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This periodical is indexed in the ATLA Religion Database, published by the American
Theological Library Association, 250 S. Wacker Dr., 16th
Flr., Chicago, IL 60606, USA,
e-mail: atla@atla.com, www.atla.com.
Fides Reformata também está incluída nas seguintes bases indexadoras:
CLASE (www.dgbiblio.unam.mx/clase.html), Latindex (www. latindex.unam.mx),
Francis (www.inist.fr/bbd.php), Ulrich’s International Periodicals Directory
(www.ulrichsweb.com/ulrichsweb/) e Fuente Academica da EBSCO
(www.epnet.com/thisTopic.php?marketID=1&topicID=71).
Editores Gerais
Daniel Santos Júnior
Dario de Araujo Cardoso
Editor de resenhas
Filipe Costa Fontes
Redator
Alderi Souza de Matos
Editoração
Libro Comunicação
Capa
Rubens Lima
Fides reformata – v. 1, n. 1 (1996) – São Paulo: Editora
Mackenzie, 1996 –
Semestral.
ISSN 1517-5863
1. Teologia 2. Centro Presbiteriano de Pós-Graduação
Andrew Jumper.
CDD 291.2
INSTITUTO PRESBITERIANO MACKENZIE
Diretor-Presidente José Inácio Ramos
CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO ANDREW JUMPER
Diretor Mauro Fernando Meister
Igreja Presbiteriana do Brasil
Junta de Educação Teológica
Instituto Presbiteriano Mackenzie
Volume XXII · Número 2 · 2017
Edição ESpEcial
5º cEntEnário da rEforma protEStantE
CONSELHO EDITORIAL
Augustus Nicodemus Lopes
Davi Charles Gomes
Heber Carlos de Campos
Heber Carlos de Campos Júnior
Jedeías de Almeida Duarte
João Alves dos Santos
João Paulo Thomaz de Aquino
Mauro Fernando Meister
Valdeci da Silva Santos
A revista Fides Reformata é uma publicação semestral do
Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.
Os pontos de vista expressos nesta revista refletem os juízos pessoais dos autores, não
representando necessariamente a posição do Conselho Editorial. Os direitos de publicação
desta revista são do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.
Permite-se reprodução desde que citada a fonte e o autor.
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ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA
Revista Fides Reformata
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Editorial
Em 31 de outubro de 2017 completam-se 500 anos do marco histórico da
Reforma Protestante. O monge agostiniano Martin Luther, professor de Bíblia
da Universidade de Wittenberg, afixou nas portas da igreja da cidade 95 teses
que criticavam a prática da venda de indulgências por ameaçar o verdadeiro
tesouro da igreja: o evangelho. Essa publicação provocou uma discussão de
proporções seculares e deu ocasião à maior cisão da Igreja do ocidente na
história. As repercussões do movimento iniciado por Lutero transformaram
completamente a sociedade e a cultura da Europa e, nestes 500 anos, alcan-
çaram todo o mundo.
São incalculáveis os tesouros teológicos acumulados nesse período.
A Reforma Protestante teve papel fundamental em grandes transformações
eclesiásticas, políticas, científicas, educacionais, culturais, sociais, etc. Por
outro lado, meio milênio é tempo suficiente para o esquecimento de verdades
preciosas e o (res)surgimento de velhos e novos enganos e distorções da fé e
da prática cristãs. Nem tudo são flores nesses quinhentos anos.
Nesta edição especial da revista Fides Reformata, os professores do Centro
Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper reuniram-se para promover
um mergulho na história e no pensamento da Reforma Protestante.
No primeiro artigo – “A Reforma e os historiadores” – Alderi Souza de
Matos apresenta as diferentes abordagens e avaliações de historiadores so-
bre a Reforma Protestante e traz à luz os desafios envolvidos no estudo e na
compreensão de movimentos históricos. Em seguida, em “O papel da música
na Reforma e a formação do Saltério de Genebra”, Dario de Araujo Cardoso
descreve as contribuições que Lutero e Calvino trouxeram no que diz respeito
ao uso da música no culto e ao canto congregacional. Destaca como os refor-
madores reconheceram e utilizaram o poder de mobilização e edificação da
música para a promoção dos valores da Reforma.
No terceiro artigo – “Lutero e os antinomistas: Qual é a visão evangélica
da lei?” – Heber Carlos de Campos Jr. mostra que o movimento reformado
não era monolítico e apresenta uma das discussões internas ao luteranismo
acerca da relação do arrependimento com a lei e o evangelho. O texto mostra
como Lutero, Melanchton e João Agrícola discutiram sobre a necessidade de
pregar a lei para promover o arrependimento. Mostra também que a resposta
antinomista à discussão da relação entre lei e evangelho, longe de ficar restrita
ao contexto luterano, ressurgiu entre os ingleses e está presente no cenário
evangélico contemporâneo. Vemos assim que o antinomismo é um desafio
frequente a ser enfrentado pela teologia oriunda da Reforma.
O artigo “O perigo a ser evitado numa reforma”, de Heber Carlos
de Campos, apresenta-nos dois aspectos da teologia de Melanchton que se
afastaram do pensamento de Lutero. Eles dizem respeito à participação do
homem na salvação e à presença de Cristo na Ceia. O artigo mostra como esse
distanciamento posteriormente causou conflitos e divisões entre os luteranos
e levou Melanchton a perder o lugar de destaque que possuía nessa tradição
da Reforma.
A escatologia tem sido apontada como o aspecto ausente do pensamento
da Reforma. Entretanto, o artigo “O pensamento escatológico de Calvino”,
de Leandro Antonio de Lima, faz-nos perceber que importantes tópicos desse
campo da teologia estão presentes nos escritos de Calvino. O reformador ge-
nebrino escreveu sobre oAnticristo, a vida futura, a ressurreição, o milênio e o
estado intermediário. O artigo trata, por fim, da percepção de Calvino sobre as
limitações da linguagem humana para descrever como será o mundo vindouro,
chamando nossa atenção para os cuidados necessários a essa discussão.
Os estudos hermenêuticos fazem-se presentes no artigo “Ahermenêutica
cristotélica de João Calvino”, de João Paulo Thomaz de Aquino. Nele vemos
que Calvino praticou uma interpretação que buscava demonstrar como os textos
doAntigo Testamento apontavam para Cristo. Para ilustrá-la o autor apresenta
afirmações de Calvino sobre a lei, os profetas e os salmos. O artigo também
promove uma comparação com a abordagem de Erasmo de Roterdã, chamada
de cristológica, e a de Lutero, denominada cristocêntrica.
Os debates teológicos também são o tema do artigo “Calvino e o lapsaria-
nismo”, de JoãoAlves dos Santos. Os calvinistas dividiram-se em dois grandes
grupos no que diz respeito à relação entre os decretos da eleição e da reprovação
dos homens. Tanto supralapsarianos quanto infralapsarianos afirmam seguir
o pensamento do Calvino sobre o tema. O artigo analisa a discussão e mostra
que uma pesquisa nos escritos de Calvino, ainda que forneça algum apoio, não
confirmará as alegações de nenhum dos grupos.
O artigo em inglês dessa edição foi escrito por Elias Medeiros. “The re-
formers and missions: Warneck, Latourette, Neill, Kane, Winter, and Tucker’s
arguments – part 2” é a continuação do artigo publicado por Medeiros na edi-
ção de 2013-1 de nossa revista. Seu objetivo é contestar, com base em obras
primárias, a tese de alguns historiadores de que os reformadores não tinham
preocupação com missões estrangeiras.
A seção de resenhas continua o espírito celebrativo da edição e também
se dedica a obras que fazem referência à Reforma. Nesta edição trazemos
avaliações dos livros Calvino e a Vida Cristã, O Legado Missional de Calvino,
O Pensamento da Reforma e Cuidado com o Alemão.
Dario deAraujo Cardoso apresenta-nos Calvino e a Vida cristã, do norte-
-americano Michael Horton. Através de uma rica exposição, a obra busca
mostrar que a teologia de Calvino não provém de um intelectualismo árido,
mas está calcada num sólido e frutífero conceito de piedade.
Filipe Costa Fontes escreveu a resenha de O Legado Missional de Calvino,
do inglês Michael Haykin e do estadunidense C. Jeffrey Robinson. A obra
busca mostrar a presença do conceito de missões no pensamento e nas ações
de Calvino. Apresenta também como o tema foi abordado pelos herdeiros
da tradição calvinista. Na resenha de O Pensamento da Reforma, do norte-
-irlandêsAlister McGrath, Filipe Fontes convida-nos a uma leitura abrangente,
didática e instrutiva da história e do pensamento da Reforma em seu caráter
eminentemente religioso.
Na resenha de Cuidado com o Alemão, do português Tiago Cavaco, o
convite de Tarcízio José de Freitas Carvalho é para conhecer mais profunda-
mente o impacto do pensamento de Lutero sobre sua época e sobre a cultura
ocidental posterior.
Em face do atual contexto de imediatismo existencial que despreza o
passado e reduz o futuro à projeção de interesses pessoais, esta edição de Fides
Reformata permitirá ao leitor um vislumbre da grandeza e da abrangência dos
eventos e do pensamento da Reforma e o desafiará a refletir com mais profun-
didade sobre como as ações e movimentos do presente refletem o passado e
qual o potencial de seus efeitos para o futuro.
É um prazer apresentar a edição especial de Fides Reformata dedicada
à celebração dos 500 anos da Reforma Protestante. Esperamos que ela seja
de grande contribuição espiritual e acadêmica para todos os que a receberem.
Sejam todos bem-vindos.
Dr. Dario de Araujo Cardoso
Editor
Sumário
Artigos
A reforma e os historiadores
Alderi Souza de Matos...................................................................................................................	11
O papel da música na Reforma e a formação do Saltério de Genebra
Dario de Araujo Cardoso..............................................................................................................	23
Lutero e os antinomistas: Qual é a visão evangélica da lei?
Heber Carlos de Campos Júnior...................................................................................................	43
O perigo a ser evitado numa reforma
Heber Carlos de Campos...............................................................................................................	67
O pensamento escatológico de Calvino
Leandro Lima.................................................................................................................................	85
A hermenêutica cristotélica de João Calvino
João Paulo Thomaz de Aquino......................................................................................................	99
Calvino e o lapsarianismo: uma avaliação de como Calvino pode ser lido
à luz da discussão supra e infralapsariana
João Alves dos Santos....................................................................................................................	117
The reformers and missions: Warneck, Latourette, Neill, Kane, Winter,
and Tucker’s arguments – part 2
Elias Medeiros...............................................................................................................................	139
Resenhas
Calvino e a vida cristã (Michael Horton)
Dario de Araujo Cardoso..............................................................................................................	163
O legado missional de Calvino (M. A. G. Haykin e C. J. Robinson)
Filipe Costa Fontes........................................................................................................................	169
O pensamento da Reforma (Alister Mcgrath)
Filipe Costa Fontes........................................................................................................................	175
Cuidado com o alemão – Três dentadas que Martinho Lutero dá à nossa época
(Tiago Cavaco)
Tarcizio Carvalho...........................................................................................................................	179
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22
11
*	 Doutor em Teologia (Th.D.) pela Escola de Teologia da Universidade de Boston, professor de
teologia histórica no CPAJ, historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil.
A Reforma e os Historiadores
Alderi Souza de Matos*
RESUMO
A Reforma Protestante, movimento que completa o seu 5º centenário,
tem sido objeto de intenso escrutínio por parte dos estudiosos. Esse interesse
se deve à relevância do fenômeno e suas vastas consequências para o mundo
moderno. Ao mesmo tempo, trata-se de um tema altamente controvertido, no
qual variam grandemente as perspectivas e interpretações. Inicialmente, este
artigo faz algumas considerações historiográficas gerais, passando em seguida
a abordar alguns tópicos que têm sido objeto de divergências e reconsiderações
nas últimas décadas. São eles o caráter múltiplo da Reforma do século 16, suas
fontes intelectuais, sua motivação prioritária e suas consequências. Por últi-
mo, são feitas algumas considerações sobre o legado duradouro desse evento
histórico iniciado há 500 anos.
PALAVRAS-CHAVE
Reforma Protestante; 500 anos da Reforma; Historiografia; Historiadores;
Interpretações da Reforma.
INTRODUÇÃO
Como é natural, o transcurso do 5º centenário da Reforma Protestante
tem suscitado um grande número de reflexões de natureza bíblica, teológica,
litúrgica e pastoral. Embora essas perspectivas sejam altamente relevantes, as
comemorações, por sua própria natureza, remetem em primeiro lugar ao aspecto
histórico. É acima de tudo um evento ou conjunto de eventos – o início do
movimento protestante – que está sendo lembrado.Ao mesmo tempo, o estudo
ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES
12
do protestantismo emergente como fenômeno histórico levanta uma série de
questões teóricas e metodológicas que precisam ser consideradas.
Desde o seu início, a Reforma tem sido objeto de diferentes interpreta-
ções e avaliações, dependendo da perspectiva do estudioso. Por muito tempo,
as abordagens foram fortemente condicionadas por preocupações polêmicas
e apologéticas de protestantes e católicos, ou mesmo dos diferentes grupos
evangélicos. A partir do século 18, com o desenvolvimento da história em
bases científicas, surgiu um tratamento mais objetivo e menos partidário do
tema. Porém, dada a imensa complexidade da Reforma em suas múltiplas di-
mensões – religiosa, teológica, política, social – multiplicaram-se grandemente
as interpretações de suas origens, natureza e significado.
Este artigo considera inicialmente alguns aspectos historiográficos gerais
para então se concentrar nas maneiras pelas quais a Reforma tem sido avaliada
por diferentes historiadores recentes, religiosos e seculares, progressistas e
conservadores. Vale lembrar que, ao lado das inevitáveis diferenças de pers-
pectiva, as extensas pesquisas das últimas décadas também têm resultado em
alguns consensos importantes e valiosos no que diz respeito a muitos aspectos
da Reforma. No final, são feitas algumas considerações sobre a relevância atual
da obra dos reformadores.
1.	QUESTÕES HISTORIOGRÁFICAS
James Bradley e Richard Muller observam que “antes de meados do
século 18, o estudo da história da igreja era acrítico; ela era quase invariavel-
mente escrita desde uma perspectiva confessional, sendo qualquer coisa menos
desinteressada”.1
Dois exemplos clássicos são encontrados no próprio século 16.
Um deles são as famosas Centúrias de Magdeburgo (1559-1574), escritas por
um grupo de estudiosos liderados por Matias Flacius Illyricus. Essa história
da igreja produzida sob o ponto de vista luterano procurou demonstrar que
o luteranismo era uma afirmação do que havia de melhor na antiga tradição
cristã. Em resposta, o erudito católico César Barônio publicou seus igualmente
volumosos Anais Eclesiásticos (1588-1607), argumentando em favor da conti-
nuidade entre o catolicismo do século 16 e os primeiros séculos da era cristã.2
Em meados do século 18, na esteira do Iluminismo e em certa medida
do Pietismo, duas mudanças básicas de perspectiva foram essenciais para o
surgimento da historiografia crítica: maior preocupação científica com a aná-
lise de documentos originais e liberdade para interpretar as fontes de maneira
mais isenta e objetiva. Surgiu assim uma importante linhagem de historiadores
em moldes científicos, todos eles alemães, a começar de Johann Lorenz von
1	 BRADLEY, James E.; MULLER, Richard A. Church history: An introduction to research,
reference works, and methods. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1995, p. 11. Minha tradução.
2	 GONZÁLEZ, Justo L. The changing shape of church history. Saint Louis, MO: Chalice Press,
2002, p. 133-136.
