, retornada da escola e almoçada, prepara-se para pin- tar e bordar. A picula ocupa os cantos da casa na brincadeira do esconde-esconde. Os que preferem cabra-cega vão pro quintal, que tem mais espaço e o “cego” não corre risco de se chocar contra portas e paredes. ”Quebra-pote?” Não, isso é coisa pra dia de festa e somente lá na Praça. Vez por outra, a turma vai à porta ver se o homem do quebra-queixo aparece, ou mesmo aquele do amendoim torrado. Na falta dos dois, o jeito é esperar a hora da merenda. Negócios abertos, donos retornados da soneca, buzina em cada ponto o “carro do Café São Paulo”, também vindo de Feira. A meninada que observa o movimento pensa: ”Feira de Santana deve ser um lugarão. Tudo que aqui não tem vem de lá. Deve dar uns cinco Irará”.
  • 46. 45 Parte II - Cenas do Cotidiano De tardezinha Joaquim Estrela desce rua a entregar as cartas chegadas. A uns avisa: ”Tem registrado. É preciso passar lá na agência pra assinar o recibo”. Logo a marinete aponta lá pras bandas de Antoninho. Todo mundo – ao menos os interessados e os curiosos – vai pro ponto vizinho à loja de Teófi- lo. Chegado o coletivo, é receber e dar abraço, comprar jornal, mala a cair do bagageiro alto, pacotes, sacolas, embrulhos e bugigangas outras cansadas da longa viagem de meio dia. “O condutor disse que do Birimbau pra cá tá uma buraqueira só”. – “E pra lá?” – “Bem, tão abrindo estrada nova e tem um desvio com muita lama perto de São Sebastião”. A viagem pode ser longa e cansativa, mas, toda manhã cedinho, por volta das seis horas, tem gente no ponto tomando arroz-doce e pongando na marinete, que sai quase lotada – a lotação se completa em Coração de Maria – para a Bahia. Nas casas, por todo o dia, o trabalho é duro: há que ferver o leite, aquele espumoso trazido à porta em camburão de alumínio, por jumento bem equi- pado; coar o café em coador de cambraia, com o pó sacudido fora; varrer tudo com vassoura de piaçava, exceto o quintal, que se varre com vassoura de pindo- ba após ciscar as folhas secas; preparar as panelas e pô-las no fogo pra requen- tar as sobras do Domingo, que não se vai perder assim; servir o almoço e lavar os pratos, bem lavados graças às folhas de caiçara; arrumar a merenda pra tur- ma miúda, nem que seja gemada com farinha de mandioca; passar a roupa seca ao sol da manhã, com barrufada pra tirar os encolhidos e economizar as brasas do ferro; acompanhar o aguadeiro na entrega da água nova com barris vindos em lombo de jegue ou com latas enchidas no tanque da carroça, tudo abastecido na mais que bendita Fonte da Nação; agüentar a algazarra da criançada a brincar, sem faltar o “lhe boto de castigo”; dar e tomar banho, alguns com cuia retirando água de lata cheia na cisterna; arranjar algo para a sopa da boca da noite – pode ser que saia mingau de fubá de milho em vez de sopa. Seis horas da tarde. A Voz da Liberdade, sob o eficiente comando de Jota Go- mes, anuncia a ”Ave Maria”, hoje a clássica, de Gounod. As tarefas de casa seguem a rotina: logo será hora de servir a sopa - ou o seu substituto eventual - arrumar a cozinha para o dia seguinte, ao menos la- var o que se sujou durante a sopa, fiscalizar a garotada que foi brincar na rua e mantê-la perto de casa, esperar que os maridos liberem o rádio para a novela de todo dia – “que hoje Isabel Cristina vai pro convento”. Na espera, prosar com a vizinha, de porta pra janela: “Ouvi falar que de- pois-de-amanhã vai ter leilão pra arranjar dinheiro pra Festa da Padroeira.” – “Tão cedo assim!?” - “Também acho, mas o padre é muito prevenido”. Umas pen- sam, apenas pensam: “Mais uma embromação, essa estória de leilão pra Festa”. Pen- sam, não dizem, e participam, ao menos oferecendo umas galinhas da capoeira, uns bolos de araruta, até uns frascos de doce de araçá e umas garrafas de licor de jenipapo. Julgam que, com suas ofertas - mesmo na dúvida quanto ao bom uso dos recursos - garantem lugar no céu, apesar dos pecados não redimidos. Anoitecida a cidade, a conversa é outra.
