26 participantes, entre poetas, cronistas, contistas, chargistas, e desenhista, de 9 estados, e 4 regiões do país toparam o desafio de interpretar o atual cenário sociopolítico do país, por meio de suas produções.
3. Edição do Caos
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7 dias cortando
as pontas dos dedos
Edição do Caos
Talvez o mundo já esteja exausto de pessoas que
simplesmente ignoram o fato de que a vida na Terra não é
infinita. E nos fez lembrar disso justamente num momento da
história da humanidade, em que a direita ultraconservadora,
reacionária e gananciosa voltava ao poder mais sedenta do que
nunca, ignorando todos os alertas referente ao avanço do
desmatamento, das queimadas, do assassinato de ativistas
ambientais, do aumento da temperatura do planeta, do
crescimento desenfreado da pobreza no mundo, e, na contra
mão disso tudo, o crescimento exponencial do lucro dos
grandes bancos.
O caos ocasionado pela pandemia do COVID-19 nos provou que
todos iremos para o mesmo lugarzinho úmido, afinal de contas
não somos imortais, que o capitalismo é cínico, mentiroso,
seletista e cruel, que o estado mínimo é uma piada idiota, que
os empresários querem que os empregados morram nas linhas
de produção, e que esse país está sendo governado por uma
trupe de abutres tresloucados operando em favor dos mais
ricos, sempre fazendo uso dos meios mais sujos e irresponsáveis
possíveis para garantir o lucro.
Cabe a nós apenas nos vacinar contra a insanidade dos
militantes religiosos que tentam eliminar o vírus do mundo com
orações em ruas movimentadas, numa tentativa clara de
convencer os desavisados, que todo conhecimento científico é
obra do CAPETA. E a literatura segue sendo o nosso antídoto
contra a imbecilidade cega em carreata para o
grande abismo. CORTAMOS NOSSOS DEDOS MAIS UM VEZ!
5. Edição do Caos
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Sumário
Stefany Menezes ǀ 6
HQ Gilmal ǀ 7
Dom Alencar ǀ 8
Marco Aurélio de Souza ǀ 10
Fabio da Silva Barbosa ǀ 11
Marciel Cordeiro ǀ 12
Dinho Lascoski ǀ 13
Zemaria Pinto ǀ 14
Wagner Nyhyhwh ǀ 15
Ney Metal ǀ 16
Everton Luiz Cidade ǀ 17
Andri Carvão ǀ 18
Rojefferson Moraes ǀ 20
Caio Castellucci ǀ 21
Joe Maia ǀ 22
Elidiomar Ribeiro Da Silva ǀ 23
Marcos Samuel Costa ǀ 24
Elvis ǀ 25
Marcia Antonelli ǀ 26
Emmanuel 7Linhas ǀ 28
Monique Brito ǀ 30
Gigio Ferreira ǀ 32
Camila Passatuto ǀ 33
João Farias ǀ 35
6. | - 6 - |
Stefany Menezes ǀ Presidente Figueiredo/Am
stefanymenezesdovale@gmail.com
CANTO DA INQUIETUDE
Aulas adiadas.
Eventos adiados.
Aquela viagem há tanto tempo planejada, adiada.
O povo dentro de casa.
O povo? Não, parte dele.
Há quem não acredite que exista um problema. Na verdade, eles
não veem o problema. Colocam suas máscaras nos seus olhos e
ocultam o real.
Falando em real, aquela viagem era internacional e já havia sido
cancelada por causa da cotação do dólar.
Ah! E o evento era artístico e o ministério cogitou censurar.
E as aulas? As que mais sofreram. Uma guerra contra a educação.
Eis a hesitação. Quais dos males é o pior? O vírus ou o verme?
Verme de faixa presidencial ajudando na propagação do vírus.
"Chega!"
O silêncio do meu peito ousa gritar. "Chega!"
Uma pandemia aponta para a máscara de sucesso do capitalismo e
a desmente, colocando em evidência a podridão que autoriza a
morte para que seu ciclo continue. "Chega!" "Chega!"
Chega de só chorar pela morte dos meus.