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22
13
Mosheim (1694-1755), considerado “o pai da história da igreja”. Vieram a
seguir, sob a influência do movimento romântico, Gottfried Herder (1744-1803),
August Neander (1789-1850) e Friedrich Tholuck (1799-1877). Nos Estados
Unidos, um personagem muito influente foi Philip Schaff (1819-1893), consi-
derado o pai da história da igreja americana. Todos eles se preocuparam com a
objetividade no estudo histórico, com dados factuais e com a dedução de leis
gerais de desenvolvimento histórico.3
Ao longo da primeira metade do século 20 ocorreu uma oscilação nes-
se último tópico, alguns historiadores questionando e outros defendendo a
importância da busca de significado na história da igreja e a possibilidade de
uma visão objetiva do passado. As décadas mais recentes, posteriores a 1950,
testemunharam vários desdobramentos historiográficos importantes, como o
surgimento do interesse pela participação histórica das mulheres e de grupos
minoritários; a chamada “nova história”, com seu apelo às ciências sociais;
a ênfase na micro-história, com sua concentração em tópicos extremamente
delimitados, e o enfoque mais colaborativo e interdisciplinar. Bradley e Muller
defendem que o alvo do historiador deve ser a reintegração das partes analisadas
separadamente em um todo maior, de âmbito mais geral.4
Uma questão permanentemente debatida tem a ver com a objetividade no
estudo da história. Nos séculos 19 e 20 esse interesse se tornou o principal crité-
rio de avaliação nas ciências históricas, conforme exemplificado por estudiosos
como Leopold von Ranke eAdolf von Harnack. Dizia-se que “a principal tarefa
da história era apresentar os eventos como eles aconteceram e até mesmo lê-los
com tamanha objetividade que o historiador os entendia melhor do que aqueles
que os vivenciaram”.5
Todavia, o que se constatou é que nenhum historiador é
totalmente isento, mas transfere para o seu trabalho suas preferências, pressu-
posições e compromissos filosóficos. Para muitos estudiosos, essa ânsia pela
objetividade é na verdade algo indesejável. O pesquisador mexicano Carlos
Rojas considera o mito da objetividade e da neutralidade um “pecado capital”
dos historiadores não críticos.6
Um simpatizante do pensamento marxista, ele
acredita que é impossível conceber-se uma história na qual o estudioso não se
envolva de algum modo, mantendo total desinteresse e indiferença.7
Essas considerações têm evidente relevância para os estudos históricos
sobre a Reforma Protestante. Essa história só poderá ser entendida adequa-
damente mediante o estudo criterioso das fontes documentais primárias e
3	 BRADLEY e MULLER, Church history, p. 13-20.
4	 Ibid., p. 25.
5	 GONZÁLEZ, The changing shape, p. 139. Minha tradução.
6	 ROJAS, Carlos Antonio Aguirre. Antimanual do mau historiador. Ou como se fazer uma boa
história crítica? Londrina, PR: Eduel, 2007, p. 29.
7	 Ibid., p. 30.
ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES
14
secundárias. Essa história precisará deter-se nos aspectos pontuais, tais como
personagens e eventos, e ao mesmo tempo relacioná-los com o quadro mais
amplo, o contexto religioso-político-social da Europa quinhentista. Essa história
deve buscar a objetividade e a serenidade na análise dos dados, sem deixar
de lado a simpatia pelo assunto, o envolvimento pessoal com os temas sob
estudo. Para os cristãos que creem na ação providencial de Deus, ela também
inclui a busca de significados maiores, muitas vezes não inteiramente óbvios,
que trazem lições para a contemporaneidade.
2.	ABORDAGENS DOS HISTORIADORES
São muitos os estudiosos que se têm debruçado sobre o estudo histó-
rico da Reforma, quer como pesquisadores da história da igreja em geral,
quer como especialistas sobre os próprios fenômenos do século 16. Entre os
primeiros, são mais conhecidos nos círculos protestantes indivíduos como
Williston Walker, Kenneth S. Latourette, Owen Chadwick, Earle E. Cairns e
Howard Clark Kee; entre os últimos, Thomas M. Lindsay, John T. McNeill,
James Hastings Nichols, Roland Bainton, Harold J. Grimm e muitos outros.8
Todavia, o objetivo deste artigo é considerar as abordagens e interpretações
sobre a Reforma fornecidas por uma geração mais recente de historiadores de
diferentes persuasões. Trata-se de uma lista seletiva e exemplificativa, visto
ser impossível considerar todos os autores que têm se dedicado ao tema. O
objetivo é fornecer um panorama dos principais interesses e enfoques que os
estudiosos da Reforma têm demonstrado na atualidade.
2.1	 Pluralidade de reformas
Até algum tempo atrás, falava-se sempre em “Reforma do século 16”,
no singular, como se ela fosse um movimento monolítico e uniforme. Além
disso, o termo era aplicado quase que exclusivamente às igrejas protestantes,
à exclusão da Igreja Católica Romana. Hoje é lugar comum na historiografia
falar-se nas “reformas” ocorridas naquele período. Isso pode ser percebido, por
exemplo, em textos do luterano Carter Lindberg, professor emérito de história
da igreja na Escola de Teologia de Universidade de Boston, como o conjunto
de ensaios “A Idade Média tardia e as reformas do século 16”9
e o importante
livro As Reformas na Europa.10
8	 A mais antiga história da Reforma publicada continuamente no Brasil até o presente é História
da Reforma do Décimo Sexto Século, do pastor protestante suíço Jean-Henri Merle D’Aubigné (1794-1872).
O primeiro a traduzir essa obra para o português foi o escritor Júlio Ribeiro.
9	 Parte III de: KEE, Howard Clark et al. Christianity: A social and cultural history. Nova York:
Macmillan; Toronto: Collier Macmillan, 1991.
10	 LINDBERG, Carter. As reformas na Europa. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2001. Outra ocorrência
do conceito pode ser encontrada em: DOWLEY, Tim (Org.). História do cristianismo: Guia ilustrado.
Venda Nova, Portugal: Bertrand, 1995, p. 410.
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22
15
Essa ênfase significou uma valorização de dois grupos em particular – os
anabatistas e os católicos romanos. Por muito tempo, a chamada “reforma ma-
gisterial”, ou seja, o luteranismo, a reforma suíça e o anglicanismo, recebeu
todas as atenções. Trata-se dos grupos protestantes originais que receberam
forte apoio e envolvimento dos magistrados, as autoridades civis. A “reforma
radical”, representada principalmente pelos anabatistas, era o “primo pobre”
do século 16, ocupando um lugar periférico nos estudos sobre a Reforma Pro-
testante. Hoje, esse movimento recebe grande atenção dos pesquisadores, que
reconhecem sua importância, originalidade e contribuições.
Quanto à Igreja Romana, tradicionalmente se falava apenas em “Con-
trarreforma”, algo que incluía a Inquisição, a ação dos jesuítas e as guerras
religiosas. Sem deixar de reconhecer esse fenômeno de grandes consequências,
a maior parte dos autores atuais argumenta que também houve uma verdadeira
“Reforma Católica”, certamente diferente do que ocorreu no âmbito do protes-
tantismo, porém ainda assim um conjunto de esforços que revelaram genuíno
interesse em corrigir antigos males e aperfeiçoar o arcabouço doutrinário dessa
igreja. A principal expressão dessa reforma católica foi o Concílio de Trento
(1545-1563).
2.2	 As origens da Reforma
Tradicionalmente, as fontes do movimento protestante e do pensamento
dos reformadores sempre foram associadas com a Bíblia e com o período pa-
trístico, notadamente o pensamento amadurecido do grande bispo e teólogo
Agostinho de Hipona. Era como se os reformadores do século 16 tivessem
se reportado somente ao cristianismo antigo, não tendo recebido nenhuma
influência do seu próprio tempo ou dos séculos imediatamente anteriores.
Hoje se reconhece que as origens da Reforma também devem ser buscadas no
escolasticismo do final da Idade Média e no humanismo renascentista. Um dos
autores que trabalham essa questão é o historiador e teólogo irlandês Alister
McGrath, em seus livros Origens Intelectuais da Reforma e O Pensamento
da Reforma.11
Apesar de sua imagem negativa, o escolasticismo foi um importante
esforço no sentido de justificar racionalmente as crenças cristãs por meio da
reflexão filosófica, e apresentá-las de modo sistemático, formando um sistema
intelectual abrangente e integrado. Foi, assim, um modo particular de articu-
lar e estruturar a teologia. A chamada escolástica teve duas fases, a primeira
dominada pelo “realismo” (c.1200-c.1350) e a segunda pelo “nominalismo”
(c.1350-c.1500), posições opostas no que diz respeito à existência concreta dos
conceitos universais. O escolasticismo do tipo realista teve duas manifestações,
11	 MCGRATH, Alister E. Origens intelectuais da Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2007; O
pensamento da Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.
ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES
16
o tomismo (de Tomás de Aquino) e o scotismo (de Duns Scotus), os quais não
exerceram maior influência sobre a Reforma. A vertente nominalista também
se dividiu em duas alas, a via moderna e a schola augustiniana moderna, sen-
do a primeira de tendência pelagiana e a segunda alinhada com a teologia de
Agostinho e sua ênfase na plena soberania de Deus na salvação. Esta última
teve um impacto considerável no pensamento de Lutero.
Quanto ao humanismo, McGrath observa: “Dos muitos afluentes inte-
lectuais e culturais que contribuíram para o fluxo da Reforma, provavelmente
o mais importante foi o humanismo renascentista”.12
Os humanistas, ou seja,
os intelectuais do Renascimento, eram indivíduos religiosos e se interessavam
pela renovação da igreja. Seu famoso lema Ad fontes – “de volta às origens” –
dirigiu suas atenções não somente para os textos da antiguidade clássica de
um modo geral, mas para uma obra em particular, a Bíblia, vista como o
instrumento para dinamizar e revitalizar o cristianismo da época. Quem mais
insistiu nisso foi o holandês Erasmo de Roterdã, o “príncipe dos humanistas”,
em seu livro Enchiridion militis christiani (“Manual do soldado cristão”), no
qual exaltou o papel dos leigos e seu direito de amplo acesso à Escritura. Ele
também foi responsável por uma edição do Novo Testamento em grego e latim
(1516), que causou profundo impacto na época, em parte pelo fato de apontar
alguns erros de tradução na Vulgata de Jerônimo. McGrath argumenta que a
influência do humanismo foi muito maior na Reforma suíça do que na alemã.13
Alguns autores, como Pierre Chaunu e Steven Ozment, colocam as reformas
do século 16 num contexto mais amplo de reformas que vinham ocorrendo
desde o século 13.14
2.3	 A motivação primária
Uma questão constantemente discutida com relação à Reforma diz respeito
à sua natureza primordial. Historiadores com viés marxista tendem a ignorar
ou minimizar o aspecto religioso, não somente no que diz respeito à Reforma,
mas a qualquer outro fenômeno histórico. Para eles, indo contra tantas evidên-
cias factuais, a religiosidade é uma questão subalterna, decorrente de outros
fatores de maior relevância histórica. Carlos Rojas, ao defender a importância
de uma história total, afirma que “é igualmente relevante estudar o cultural, o
social, o econômico, ou o político, o psicológico, o geográfico, etc.”,15
deixando,
caracteristicamente, de mencionar o elemento religioso.
12	 MCGRATH, O pensamento da Reforma, p. 54.
13	 Ibid., p. 73-75.
14	 CHAUNU, Pierre. O tempo das reformas (1250-1550). 2 vols. Lisboa: Edições 70, 1993 (1975).
OZMENT, Steven. The Age of Reform 1250-1550: An intellectual and religious history of late medieval
and Reformation Europe. New Haven, CT: Yale University Press, 1980.
15	 ROJAS, Antimanual do mau historiador, p. 95.
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22
17
Todavia, existem aqueles que, mesmo reconhecendo a preponderância
do fator religioso na Reforma, nutrem uma desconfiança em relação ao
mesmo. Daí a advertência do ilustre historiador e teólogo holandês Heiko
Oberman, que lecionou nas universidades de Harvard, Tübingen e Arizona.
Ele argumentou que os estudiosos da Reforma devem resistir a algumas
tendências modernas. Uma delas é a atitude daqueles que, movidos por in-
tenções ecumênicas, atribuem a divisão da cristandade ocidental a disputas
dogmáticas vistas como “equívocos”. Oberman observa que qualquer apro-
ximação ecumênica feita dessa maneira só poderá ocorrer “se a doutrina
da justificação, central para a Reforma, for truncada para se encaixar nos
pronunciamentos do Concílio de Trento ou reformulada em termos de ser
a precursora da ‘autorrealização’ psicológica”. Ele conclui: “Em qualquer
caso, o preço é exorbitante: a própria doutrina da justificação”.16
Esse é, por
exemplo, um dos problemas com a chamada “nova perspectiva sobre Pau-
lo”, que considera inadequado o entendimento luterano e calvinista clássico
acerca da justificação pela fé somente.
De modo menos otimista, o autor Euan Cameron avalia que a Reforma foi
a primeira ideologia de massa dos tempos modernos. Todavia, ele reconhece
o primado do elemento religioso e doutrinário ao afirmar:
A qualidade singular da Reforma Protestante consiste no fato de que ela tomou
uma única ideia essencial; apresentou essa ideia a todos e incentivou a discus-
são pública; então deduziu dessa ideia o restante das mudanças no ensino e no
culto; finalmente, desmontou todo o tecido da igreja institucional e construiu
novamente a partir da estaca zero, incluindo somente o que era consistente com
a mensagem religiosa básica, e exigido por ela.17
Muitos historiadores contemporâneos negam que a Reforma tenha
resultado de uma suposta corrupção católica. O historiador Patrick Collin-
son, professor emérito de história moderna na Universidade de Cambridge,
observa: “Explicações da Reforma em termos de decadência, irreligião e
corrupção são as mais tradicionais e ainda infestam manuais medíocres”.18
Diarmaid MacCulloch, professor de história da igreja na Universidade de
Oxford, acrescenta:
16	 OBERMAN, HeikoA. The Reformation: roots and ramifications. Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1994, p. xii. Minha tradução.
17	 CAMERON, Euan. The European reformation. NewYork: Oxford University Press, 1991, p. 422.
Minha tradução.
18	 COLLINSON, Patrick. The late medieval church and its reformation: 1400-1600. In: MCMAN-
NERS, John (Org.). The Oxford Illustrated History of Christianity. Oxford: Oxford University Press,
1992, p. 246. Minha tradução.
ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES
18
Uma conclusão a ser tirada do acúmulo das pesquisas recentes sobre a Igreja
Latina antes da convulsão é que ela não era tão corrupta e ineficaz como os
protestantes tendem a retratá-la, e que ela em geral satisfazia as necessidades
espirituais das pessoas do final do período medieval.19
Ao mesmo tempo, esses autores reconhecem o tremendo apelo popular
que as ideias religiosas da Reforma exerceram no século 16. Falando sobre
o extraordinário crescimento do protestantismo na França, Collinson observa
que em 1560 mais da metade da nobreza era protestante e com ela grande
parte da nação. Esse fenômeno resultou de milhares de decisões pessoais de
abraçar o evangelho, tão pessoais como a constatação da esposa de um comer-
ciante de Lião “de que ela encontrava mais satisfação espiritual ao ler a sua
Bíblia e ao ouvir pregadores calvinistas do que nas ministrações do sacerdote
a quem devia confessar”.20
Collinson observa que na França, na Inglaterra e
na Holanda, centenas de pessoas comuns, de ambos os sexos, se dispuseram
a ser queimadas vivas por suas novas convicções protestantes, e conclui que a
Reforma “foi feita na sociedade, e não imposta sobre ela”.21
2.4	 As consequências da Reforma
A questão dos efeitos da Reforma ou da sua influência sobre a sociedade
e a cultura nos séculos posteriores, o chamado mundo moderno, é outro tema
altamente debatido nos estudos históricos.As opiniões acerca do assunto abran-
gem um espectro de grande amplitude, desde aqueles que, de modo ufanista,
atributem ao movimento protestante um conjunto estupendo de legados para
o mundo ocidental, até os que questionam ou relativizam tais contribuições.
Um exemplo dessa última atitude é o livro Reforma: o Cristianismo e o Mun-
do 1500-2000, de Felipe Fernández-Armesto e Derek Wilson, autores que
se identificam respectivamente como “um católico romano, com tentações
tridentinas às quais resiste nostalgicamente” e um “evangélico protestante,
com tendências carismáticas cultivadas parcimoniosamente”.22
Esses autores
opinam que as mudanças comumente atribuídas à Reforma parecem menos
convincentes com o passar do tempo e que “é difícil resistir à impressão de
que um preconceito favorável ao protestantismo influenciou a forma pela qual
alguns efeitos de grande alcance foram atribuídos a ele”.23
19	 MACCULLOCH, Diarmaid. The Reformation. NovaYork: Penguin, 2004, p. xx. Minha tradução.
20	 COLLINSON, The late medieval church and its reformation, p. 245. Minha tradução.
21	 Ibid. Minha tradução.
22	 FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe; WILSON, Derek. Reforma: o cristianismo e o mundo
1500-2000. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 12.
23	 Ibid., p. 372, 376. Ao mesmo tempo, o livro procura transmitir uma visão quase benigna da
Inquisição (p. 384).