  • 47. 46 Janelas Abertas O que Fazer Hoje à Noite? Boca-da-Noite. A meninada agita-se a pensar no que fazer após a sopa. No tempo dos lampiões a gás, com as ruas escuras, o jeito era brincar nas varandas dos fundos das casas, sentados em esteira de pindoba ou, quanto muito, ir para a arrelia da casa vizinha, isso “se mamãe deixasse”. Agora é diferente: aqueles altos postes, aqueles longos fios de cobre e aquelas “lâmpadas de vidro com uma faísca dentro” deram novo sangue à vida noturna. Meninas agrupadas na beira das calçadas brincam de trocar a roupa das bo- necas – essas irmãs perfeitas, crias de Joana - como se o fizessem em si mesmas. Meninos, mais ariscos, ensaiam um filme de cowboy nas esquinas em lusco-fusco – uns bancando Buck Jones, outros, Roy Rogers. O difícil é a escolha dos bandidos e índios – ninguém quer ser vilão. A solução fica por conta dos pauzinhos e azar de quem perder. Vez ou outra, a depender da enturmação, meninas e meninos se ajuntam para a Brincadeira de Roda: - “Oh dona Maria, oh Mariazinha, que entrou na roda e ficará sozinha” – “Sozinha eu não fico nem hei de ficar, pois eu tenho Toínho para ser meu par”. A escolha do parceiro já indica uma empatia para uma relação fu- tura mais profunda. Completada a Roda – todos já entraram, escolheram seus pares e saíram – parte-se para o descanso da Advinhação no aconchego das beiras: - “O que é o que é que tem orelha mas não escuta?”–“É pau podre”. –“O que é o que é que sai tarde e chega cedo?”–“É o sol”. Os mais agitados, ainda meninas e meninos, preferem o pula-pula do Passo- Passo na borda da calçada: “Bote aqui o seu pezinho,bote aqui ao pé do meu,e depois não vá dizer que você se arrependeu”. Para as moças e rapazes, o destino certo é voltear na Praça do Coreto: elas para a direita, eles para a esquerda. A cada encontro, um riso, um piscar de olhos, um relâmpago a incendiar corações ainda ingênuos. Duas, três noites assim e os pares já se decidiram. Logo os bancos darão guarida ao “conversa vai,não vem; conversa vem,não vai”. O que se vê são mãos trocando suores. Beijo na bochecha “só no domingo que vem”, isso se não chover e “se mamãe me deixar sair”. Aí é que o ne- gócio engancha: as futriqueiras de plantão logo fazem as mães das bem-aventura- das criaturinhas saberem do “conversa vai” na Praça do Coreto e essas, esquecendo- se do seus tempos de volteio, começam a botar gosto ruim: “Aquele rapaz não serve pra você, minha filha. Ele nem é bom na escola. Se seu pai souber, a coisa vai ficar feia”. Caso a criaturinha esteja mesmo a fim, o jeito é arriscar um encontro na volta da escola, “se não chover”. A tão esperada chuva sertaneja passa a encarnar a desculpa esfarrapada de quem quer mas não tem lá muita coragem. A rapaziada mais crescida e já meio casca grossa bate firme nos bares: um jogo
  • 48. 47 Parte II - Cenas do Cotidiano de sinuca ou bilhar regado a Jurupinga Gerim ou Conhaque de Alcatrão de São João da Barra – os mais afoitos vão mesmo é de“Dois Leões” - ou um dominó agritalha- do nas mesas das bodegas. Quem já está de namoro firme, daqueles de porta-de- casa, já se ancorou: o agarra-agarra e o “me solte que aí vem gente” vão fazendo as horas passarem. Na calçada, a bicicleta garante a saída rápida do amarrotado. Dez horas da noite. Os decentes moços dos bares já partem para o Lasca- Gato ou para a Mangabeira. No retorno, o jeito é molhar a güela no bar de Petu, sempre de plantão. E os mais velhos, o que fazem? Os homens, mal finda a ”Hora do Brasil”, par- tem céleres para a reunião do Senadinho, na Praça do Comércio. Quem não é da política, bate um carteado regado a genebra e tira-gosto de torreno. O carteado é democrático, laico e conivente: jogam udenistas e pessedistas contra petebistas e perrepistas; jogam o Procurador de Deus e o Delegado Comunista contra o Prepos- to do Governo e o comerciante sonegador do Imposto de Consumo. Já as senhoras - rádios liberados por seus fiéis maridos - escutam, ansiosas, mais um desfecho