É hora de ir à luta e guerrear. "Chega!"
O mundo também parou pra gritar "Chega!" e trouxe uma panela pra
ajudar a entoar o canto da inquietude. "Chega!"
Não se pode voltar de onde parou.
É preciso mudar. É preciso reformular.
É preciso revolucionar.
Chega!
7. Edição do Caos
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HQ Gilmal Natural de Manaus/Am.
https://www.facebook.com/gilmar.melo.161
8. 7 dias cortando as pontas dos dedos
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Dom Alencar ǀ Tapiramutá/BA.
Instagram: @poetadomalencar
Ao relento lentamente
apenas vai
segue o fluxo
e o contrafluxo
ao sabor dos torpes ventos
sem almoço ou álcool em gel
não entrará em nenhuma lista de mortos
simplesmente porque há muito já morreu.
10. 7 dias cortando as pontas dos dedos
| - 10 - |
Marco Aurélio de Souza ǀ Ponta Grossa/PR.
aurelio.as25@yahoo.com.br.
ASSOMBRO ZEN
1.
É preto & pobre & agoniza na favela
Vida que segue
Mesmo o melhor policial às vezes erra
2.
Extrema-unção & pesticida
Balanceado é o câncer
Da natureza morta
3.
Hasteada no infinito a estrela
Das bandeiras –
Índios esmolam sob a luz de outro sinal
4.
No linchamento a dentição ensanguentada
Sorri aos olhos da manada celular
Chuva de likes
11. Edição do Caos
| - 11 - |
Fabio da Silva Barbosa ǀ Porto Alegre/RS.
Fsb1975@yahoo.com.br
ACABOU DE NASCER
Dois amigos conversavam tranquilamente em um banco da praça,
mas eis que:
- O que vocês dois estão conversando?
- Identidade! Carteira de trabalho!
- Infelizmente estou desempregado devido a essa situação que está
acontecendo no país já faz um tempo.
- Que situação, rapaz? Não está acompanhando os índices e
pesquisas? Tem emprego pra todo mundo! Só não trabalha quem
não quer!
- Só falei o que está acontecendo.
-Além de vagabundo, ainda quer falar mal do governo?! Manda
esses comunistas pra cadeia!!! Já que eles querem conversar...
Vamos conversar.
12. 7 dias cortando as pontas dos dedos
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Marciel Cordeiro ǀ Região de Grande Vitória/ES.
marcielcordeiro2016@gmail.com
A FUNÇÃO SOCIAL DE UM ESCRITOR
Eu ligo a tevê, e um repórter com cara de boxeador fala com
uma voz rouca, “o momento é de pânico, fiquem em casa, os
hospitais estão sobrecarregados”. Desligo a tevê e o olho pela janela
o céu cinza. O vento sopra pausadamente, o silêncio e o som da
serra mármore do pedreiro parecem brigar pelo espaço. Ando pela
casa inquieto. Sou ansioso. Trato minha ansiedade com muita
música, é uma forma de tapar o vazio imenso que habita em mim.
Ouço uma porrada de músicas da Gal Costa.
Vou até o computador e leio alguns poemas antigos. Dou uma
gargalhada, uma gargalhada não compatível com o sentimento. Tipo
a doença do Coringa. Achei uma tremenda interpretação do Joaquin
Phoenix.
Vou até a rua deixar o lixo e vejo que os lixeiros ainda não
passaram. Há um mau cheiro na rua. Um cachorro vira-lata rasga as
sacolas que estão no chão. Eu não me importo com o que o
cachorro faz.
Então, tento assistir um vídeo pornô. Gosto dos caseiros.
Feito por casais pobres. Nada de cama luxuosa ou cenário de
estúdios. Mas não me sinto bem. Deixo o vídeo de lado e fico
deitado na cama.
Pego o celular e faço uma selfie. Não ficou legal. Estou muito
pálido e com cara de desesperanço. Ah, eu não sou assim. Sabe, as
pessoas falam que sou feliz, que tenho um sorriso que cativa todos
ao meu redor. Sei lá, mas tem dias que o vazio é como uma
segunda-feira e você fica triste por não ter uma função social.