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22
19
Poder-se-ia argumentar que a recíproca é inteiramente verdadeira: o pre-
conceito contra o protestantismo também pode contribuir para minimizar ou
relativizar as consequências muitas vezes atribuídas ao movimento. Entre os
efeitos questionados por esses dois autores estão o individualismo, a ascensão
do capitalismo, o declínio da magia, a revolução científica, o sonho america-
no e as liberdades civis. Tudo isso é intrigante diante do fato de que uma das
propostas do livro é conclamar católicos e protestantes a se unirem na luta
contra o secularismo.24
Outro autor que não tem simpatias pelas contribuições do protestantismo
é o historiador galês Christopher Dawson (1889-1970), educado como angli-
cano e convertido ao catolicismo. O título de um de seus livros, A Divisão da
Cristandade, expressa fielmente a sua posição. Para ele, a Reforma, acima de
qualquer outra consideração, provocou a ruptura da unidade cristã e os efeitos
foram catastróficos. Diz ele:
Ao longo de três séculos, o abismo entre o mundo católico e o protestante per-
sistiu e cresceu cada vez mais com o passar do tempo. E foi esse cisma cultural
e político, bem como religioso e eclesiástico, que, em última análise, foi o
responsável pela secularização da cultura ocidental.25
Uma atitude semelhante é demonstrada por Diarmaid MacCulloch, que,
embora não seja um protestante praticante, diz reter uma cordial simpatia pelo
anglicanismo no que ele tem de melhor. Para ele, no século 16 a “sociedade
ocidental, previamente unificada pela liderança simbólica do papa e pela posse
de uma cultura latina comum, foi dilacerada por profundos desentendimentos
sobre como os seres humanos devem exercer o poder de Deus no mundo,
discussões até mesmo sobre o que significava ser humano”.26
Uma das obras mais influentes sobre os primórdios da Reforma foi pu-
blicada em 1928 pelo historiador francês Lucien Febvre (1878-1956), um dos
fundadores da Escola dos Annales e precursor da chamada Nova História. Sua
magistral biografia de Lutero, calcada em vasta pesquisa documental, contempla
em especial os anos de 1517 a 1525 da vida desse “profeta inspirado”. O autor
chega a conclusões sombrias: para ele, o reformador alemão fracassou e seu
destino foi trágico. Em sua avaliação, quando Lutero, no final da vida, “lançava
24	 Nos anos 60, no contexto do Concílio Vaticano II, autores católicos publicaram avaliações mais
positivas da Reforma. Por exemplo: DANIEL-ROPS, Henri. A igreja da Renascença e da Reforma. São
Paulo: Quadrante, 1996 (1961); DOLAN, John P. History of the Reformation: a conciliatory assessment
of opposite views. Nova York: Desclee, 1965.
25	 DAWSON, Christopher. A divisão da cristandade: da Reforma Protestante à era do Iluminismo.
São Paulo: É Realizações, 2014, p. 194.
26	 MACCULLOCH, Diarmaid. The Reformation. Nova York: Penguin, 2004, p. xix.
ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES
20
o olhar em volta de si, via no solo mais ruínas que construções”.27
Ele sacudiu o
jugo do papa, mas colocou em seu lugar o jugo ainda mais opressor do Estado.
3.	O LEGADO DA REFORMA
Como se pode observar, o juízo dos historiadores seculares, católicos e até
mesmo de muitos protestantes sobre a Reforma Protestante pode ser bastante
severo. No entanto, alguns estudiosos procuram destacar diversos legados
construtivos, como é o caso de Alister McGrath. Falando sobre o impacto da
Reforma na história, ele arrola os seguintes fatores: uma atitude positiva em
relação ao mundo, a ética protestante do trabalho, sua influência sobre o ca-
pitalismo, as mudanças políticas, sua conexão com o surgimento das ciências
naturais.28
No final do seu livro sobre as reformas na Europa, Carter Lindberg
afirma que “os legados das Reformas afetaram cada aspecto da vida e do pen-
samento modernos”.29
Ele menciona, entre outras, as seguintes áreas que foram
atingidas: política, cultura, mulheres, tolerância, economia, educação, ciência,
literatura e artes. O historiador Patrick Collinson observa: “É inevitável que
uma coisa tão ampla como a Reforma tenha sido considerada causa de muitas
coisas... é possível considerá-la causa de quase tudo o que quisermos”.30
É preciso lembrar que, sendo a Reforma acima de tudo um movimento
de natureza religiosa e doutrinária, o seu maior legado se deu nessa área. O
eminente historiador Owen Chadwick, falecido em 2015, observou: “Depois
de Lutero, não era possível, seja aos protestantes ou aos católicos, imitar
algumas das velhas maneiras de negligenciar a graça e a soberania de Deus.
Na medida em que o Protesto consistiu no brado de Lutero de que a salvação
não era por meio do ritual... o Protesto foi triunfante”.31
Mais concretamente,
Lutero insistiu no fato de que o ser humano só pode ser salvo pela graça de
Deus, e não por qualquer mérito, virtude ou esforço pessoal. Somente pela fé,
ela mesma também uma dádiva divina, podemos nos apropriar do que Cristo
fez por nós. Collinson observa: “A doutrina de Lutero de que o homem é re-
dimido exclusivamente por meio da fé libertava o homem da moralidade, mas
também para a moralidade”. E conclui: “Aí se encontra a diferença essencial
entre o que se tornaria o Protestantismo e o Catolicismo, tal como este foi
reconstituído no Concílio de Trento”.32
27	 FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. Porto Codex, Portugal: Edições Asa, 1994,
p. 264.
28	 MCGRATH, O pensamento da Reforma, p. 286-300.
29	 LINDGERG, As reformas na Europa, p. 423.
30	 COLLINSON, Patrick. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p. 229-230.
31	 CHADWICK, Owen. The Reformation. The Pelican History of the Church. Londres: Penguin,
1988, p. 444.
32	 COLLINSON, A Reforma, p. 75. Minha tradução.
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22
21
O historiador norte-americano Mark Noll, depois de reconhecer deficiên-
cias na Reforma e na personalidade de Lutero, argumenta que a concepção
do reformador acerca de Deus deixou marcas profundas na história cristã.
Ele se refere especificamente à chamada “teologia da cruz”, já presente nas
teses 92-95 de 1517.33
Para Lutero, encontrar a Deus era encontrar a cruz.
“O cristianismo torna-se uma realidade nas vidas humanas quando homens e
mulheres participam da morte de Cristo ao experimentarem a destruição de suas
próprias pretensões quando estão coram Deo (na própria presença de Deus)”.34
O reformador contrastou essa atitude com a “teologia da glória”, que leva os
seres humanos a confiarem em si mesmos, na sua própria percepção acerca
de Deus e do mundo. Aquele que deseja encontrar a Deus tem de olhar para
o Calvário, onde Deus se revelou plenamente. Nas palavras de Noll: “A cruz
mostra o Criador, o Deus majestoso e todo-poderoso sofrendo – e sofrendo por
nós. Lutero até mesmo podia dizer que a cruz nos mostra o terrível mistério
de Deus experimentando a morte por nós”.35
CONCLUSÃO
Os exemplos arrolados neste artigo mostram o quanto os compromissos
prévios dos historiadores afetam a maneira como interpretam a história da
Reforma. Assim como alguns deles, principalmente secularistas e católicos
romanos, tendem a relativizar a importância desse movimento, os evangélicos
(no sentido original da palavra) se sentem no dever de apontar os elementos
apreciáveis e construtivos dessa história. Eles não se recusam a admitir que a
Reforma teve suas falhas. O protestantismo gerou uma grande cisão no mundo
cristão e muitas vezes atribuiu importância excessiva aos governantes civis,
praticou ações intolerantes, envolveu-se em guerras, não soube manter a sua
própria unidade interna.Assim, os 500 anos, longe de serem uma ocasião para
celebrações ufanistas, devem ser um convite para a reflexão, para a reafirmação
de princípios, para a gratidão a Deus pela longa caminhada desse movimento,
que, apesar dos percalços, têm produzido frutos extraordinários na vida da
igreja e do mundo.
Fazendo uma avaliação final da Reforma e suas vicissitudes, MacCulloch
fala pelos seus contemporâneos secularizados do início do século 21 ao declarar:
“Nós não temos o direito de adotar uma atitude de superioridade intelectual
ou emocional, especialmente à luz das atrocidades que a Europa do século 20
33	 NOLL, Mark A. Momentos decisivos na história do cristianismo. Trad. Alderi S. Matos. São
Paulo: Cultura Cristã, 2000, p. 170-173.
34	 Ibid., p. 174.
35	 Ibid., p. 176. Ver também: MCGRATH,Alister E. Lutero e a teologia da cruz: a ruptura teológica
de Martinho Lutero. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.
ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES
22
produziu por causa de sua fé em ideologias mais novas, seculares”.36
Areforma
do século 16 não deve ser julgada pelos excessos de alguns de seus personagens
e movimentos, em grande medida próprios de sua época, mas pela relevância
das ideias e perspectivas da vida que ela promoveu, principalmente acerca do
relacionamento das pessoas com Deus, e também em muitas outras áreas da
experiência humana sobre a terra. Nestes 500 anos, pode-se dizer que o seu
legado é profundo, rico e duradouro.
ABSTRACT
The Protestant Reformation, a movement that commemorates its fifth
centennial, has been the object of intense investigation by many scholars.
This interest on the topic is due to the relevance of the Reformation and its
vast consequences for the modern world. At the same time, it is a highly
controversial subject, with a wide variety of perspectives and interpretations.
Initially, this article makes some general historiographical considerations about
the Reformation. Then it adresses several aspects that have given occasion
to disagreements and reappraisals in the last decades. They are the multiple
character of the Reformation, its intellectual sources, its primary motivations,
and its consequences. Finally, the author makes some considerations about the
lasting legacy of the Reformation.
KEYWORDS
Protestant Reformation; 500th anniversary of the Reformation; Historio-
graphy; Historians; Interpretations of the Reformation.
36	 MACCULLOCH, The Reformation, p. 683.
23
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41
O Papel da Música na Reforma
e a Formação do Saltério de Genebra
Dario de Araujo Cardoso*
RESUMO
Destacamos no presente artigo a importância que teve para os refor-
madores a discussão sobre o uso da música na liturgia. Mostramos que tanto
para Lutero quanto para Calvino o poder de mobilização emocional da música
deveria ser utilizado para conduzir os crentes à adoração de Deus. Calvino
destacou-se por defender que esse poder deveria estar a serviço da edificação
e do ensino e incentivou a produção de cânticos de fácil assimilação, cujas
letras conduzissem à meditação em Deus e em suas obras. O cântico de salmos
e outros textos bíblicos metrificados e adaptados ao contexto cristão mostrou-se
o meio mais apropriado para isso e resultou na produção da obra que ficou
conhecida como o Saltério de Genebra.
PALAVRAS-CHAVE
Reforma; Liturgia; Música; Lutero; Calvino; Cântico de Salmos.
INTRODUÇÃO
Aliturgia é um dos aspectos primordiais de uma religião. Ela é o elemento
que dá forma e expressão às crenças de determinado grupo. Antes mesmo do
discurso é a liturgia o primeiro aspecto a observar quando da aproximação a
determinada crença. Durkheim demonstrou que as crenças e os ritos são os
*	 Doutor em Semiótica e Linguística Geral pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Huma-
nas da Universidade de São Paulo, Mestre em Teologia e Exegese pelo CPAJ, Mestre em Ciências da
Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor assistente de Teologia Pastoral no CPAJ.
Coordenador e professor do Departamento de Teologia Exegética do Seminário Presbiteriano Rev. José
Manoel da Conceição. Membro da equipe pastoral da Igreja Presbiteriana do Centenário, em São Paulo.
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...
24
aspectos fundamentais a serem abordados no estudo das religiões.1
Assim, o
estudo da Reforma deve tratar com atenção os aspectos litúrgicos envolvidos
em sua concepção e desenvolvimento.
Nas palavras de Witvliet,
Alguns dos mais dramáticos e reveladores desenvolvimentos no período foram
litúrgicos. Nós não podemos entender completamente as dimensões religiosas
deste (ou de qualquer outro) período sem compreender as variações e mudanças
nos modos pelos quais os fiéis prestavam culto a Deus.2
McKee observa que, além da teologia e da política eclesiástica, a Reforma
trouxe grandes mudanças na liturgia. Nesse campo, continua ela, Calvino e
Genebra devem receber especial atenção “porque aquele padrão é usualmente
reconhecido como o mais significativo para a teologia e liturgia reformada
posterior”.3
Noll relata que a hinologia foi uma marca tão importante da Re-
forma que personagens importantes da Igreja Católica pensaram em proibir o
uso da música na missa. Ele afirma:
A enxurrada de hinos protestantes que inundou a Europa juntamente com as
primeiras crises da Reforma criou dificuldades incomuns para a Igreja Católica
Romana. O canto congregacional estava associado ao protestantismo de maneira
tão profunda e os protestantes foram tão eficazes na utilização dos hinos que
alguns personagens importantes da Igreja Católica por breve tempo consideraram
a proibição da música nas missas.4
Dessa forma, a consideração dos aspectos litúrgicos não dever ser vista
apenas como subsidiária, mas como elemento essencial para a compreensão e
análise da Reforma. Em particular, o estudo das questões relacionadas ao papel
da música na liturgia e dos instrumentos preparados para este fim servirá de
grande proveito para o desenvolvimento desse campo de pesquisa.
Neste artigo descrevemos o pensamento de Lutero e Calvino sobre o
uso da música na liturgia. Em seguida focalizamos os desdobramentos dos
princípios de Calvino na proposição e confecção do Saltério de Genebra. A
exposição é feita sob o referencial teórico semiológico de Nattiez, que propõe
que a música remete a seu ambiente filosófico, ideológico e religioso, entre
1	 DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996,
p. 457.
2	 MAAG, K.; WITVLIET, J. D. Worship in Medieval and Early Modern Europe: Change and
continuity in religious pratice. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2004, p. 1.
3	 MCKEE, E. A. Reformed Worship in Sixteenth Century. In: VISCHER, L. (Org.). Christian
Worship in Reformed Churches Past and Present. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2003, p. 3.
4	 NOLL, Mark A. Momentos decisivos na história do Cristianismo. São Paulo: Cultura Cristã,
2000, p. 206.
25
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41
outros, de modo que seu estudo procura distinguir três tipos de temporalidade:
“o tempo da obra (seu desenrolar no tempo), o tempo dos processos que a ori-
ginaram e das estratégias perceptivas que ela coloca em movimento, e o tempo
da história”.5
Lidaremos especialmente com a segunda forma de temporalidade.
1.	LUTERO E O USO DA MÚSICA NA REFORMA
1.1	 A importância da música como instrumento litúrgico
Antes da Reforma, o povo podia ouvir a música sacra, mas não podia
participar dos cânticos. Silva descreve assim esse contexto:
O canto litúrgico medieval era marcado por sua origem monástica, um canto
“clerical”, elaborado e estabelecido para ser entoado por “profissionais” da
religião, que dispunham de tempo e conhecimentos musicais para um apri-
moramento e uma exaustiva complexidade, chegando a ponto de surgir uma
rivalidade entre os diferentes mosteiros na execução destes requisitos, uma forma
deturpada dos levitas bíblicos.Acelebração da missa era o lugar da apresentação
do desenvolvimento de suas técnicas e aprimoramento de sua arte. O povo parti-
cipava passivamente, assistindo a um espetáculo musical em que não entendia o
porquê da música, nem o que se cantava, porque não compreendia a letra cujos
arranjos altifônicos sufocavam a compreensão.6
Coube a Lutero o importante papel de quebrar esse paradigma e restaurar
o cântico congregacional na língua do povo.7
Raynor, buscando destacar a
importância de Lutero para a história da música, escreve que “sua dedicação
total à música teve influência em tudo o que fizesse, não apenas na sua liturgia
alemã, mas também na sua educação alemã, e a sua vida foi quase tão importante
para o futuro da música como o foi para o futuro da religião”.8
Lutero tinha a música em mais alta conta. Para ele, a música era o mais
precioso dos tesouros celestes. Por meio dela são dominados os pensamentos
e sentidos, o coração e o espírito. Ela consola o aflito e abranda o arrogante.
Portanto, [escreveu Lutero] não foi sem razão que os padres da Igreja, e os
profetas, sempre quiseram intimamente juntas a Música e a Igreja; e, por isso,
5	 NATTIEZ, J. J. Music and Discourse: Toward a Semiology of Music. Princeton, NJ: Princeton
University Press, 1990, p. 31.
6	 SILVA, Jouberto Heringer da. A música na liturgia de Calvino em Genebra. Fides Reformata
VII-2 (2002): 85-104, p. 93.
7	 SANTOS, G. Do Salmo 5 ao “Atos 2” – Uma panorâmica sobre salmos e hinos na música
evangélica no Brasil. Ex Corde, 2006, p. 2. Disponível em: http://www.hinologia.org/do-salmo-5-ao-
-atos-2-uma-panoramica-sobre-salmos-e-hinos-na-musica-evangelica-no-brasil-gilson-santos/. Acesso
em: 28 ago. 2017.
8	 RAYNOR, H. História social da música: Da Idade Média a Beethoven. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1972, p. 129.
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...