da triste saga de Albertinho Limonta e Isabel Cristina, mais a conivência de Ma- mãe Dolores: É “O Direito de Nascer” que faz a hora. Fofoca não, que isso “é coisa de gente sem eira nem beira,futrica de quem não tem vergonha na cara”. Após a saga, al- gumas quedam ao pé do rádio para se divertirem com as tretas do Primo Rico contra o Primo Pobre ou com o bordão “Só abro a boca quando tenho certeza” do Fernandinho e sua estimada esposa Ofélia – todos os quatro moradores do ”Edifício Balança mas não Cai”. A Radio Nacional é, sem sombra de dúvida, um sucesso de audiência. Finda a escuta viciada, restam às senhoras recolher a meninada, banhar os pés e o rosto, rezar o terço e torcer por uma noite de bons sonhos, isso se os galos da vizinhança deixarem e se não for noite de serenata. Os senhores, fiéis maridos, encerradas as discussões no “parlamento”, retornam taciturnos mas esperançosos, cigarro a pitar, para o aconchego de suas camas a esta hora já es- quentadas. Na noite seguinte, tudo recomeça. Em algumas casas, no entanto, não é de duvidar que o dia amanheça com barriga nova em franco progresso. Afinal, a cidade precisa crescer e renovar-se.
  • 49. 48 Janelas Abertas O Senadinho Anoitecer. Invariavelmente, os homens dirigem-se às suas casas, para a obrigação de ouvir “A Voz do Brasil” pelas ondas curtas dos rádios com olho mágico. Afinal, o noticiário oficial é a principal fonte de informação sobre os acontecimentos políticos do país e não poderia existir meio mais fidedigno para a avaliação dos parlamentares eleitos pelos votos da imensa maioria de ta- baréus do que as notícias da Agência Nacional. O eleitor sabe o que seus eleitos dizem fazer, na medida em que esses divulgam o que querem que seus eleitores saibam. Assim marcha o país e a política nacional, tal e qual em dias futuros. Findo o noticiário, as pernas masculinas partem para a Praça do Comércio, a dar início aos ”trabalhos legislativos” do dia – aliás, da noite. A partida tem dupla importância: dar quorum ao Senadinho e liberar os rádios para que os ouvidos femininos escutem a novela “O Direito de Nascer”, pondo, assim, os olhos a chorar diante das desventuras de Mamãe Dolores e Albertinho Limonta. O plenário instala-se na calçada entre o bar de Henrique e a loja de Éver- ton. Os participantes, a média flor da política iraraense - já que a fina flor não se presta ao mister de discutir; simplesmente manda – acomoda-se desde o ficar de cócoras até o sentar-se em banquinho trazido de casa. Henrique, vez ou outra, contribui com umas poucas cadeiras. Éverton serve longo banco sem encosto. Bancadas? Predominam as da UDN e PSD, mas uns gatos pingados do PTB ousam participar. Discute-se, com admirável paz e cordialidade, as notícias do dia – aquelas ouvidas no rádio -, os acontecimentos locais relevantes, as recentes nomeações, as perspectivas eleitorais dos derrotados e mais uma ou outra fofoca da oposição e dos governantes. Não há ataques pessoais. Amanhecendo o novo dia, todos terão que conviver em harmonia, e isso elimina a formação de desafetos. Palavra de honra, o Senadinho da Praça é um exemplo de boa vizinhança. Ter cidadania e ser politicamente correto ainda não entraram em vigor. Quem abre os debates? O primeiro a chegar, em conversa temporária com Henrique, esse impassível à porta do seu bar. Como comerciante modelo que é, aprova tudo com um simples baloiçar da cabeça – que a palavra é prata, mas o silêncio é ouro. Seu desejo, na verdade, é que caia ao menos um chuvisco mais forte: todos certamente entrarão no bar, ensejando a venda de umas cervejas, dois ou três cálices de conhaque e algumas taças de vermute. Quem sabe, de tira- gosto saia até uma lata de mortadela. Obviamente, e como costuma acontecer nas casas legislativas, todo mundo sabe o partido de cada um. Nisso reside a arma para evitar-se a discussão ofen- siva. Os indecisos, geralmente do PTB, logo aderem à ala governista. Nada mais justo, pois cego só não enxerga com os olhos.