13. Edição do Caos
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Dinho Lascoski |Ponta Grossa/PR.
Insta: https://www.instagram.com/dinholascoski/?hl=pt-br
14. 7 dias cortando as pontas dos dedos
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Zemaria Pinto ǀ Manaus/AM.
zemariapinto@outlook.com
HOME OFFICE
Quando apresentei a proposta de home office no sindicato, há
uns 3 anos, fui motivo de chacota. Agora estamos todos em estado
de chacota. A rotina não tem sido diferente da rotina presencial na
fábrica. O pessoal da produção está em casa sem ter o que fazer,
mas, como sou administrativo, continuo o ramerrame de despachos,
via web. Tenho uma reunião diária, por teleconferência. Comitê de
crise. No dia a dia da fábrica, as reuniões são trimestrais, apenas
para apreciação dos indicadores de qualidade – tudo fake, mas o
pessoal da matriz gosta deles, é o que importa. Na reunião de hoje,
um elemento de sobrenome alemão propôs a adoção do isolamento
vertical. Ao ser questionado sobre que merda é essa, o sujeito
respondeu com a singeleza dos idiotas “é a proposta do nosso
presidente”. Nosso é o cacete, porra, parti pra cima do babaca, pena
que ele não estivesse ao meu alcance. A reunião acabou antes da
hora.
Da minha janela, no segundo andar, eu vejo a rua, o açougue,
a padaria e o movimento de carros e motos, quase nenhum. Uso o
home office como justificativa para me isolar dentro de casa. Afinal
faço parte do grupo de risco – o grupo que pode morrer para que a
economia se reerga. Minha mulher, respeita o “expediente”. Meus
netos não aparecem há duas semanas. De noitinha, desço para
caminhar na área do cortiço, que uns pedantes chamam de
condomínio. Outras pessoas caminham e não respondem aos meus
boas noites. Fodam-se. Essa porra só transmite com toques, não
com gentileza. O escroto que quer o isolamento vertical do grupo de
risco sabe que isso dará a ele um genocídio pra chamar de seu.
Como ele não dispõe de judeus, negros ou índios, vai matar os
velhos do país. Mas quem se importa? Desde que a bolsa esteja em
alta e o dólar em baixa, todo sacrifício é pouco. Pátria amada, pátria
minha, patriazinha – que nojo eu tenho de ti!
15. Edição do Caos
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Wagner Nyhyhwh ǀ Rio de Janeiro/RJ.
http://partesforadotodo.blogspot.com
ERA UMA VEZ O CÃO
O cão
Vivia com aquele casal
Em situação de rua.
Certa vez
Enquanto dormiam sob a marquise
O casal
Foi fuzilado.
Horas depois
O cão
Permanecia no local
Esperando acordarem.
16. 7 dias cortando as pontas dos dedos
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Ney Metal ǀ Manaus/Am.
neymetalsk8@hotmail.com
AMAZÔNIA CHORA PELAS QUEIMADAS
O meu povo, a floresta e os animais
choram por causa da destruição.
O fogo na mata consome tudo sem perdão.
O homem só vai dar valor, quando aqui o deserto for.
O homem pela sua ganância e ignorância, vai destruir tudo,
Por causa da riqueza que há.
As matas vão queimar e pasto para o gado vão se tornar.
Eu sou filho dessa terra, nascido e criado nessa imensidão de
floresta,
Por isso quero respeito e proteção ao que ainda resta.
Meus avós me ensinaram a respeitar as árvores, os pássaros e o
meio ambiente preservar.
Quanta dor, mãe natureza! Ver a floresta sendo devastada e seus
filhos indígenas sendo dizimados em suas terras.
Terra querida do meu coração, te peço perdão por tanta destruição.