26
temos tantos hinos e salmos. É mediante esse precioso dom, atribuído apenas à
humanidade, que todo homem lembra seu dever de sempre louvar e glorificar
a Deus.9
O reformador alemão entendeu que era impossível substituir o enorme
reservatório de devoção pessoal encontrado na celebração da missa, nos ges-
tos rituais e na música. Não obstante, viu a necessidade de inserir todas essas
coisas num novo contexto doutrinário e por isso “dava ênfase à doutrina com
estrutura tradicional da missa, que mantinha quase toda a estrutura musical”.10
Reynor faz o seguinte registro sobre a liturgia de Lutero:
“Muita música na missa”, escreveu Lutero no Vermahnung zum Sakrament, “é
excelente, pois exprime agradecimento e é muito apreciada. Em partes como o
Gloria in excelsis, o Credo, o Prefácio, o Sanctus e Benedictus e o Agnus Dei
há tão só agradecimento e louvor, e por essa razão as mantemos na missa. De
toda a música na missa, o Agnus Dei é o que mais autenticamente corresponde
ao sacramento, porque louva a Cristo, que carregou nossos pecados; em simples
palavras ele aumenta a nossa reverência pela Paixão de Cristo”.11
Assim, Lutero deu grande atenção à estrutura musical. Por isso, chamou
Johann Walther, músico experimentado que chegou a ser Kappellmeister do
eleitor da Saxônia, para realizar minuciosa organização musical da música
luterana.12
Além do aproveitamento de vários elementos musicais na liturgia, Lutero
mostrou-se um profícuo compositor de hinos e corais. Costa registra que ele
compôs 36 hinos e várias melodias.13
A mais conhecida de suas composições
é uma paráfrase do Salmo 46, Ein feste Burg ist unser Gott (“Castelo Forte”),
que se tornou o hino do protestantismo por toda parte. Esse modo de tratar os
salmos para o cântico destacou-se na produção de Lutero, pois outro impor-
tante hino de sua autoria é uma paráfrase do Salmo 130, Aus tiefer Not (“Em
profunda aflição”).
Vemos que Lutero tinha na liturgia um instrumento de instrução e forta-
lecimento doutrinário e que foi pródigo no emprego da liturgia como elemento
propagador da doutrina e da fé. Vemos também que ele tinha no canto um dos
principais elementos da liturgia. O valor que Lutero dava à música era tão
9	 Ibid.
10	 Ibid., p. 130.
11	 Ibid., p. 132.
12	 Ibid., p. 130.
13	 COSTA, Hermisten M. P. da. Princípios bíblicos de adoração cristã. São Paulo: Cultura Cristã,
2009, p. 185.
27
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41
grande que afirmou dogmaticamente que um professor deveria saber cantar
e que alguém que não tivesse estudado e praticado música não deveria ser
admitido ao ministério. Assim, “nas escolas religiosas a música era entusias-
ticamente ensinada não só como valiosa disciplina intelectual, mas também
como dever religioso e prazer social”.14
Não obstante, é preciso observar que o modo pelo qual Lutero valorizava
a música levou os luteranos, principalmente nos grandes centros, a preferir a
qualidade musical à fidelidade doutrinária. Raynor observa que
num centro musical como a Thomaskirche em Leipzig, ou a Michaeliskirche em
Lüneburg e a Kreuzkirche em Dresden, a qualidade musical mais que a crença
doutrinária ou fidelidade sectárias governavam a escolha de música, em razão
do modo pelo qual Lutero, desde o início da revolta, considerara a qualidade
musical um elemento importante na sua liturgia.15
É interessante que Lutero, diferentemente de Calvino, não nutria simpa-
tia pelo canto congregacional uníssono, mas preferia o canto coral acompanhado
pela congregação. No entanto, por causa de sua preocupação doutrinária, via o
canto congregacional como um proveitoso exercício devocional.Assim permitia
e até mesmo incitava o canto congregacional “apenas para que a congregação
fizesse uma declaração de fé como uma compreensão completa do que estava
cantando”.16
Por isso, prefaciando o livro coral publicado por Rhau e Foster
em 1538, Lutero escreveu:
Quando a música natural é aperfeiçoada e polida pela arte, começa-se então a
perceber a grande e perfeita sabedoria de Deus em sua maravilhosa obra musical,
quando uma voz assume uma única parte, e em torno dela cantam três, quatro
ou cinco outras vozes, saltando, rodando, enfeitando maravilhosamente a parte
original, como uma dança celeste.17
Vê-se que em Lutero a música é um instrumento primordialmente de
impressão, só então de expressão. A música, entendida como um dom divino,
teria em si mesma a capacidade de enlevo e aperfeiçoamento espiritual. A
preocupação com o que será cantado é limitada, embora não deixasse de zelar
por aquilo que contribua para a propagação da mensagem da Reforma.
14	 RAYNOR, História social da música, p. 135.
15	 Ibid., p. 30.
16	 Ibid., p. 132-133.
17	 Ibid., p. 133.
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...
28
1.2	 Divergências entre os reformadores sobre a presença
e o papel da música na liturgia
No entanto, ainda que os protestantes concordassem que deveria haver
uma absoluta conexão entre a fé e a liturgia da Reforma, havia reformadores que
tinham postura bastante divergente da de Lutero. Segundo White, em 1529, o
encontro de líderes protestantes em Marburg demonstrou que eles não podiam
concordar em todos os assuntos de culto e que seu desejo de total acordo não
era possível, ainda que fosse possível ter unanimidade em um ou outro item.
Eles logo descobriram que, embora todos viessem de uma única tradição cristã,
tinham dois espíritos diferentes – que Lutero apontou com cândida observação,
provavelmente a Martin Bucer: “Você tem um espírito diferente do meu”. Lu-
tero representava a velho ensino e piedade. Zuínglio, Bucer, Oecolampadius
representavam o novo ensino e o novo tipo de piedade.18
Entre essas divergências estava o uso da música na liturgia. Zuínglio,
por exemplo, demonstrou “profunda suspeita com o que chamava de ‘seduti-
vo’ poder da música, banindo da Igreja todo tipo de música”.19
Martin Bucer
(1491-1551), em Estrasburgo, seguiu padrão comedido, mas não tão radical.
Descrevendo o culto, ele relata: “Após a remissão de pecados para aqueles
que creem, toda a congregação canta pequenos salmos ou hinos de louvor...”.20
Desde 1525, os salmos eram cantados pelos exilados alemães e franceses em
Estrasburgo.21
Esse padrão proposto por Bucer foi de grande importância para
o ensino e a prática litúrgica proposta por Calvino.
Guilherme Farel (1489-1565), pregador responsável pela permanência de
Calvino em Genebra, também manifestou simpatia pelo canto congregacional,
particularmente dos salmos. Na controvérsia no Convento de Rive (1535), ele
declarou: “Não é mau que todos os fiéis, ao se reunirem, cantem juntos, com
o coração e também com a boca, salmos, em sua língua, que todos entendem,
louvores a Deus”.22
Discordando de Zuínglio, Calvino, além dos perigos e seduções, via na
música um poderoso instrumento de auxílio à edificação e ao zelo espiritual.
No Prefácio ao Saltério de Genebra ele escreveu: “E na verdade nós sabe-
18	 WHITE, J. F. Protestant Worship: Traditions in Transition. Louisville: Westminster/John Knox,
1989, p. 58.
19	 SILVA, Música na liturgia de Calvino, p. 86.
20	 Apud BARD, T. (Org.). Liturgies of the Western Church. Philadelphia: Fortress, 1980, p. 87.
21	 SILVA, Música na liturgia de Calvino, p. 91.
22	 AUGUSTIN, C.; VAN STAM, F. P. (Orgs.). Ioannis Calvini. Epistolae, vol. 1 (1530–set. 1538).
Genebra: Librairie Droz, 2005, p. 158; D’AUBIGNÉ, J. H. M. History of the reformation in Europe in
the time of Calvin. Vol. 5, p. 310. Londres: Longmans, Green, and Co., 1869, p. 310ss.
29
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41
mos, por experiência, que cantar tem grande força, vigor de mover e inflamar
os corações dos homens para envolvê-los em adoração a Deus com mais
veemência e ardente zelo”.23
Isso implica o esforço em insistir que a música
fosse utilizada na liturgia com esse sublime fim: “É preciso haver canções não
somente honestas, mas também santas, que como aguilhões nos incitem a orar
e a louvar a Deus e a meditar nas suas obras para amar, honrar e glorificá-lo”.24
Por isso, a música deveria ter foco no que se cantava, ser simples e apropriada
para ser cantada sem treinamento, e em uníssono.25
2.	CALVINO E OS PRINCÍPIOS QUE LEVARAM À PRODUÇÃO
DO SALTÉRIO DE GENEBRA
2.1	 Os princípios que devem orientar a música na liturgia
segundo Calvino
A tradição litúrgica de Calvino formou-se a partir daquela praticada por
Bucer em Estrasburgo, mas seguiu seu próprio e marcante caminho, tendo
na promoção do cântico de Salmos sua característica mais marcante. White
descreve:
Diferente da tradição luterana, onde o cântico de hinos era encorajado, ou da
Reforma de Zurique, onde nenhum cântico era permitido, Calvino fez com que os
salmos fossem colocados em métrica francesa por Clément Marot (1497-1544)
e outros. Ele encorajou compositores como Claude Goudimel (c. 1510-1572) e
Louis Bourgeois (1510-1561) a produzir músicas.26
A tradução e a metrificação de salmos para o cântico não eram algo iné-
dito. Como foi dito, Farel tinha preferência por elas no cântico congregacional
e Bucer já havia promovido essa prática em Estrasburgo. Em seu primeiro
período em Genebra (1536-1538), Calvino havia proposto o uso do cântico
de salmos, provavelmente em prosa, na liturgia. “Nós desejamos”, escreveu
Calvino, “que os salmos sejam cantados na igreja de acordo com o antigo uso
e testemunho de S. Paulo”.27
Foi em Estrasburgo que a prática do cântico de salmos conquistou o co-
ração de Calvino e se tornou um elemento de seu projeto ministerial. Halsema
observa que, ao chegar a Estrasburgo, muito agradou Calvino o fato de que
23	 CALVINO. J. Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, 1543, p. 3. Disponível em: http://
www.monergismo.com/textos/jcalvino/prefacio_salterio_genebra_calvino.htm.Acesso em: 5 ago. 2008.
24	 Ibid., p. 5.
25	 SILVA, Música na liturgia de Calvino, p. 88.
26	 WHITE, Protestant Worship, p. 66.
27	 MCNEILL, John T. The History and Character of Calvinism. Oxford: Oxford University Press,
1967, p. 139
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...
30
os refugiados franceses já cantassem salmos em francês havia dez anos e que
cantavam com entusiasmo, dando gosto de ouvi-los.28
Costa registra que
Calvino foi influenciado de certa maneira pela adoração dirigida por Martin
Bucer em Estrasburgo, durante o período em que lá permaneceu (1538-1541),
pastoreando os franceses banidos que desejavam cultivar sua fé em liberdade.
Algo que chamava a atenção de Calvino era o entusiasmo com que os franceses
ali exilados cantavam salmos quando se dirigiam ao culto.29
Ainda assim, pode-se considerar Calvino como o grande incentivador
dessa prática e o principal promotor do processo que culminou na publicação
do Saltério de Genebra. Santos afirma que “ele desejava que os salmos vol-
tassem a ser cantados nos cultos, como hinos, tal como o livro dos Salmos, os
quais haviam sido compostos em poesia hebraica e eram cantados no segundo
templo de Jerusalém”.30
Por isso, em 1539, publicou, em Estrasburgo, um saltério francês intitu-
lado Aulcuns Psaulmes et Cantiques mys em chant. Esse saltério continha 18
salmos metrificados, cinco da lavratura de Calvino e os demais retirados da
edição de Clement Marot para a corte francesa. Esse saltério foi a gênese do
Saltério de Genebra.
Aimportância que Calvino deu a essa prática pode ser vista no prefácio à
edição do Saltério publicada em 1543, agora com a participação direta de Marot.
Calvino inicia o prefácio defendendo que o culto deve ser útil para todo
o povo. Esse princípio da utilidade do culto para a edificação parece ser o
princípio fundamental da proposta litúrgica de Calvino. Ele diz:
Pois nosso Senhor não instituiu a ordem que devemos obedecer quando nos
reunimos em Seu Nome, somente para entreter o mundo quando este olha e
observa, antes, ele deseja que o culto seja útil para todo o seu povo; como São
Paulo testemunhou, ordenando que tudo que for feito na Igreja seja direcionado
à edificação comum de todos; isto ao servo não teria ordenado, não fosse esta a
intenção do Mestre. Mas isto não pode ser feito, a menos que sejamos instruídos
a usar a inteligência em tudo que foi ordenado para o nosso proveito. 31
Costa afirma que para Calvino a preocupação teológica deveria “ater-se
à edificação da igreja”. Mais à frente ressalta que “para Calvino, a doutrina
estava relacionada à nossa vida; é para ser crida, vivida e ensinada. [...] não
28	 VAN HALSEMA, Thea B. João Calvino era assim. São Paulo: Vida Evangélica, 1968, p. 100.
29	 COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 161.
30	 SANTOS, Do Salmo 5 ao “Atos 2”, p. 2.
31	 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 1.
31
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41
estava teorizando ou simplesmente fazendo uma abstração”32
. Nas palavras
de Calvino,
O evangelho não é uma doutrina de língua, senão de vida. Não pode assimilar-
-se somente por meio da razão e da memória, senão que chega a compreender-se
de forma total quando ele possui toda alma, e penetra no mais íntimo recesso
do coração. [...] os cristãos deveriam detestar àqueles que têm o evangelho em
seus lábios, porém não em seus corações.33
Portanto, a doutrina só pode ser sã quando ensinada com o intuito de
beneficiar e que se mostre proveitosa a seus ouvintes.34
Por causa desse princípio de utilidade, Calvino considerava uma grande
tolice praticar orações e cerimônias que as pessoas não pudessem entender.
Sua defesa dessa questão é bem clara:
Portanto, se realmente queremos honrar as santas ordenanças de nosso Senhor
que usamos na Igreja, a primeira coisa que devemos é saber o que elas contêm e o
que elas significam e querem dizer e para que fim foram instituídas, para que
o uso delas seja útil e salutar e consequentemente corretamente administrados.35
No tratado que escreveu em 1544, onde expôs diante do imperador Carlos
V as razões que justificavam a Reforma, Calvino descreveu o modo de oração
que estava sendo implantado nas igrejas
O método pelo qual, em nossas igrejas, todos oram em comum na língua popular,
e homens e mulheres indiscriminadamente cantam os salmos, nossos adversários
podem ridicularizar se quiserem, aprouve ao Espírito Santo trazer testemunho
a nós do céu, enquanto ele repudia os sons confusos e sem significado que são
pronunciadas em outro lugar.36
Seguindo esse princípio, ele defende que há três elementos ordenados
para o culto: a pregação da Palavra, as orações públicas e solenes e a adminis-
tração dos sacramentos.37
A partir desses três elementos, Calvino considera o
cântico como uma forma de oração. “Quanto às orações públicas, há dois tipos.
Aquelas somente com palavras, e outras cantadas”.38
Por isso, a música no
32	 COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 226, 229.
33	 Apud Ibid., p. 230.
34	 CALVINO, J. Pastorais. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009, p. 163.
35	 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 1.
36	 CALVIN, John. The Necessity of Reforming the Church. Dallas, TX: The Protestant Heritage
Press, 1995, p. 57.
37	 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 2.
38	 Ibid. p. 3.
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...