  • 50. 49 Parte II - Cenas do Cotidiano Voz dissonante há e se chama Raul Cruz, comunista letrado, bem aceito por todos. Afinal, quando não está delegado, está para ser. Raul Cruz funciona como ponto de equilíbrio, melhor dizendo, mediador nas discussões mais acirradas. A ser franco, conteúdo positivo nos debates somente há por força das suas interven- ções. O resto é pessedista que critica udenista, que rebate sob os aplausos de petebista. No Senadinho, o andar das discussões costuma, vez por outra, motivar troca de legendas, sobretudo dos mais flexíveis e menos dependentes. A ocorrência assusta os donos do poder. Na ótica desses, aquele “parlamento” tem por obri- gação representar o pensamento dominante na cidade e qualquer desvio poderá criar dúvidas na massa votante. Fala-se que tanto Elízio Santana quanto Amaro Medeiros enviam espias de confiança para as seções, com o intuito de registrar as tendências de aliados e adversários. No centro da Praça, o Abrigo de Amando encarna a soberba do Palácio da Alvorada e observa os debates com um sorriso de maledicência e menosprezo. Como se pode constatar, política também se faz em porta de botequim.
  • 51. 50 Janelas Abertas O Sábado é para a Feira Os preparativos começam cedo, ainda na sexta-feira. Na cidade, os comerciantes aprontam as embalagens dos secos e molhados: arroz, sal, café moído e em grãos, açúcar, tudo em pacotes de papel pardo com peso de duas, uma e meia libra. Dendê e óleo de mamona em garrafas bem cheias e devidamente limpas. Sabão, esse vai enrolado em papel de jornal, em peda- ços de meia e de uma libra. Aprontam-se os cortes de charque, feitos enviesados para ressaltar a largura da manta. Canela-em-lasca, pimenta-do-reino, cominho e colorau vão em pequenos embrulhos de cinqüenta e cem gramas. Sexta-feira deve entardecer com as prateleiras lotadas, os balcões arrumados. O estoque de cachaça-com-folha estará no ponto e será preciso arranjar dinheiro miúdo para o troco. Na roça, a azáfama é outra, mas com a mesma correria: ensaca-se o feijão, a farinha, o milho, todos em sacos de quatro quartas. As frutas e raízes, da batata-doce e aipim ao inhame, da melancia e mamão à laranja, todos são aco- modados nos caçuás, protegidos por folha-de-bananeira. Os legumes e verduras, da berinjela e chuchu ao tomate, do pimentão e couve ao repolho, dos móios de coentro aos de hortelã, tudo é bem arrumado nos cestos devidamente forrados, onde não falta espaço para as raízes e folhas pra chá e reza. Beijus, farinha-de- tapioca, amendoim torrado e doces ocupam latas de flandre, aquelas de querosene Jacaré a tempo asseadas. Mel-de-abelha enche garrafas que se aprumam nos cantos vazios dos caçuás. Porrões, potes, panelas e frigideiras vão de amarrado, no equilíbrio das cangalhas. Burro é quem leva, pois jumento trota muito e pode quebrar a carga. Nos amarrados também seguem cestas, peneiras, colheres-de- pau, esteiras, cuias, fumo-de-corda, até bocapios e cabaças pra água. Sábado. A cidade amanhece agitada. Açougues estocados desde cedo, com a matança dada na madrugada. Às sete horas as vendas, quitandas, lojas, padarias, bares e primos outros estão de portas escancaradas, donos a postos e caixeiros nos balcões. Sempre há, em cada ponto, a expectativa de que a freguesia aumente. Propaganda não há: o freguês certo vem na certa e sempre há aquele, duvidoso, que poderá mudar de rumo. Se não choveu por ocasião do plantio, a safra poderá não ser boa. Assim, cada negociante se prepara para abrir a caderneta do fiado, pois o certo tem crédito garantido. Na fazenda, no sítio, na roça de meia,os jumentos e burros são arreados ainda à luz dos fifós. Cada cangalha com quatro sacos dos secos. No entremeio entre os sacos de riba, o arrumado de cestos e latas até o limite do não cair e a um peso que não estropie o bicho. Nos topes das cangalhas enfiam-se badogues. O resto, ou o que têm os que não têm animal, vai na cabeça enrodilhada, com o equilíbrio que o levar água da fonte pra casa já ensinou. Nos ombros, uma vara com nós