17. Edição do Caos
| - 17 - |
Everton Luiz Cidade ǀ São Leopoldo/RS.
evertonluizcidade@hotmail.com
VHS SOBRE SANTA RÉUS, TERRA DEVASTADA
Se fossemos ricos, emigraríamos
Levando conosco o funk carioca e Macunaíma num bate lata de
acordar Jerusalém
Em Santa Réus, está meu povo, como cavalo novo - um gato numa
roda de pombos
Desintegrando/ouvindo profissionais biodegradáveis, mirando
nossos cabos tóxicos
Com palavras gatilhos
Canalhice ativa a crendice que ativa o caos do idealismo permissivo
Contra a diferença empírica periférica anfetamínica
Mãe Luva me envia uma mensagem – ela está num hospital e o
médico lhe aplica sussurro de súplica – enquanto o Pastor
Torturador faz seu pronunciamento fascista humorístico para seu
degenerado público alvo
Mãe Luva vê os doentes da fila imensa serpente doente – seus
corpos, peça de arte grotesca
Como farsante e delirante arte proletária farsesca – ela me pergunta
em mensagem querúbica:
_Não havia sobre essa pandemia uma profecia publicada em um
livrinho rosa por dois místicos periféricos onde um sapo urina sopa
em lábios flamejantes?
Em Santa Réus
Se fossemos ricos emigraríamos.
18. 7 dias cortando as pontas dos dedos
| - 18 - |
Andri Carvão ǀ São Paulo/SP.
andricarvao@hotmail.com
https://cinebook.com.br.
PRIVATIZA SEU CU
Do panorama visto de cima,
daqui até onde a vista alcança
é propriedade minha.
A paisagem.
As cidades.
As pessoas.
Norte e Nordeste são outros planetas,
talvez por isso me enxerguem como sulista.
Já o ariano do Sul não me vê com bons olhos.
Muito menos eu a eles,
e nenhum dos extremos.
Eu estou no centro do mundo,
no coração da coisa,
no umbigo primordial do universo e, por isso,
eu carrego o país nas costas.
Eu sou americano sem ser EUA.
Eu sou eurocêntrico sem ser europeu.
Eu sou senhor de todos os meus preconceitos
mesmo tendo um pé na senzala
e o outro na aldeia. Eu sei que
para os gringos “desenvolvidos”
eu sou apenas um latino americano,
um sul americano, mais um cucaracha. Mas
abaixo minhas calças
porque as notas verdes gritam mais alto.
E daqui do alto
até onde a vista alcança
é tudo meu.
20. 7 dias cortando as pontas dos dedos
| - 20 - |
Rojefferson Moraes ǀ Manaus/AM.
natora.producoes.eventos@gmail.com
O seu patriotismo nunca me enganou. Nunca me convenceu
que seus heróis matariam a minha fome, muito menos vestiriam meu
corpo franzino que aos oito anos de idade foi jogado numa praça
pública para cheirar cola, passar fome e morrer de frio, ou de facada
no bucho. A grande verdade é que vocês não me querem vivo,
nunca quiseram. O que vocês querem é o meu dinheiro, o meu suor,
a minha entrega todos os dias na chapa da lanchonete para ser
humilhado por alguma cliente pequeno burguesa que odeia dividir
espaço com pobre no mesmo ambiente, ou na loja de sapatos, de
roupas, nas fábricas... Vocês nunca se importaram quando eu
estava morrendo na fila do hospital, enquanto pagavam seus planos
de saúde com o lucro advindo do meu trabalho. Esse patriotismo
que anda de carro a 200 KM/h numa noite de sexta-feira, entupido
de álcool e cocaína, matando gente pra depois gritar “Deus acima de
todos” é uma piada de mal gosto que nunca me fez rir. Não venha
tentar me convencer que sou o grande culpado pelas merdas que
acontecem nesse país, pois se cheguei até aqui foi por ter lutado dia
após dia para não morrer, me desviando de balas, dos tapas da
polícia que sempre quis ver o meu sangue manchando as páginas
dos jornais, e servindo de tema para as dancinhas prodigiosas do
Sikeira nas tvs espalhadas pelo país. Os barracos que seus heróis
de farda queimaram, as casas derrubadas por tratores, os jovens
assassinados pelo tráfico, os pais vendendo o almoço pra comprar a
janta, o vírus que vocês trouxeram da Europa e dos EUA não é
culpa minha. Então, não me venha com sua camisa da seleção
brasileira, sua bandeira verde e amarelo, e seu carro importado, me
pedir para marchar ao seu lado exigindo a retomada da economia.