32
culto deve ser objeto de especial cuidado e consideração. Calvino registra que
“cantar tem grande força, vigor de mover e inflamar os corações dos homens
para envolvê-los em adoração a Deus com mais veemência e ardente zelo”.39
Por isso, Calvino requer que as músicas tenham peso e majestade, rejei-
tando aquelas que sejam frívolas ou triviais, que haja diferença marcante entre
a música de entretenimento e o que é cantado na igreja e que ela seja usada com
moderação de modo que sirva a coisas honesta e não dê lugar à dissolução ou
se torne instrumento de lascívia ou impureza. Isso não quer dizer que Calvino
queria que a música ficasse restrita aos cultos. Ao contrário, seu intuito era
que ela, como de fato aconteceu, fosse cantada nos campos e nos lares como
o que ocorria na igreja cristã por volta do quarto século.40
Sua preocupação
era precaver-se de futilidades e alegrias tolas e viciosas e conduzir a igreja à
alegria espiritual recomendada nas Escrituras. “É preciso haver canções não
somente honestas, mas também santas, que como aguilhões nos incitem a orar
e a louvar a Deus e a meditar nas suas obras para amar, honrar e glorificá-lo”.41
O cântico de salmos é, dessa forma, o corolário do princípio da utilidade
do culto para a edificação. Ainda que haja outros cânticos apropriados, ne-
nhum deles pode superar os salmos em virtude de que estes foram dados por
inspiração do Espírito Santo. Calvino escreve: “Portanto, quando procuramos
diligentemente, aqui e ali, não iremos encontrar cânticos melhores, por mais
apropriados que sejam os seus propósitos, do que os Salmos de Davi, que o
Espírito Santo falou e preparou através dele”.42
Em confirmação disso, cita Agostinho, que viu no cântico de salmos o
modo de usufruir da música sem pecado, que dizia que “ninguém é capaz de
cantar algo digno de Deus, exceto aquilo que recebemos dele”; e Crisóstomo,
ardoroso defensor do cântico de salmos, que entendia que essa prática nos faz
associados à companhia dos anjos.43
2.2	 O impacto do Livro de Salmos em Calvino
O impacto que o Livro de Salmos causou na vida de Calvino está bem
documentado. Como foi dito acima, em Estrasburgo, Calvino ficou muito
impressionado com “o entusiasmo com que os exilados franceses cantavam
salmos quando se dirigiam ao culto”.44
Não que cantar salmos fosse uma ideia
nova para Calvino. Em sua primeira estada em Genebra, propusera o cântico de
39	 Ibid.
40	 CARDOSO, Dario A. O cântico de Salmos na Igreja Cristã até a Reforma. Ciências da Re-
ligião – História e Sociedade, v. 9, n. 2 (2011): 26-51, p. 35ss.
41	 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 3-5.
42	 Ibid., p. 5.
43	 Ibid.
44	 COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 161.
33
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41
salmos que seria ensinado por um coro de crianças à congregação. No entanto,
essa ideia se tornou um propósito em Estrasburgo. “Quando Calvino retornou
a Genebra, adaptou muitos elementos da liturgia de Bucer, tornando-se o rito de
Genebra (1542) a base para a adoração das igrejas calvinistas em toda a Europa –
Suíça, França, Alemanha, Holanda e Escócia”.45
Esse padrão litúrgico tinha o
cântico de salmos como um de seus principais elementos.
Na dedicatória de Calvino ao Comentário de Salmos, ele faz impressionan-
tes menções ao valor desse livro. Essa dedicatória foi endereçada aos leitores
piedosos e sinceros. Ao explicar as razões de sua relutância em empreender
uma série de pregações no livro de Salmos, Calvino reconheceu sua limitação
em expor a riqueza de seu conteúdo.
As riquezas variadas e esplêndidas que compõem este tesouro não são algo
fácil de se expressar em palavras; tanto é verdade que estou bem consciente de
que, seja como melhor me expresse, estarei longe de revelar todas a excelência
do tema.46
Além da excelência, Calvino reconhecia a absoluta abrangência do livro
acerca das emoções e necessidades humanas. É bem conhecida a alcunha
atribuída por Calvino a esse livro:
“Uma Anatomia de Todas as Partes da Alma”, pois não há sequer uma emoção
da qual alguém porventura tenha participado que não esteja aí representada
como num espelho. Ou, melhor, o Espírito Santo, aqui, extirpa da vida todas
as tristezas, as dores, os temores, as dúvidas, as expectativas, as preocupações, as
perplexidades, enfim, todas as emoções perturbadas com que a mente humana
se agita47
.
Dessa forma também ficam expostas nossas debilidades e os vícios a
que estamos sujeitos, e o nosso “coração é trazido à claridade e purgado da
mais perniciosa das infecções – a hipocrisia!”. Mais adiante, ele diz que “tudo
quanto nos serve de encorajamento, ao nos pormos a buscar a Deus em oração,
nos é ensinado nesse livro”.48
O valor dos salmos para a promoção de uma genuína e fervorosa oração
também é registrado nessa dedicatória. Diferentemente das outras partes das
Escrituras em que são registrados os mandamentos de Deus aos homens, aqui
os profetas “são descritos falando com Deus e pondo a descoberto todos os
seus mais íntimos pensamentos e afeições”, e demonstram
45	 Ibid., p. 290.
46	 CALVINO, Pastorais, p. 26.
47	 CALVINO, J. O livro dos Salmos. vol. 1. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009, p. 27.
48	 Ibid., p. 27.
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...
34
... como invocar a Deus é um dos principais meios de garantir nossa segurança,
e como a melhor e mais inerrante regra para guiar-nos nesse exercício não pode
ser encontrada em outra parte senão nos Salmos, segue-se que em proporção à
proficiência que uma pessoa haja alcançado em compreendê-los, terá também
alcançado o conhecimento da mais importante parte da doutrina celestial.49
Através dos salmos aprendemos a colocar diante de Deus aquelas fraque-
zas que tememos confessar diante dos homens e “não há outro livro em que
somos mais perfeitamente instruídos na correta maneira de louvar a Deus, ou
em que somos mais poderosamente estimulados à realização desse sacro exer-
cício”. Neles também somos estimulados a uma vida cristã que seja plena “de
santidade, de piedade e de justiça, todavia eles principalmente nos ensinarão
e nos exercitarão para podermos levar a cruz”.50
Amenção da cruz nesse trecho deixa bem claro que a piedade promovida
pelos salmos não pode ser denominada veterotestamentária, no sentido de ser
pré-cristã, mas bíblica e cristã no melhor sentido dos termos. Dessa forma,
não há para Calvino a necessidade de cristianizar os salmos, como mais tarde
propôs Charles Wesley. Portanto, não é por acaso que seja nessa dedicatória
que encontramos as mais claras declarações de Calvino quanto à sua conversão.
A partir dessa visão de Calvino, o jovem pastor norte-irlandês Angus Stewart
faz a seguinte observação sobre a atualidade:
Se isso é verdade, devemos confessar o quanto precisamos dos Salmos! Po-
demos tê-los em excesso, se a oração cristã (que o Catecismo de Heidelberg,
Dia do Senhor 45, chama de “a parte principal da gratidão, que Deus requer
de nós”) é tão forte ou fraca quanto a nossa compreensão sincera dos Salmos?
O raciocínio de Calvino aqui deveria nos estimular a ler, cantar e meditar nos
Salmos. Está o Reformador de Genebra aqui identificando o problema com a
oração em nosso país? A ignorância dos Salmos e a popularidade dos hinos
modernos não-inspirados?51
2.3	 Elementos distintivos do cântico de salmos proposto por
Calvino
Ao unir-se à longa tradição da igreja de cantar de salmos, Calvino, seguin-
do a prática dos reformadores, traz inovações importantes.Amais evidente é o
uso da língua vernácula. Esse princípio protestante não se limitou às traduções
da Bíblia. Assim como Lutero, que introduziu o alemão na prática litúrgica,
49	 Ibid.
50	 Ibid., p. 29.
51	 STEWART,A. João Calvino sobre a Excelência dos Salmos, 2007, p. 4. Disponível em: <http://
www.cprf.co.uk/languages/portuguese_calvinonpsalms.htm> Acesso em: 16 dez. 2010.
35
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41
Calvino queria que seus irmãos cantassem em francês. No prefácio do Saltério
de Genebra ele diz: “Por isso, é um grande descaramento por parte daqueles
que introduziram a língua latina na igreja, onde geralmente não é entendida. E
não há nem sutileza nem casuísmo que possa desculpá-los, porque essa prática
é perversa e desagrada a Deus”.52
Por conta disso, não mais era apropriado
que os salmos continuassem a ser cantados em latim como se fazia nas missas
romanas.
Outro elemento distintivo da tradução e cântico de salmos foi o uso da
metrificação, e não do cântico dos salmos em prosa. Pode-se depreender que
essa técnica foi adotada com vistas a facilitar a memorização. Segundo Calvino,
o maior proveito do uso dos salmos não pode ocorrer se eles não estiverem
impressos em nossa memória. “Após a inteligência, deve seguir o coração e a
afeição, uma coisa impossível de acontecer exceto se tivermos o hino impresso
em nossa memória, a fim de nunca cessarmos de cantar”.53
De fato, os registros
pessoais dos calvinistas demonstram que a memorização dos salmos foi um
importante elemento de apoio nas mais diversas situações.
2.4	 O cântico de salmos não era propriamente exclusivo
Deve-se observar que, conquanto Calvino manifeste preferência pelo cân-
tico de salmos, não parece ter defendido que isso se fizesse exclusivamente. Na
edição de 1545 das Formas de Oração na Igreja Francesa ele assim descreve
a ordem litúrgica do culto: “Começamos com a confissão de pecados. (...)
Continuamos com salmos, hinos e louvor, a leitura do evangelho, a confissão
de nossa fé (ou seja, o CredoApostólico), e as santas oblações e oferendas...”.54
É importante notar, então, que desde a primeira e em todas as suas edições
o Saltério de Genebra não foi composto unicamente pelos salmos bíblicos. Ha-
via versões metrificadas de “cânticos bíblicos, da Oração do Senhor, do Credo
dos Apóstolos, dos Dez Mandamentos, e paráfrases de passagens familiares do
Novo Testamento”.55
Além de vários salmos, Calvino traduziu o Cântico de
Simeão, conhecido com Nunc dimittis, e os Dez Mandamentos para o francês
e compôs um hino. Segundo Cabaniss “essa tradição aponta para uma antiga
percepção de que os salmos são quase, mas não totalmente, suficientes para
a adoração cristã”.56
No decorrer da história da formação e da propagação do saltério, pode-
-se registrar, além dos 150 salmos metrificados, onze metrificações de outros
52	 CALVINO, Prefácio, p. 3.
53	 Ibid., p. 5.
54	 Apud COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 295.
55	 CABANISS, A. The Background of Metrical Psalmody. Calvin Theological Journal, v. 20,
n. 2 (1985): 191-206, p. 203.
56	 Ibid.
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...
36
textos canônicos e cinco de hinos não canônicos. Os outros hinos canônicos
eram o Decálogo, o Cântico de Ana, o Primeiro Cântico do Servo, o Cântico de
Jonas, o Cântico de Maria, o Cântico de Zacarias, duas versões do Cântico
de Simeão, Romanos 8, o Hino filipense e o Hino colossense. Os extrabíblicos
são o Cântico dos Três Jovens (presente na LXX e na Vulgata),57
o Credo, o Te
Deum, a Pergunta e a Resposta nº 1 do Catecismo de Heidelberg e Um Hino
para o Pentecoste.58
McNeill registra que Calvino também escreveu poemas. Não afirma se
eles eram cantados, mas diz que, na edição de Genebra em 1545, foi incluído
o melhor poema de Calvino, “Je Te salue, mon certain Redempteur”, uma
declaração de fé fervorosa e pessoal.59
Entretanto, essa prática foi abandonada
por Calvino, preferindo a proposta de metrificação do texto bíblico. Sobre o
uso do texto bíblico como fonte da liturgia protestante, Raynor faz uma inte-
ressante observação
Para os luteranos, como para os reformadores mais radicais, a autoridade em
religião estava na Bíblia, a Palavra de Deus, mais que na tradição viva da Igreja.
Tudo o que se dissesse na Igreja era retirado de textos bíblicos, e quase em grau
igual preces como o Kyrie e textos instrutivos como os do Credo tinham de ser
ouvidos e compreendidos; as palavras não deviam ser apenas matérias-primas
da música para dar uma estrutura e se destinarem a certa coisa autonomamente
musical, como foi o caso da maioria das obras de mestres do Renascimento. Caso
fossem musicadas, era dever do compositor cuidar para que fossem transmiti-
das com toda clareza. Essa atitude para com a música não era, evidentemente,
especificamente protestante; era apenas uma revivescência numa nova situação
das objeções católicas tradicionais à música religiosa por demais complicada e
assinala um ponto no qual se encerrava um ciclo e os protestantes extremados
viram-se utilizando os mesmos argumentos que os conservadores extremados
na Igreja Católica.60
Por reformadores mais radicais e protestantes extremados deve-se enten-
der os calvinistas. Percebe-se aqui a ligação com as discussões que envolveram
a salmódia desde o 4º século. A observação mostra-se verdadeira uma vez
que o próprio Calvino citou várias vezes Agostinho e uma vez Crisóstomo no
Prefácio do Saltério de Genebra.
57	 Essa porção do livro de Daniel foi posteriormente considerada apócrifa, ou seja, não canônica,
pelas igrejas protestantes.
58	 KOYZIS, D. T. The Genevan Psalter, 2010. Disponível em: http://genevanpsalter.redeemer.ca/.
Acesso em: 14 dez. 2010.
59	 MCNEILL, The History and Character of Calvinism, p. 148.
60	 RAYNOR, História social da música, p. 137.
37
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41
2.5	 Os salmos metrificados por Calvino
Koysis informa que os salmos metrificados por Calvino não sobrevive-
ram.61
Segundo ele, o reformador era melhor teólogo do que poeta. De fato,
todas as metrificações de Calvino presentes na versão do saltério publicada
em Estrasburgo foram substituídas pelas produzidas por Clement Marot e
Teodoro Beza. Costa registra que Calvino fez metrificações dos salmos 25, 36,
43, 46, 91, 113, 120, 138 e 142.62
Das composições originais de Calvino foi
possível localizar apenas uma. Trata-se da metrificação do Salmo 113 feita a
partir da metrificação do mesmo salmo em alemão em 1525 em Estrasburgo.
Esse salmo metrificado encontra-se sob o número 374 na revisão de 1964 do
Psaumes Cantiques et Textes pour le culte à l’usage des Eglises réformées
suisses de langue française.
Figura 1: Salmo 113 metrificado por Calvino
61	 KOYZIS, The Genevan Psalter.
62	 COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 182.
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...
38
O texto francês pode ser traduzido da seguinte forma:
Vós, servidores do Deus do céu,
Louvai o seu nome constantemente
Que a cada dia, em todos os lugares,
Seu povo a si mesmo dirige.
Desde a manhã até a noite
Louvai, louvai seu nome bendito
Com canções de alegria.
Único todo-poderoso, único Senhor
A ele pertence o império.
Ele tem o seu trono no mais alto céu
Sobre tudo o que respira.
Mas do mais humilde ele se lembra,
Em seu amor ele o mantém,
Seu cuidado está sobre nossas vidas.
A quem ele vê pobre e sofredor
Sua graça libera.
Ele nos abençoa em nossos filhos,
Ele é em si mesmo um pai.
Ninguém além dele é glorioso,
Louvai seu nome sobre a terra.
A comparação com a versão Almeida Revista e Atualizada auxilia na
percepção dos aspectos envolvidos no processo de metrificação utilizado por
Calvino.
1
	Aleluia!
 	 Louvai, servos do Senhor,
 	 louvai o nome do Senhor.
2
	 Bendito seja o nome do Senhor,
 	 agora e para sempre.
3
	 Do nascimento do sol até ao ocaso,
 	 louvado seja o nome do Senhor.
4
	 Excelso é o Senhor, acima de todas as nações,
 	 e a sua glória, acima dos céus.
5
	 Quem há semelhante ao Senhor, nosso Deus,
 	 cujo trono está nas alturas,
6
	 que se inclina para ver
 	 o que se passa no céu e sobre a terra?
39
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41
7
	 Ele ergue do pó o desvalido
 	 e do monturo, o necessitado,
8
	 para o assentar ao lado dos príncipes,
 	 sim, com os príncipes do seu povo.
9
	 Faz que a mulher estéril viva em família
 	 e seja alegre mãe de filhos.
 Aleluia!63
É possível perceber que certos elementos como o dever de louvar a Deus
e a descrição de seus atributos são transferidos quase que literalmente para a
metrificação. No entanto, os elementos circunstanciais de seus atos são contex-
tualizados e descritos em termos da experiência coletiva descrita na primeira
pessoa do plural, enquanto no salmo são descritos em terceira pessoa. Com
essa simples técnica, o salmo recebe um caráter atual e prático, tendo a graciosa
providência de Deus como elemento teológico que exige que o Senhor seja
louvado e que se dê testemunho do cuidado que ele tem dispensado.
2.6	 Clement Marot e o benefício de cantar salmos
Um personagem chave na história do Saltério de Genebra é Clement Marot.
Cabaniss descreve Marot como um filho da Idade Média, um poeta refinado
e brilhante.64
Marot e Calvino se conheceram na corte da Duquesa de Ferrara,
na Itália, em 1536. Quando passou por Genebra, no final de 1542, Calvino o
contratou para dar continuidade ao projeto de metrificação dos salmos.65
Marot dedicou a edição de 1542 ao rei Francisco I. Nela, ele descreve
o livro de salmos como “real e cristão”, escrito e cantado por Davi sob a ins-
piração do Espírito Santo. Também afirma que os salmos não descrevem um
amor terreno, como a Eneida ou a Ilíada, mas que na obra de Davi poderia
ser encontrado o verdadeiro Amante, o Rei dos reis, e por isso Davi supera
Homero e Horácio. Continua Marot que os corações gentis e as almas amáveis
encontram neles consolação em todas as tribulações.66
Os temas espirituais são
proeminentes nesse primeiro prefácio. Além da inspiração dos salmos, Marot
menciona o cuidado providencial de Deus, a importância da lei na distinção
entre o bem e mal e a prefiguração dos sofrimentos de Cristo como temas
importantes dos salmos.