  • 52. 51 Parte II - Cenas do Cotidiano se verga ao peso das gaiolas com coleiros, canários, sofrês, cardeais, bem-te-vis, assanhaços, azulões, pintassilgos. A Feira não se limita ao comércio das mercadorias dos da cidade e dos da roça. Caminhões apinhados despejam um mundo de gente que vem de Água Fria, da Caroba, do Retiro, de Pedrão, de Ouriçangas, de Conceição, de Pataíba e até de Coração de Maria, Feira de Santana, Alagoinhas e Serrinha: gente do município e de fora, que vem comprar e vender. E trazem livrinho de violeiro, malas com decoração em couro, brincos e argolas de metal, molduras com figu- ras de santo, jaleques, chapéus-de-couro, selas, bridas, cilhas, cabrestos e demais tipos de arreios. Para completar o cenário, os artesãos da cidade abancam, no chão forrado por esteiras, alpercatas, botas, sapatos com solado de pneu, cintos de couro cur- tido, fifós, ralos, formas para bolo, bandejas, assadeiras, camisas de chita, calças de mescla e de brim, bonecas de pano, tudo aquilo que o lufa-lufa da semana produziu nas tendas e oficinas. O local é a Praça do Comércio em toda a sua grandeza. O movimento começa cedo com o entrar dos caminhões, que se enfileiram nas laterais da Rua Direita. Os animais, esses deixam suas cargas na Praça e vão, pachorrentos, pros quintais de guarda a duzentos réis o dia. A Feira é bem dividida e organizada. No mercado, os secos a granel, os beijus e similares e os balcões dos açougues. Na calçada do lado da Praça, as bancas de verduras e de legumes, os sacos de amendoim torrado e cozido, o milho cozido e assado, as frutas e as raízes. No largo, as bancas e barracas, começando com as de doces e bolos, depois as de carne-do-sol e moquecas de piaba. A seguir, as bancas dos artesãos, as pilhas de malas e apetrechos de montaria. Lá pras sombras das palmeiras, os livrinhos de violeiro, as molduras com santo e outras miudezas. Tudo muito arrumadinho, espaço sobrando pro freguês passar, já que só se compra o que se vê. Às oito, o mercado já despeja gente pelas calçadas. As donas-de-casa chegam com suas sacolas de lona, a pechinchar a dúzia de beijus, a quarta de farinha, o litro de feijão, o móio de coentro e de hortelã, a medida de tomate miúdo, a dúzia de laranja e de lima, a mão de pimenta. As sacolas se enchem e as fregue- sas se revezam. A cada banca que esvazia é um freguês que parte pr’uma venda, quitanda, padaria ou loja, a fazer sua feira, essa pra roça. Nos açougues, a compra é de patinho, chã-de-dentro e alcatra, que filé é coisa de cidade grande. Miúdos, só no mercado de fato, lá na esquina do cinema com a Mangabeira. Nas vendas, entre uma cachaça com alecrim e outra com cidreira, saem duas libras de açúcar mascavo, duas de charque, meia libra de chumbo fino, um pacote de foscro, cem gramas de colorau e cinco litros de gás. Nas lojas, o metro não pára de medir cambraia, gorgorão, chita e algodãozinho alvejado. Até um ou dois guarda-sóis são embalados pra viagem. Nas padarias, o que mais se pede é fari-
  • 53. 52 Janelas Abertas nha pra bolo, pão sovado e bolacha fofa. Até nas farmácias tem gente a comprar: remédio pra verme, pra dor dos quartos e pra tosse convulsa. Tiro Seguro, Pomada Minâncora e Xarope Bromil saem às dúzias. Na praça abarrotada, a meninada vagueia entre os amendoins torrados e cozidos, quebra-queixo, cocadas e doces de leite, tal e qual formiga ao redor de mingau derramado. Os trocados recebidos dos padrinhos e tias voam dos mealheiros de barro pros bolsos das saias de chitão. Quem está de casamento marcado pechincha mala, candeeiro, fazenda pro enxoval, alpercata pro forró, vaselina perfumada pra assentar o pixaim. Os cachorros, todos com faro apura- do, preferem circular ao redor das bancas dos açougues, onde às vezes salta um pedaço de sebo ou voa um caco de osso. Já os gatos, sempre mais disciplinados, acomodam-se na madorna embaixo das bancas de moqueca de piaba, a gozar do odor garantido. A turma do sereno esgota o sortimento de livrinhos de violeiro, bom começo pr’uma noitada de boemia. A mercadoria urbana vai pra roça e de lá vem e fica aquela do suor sob um sol a pino. O dinheiro circula, uns ganham, outros se endividam na caderneta do fiado, mas de tudo se vende e de tudo se compra. Por volta das cinco a Feira se finda, até sábado que vem. É recolher as coisas: caçuás, barracas, esteiras de chão, sobras de mercadoria. A marcha pros cami- nhões e quintais de guarda é o que se dá.