Esse patriotismo, nunca me enganou.
21. Edição do Caos
| - 21 - |
Caio Castellucci ǀ Salvador/BA.
Instagram: @castellcharges
22. 7 dias cortando as pontas dos dedos
| - 22 - |
Joe Maia | Lábrea/AM.
joecianomaia@gmail.com
PROVIDÊNCIA!
Se o prefeito não toma conta da cidade
a população deve tomar conta
Se os vereadores também
são coniventes com a corrupção a justiça tem que dá conta
Se o governador não presta pra representar a todos nós
que nem se meta a besta
Se os deputados estão envolvidos com as desgraças que caem
sobre as vidas do povo
Para encherem os seus bolsos e o dos mais afortunados que caia
sobre eles as desgraças
Se os senadores não sabem repartir justamente o pão que não nos
preste a desserviço de nos matar de fome
Se o presidente falar merda, e fazer só merda e jogar a merda pra
cima do povo mais sofrido que o povo manifeste o respeito e jogue a
merda na cara do bosta
E se os juízes estiverem no jogo da roubalheira danada que é que o
povo tome providência!
23. Edição do Caos
| - 23 - |
Elidiomar Ribeiro Da Silva ǀ Rio de Janeiro/RJ.
elidiomar@gmail.com
O SUBÚRBIO QUE SE RECUSA A MORRER
As ruas desertas de um subúrbio da cidade
Que eu olho da janela da quarentena
Mostram a derrota - ainda que parcial
De um déspota genocida
Mas não baixemos a guarda
Estamos apenas no início da guerra.
24. 7 dias cortando as pontas dos dedos
| - 24 - |
Marcos Samuel Costa ǀ Ponta de Pedras/PA.
Marcos94sam@gmail.com
UM AMOR DE FICÇÃO
Pedro mora do outro lado do país e eu o amo. a gente se ama, um
amor desses feito sexo virtual medo desesperança distância. Pedro
me envia livros pelo correio, na folha de rosto sempre deixa um
recado “te amo, meu amor” hoje fui mandar um livro para ele: os
poemas de Cabral, mas não existe mais o registro módico, sem
grana voltei com o livro na mochila. Pedro não vai levar um pedaço
meu para cama. Pedro me liga à noite eu o escuto atento, seu medo
de viver me assusta, “eles querem nos matar”, respondo que sinto a
mesma coisa. Meu Pedro é ficção morta neste momento, morto.
25. Edição do Caos
| - 25 - |
Elvis |Manaus/AM
elvisbraga@hotmail.com
26. 7 dias cortando as pontas dos dedos
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Marcia Antonelli ǀ Manaus/AM .
revistasirrose@bol.com.br
UMA CRÔNICA SOBRE O FIM DO MUNDO
É QUE EM TOOS ESSES ANOS, eu nunca havia me sentido tão
sozinha subindo uma Avenida Eduardo Ribeiro deserta naquele
começo de noite de sábado do dia 21. Fazia uma noite fria e
desoladora. Foi então que, para meu alívio avistei um rosto
conhecido, que por sorte perfazia o caminho contrário, descendo a
mesma avenida com seu inconfundível chapéu de cowboy e com
uma melancolia similar a minha. Acenamos alegres um para o outro,
como dois sobreviventes de uma estranha hecatombe nuclear. Mas
foi ele que tomou a decisão de atravessar a rua e me cumprimentar.
Sentimos o mesmo calor de um ardente e fraterno aperto de mão:
“Antonelli, mana, se cuida, quero tornar a vê-la depois que toda essa
merda passar.” Disse ele. Desejei-lhe a mesma sorte. Depois
olhamos um tempo para a avenida vazia e lúgubre que se estendia
diante de nós e nos despedimos. Era mesmo uma noite
terrivelmente gelada e vazia com o vento uivando o tempo todo
como se fosse o fantasma de um cão abandonado. Mas eu tinha que
seguir; tinha que vender meus livretos, ao contrário, não teria o que
comer no dia seguinte. (Não é bem a chegada deste vírus que me
assusta, deixo claro, mas o seu isolamento, sua segregação, fome e
a falta de política e solidariedade humana.) Refleti enquanto
caminhava.