Curiosamente, no prefácio à segunda edição (1543), Marot acrescenta
uma palavra às senhoras “encorajando-as a abandonar as canções mundanas
63	 Sociedade Bíblica do Brasil. Bíblia Sagrada – Almeida Revista e Atualizada, com números de
Strong (Ps 113:1–9). Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil.
64	 CABANISS, The Background of Metrical Psalmody, p. 200.
65	 VAN HALSEMA, João Calvino era assim, p. 100, 143; COSTA, Ibid., p. 182.
66	 CABANISS, The Background of Metrical Psalmody, p. 201.
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...
40
em favor daquelas que ele lhes oferecia”.67
Assim, ao presumir que elas teriam
interesse em canções de amor, ressalta que os salmos falam somente deAmor e
que, de fato, foram compostos por aquele que é o próprioAmor. Então, conclui
o seu apelo dizendo:
Comecem, minhas senhoras, a promover a idade áurea na qual Deus é adorado
como ele próprio ordenou, cantando este livro sagrado de canções. Vocês têm
sorte, minhas senhoras, de poderem ver a hora se aproximar quando um traba-
lhador em seu trabalho, um condutor em seu carro, um artesão em sua oficina,
ilumina sua labuta com salmo ou cântico, quando pastores e pastoras fazem as
rochas ecoarem com música louvando o santo nome de seu Criador.68
Cabaniss, observa que, propriamente falando, Marot não era protestante.
Ele parece pertencer a um grupo evangélico, bíblico e humanístico chamado
“círculo de Meaux”.69
Entretanto, foi muito bem recebido em Genebra e tanto
ele quanto sua poesia granjearam a mais alta consideração de Calvino, de modo
que um de seus salmos é utilizado no início da versão francesa do Novo Tes-
tamento publicada em Genebra em 1543. Essa admiração perdurou por toda a
vida do reformador, o que é demonstrado pelo fato de que na Páscoa de 1564,
última ocasião em que Calvino, já muito adoecido, participou da Comunhão,
foi cantada no encerramento do culto a versão do Nunc dimittis metrificada
por Marot em 1543,70
não obstante, Calvino ter feito anteriormente sua própria
versão metrificada do cântico de Simeão.
Em 1543, os teólogos da Sorbonne condenaram formalmente as tradu-
ções de Marot ao considerarem uma ameaça a prática protestante do uso do
vernáculo nos cultos. Ainda assim, suas melodias eram cantadas tanto por
católicos quanto por protestantes. Foi somente depois da edição de 1551, que
foi expandida por Teodoro Beza, que “os salmos e suas melodias se tornaram
muito mais fortemente identificados com a causa huguenote”.71
Dessa forma,
Henrique II, que em sua juventude havia cantado na corte as traduções de
Marot, baniu oficialmente o cântico público de salmos em 1558. Tal proibição
e o importante papel simbólico do Saltério de Genebra nas guerras da religião
levaram a um baixo índice de sobrevivência das suas fontes musicais. Os
67	 Ibid.
68	 Apud Ibid.
69	 Ibid., p. 202.
70	 Ibid.
71	 BROOKS, J. Les cent cinquante pseaumes de David, mis en musique a quatre parties. 1998, p. 1.
Disponível em: <http://www.thefreelibrary.com/Les+cent+cinquante+pseaumes +de+David,+mis+en+
musique+a+quatre+(et...-a020825591> Acesso em: 18 dez. 2010.
41
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41
militantes católicos se comprometeram a destruir todas as cópias do Saltério
que caíssem em suas mãos.72
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observamos neste artigo o importante espaço que a música ocupou nas
discussões da Reforma. Notamos que de modos diferentes Lutero e Calvino
reconheceram o valor litúrgico da música e empenharam seus melhores es-
forços para que seus benefícios fossem sentidos na vida da igreja. Um ponto
relevante dessa discussão é a ênfase que Lutero deu ao poder de impressão
que a música poderia exercer sobre os crentes, ao passo em que Calvino pre-
feriu investir na música como um meio de expressão da fé e de ensino. Para
Calvino, desde que fosse simples e focada no que se cantava, a música tinha
o poder de envolver os homens na adoração a Deus e na meditação acerca de
suas obras. O reformador encontrou nos salmos o ponto máximo do princípio
da utilidade da música para a edificação. Com isso, um dos grandes projetos
de seu ministério foi a produção de um livro de cânticos composto de salmos e
outros textos bíblicos metrificados e adaptados ao contexto cristão. Essa obra
ficou conhecida como o Saltério de Genebra.
Com Lutero e Calvino aprendemos sobre a importância do investimento
na produção musical para a edificação da igreja. Para isso, não podemos tratar
a questão musical como uma discussão de estética clássica ou contempo-
rânea. Precisamos nos certificar de que a música utilizada no culto reflita a
majestade de Deus, incite os crentes à adoração e mova mentes e corações
para o louvor de Deus e para o compromisso com sua Palavra.
ABSTRACT
This article highlights how important it was for the reformers to discuss
the use of music in liturgy. It shows that for both Luther and Calvin the emo-
tionally mobilizing power of music should be used in order to lead believers
to worship God. Calvin was known for stressing that this power should be
instrumental to upbuilding and teaching. He emphasized the production of songs
that were easy to be learned and whose lyrics led to meditation upon God and
God’s works. The singing of psalms and other biblical passages, metrified
and adapted to the Christian context, proved to be the most adequate means to
meet this goal and it resulted in the production of the work that became known
as the Geneva Psalter.
KEYWORDS
Reformation; Liturgy; Music; Luther; Calvin; Singing of Psalms.
72	 Ibid.
43
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65
Lutero e os Antinomistas:
Qual é a visão evangélica da lei?
Heber Carlos de Campos Júnior*
RESUMO
Depois de apresentar os componentes essenciais da doutrina luterana
de justificação em diálogo com os intérpretes de Martinho Lutero, este artigo
introduz a controvérsia antinomista com João Agrícola na qual ele questio-
na se o arrependimento era resultado da exposição da lei ou da pregação do
evangelho. É apresentada como cenário da discussão a estrutura hermenêutica
de lei e evangelho e resumida a oposição de Agrícola aos ensinos de Filipe
Melanchton, seguida da resposta de Lutero e da ratificação da Fórmula de
Concórdia. O propósito em resumir a controvérsia antinomista em contextos
luteranos é suscitar pontos de contato com antinomismos na Inglaterra do
século 17, quando surgiram discussões semelhantes, e consequentes lições
para os dias atuais. Este artigo defende que há uma necessidade de contar essa
história novamente para atender a certas necessidades do cenário evangélico
brasileiro e internacional.
PALAVRAS-CHAVE
Martinho Lutero;Antinomista;Antinomismo; JoãoAgrícola; Justificação;
Lei e evangelho; Arrependimento.
INTRODUÇÃO
É bem sabido que a doutrina da justificação ocupou lugar central na Refor-
ma Protestante do século 16. Utilizando linguagem aristotélica, os historiadores
tendem a denominar essa doutrina o “princípio material” da Reforma, isto é,
*	 Doutor em Teologia Histórica pelo Calvin Theological Seminary, em Grand Rapids, Michigan;
professor de teologia histórica e teologia sistemática no CPAJ; pastor da Igreja Presbiteriana Aliança,
em Limeira (SP).
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS
44
a matéria prima com a qual ela foi moldada.1
Em contrapartida ao conceito
católico romano de justiça infusa, derramada no interior do ser humano para
torná-lo pessoalmente justo, a Reforma passou a falar de uma justiça atribuída
ao ser humano. Sua diferença quanto à doutrina de Roma era mais do que mera
semântica, ou apenas uma falta de distinção entre justificação e santificação,
mas, de acordo com os reformadores, atingia a pureza do evangelho (boa nova).
Essa diferença pode ser expressa com a seguinte pergunta: Como você quer ser
avaliado por Deus e pelos homens, pela quantidade de justiça que há em você
ou pela justiça atribuída a você? Em outras palavras, você quer ser recebido
por Deus baseado em seu próprio desempenho ou baseado no desempenho de
outro (Cristo) a seu favor? Você acha que os relacionamentos na igreja devem
se iniciar e se perpetuar com base em uma pureza inerente às partes ou no
perdão restaurador? Essas perguntas revelam qual é a base de nossas relações
verticais e horizontais.
Foi na doutrina da justificação que Martinho Lutero (1483-1546) trouxe
algumas de suas maiores contribuições teológicas para a Reforma. Podemos
resumir algumas de suas contribuições em três pontos que estão interligados.
Primeiro, Lutero descobriu uma justiça salvadora, antes que punitiva. No
renomado trecho autobiográfico contido no prefácio de suas obras em latim
publicadas no final de sua vida (1545),2
Lutero relembra que quando era um
jovem monge a expressão “justiça de Deus” (Rm 1.17) aterrorizava a sua
alma. Todas as suas tentativas de satisfazer a Deus – orações, jejuns, vigílias,
boas obras – não lhe aquietavam a alma, pois ele sempre se julgava aquém
do padrão de santidade em Deus. Continuamente confessava suas falhas mais
insignificantes ao seu mentor, Johann von Staupitz, a ponto de cansá-lo. Além
disso, Lutero diz que nutria certa fúria velada contra o Deus que pune peca-
dores.3
Sua descoberta, contudo, se deu quando a “justiça de Deus” passou de
castigo para a provisão redentora de Deus. Sua alma encontrou alívio, nasceu
de novo, quando ele mudou seu entendimento do que era a “justiça de Deus”
1	 MCGRATH, Alister E. O pensamento da Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 113.
Aristóteles desenvolveu uma teoria quanto à causa das coisas no mundo natural, como forma de investi-
gação do mundo ao nosso redor. Esta teoria é descrita de forma praticamente idêntica em Física II.3 e em
Metafísica V.2. Sendo que Aristóteles está buscando uma resposta para a pergunta “por quê?” podemos
pensar na causa como um certo tipo de explicação. Cada uma das quatro causas é a explicação de algo.
Eis as quatro causas: 1) “causa material”, aquilo do qual sai algo, e.g. o bronze de uma estátua; 2) “causa
formal”, o relato do que há de se tornar, o formato da estátua; 3) “causa eficiente”, a fonte primária de
mudança, o artesão; 4) “causa final”, o propósito de algo, o embelezamento de um prédio e a glória
de um imperador. FALCON, Andrea. “Aristotle on Causality”. Stanford Encyclopedia of Philosophy.
Disponível em: http://plato.stanford.edu/entries/aristotle-causality/. Acesso em: 29 ago. 2017.
2	 Cf. LULL, Timothy F. Martin Luther’s Basic Theological Writings. 2ª ed. Minneapolis: Fortress,
2005, p. 8-9.
3	 GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 64, 66.
45
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65
em Romanos. Heiko Oberman diz que as doutrinas medievais de justificação
tratavam daquele que está no estado de graça como tendo recebido a iustitia
Christi (justiça de Cristo) sacramentalmente, mas que restam as obras de
obediência à lei divina para satisfazer as exigências da iustitia Dei (justiça
de Deus). Lutero perturbava-se com o conceito de iustitia Dei, pois sempre se
via distante de uma obediência satisfatória. A grande descoberta de Lutero foi
esta: “O coração do evangelho é que a iustitia Christi e a iustitia Dei coincidem
e são concedidas simultaneamente”.4
Essa descoberta foi seu grande deleite, e
um dos marcos na transição para uma teologia madura do reformador.
Em segundo lugar, Lutero enfatizou uma justiça passiva (isto é, que eu
recebo), não ativa.5
Lutero rompeu com a tradição medieval ao asseverar que
certos homens são intrinsecamente pecadores, mas extrinsecamente justos. En-
quanto a tradição agostiniana de justificação progressiva entendia a expressão
simul iustus et peccator (simultaneamente justo e pecador) significando “em
parte” pecador e “em parte” justo – como num processo de santificação – a
ênfase de Lutero recaía em sermos pecadores em nós mesmos e justos porque
Cristo nos foi dado.6
Ele compreendeu que é possível alguém ser internamente
poluído ainda que seja tratado por Deus como puro. Enquanto na teologia me-
dieval o veredito de justificação vinha por meio da infusão de uma qualidade
sobrenatural (“graça habitual”) que habilitava o homem a fazer boas obras,7
Lutero destacou como o crente é visto por Deus como justo (mediante o per-
dão dos pecados) ainda que não tenha obras suficientes em si mesmo. Essa é
outra forma de falar de “justificação pela fé somente”. Fé, aqui, não é uma das
virtudes teológicas agostinianas como esperança e amor, mas constitui uma
relação de confiança (fiducia) em Deus por causa da obra de Cristo. Lutero
reconhece que a palavra “somente” não é derivada de um texto da Escritura,
mas contra a tradição medieval solidifica a necessidade de a fé ser o único
instrumento pelo qual somos justificados por Deus em Cristo. Tanto é que sua
tradução de Romanos 3.28 ficou polemicamente famosa quando ele inseriu a
palavra “somente” (allein em alemão) para captar a ênfase paulina, ainda que
o original não explicitasse tal qualificação.8
4	 OBERMAN, Heiko A. ‘Iustitia Christi’ and ‘Iustitia Dei’: Luther and the Scholastic Doctrines
of Justification. Harvard Theological Review, vol. 59, no. 1 (Jan. 1966), p. 19.
5	 Lutero escreveu: “Ajustiça que provém de nós não é a justiça cristã, e por ela não nos tornamos
justos. A justiça cristã é bem o contrário, a justiça passiva, que apenas recebemos, em que não agimos,
mas deixamos um outro agir em nós, Deus”. Apud EBELING, Gerhard. O pensamento de Lutero: uma
introdução. São Leopoldo: Sinodal, 1988, p. 96.
6	 GEORGE, Teologia dos reformadores, p. 72-73.
7	 Ibid., p. 66.
8	 CAMPOS JÚNIOR, Heber Carlos de. O lugar da fé e da obediência na justificação: Um histó-
rico das discussões reformadas do século XVII. In: FERREIRA, Franklin (Org.). A glória da graça de
Deus: Ensaios em honra a J. Richard Denham Jr. sobre história, teologia, igreja e sociedade. São José
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Fides 22 n2

  • 1.
  • 2.