  • 54. 53 Parte II - Cenas do Cotidiano Domingo é Dia... A agitação do sábado contrasta com a tranqüilidade do domingo, que ama- nhece sob o cantar dos galos e abre os olhos com o latir dos cães à procura, ainda, dos restos da feira. Nas ruas, os varredores fingem que varrem as sobras e esperam pela carroça de João de Bila para recolher os monturos. O povo, que mal acordou, observa crítico e ensimesmado. As padarias não dormem no ponto: desde as cinco e meia estão no batente. O leiteiro circula como se o dia não fosse para o descanso - ao menos do jumen- to. Por volta das oito, uma ou outra venda e quitanda abre meia porta, para cerrá- la ao meio-dia. Já os bares e bodegas, esses são da domingueira: não somente abrem como escancaram suas opções. Nove horas. Os meninos tomam conta do terreiro: em todas as esquinas a picula domina o anunciado sossego e a algazarra se faz rainha. Um grupo de moços e moças, sacolas à mão, marcham rua acima em busca do Caminho de Quaresma, acesso livre e público à água escorregadia das Lages. Vão fazer pique- nique – é o que dizem. De repente, um sobressalto, um susto: Lucinda aparece, picada e aos brados. A meninada recua ao passar da doida. Às dez, Jota Gomes sobe a Praça, para fazer esperanças renascerem no espelho de “A Voz da Liberdade”: Entra no ar o Matinal Boêmio, com o melhor de Orlando Silva, Ângela Maria, Nelson Gonçalves, Cláudia Barroso, Ataulfo Alves, Ellen de Lima, Augusto Calheiros, Inezita Barroso, Carlos Galhardo, Nora Nei, Anísio Silva e tantas outras vozes da “dor de cotovelo”. Almoço de domingo é banquete: cozido com o melhor da feira, feijão verde - às vezes andu ou mangalô - pirão de farinha-de-mandioca escaldada na água da couve e do repolho, ensopado e malassado, salada de alface com respingos de coentro, vez por outra carneiro ou leitão. Na sobremesa reina a ambrosia, sem desmerecer eventual doce-de-banana com calda, cravo e canela. O ritual inclui um abre-apetite de conhaque, genebra ou jurubeba – as damas vão de licor de jenipapo, aquele fabricado por Tiano. Após o fausto, a madorna. A rede é o arrimo das crianças. Os mais velhos – machos – vão curtir a pança cheia no aconchego de suas camas, aquelas com colchão do macio capim miúdo. Já as damas, essas aproveitam o recesso – isso depois do lavar, enxugar e arrumar pratos – para uma olhadela nos reclames da“VidaDoméstica”oupararircomasarmaçõesde“OAmigodaOnça”naspáginas de ”O Cruzeiro”, enquanto não chega a hora do café, por volta das três. Cinema. Olavo capricha nos filmes: A Volta do Renegado, Sete Homens e Um Destino, Jerônimo, Tarzan Rei dos Macacos, Sansão e Dalila, vez por outra uma pe- lícula com as Rainhas do Rádio – Emilinha Borba e Dalva de Oliveira - ou com Oscarito e Grande Otelo. O melhor do musical nacional, do drama e da aventura, o