Rodei por todos os bares e praças com a esperança de obter algum
êxito nas vendas, mas estava difícil. O centro da cidade era
realmente um deserto, salvo algumas poucas almas que, aqui ou
acolá, transitavam em passos rápidos com suas máscaras brancas a
cobrir-lhes os rostos assustados. Um único casal sentado em um
dos bancos da Praça São Sebastião, reacendeu-me uma esperança
de venda, de modo que me aproximei deles e ofereci meus
trabalhos. A jovem arregalou seus olhos atrás da máscara e disse:
“Não moça, pode estar contaminado.”
27. Edição do Caos
| - 27 - |
“Não, não está não, fique tranqüila, está esterilizado com álcool gel.”
Tentei acalmá-la. Em vão. Levantaram-se e partiram apavorados
como se eu fosse o próprio vírus em pessoa. Sentei-me desolada
nas escadas do Monumento dos Portos e olhei ao redor. Nenhuma
viva alma. Nada. Me senti verdadeiramente dentro das páginas de
“A PESTE”, do Camus. Fiquei assim, um bom tempo perdida e
desnorteada, quando vi se aproximar um sujeito de uma perna só,
apoiado em uma muleta. Veio vindo em minha direção:
“Oi Principe!” Ele teimava em me chamar de príncipe por mais que
eu tentasse persuadi-lo de seu grande equívoco. Mas daí pensei que
de nada adiantaria agora mudar seu olhar, uma vez que estávamos
na eminência do mundo acabar. Relevei. Ele então disse:
“Tá difícil, né, príncipe? Tem uma moedinha aí pro irmão?” Olhei
bem pra ele. Estávamos na mesma merda. Ele bem mais fodido que
eu. Catei uma moeda de um real no fundo de minha bolsa e dei a
ele. Em troca ofereceu-me um gole de seu corote:
“Não, obrigada. Guarda pra ti, vais precisar pra enfrentar o frio.” Ele
sorriu, agradeceu a moeda, e antes de partir, me disse:
“E todo mundo pensava que fosse um asteróide que poria fim a tudo
isto, mas foi um viruszinho de merda, né príncipe?” Não soube o que
dizer. Ele deu uma golada em sua garrafinha, e dando as costas
para mim seguiu seu caminho com sua única perna. Foi a última
alma penada que vi naquela noite de sábado do dia 21. Depois fiquei
completamente só, ali sentada nos degraus do Monumento dos
Portos. Nada mesmo agora em torno de mim. Nem mesmo um
ratinho de esgoto. Nada! Senti um engasgo. Um aperto terrível. Uma
vontade imensa de chorar. Cheguei a verter um filete de lágrima,
mas lembrei de uma frase que minha mãe dissera uma semana
antes de morrer: “Quando se sentires sozinho, seja forte, não chore
e nem baixe a cabeça. Eu pari um homem!” Foi o que dona Eunice
me disse. Engoli o choro. O engasgo. Levantei-me, sacudi a poeira
de minha saia, ajeitei com minhas mãos o meu maxilar arriado e fora
do lugar, e olhei para a frente com coragem...
28. 7 dias cortando as pontas dos dedos
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Emmanuel 7Linhas ǀ Vitória/ES.