  • 3. This periodical is indexed in the ATLA Religion Database, published by the American Theological Library Association, 250 S. Wacker Dr., 16th Flr., Chicago, IL 60606, USA, e-mail: atla@atla.com, www.atla.com. Fides Reformata também está incluída nas seguintes bases indexadoras: CLASE (www.dgbiblio.unam.mx/clase.html), Latindex (www. latindex.unam.mx), Francis (www.inist.fr/bbd.php), Ulrich’s International Periodicals Directory (www.ulrichsweb.com/ulrichsweb/) e Fuente Academica da EBSCO (www.epnet.com/thisTopic.php?marketID=1&topicID=71). Editores Gerais Daniel Santos Júnior Dario de Araujo Cardoso Editor de resenhas Filipe Costa Fontes Redator Alderi Souza de Matos Editoração Libro Comunicação Capa Rubens Lima Fides reformata – v. 1, n. 1 (1996) – São Paulo: Editora Mackenzie, 1996 – Semestral. ISSN 1517-5863 1. Teologia 2. Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper. CDD 291.2 INSTITUTO PRESBITERIANO MACKENZIE Diretor-Presidente José Inácio Ramos CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO ANDREW JUMPER Diretor Mauro Fernando Meister
  • 4. Igreja Presbiteriana do Brasil Junta de Educação Teológica Instituto Presbiteriano Mackenzie Volume XXII · Número 2 · 2017 Edição ESpEcial 5º cEntEnário da rEforma protEStantE
  • 5. CONSELHO EDITORIAL Augustus Nicodemus Lopes Davi Charles Gomes Heber Carlos de Campos Heber Carlos de Campos Júnior Jedeías de Almeida Duarte João Alves dos Santos João Paulo Thomaz de Aquino Mauro Fernando Meister Valdeci da Silva Santos A revista Fides Reformata é uma publicação semestral do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper. Os pontos de vista expressos nesta revista refletem os juízos pessoais dos autores, não representando necessariamente a posição do Conselho Editorial. Os direitos de publicação desta revista são do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper. Permite-se reprodução desde que citada a fonte e o autor. Pede-se permuta. We request exchange. On demande l’échange. Wir erbitten Austausch. Se solicita canje. Si chiede lo scambio. ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Revista Fides Reformata Rua Maria Borba, 40/44 – Vila Buarque São Paulo – SP – 01221-040 Tel.: (11) 2114-8644 E-mail: pos.teo@mackenzie.com.br ENDEREÇO PARA PERMUTA Instituto Presbiteriano Mackenzie Rua da Consolação, 896 Prédio 2 – Biblioteca Central São Paulo – SP – 01302-907 Tel.: (11) 2114-8302 E-mail: biblio.per@mackenzie.com.br
  • 6. Editorial Em 31 de outubro de 2017 completam-se 500 anos do marco histórico da Reforma Protestante. O monge agostiniano Martin Luther, professor de Bíblia da Universidade de Wittenberg, afixou nas portas da igreja da cidade 95 teses que criticavam a prática da venda de indulgências por ameaçar o verdadeiro tesouro da igreja: o evangelho. Essa publicação provocou uma discussão de proporções seculares e deu ocasião à maior cisão da Igreja do ocidente na história. As repercussões do movimento iniciado por Lutero transformaram completamente a sociedade e a cultura da Europa e, nestes 500 anos, alcan- çaram todo o mundo. São incalculáveis os tesouros teológicos acumulados nesse período. A Reforma Protestante teve papel fundamental em grandes transformações eclesiásticas, políticas, científicas, educacionais, culturais, sociais, etc. Por outro lado, meio milênio é tempo suficiente para o esquecimento de verdades preciosas e o (res)surgimento de velhos e novos enganos e distorções da fé e da prática cristãs. Nem tudo são flores nesses quinhentos anos. Nesta edição especial da revista Fides Reformata, os professores do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper reuniram-se para promover um mergulho na história e no pensamento da Reforma Protestante. No primeiro artigo – “A Reforma e os historiadores” – Alderi Souza de Matos apresenta as diferentes abordagens e avaliações de historiadores so- bre a Reforma Protestante e traz à luz os desafios envolvidos no estudo e na compreensão de movimentos históricos. Em seguida, em “O papel da música na Reforma e a formação do Saltério de Genebra”, Dario de Araujo Cardoso descreve as contribuições que Lutero e Calvino trouxeram no que diz respeito ao uso da música no culto e ao canto congregacional. Destaca como os refor- madores reconheceram e utilizaram o poder de mobilização e edificação da música para a promoção dos valores da Reforma. No terceiro artigo – “Lutero e os antinomistas: Qual é a visão evangélica da lei?” – Heber Carlos de Campos Jr. mostra que o movimento reformado não era monolítico e apresenta uma das discussões internas ao luteranismo acerca da relação do arrependimento com a lei e o evangelho. O texto mostra como Lutero, Melanchton e João Agrícola discutiram sobre a necessidade de pregar a lei para promover o arrependimento. Mostra também que a resposta antinomista à discussão da relação entre lei e evangelho, longe de ficar restrita ao contexto luterano, ressurgiu entre os ingleses e está presente no cenário evangélico contemporâneo. Vemos assim que o antinomismo é um desafio frequente a ser enfrentado pela teologia oriunda da Reforma. O artigo “O perigo a ser evitado numa reforma”, de Heber Carlos de Campos, apresenta-nos dois aspectos da teologia de Melanchton que se
  • 7. afastaram do pensamento de Lutero. Eles dizem respeito à participação do homem na salvação e à presença de Cristo na Ceia. O artigo mostra como esse distanciamento posteriormente causou conflitos e divisões entre os luteranos e levou Melanchton a perder o lugar de destaque que possuía nessa tradição da Reforma. A escatologia tem sido apontada como o aspecto ausente do pensamento da Reforma. Entretanto, o artigo “O pensamento escatológico de Calvino”, de Leandro Antonio de Lima, faz-nos perceber que importantes tópicos desse campo da teologia estão presentes nos escritos de Calvino. O reformador ge- nebrino escreveu sobre oAnticristo, a vida futura, a ressurreição, o milênio e o estado intermediário. O artigo trata, por fim, da percepção de Calvino sobre as limitações da linguagem humana para descrever como será o mundo vindouro, chamando nossa atenção para os cuidados necessários a essa discussão. Os estudos hermenêuticos fazem-se presentes no artigo “Ahermenêutica cristotélica de João Calvino”, de João Paulo Thomaz de Aquino. Nele vemos que Calvino praticou uma interpretação que buscava demonstrar como os textos doAntigo Testamento apontavam para Cristo. Para ilustrá-la o autor apresenta afirmações de Calvino sobre a lei, os profetas e os salmos. O artigo também promove uma comparação com a abordagem de Erasmo de Roterdã, chamada de cristológica, e a de Lutero, denominada cristocêntrica. Os debates teológicos também são o tema do artigo “Calvino e o lapsaria- nismo”, de JoãoAlves dos Santos. Os calvinistas dividiram-se em dois grandes grupos no que diz respeito à relação entre os decretos da eleição e da reprovação dos homens. Tanto supralapsarianos quanto infralapsarianos afirmam seguir o pensamento do Calvino sobre o tema. O artigo analisa a discussão e mostra que uma pesquisa nos escritos de Calvino, ainda que forneça algum apoio, não confirmará as alegações de nenhum dos grupos. O artigo em inglês dessa edição foi escrito por Elias Medeiros. “The re- formers and missions: Warneck, Latourette, Neill, Kane, Winter, and Tucker’s arguments – part 2” é a continuação do artigo publicado por Medeiros na edi- ção de 2013-1 de nossa revista. Seu objetivo é contestar, com base em obras primárias, a tese de alguns historiadores de que os reformadores não tinham preocupação com missões estrangeiras. A seção de resenhas continua o espírito celebrativo da edição e também se dedica a obras que fazem referência à Reforma. Nesta edição trazemos avaliações dos livros Calvino e a Vida Cristã, O Legado Missional de Calvino, O Pensamento da Reforma e Cuidado com o Alemão. Dario deAraujo Cardoso apresenta-nos Calvino e a Vida cristã, do norte- -americano Michael Horton. Através de uma rica exposição, a obra busca mostrar que a teologia de Calvino não provém de um intelectualismo árido, mas está calcada num sólido e frutífero conceito de piedade.
  • 8. Filipe Costa Fontes escreveu a resenha de O Legado Missional de Calvino, do inglês Michael Haykin e do estadunidense C. Jeffrey Robinson. A obra busca mostrar a presença do conceito de missões no pensamento e nas ações de Calvino. Apresenta também como o tema foi abordado pelos herdeiros da tradição calvinista. Na resenha de O Pensamento da Reforma, do norte- -irlandêsAlister McGrath, Filipe Fontes convida-nos a uma leitura abrangente, didática e instrutiva da história e do pensamento da Reforma em seu caráter eminentemente religioso. Na resenha de Cuidado com o Alemão, do português Tiago Cavaco, o convite de Tarcízio José de Freitas Carvalho é para conhecer mais profunda- mente o impacto do pensamento de Lutero sobre sua época e sobre a cultura ocidental posterior. Em face do atual contexto de imediatismo existencial que despreza o passado e reduz o futuro à projeção de interesses pessoais, esta edição de Fides Reformata permitirá ao leitor um vislumbre da grandeza e da abrangência dos eventos e do pensamento da Reforma e o desafiará a refletir com mais profun- didade sobre como as ações e movimentos do presente refletem o passado e qual o potencial de seus efeitos para o futuro. É um prazer apresentar a edição especial de Fides Reformata dedicada à celebração dos 500 anos da Reforma Protestante. Esperamos que ela seja de grande contribuição espiritual e acadêmica para todos os que a receberem. Sejam todos bem-vindos. Dr. Dario de Araujo Cardoso Editor
  • 9.
  • 10. Sumário Artigos A reforma e os historiadores Alderi Souza de Matos................................................................................................................... 11 O papel da música na Reforma e a formação do Saltério de Genebra Dario de Araujo Cardoso.............................................................................................................. 23 Lutero e os antinomistas: Qual é a visão evangélica da lei? Heber Carlos de Campos Júnior................................................................................................... 43 O perigo a ser evitado numa reforma Heber Carlos de Campos............................................................................................................... 67 O pensamento escatológico de Calvino Leandro Lima................................................................................................................................. 85 A hermenêutica cristotélica de João Calvino João Paulo Thomaz de Aquino...................................................................................................... 99 Calvino e o lapsarianismo: uma avaliação de como Calvino pode ser lido à luz da discussão supra e infralapsariana João Alves dos Santos.................................................................................................................... 117 The reformers and missions: Warneck, Latourette, Neill, Kane, Winter, and Tucker’s arguments – part 2 Elias Medeiros............................................................................................................................... 139 Resenhas Calvino e a vida cristã (Michael Horton) Dario de Araujo Cardoso.............................................................................................................. 163 O legado missional de Calvino (M. A. G. Haykin e C. J. Robinson) Filipe Costa Fontes........................................................................................................................ 169 O pensamento da Reforma (Alister Mcgrath) Filipe Costa Fontes........................................................................................................................ 175 Cuidado com o alemão – Três dentadas que Martinho Lutero dá à nossa época (Tiago Cavaco) Tarcizio Carvalho........................................................................................................................... 179
  • 11.
  • 12. FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22 11 * Doutor em Teologia (Th.D.) pela Escola de Teologia da Universidade de Boston, professor de teologia histórica no CPAJ, historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil. A Reforma e os Historiadores Alderi Souza de Matos* RESUMO A Reforma Protestante, movimento que completa o seu 5º centenário, tem sido objeto de intenso escrutínio por parte dos estudiosos. Esse interesse se deve à relevância do fenômeno e suas vastas consequências para o mundo moderno. Ao mesmo tempo, trata-se de um tema altamente controvertido, no qual variam grandemente as perspectivas e interpretações. Inicialmente, este artigo faz algumas considerações historiográficas gerais, passando em seguida a abordar alguns tópicos que têm sido objeto de divergências e reconsiderações nas últimas décadas. São eles o caráter múltiplo da Reforma do século 16, suas fontes intelectuais, sua motivação prioritária e suas consequências. Por últi- mo, são feitas algumas considerações sobre o legado duradouro desse evento histórico iniciado há 500 anos. PALAVRAS-CHAVE Reforma Protestante; 500 anos da Reforma; Historiografia; Historiadores; Interpretações da Reforma. INTRODUÇÃO Como é natural, o transcurso do 5º centenário da Reforma Protestante tem suscitado um grande número de reflexões de natureza bíblica, teológica, litúrgica e pastoral. Embora essas perspectivas sejam altamente relevantes, as comemorações, por sua própria natureza, remetem em primeiro lugar ao aspecto histórico. É acima de tudo um evento ou conjunto de eventos – o início do movimento protestante – que está sendo lembrado.Ao mesmo tempo, o estudo
  • 13. ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES 12 do protestantismo emergente como fenômeno histórico levanta uma série de questões teóricas e metodológicas que precisam ser consideradas. Desde o seu início, a Reforma tem sido objeto de diferentes interpreta- ções e avaliações, dependendo da perspectiva do estudioso. Por muito tempo, as abordagens foram fortemente condicionadas por preocupações polêmicas e apologéticas de protestantes e católicos, ou mesmo dos diferentes grupos evangélicos. A partir do século 18, com o desenvolvimento da história em bases científicas, surgiu um tratamento mais objetivo e menos partidário do tema. Porém, dada a imensa complexidade da Reforma em suas múltiplas di- mensões – religiosa, teológica, política, social – multiplicaram-se grandemente as interpretações de suas origens, natureza e significado. Este artigo considera inicialmente alguns aspectos historiográficos gerais para então se concentrar nas maneiras pelas quais a Reforma tem sido avaliada por diferentes historiadores recentes, religiosos e seculares, progressistas e conservadores. Vale lembrar que, ao lado das inevitáveis diferenças de pers- pectiva, as extensas pesquisas das últimas décadas também têm resultado em alguns consensos importantes e valiosos no que diz respeito a muitos aspectos da Reforma. No final, são feitas algumas considerações sobre a relevância atual da obra dos reformadores. 1. QUESTÕES HISTORIOGRÁFICAS James Bradley e Richard Muller observam que “antes de meados do século 18, o estudo da história da igreja era acrítico; ela era quase invariavel- mente escrita desde uma perspectiva confessional, sendo qualquer coisa menos desinteressada”.1 Dois exemplos clássicos são encontrados no próprio século 16. Um deles são as famosas Centúrias de Magdeburgo (1559-1574), escritas por um grupo de estudiosos liderados por Matias Flacius Illyricus. Essa história da igreja produzida sob o ponto de vista luterano procurou demonstrar que o luteranismo era uma afirmação do que havia de melhor na antiga tradição cristã. Em resposta, o erudito católico César Barônio publicou seus igualmente volumosos Anais Eclesiásticos (1588-1607), argumentando em favor da conti- nuidade entre o catolicismo do século 16 e os primeiros séculos da era cristã.2 Em meados do século 18, na esteira do Iluminismo e em certa medida do Pietismo, duas mudanças básicas de perspectiva foram essenciais para o surgimento da historiografia crítica: maior preocupação científica com a aná- lise de documentos originais e liberdade para interpretar as fontes de maneira mais isenta e objetiva. Surgiu assim uma importante linhagem de historiadores em moldes científicos, todos eles alemães, a começar de Johann Lorenz von 1 BRADLEY, James E.; MULLER, Richard A. Church history: An introduction to research, reference works, and methods. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1995, p. 11. Minha tradução. 2 GONZÁLEZ, Justo L. The changing shape of church history. Saint Louis, MO: Chalice Press, 2002, p. 133-136.
  • 14. FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22 13 Mosheim (1694-1755), considerado “o pai da história da igreja”. Vieram a seguir, sob a influência do movimento romântico, Gottfried Herder (1744-1803), August Neander (1789-1850) e Friedrich Tholuck (1799-1877). Nos Estados Unidos, um personagem muito influente foi Philip Schaff (1819-1893), consi- derado o pai da história da igreja americana. Todos eles se preocuparam com a objetividade no estudo histórico, com dados factuais e com a dedução de leis gerais de desenvolvimento histórico.3 Ao longo da primeira metade do século 20 ocorreu uma oscilação nes- se último tópico, alguns historiadores questionando e outros defendendo a importância da busca de significado na história da igreja e a possibilidade de uma visão objetiva do passado. As décadas mais recentes, posteriores a 1950, testemunharam vários desdobramentos historiográficos importantes, como o surgimento do interesse pela participação histórica das mulheres e de grupos minoritários; a chamada “nova história”, com seu apelo às ciências sociais; a ênfase na micro-história, com sua concentração em tópicos extremamente delimitados, e o enfoque mais colaborativo e interdisciplinar. Bradley e Muller defendem que o alvo do historiador deve ser a reintegração das partes analisadas separadamente em um todo maior, de âmbito mais geral.4 Uma questão permanentemente debatida tem a ver com a objetividade no estudo da história. Nos séculos 19 e 20 esse interesse se tornou o principal crité- rio de avaliação nas ciências históricas, conforme exemplificado por estudiosos como Leopold von Ranke eAdolf von Harnack. Dizia-se que “a principal tarefa da história era apresentar os eventos como eles aconteceram e até mesmo lê-los com tamanha objetividade que o historiador os entendia melhor do que aqueles que os vivenciaram”.5 Todavia, o que se constatou é que nenhum historiador é totalmente isento, mas transfere para o seu trabalho suas preferências, pressu- posições e compromissos filosóficos. Para muitos estudiosos, essa ânsia pela objetividade é na verdade algo indesejável. O pesquisador mexicano Carlos Rojas considera o mito da objetividade e da neutralidade um “pecado capital” dos historiadores não críticos.6 Um simpatizante do pensamento marxista, ele acredita que é impossível conceber-se uma história na qual o estudioso não se envolva de algum modo, mantendo total desinteresse e indiferença.7 Essas considerações têm evidente relevância para os estudos históricos sobre a Reforma Protestante. Essa história só poderá ser entendida adequa- damente mediante o estudo criterioso das fontes documentais primárias e 3 BRADLEY e MULLER, Church history, p. 13-20. 4 Ibid., p. 25. 5 GONZÁLEZ, The changing shape, p. 139. Minha tradução. 6 ROJAS, Carlos Antonio Aguirre. Antimanual do mau historiador. Ou como se fazer uma boa história crítica? Londrina, PR: Eduel, 2007, p. 29. 7 Ibid., p. 30.