blog: artistatleta7linhas.blog
MÁSCARAS
Procurei pelas máscaras que me livrariam da doença que assola a
humanidade
Máscaras de carne que me isolam de pessoas descartáveis
Apresentaram-me a cansada e batida máscara do louco, mas esta
não me cabe mais, nem um pouco
Pelo odor de toda mentira que ela me traz
Assim também como não me cabe a máscara dos imortais
Dos céticos, nem os anti-sépticos
A máscara do zorro, ou do V de vingança, na vã esperança heroica
do socorro
Mas que a Luz de Zambi se derrame sobre o EPI dos enfermeiros,
dos maqueiros, dos cozinheiros, dos faxineiros, recepcionistas,
curandeiros e dos médicos
Sob as máscaras de ironia dos jornalistas éticos
As máscaras dos palhaços, que em meio ao céu nublado, trazem o
sol sorriso à criança em ambiente hospitalar isolado
A queda da máscara do desprezo e achincalhamento, pelos velhos e
imunodepressivos
A máscara que protege a identidade dos nocivos
A máscara dos banqueiros e seus lucros excessivos
Que caia pra dar lugar ao solitário solidário que se preocupa com o
vizinho velhinho e pergunta-lhe se precisa que lhe auxiliem um
bocadinho
Diferente das máscaras dos pseudo-neo-liberais, ao aguardar
sedentos e irrascíveis, os financiamentos estatais
Com suas luvas de fino trato, cobrindo a mão invisível do mercado,
que se aproveita da falta de vergonha na cara da ganância
intempestiva
A máscara dos falsos profetas vendendo curas e mentiras colossais
Saravá o véu que nos cobre enquanto máscara da ancestralidade,
buscando inspiração em seus Orixás
A máscara de Cronos
A máscara do chaos
As luvas do goleiro na hora do tiro colossal
29. Edição do Caos
| - 29 - |
A máscara que esconda as dores do universo
Que transforme, cores, sons, palavras, choros e versos
A máscara da noite, bordada de estrelas e sonhos
A máscara do dia, que ilumina o destino das vidas entrelaçadas, por
desejos quentes e certezas frias
A máscara da infância empretecida pela fuligem do carvoeiro
A máscara do batom retocado no banheiro, no rosto esbofeteado
pelo companheiro
E se por entre todas as máscaras disponíveis, não encontraríeis eu
a minha
Que eu não lave as minhas mãos para livrar-me do sangue que por
entre meus dedos escorreria
Por vestir a máscara da humanidade, e encarar-me frente ao
espelho da verdade, da culpa, do individualismo e da hipocrisia
Que se caia então
Antes que os corpos
Antes que as mentes
As máscaras da ilusão
30. 7 dias cortando as pontas dos dedos
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Monique Brito ǀ [farm.artista], Niterói/RJ.
moniquebrito@id.uff.br
A NOITE E AS CERTEZAS
Pela manhã, estarrecidos, ouvimos
um ministro que ecoa o nazismo, convocando
artistas conservadores a criar uma máquina
de guerra cultural.
‘Eu não preciso de artistas, muito menos de
esquerda’, grita o bolsoseguidor.
À tarde, ao iniciar as análises no laboratório
da Universidade, vemos que falta clorofórmio
isento de amideto e que precisamos de
manutenção para o polarímetro e a capela.
‘Ciência pra que, a Universidade é balbúrdia’,
grita o bolsoseguidor.
Á noite, protegida pela ondansetrona e
munida com minha panela, é a minha vez.
‘Fora Bolsonaro’, grito eu, artista e
professora.
32. 7 dias cortando as pontas dos dedos
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Gigio Ferreira ǀ Belém/PA.
facebook.com/gigio.ferreira
AS PULGAS NO CASACO DE LÃ ORANGE
Até que toda carne se desprenda dos ossos/assim como a dúvida
fez com a certeza/
Um gole de fatídica apatia/ refaça histéricas tempestades dentro do
copo/ começando a olhar a história com outros olhos/ não mais os
cínicos que pegamos emprestado/ quando ainda não existia a ponte
construída/ por jovens suicidas...
Mesmo após inúmeras mensagens e alertas/ de que escutassem
mais os velhos vinis arranhados / gerando assim o poeta lúcido
interpretado pelo mundo melancólico.
Recebemos lápis e tintas/ entretanto/ as alegorias mais tolas ainda
consomem nossas coragens.../ ninguém aqui falou ainda como se
mata quando se vende/ as velhas ruas foram isoladas nas novas
cidades/ que os loucos seriam os primeiros a sentir o corpo
falhando/ e o cego percebesse que o seu cãozinho/ apenas abriu a
porta de casa/ achando todas as crises normais fins de tarde...
Após quase um dia preso às correntes/ vá aos poucos cedendo sua
cadeira de embalo/ aos pesadelos que ocuparão o espírito de
madrugada/ você está vendo aquela espingarda pendurada na
parede?/ ela não embrulhou e nem serviu de tripas às estrelas/ mas
é útil para se contar histórias/ de mortes dizendo: nada/ mas é
ouvindo que temos esperanças/ apesar da beleza natural/ estamos à
mercê da sua vulgaridade/ jovens não precisam dessas falas/ e
como tudo aquilo que foge precisa de um destino/ que o conteúdo
não estique o sangue/ mas uma vez escrito/ que você nasça: belo,
estranho e distante das valas!
33. Edição do Caos
| - 33 - |
Camila Passatuto ǀ São Paulo/SP.
facebook.com/camila.passatuto
FUI EMBORA ALGUMAS VEZES
Sempre expulsa de cômodos vermelhos, úmidos e sem paciência.
Em todas, em todas mesmo, vi bocas assustadas aviltar o modo
exagerado com que limo vida e corpo.
Tenho os olhos doentes. Caídos nas mãos de uma santa qualquer,
presos na fila do banco a roer as ancas da próxima a ser chamada
ao balcão higienizado.
As notícias nunca são boas. E fico só, ao ler e-mails cruentos de
remetentes famintos, à espera de um trago de som e cor que um
cigarro bobo pode oferecer.
As notícias não são boas, menina. Confirma?
Sumi algumas vezes. Quando todos se foram e, tolhida até os
nervos, manejei a poesia pecaminosa que nenhum servo ousou
esculpir, sumi entre lembranças infelizes dos que me ansiavam
longe.
Fui. Como os tubarões de um sonho infante, como as beiras
salientes e intocáveis das secundaristas tímidas, como peleja de
mãe em dia de morte.
Ainda prego as mãos em muros com grafites antigos. Toda
obscenidade de um país-menino se mostra nos calos fendidos de
seres perdidos. Ainda rezo às treze almas, menina.
As notícias te esfolaram como jamais consegui, não é mesmo?
Entre cerdos, canto Little Girl Blue.
Estou longe. Tenho a alma doente de eternidades.
34. 7 dias cortando as pontas dos dedos
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Perdoa.
-
Cartões postais
apodrecem
em paredes brancas.
Os inimigos
armados,
meninos fortes
Ornejos compassivos.
-
Estava a faquir
por ti
entende?
Só por ti, mulher.
Protegi teus filhos
da tristeza
tua
Foi afável.
-
Teus olhos
mataram a concórdia
(e minha bastarda existência).
Foi deleitável?
Foda-se
até o fim,
amor.
35. Edição do Caos
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João Farias ǀ Vive no sertão /AL.
blog: apenasumrapazlatino.tumblr
O AMOR & A POLÍTICA
Apaixonado pelas controvérsias da vida,
Sendo fiel aos meus delírios
Escapando para os sonhos quando a
realidade não basta, diria Ian Viana
É preciso crer na fantasia!
Entender a língua do Curupira para modificar o Brasil
O garoto tropical cultivando em sementes o nome de Fidel
Deixando o amor escorrer pelos seus olhos
no largo rosto pardo
A lembrança do rosto de Che em flâmulas delicadas
Uma paixão-operária pela esposa do meu antigo patrão
Eu sempre falei que valeria a pena morrer na
ponta do punhal por duas coisas
O Amor & a Política
Tenho costurado o silêncio atroz nas minhas palavras
Acordo todos os dias com o gigantismo de
uma ausência penetrando em mim
Esse ódio avassalador escondido dentro de mim
Entrando em meus ouvidos aquela frase dita por Mano Brown
“Violentamente pacífico”
A rebeldia beatnik esquecida nos corações dos jovens
Você está para mim, Marighella, como a poesia em minha garganta
Essa saudade carnívora da liberdade de outrora que me devora
O cheiro de mamão tem que surgir pros sertanejos também
Um protótipo nazista chupando Bolsonaro
Com a porra de um vírus assolando a humanidade
E a ópera cantando devagarzinho o fim apocalíptico do mundo
E eu pensando nos seus beijinhos me acordando de madrugada,
Yasmin.