  • 15. ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES 14 secundárias. Essa história precisará deter-se nos aspectos pontuais, tais como personagens e eventos, e ao mesmo tempo relacioná-los com o quadro mais amplo, o contexto religioso-político-social da Europa quinhentista. Essa história deve buscar a objetividade e a serenidade na análise dos dados, sem deixar de lado a simpatia pelo assunto, o envolvimento pessoal com os temas sob estudo. Para os cristãos que creem na ação providencial de Deus, ela também inclui a busca de significados maiores, muitas vezes não inteiramente óbvios, que trazem lições para a contemporaneidade. 2. ABORDAGENS DOS HISTORIADORES São muitos os estudiosos que se têm debruçado sobre o estudo histó- rico da Reforma, quer como pesquisadores da história da igreja em geral, quer como especialistas sobre os próprios fenômenos do século 16. Entre os primeiros, são mais conhecidos nos círculos protestantes indivíduos como Williston Walker, Kenneth S. Latourette, Owen Chadwick, Earle E. Cairns e Howard Clark Kee; entre os últimos, Thomas M. Lindsay, John T. McNeill, James Hastings Nichols, Roland Bainton, Harold J. Grimm e muitos outros.8 Todavia, o objetivo deste artigo é considerar as abordagens e interpretações sobre a Reforma fornecidas por uma geração mais recente de historiadores de diferentes persuasões. Trata-se de uma lista seletiva e exemplificativa, visto ser impossível considerar todos os autores que têm se dedicado ao tema. O objetivo é fornecer um panorama dos principais interesses e enfoques que os estudiosos da Reforma têm demonstrado na atualidade. 2.1 Pluralidade de reformas Até algum tempo atrás, falava-se sempre em “Reforma do século 16”, no singular, como se ela fosse um movimento monolítico e uniforme. Além disso, o termo era aplicado quase que exclusivamente às igrejas protestantes, à exclusão da Igreja Católica Romana. Hoje é lugar comum na historiografia falar-se nas “reformas” ocorridas naquele período. Isso pode ser percebido, por exemplo, em textos do luterano Carter Lindberg, professor emérito de história da igreja na Escola de Teologia de Universidade de Boston, como o conjunto de ensaios “A Idade Média tardia e as reformas do século 16”9 e o importante livro As Reformas na Europa.10 8 A mais antiga história da Reforma publicada continuamente no Brasil até o presente é História da Reforma do Décimo Sexto Século, do pastor protestante suíço Jean-Henri Merle D’Aubigné (1794-1872). O primeiro a traduzir essa obra para o português foi o escritor Júlio Ribeiro. 9 Parte III de: KEE, Howard Clark et al. Christianity: A social and cultural history. Nova York: Macmillan; Toronto: Collier Macmillan, 1991. 10 LINDBERG, Carter. As reformas na Europa. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2001. Outra ocorrência do conceito pode ser encontrada em: DOWLEY, Tim (Org.). História do cristianismo: Guia ilustrado. Venda Nova, Portugal: Bertrand, 1995, p. 410.
  • 16. FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22 15 Essa ênfase significou uma valorização de dois grupos em particular – os anabatistas e os católicos romanos. Por muito tempo, a chamada “reforma ma- gisterial”, ou seja, o luteranismo, a reforma suíça e o anglicanismo, recebeu todas as atenções. Trata-se dos grupos protestantes originais que receberam forte apoio e envolvimento dos magistrados, as autoridades civis. A “reforma radical”, representada principalmente pelos anabatistas, era o “primo pobre” do século 16, ocupando um lugar periférico nos estudos sobre a Reforma Pro- testante. Hoje, esse movimento recebe grande atenção dos pesquisadores, que reconhecem sua importância, originalidade e contribuições. Quanto à Igreja Romana, tradicionalmente se falava apenas em “Con- trarreforma”, algo que incluía a Inquisição, a ação dos jesuítas e as guerras religiosas. Sem deixar de reconhecer esse fenômeno de grandes consequências, a maior parte dos autores atuais argumenta que também houve uma verdadeira “Reforma Católica”, certamente diferente do que ocorreu no âmbito do protes- tantismo, porém ainda assim um conjunto de esforços que revelaram genuíno interesse em corrigir antigos males e aperfeiçoar o arcabouço doutrinário dessa igreja. A principal expressão dessa reforma católica foi o Concílio de Trento (1545-1563). 2.2 As origens da Reforma Tradicionalmente, as fontes do movimento protestante e do pensamento dos reformadores sempre foram associadas com a Bíblia e com o período pa- trístico, notadamente o pensamento amadurecido do grande bispo e teólogo Agostinho de Hipona. Era como se os reformadores do século 16 tivessem se reportado somente ao cristianismo antigo, não tendo recebido nenhuma influência do seu próprio tempo ou dos séculos imediatamente anteriores. Hoje se reconhece que as origens da Reforma também devem ser buscadas no escolasticismo do final da Idade Média e no humanismo renascentista. Um dos autores que trabalham essa questão é o historiador e teólogo irlandês Alister McGrath, em seus livros Origens Intelectuais da Reforma e O Pensamento da Reforma.11 Apesar de sua imagem negativa, o escolasticismo foi um importante esforço no sentido de justificar racionalmente as crenças cristãs por meio da reflexão filosófica, e apresentá-las de modo sistemático, formando um sistema intelectual abrangente e integrado. Foi, assim, um modo particular de articu- lar e estruturar a teologia. A chamada escolástica teve duas fases, a primeira dominada pelo “realismo” (c.1200-c.1350) e a segunda pelo “nominalismo” (c.1350-c.1500), posições opostas no que diz respeito à existência concreta dos conceitos universais. O escolasticismo do tipo realista teve duas manifestações, 11 MCGRATH, Alister E. Origens intelectuais da Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2007; O pensamento da Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.
  • 17. ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES 16 o tomismo (de Tomás de Aquino) e o scotismo (de Duns Scotus), os quais não exerceram maior influência sobre a Reforma. A vertente nominalista também se dividiu em duas alas, a via moderna e a schola augustiniana moderna, sen- do a primeira de tendência pelagiana e a segunda alinhada com a teologia de Agostinho e sua ênfase na plena soberania de Deus na salvação. Esta última teve um impacto considerável no pensamento de Lutero. Quanto ao humanismo, McGrath observa: “Dos muitos afluentes inte- lectuais e culturais que contribuíram para o fluxo da Reforma, provavelmente o mais importante foi o humanismo renascentista”.12 Os humanistas, ou seja, os intelectuais do Renascimento, eram indivíduos religiosos e se interessavam pela renovação da igreja. Seu famoso lema Ad fontes – “de volta às origens” – dirigiu suas atenções não somente para os textos da antiguidade clássica de um modo geral, mas para uma obra em particular, a Bíblia, vista como o instrumento para dinamizar e revitalizar o cristianismo da época. Quem mais insistiu nisso foi o holandês Erasmo de Roterdã, o “príncipe dos humanistas”, em seu livro Enchiridion militis christiani (“Manual do soldado cristão”), no qual exaltou o papel dos leigos e seu direito de amplo acesso à Escritura. Ele também foi responsável por uma edição do Novo Testamento em grego e latim (1516), que causou profundo impacto na época, em parte pelo fato de apontar alguns erros de tradução na Vulgata de Jerônimo. McGrath argumenta que a influência do humanismo foi muito maior na Reforma suíça do que na alemã.13 Alguns autores, como Pierre Chaunu e Steven Ozment, colocam as reformas do século 16 num contexto mais amplo de reformas que vinham ocorrendo desde o século 13.14 2.3 A motivação primária Uma questão constantemente discutida com relação à Reforma diz respeito à sua natureza primordial. Historiadores com viés marxista tendem a ignorar ou minimizar o aspecto religioso, não somente no que diz respeito à Reforma, mas a qualquer outro fenômeno histórico. Para eles, indo contra tantas evidên- cias factuais, a religiosidade é uma questão subalterna, decorrente de outros fatores de maior relevância histórica. Carlos Rojas, ao defender a importância de uma história total, afirma que “é igualmente relevante estudar o cultural, o social, o econômico, ou o político, o psicológico, o geográfico, etc.”,15 deixando, caracteristicamente, de mencionar o elemento religioso. 12 MCGRATH, O pensamento da Reforma, p. 54. 13 Ibid., p. 73-75. 14 CHAUNU, Pierre. O tempo das reformas (1250-1550). 2 vols. Lisboa: Edições 70, 1993 (1975). OZMENT, Steven. The Age of Reform 1250-1550: An intellectual and religious history of late medieval and Reformation Europe. New Haven, CT: Yale University Press, 1980. 15 ROJAS, Antimanual do mau historiador, p. 95.
  • 18. FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22 17 Todavia, existem aqueles que, mesmo reconhecendo a preponderância do fator religioso na Reforma, nutrem uma desconfiança em relação ao mesmo. Daí a advertência do ilustre historiador e teólogo holandês Heiko Oberman, que lecionou nas universidades de Harvard, Tübingen e Arizona. Ele argumentou que os estudiosos da Reforma devem resistir a algumas tendências modernas. Uma delas é a atitude daqueles que, movidos por in- tenções ecumênicas, atribuem a divisão da cristandade ocidental a disputas dogmáticas vistas como “equívocos”. Oberman observa que qualquer apro- ximação ecumênica feita dessa maneira só poderá ocorrer “se a doutrina da justificação, central para a Reforma, for truncada para se encaixar nos pronunciamentos do Concílio de Trento ou reformulada em termos de ser a precursora da ‘autorrealização’ psicológica”. Ele conclui: “Em qualquer caso, o preço é exorbitante: a própria doutrina da justificação”.16 Esse é, por exemplo, um dos problemas com a chamada “nova perspectiva sobre Pau- lo”, que considera inadequado o entendimento luterano e calvinista clássico acerca da justificação pela fé somente. De modo menos otimista, o autor Euan Cameron avalia que a Reforma foi a primeira ideologia de massa dos tempos modernos. Todavia, ele reconhece o primado do elemento religioso e doutrinário ao afirmar: A qualidade singular da Reforma Protestante consiste no fato de que ela tomou uma única ideia essencial; apresentou essa ideia a todos e incentivou a discus- são pública; então deduziu dessa ideia o restante das mudanças no ensino e no culto; finalmente, desmontou todo o tecido da igreja institucional e construiu novamente a partir da estaca zero, incluindo somente o que era consistente com a mensagem religiosa básica, e exigido por ela.17 Muitos historiadores contemporâneos negam que a Reforma tenha resultado de uma suposta corrupção católica. O historiador Patrick Collin- son, professor emérito de história moderna na Universidade de Cambridge, observa: “Explicações da Reforma em termos de decadência, irreligião e corrupção são as mais tradicionais e ainda infestam manuais medíocres”.18 Diarmaid MacCulloch, professor de história da igreja na Universidade de Oxford, acrescenta: 16 OBERMAN, HeikoA. The Reformation: roots and ramifications. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1994, p. xii. Minha tradução. 17 CAMERON, Euan. The European reformation. NewYork: Oxford University Press, 1991, p. 422. Minha tradução. 18 COLLINSON, Patrick. The late medieval church and its reformation: 1400-1600. In: MCMAN- NERS, John (Org.). The Oxford Illustrated History of Christianity. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 246. Minha tradução.
  • 19. ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES 18 Uma conclusão a ser tirada do acúmulo das pesquisas recentes sobre a Igreja Latina antes da convulsão é que ela não era tão corrupta e ineficaz como os protestantes tendem a retratá-la, e que ela em geral satisfazia as necessidades espirituais das pessoas do final do período medieval.19 Ao mesmo tempo, esses autores reconhecem o tremendo apelo popular que as ideias religiosas da Reforma exerceram no século 16. Falando sobre o extraordinário crescimento do protestantismo na França, Collinson observa que em 1560 mais da metade da nobreza era protestante e com ela grande parte da nação. Esse fenômeno resultou de milhares de decisões pessoais de abraçar o evangelho, tão pessoais como a constatação da esposa de um comer- ciante de Lião “de que ela encontrava mais satisfação espiritual ao ler a sua Bíblia e ao ouvir pregadores calvinistas do que nas ministrações do sacerdote a quem devia confessar”.20 Collinson observa que na França, na Inglaterra e na Holanda, centenas de pessoas comuns, de ambos os sexos, se dispuseram a ser queimadas vivas por suas novas convicções protestantes, e conclui que a Reforma “foi feita na sociedade, e não imposta sobre ela”.21 2.4 As consequências da Reforma A questão dos efeitos da Reforma ou da sua influência sobre a sociedade e a cultura nos séculos posteriores, o chamado mundo moderno, é outro tema altamente debatido nos estudos históricos.As opiniões acerca do assunto abran- gem um espectro de grande amplitude, desde aqueles que, de modo ufanista, atributem ao movimento protestante um conjunto estupendo de legados para o mundo ocidental, até os que questionam ou relativizam tais contribuições. Um exemplo dessa última atitude é o livro Reforma: o Cristianismo e o Mun- do 1500-2000, de Felipe Fernández-Armesto e Derek Wilson, autores que se identificam respectivamente como “um católico romano, com tentações tridentinas às quais resiste nostalgicamente” e um “evangélico protestante, com tendências carismáticas cultivadas parcimoniosamente”.22 Esses autores opinam que as mudanças comumente atribuídas à Reforma parecem menos convincentes com o passar do tempo e que “é difícil resistir à impressão de que um preconceito favorável ao protestantismo influenciou a forma pela qual alguns efeitos de grande alcance foram atribuídos a ele”.23 19 MACCULLOCH, Diarmaid. The Reformation. NovaYork: Penguin, 2004, p. xx. Minha tradução. 20 COLLINSON, The late medieval church and its reformation, p. 245. Minha tradução. 21 Ibid. Minha tradução. 22 FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe; WILSON, Derek. Reforma: o cristianismo e o mundo 1500-2000. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 12. 23 Ibid., p. 372, 376. Ao mesmo tempo, o livro procura transmitir uma visão quase benigna da Inquisição (p. 384).
  • 20. FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22 19 Poder-se-ia argumentar que a recíproca é inteiramente verdadeira: o pre- conceito contra o protestantismo também pode contribuir para minimizar ou relativizar as consequências muitas vezes atribuídas ao movimento. Entre os efeitos questionados por esses dois autores estão o individualismo, a ascensão do capitalismo, o declínio da magia, a revolução científica, o sonho america- no e as liberdades civis. Tudo isso é intrigante diante do fato de que uma das propostas do livro é conclamar católicos e protestantes a se unirem na luta contra o secularismo.24 Outro autor que não tem simpatias pelas contribuições do protestantismo é o historiador galês Christopher Dawson (1889-1970), educado como angli- cano e convertido ao catolicismo. O título de um de seus livros, A Divisão da Cristandade, expressa fielmente a sua posição. Para ele, a Reforma, acima de qualquer outra consideração, provocou a ruptura da unidade cristã e os efeitos foram catastróficos. Diz ele: Ao longo de três séculos, o abismo entre o mundo católico e o protestante per- sistiu e cresceu cada vez mais com o passar do tempo. E foi esse cisma cultural e político, bem como religioso e eclesiástico, que, em última análise, foi o responsável pela secularização da cultura ocidental.25 Uma atitude semelhante é demonstrada por Diarmaid MacCulloch, que, embora não seja um protestante praticante, diz reter uma cordial simpatia pelo anglicanismo no que ele tem de melhor. Para ele, no século 16 a “sociedade ocidental, previamente unificada pela liderança simbólica do papa e pela posse de uma cultura latina comum, foi dilacerada por profundos desentendimentos sobre como os seres humanos devem exercer o poder de Deus no mundo, discussões até mesmo sobre o que significava ser humano”.26 Uma das obras mais influentes sobre os primórdios da Reforma foi pu- blicada em 1928 pelo historiador francês Lucien Febvre (1878-1956), um dos fundadores da Escola dos Annales e precursor da chamada Nova História. Sua magistral biografia de Lutero, calcada em vasta pesquisa documental, contempla em especial os anos de 1517 a 1525 da vida desse “profeta inspirado”. O autor chega a conclusões sombrias: para ele, o reformador alemão fracassou e seu destino foi trágico. Em sua avaliação, quando Lutero, no final da vida, “lançava 24 Nos anos 60, no contexto do Concílio Vaticano II, autores católicos publicaram avaliações mais positivas da Reforma. Por exemplo: DANIEL-ROPS, Henri. A igreja da Renascença e da Reforma. São Paulo: Quadrante, 1996 (1961); DOLAN, John P. History of the Reformation: a conciliatory assessment of opposite views. Nova York: Desclee, 1965. 25 DAWSON, Christopher. A divisão da cristandade: da Reforma Protestante à era do Iluminismo. São Paulo: É Realizações, 2014, p. 194. 26 MACCULLOCH, Diarmaid. The Reformation. Nova York: Penguin, 2004, p. xix.
  • 21. ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES 20 o olhar em volta de si, via no solo mais ruínas que construções”.27 Ele sacudiu o jugo do papa, mas colocou em seu lugar o jugo ainda mais opressor do Estado. 3. O LEGADO DA REFORMA Como se pode observar, o juízo dos historiadores seculares, católicos e até mesmo de muitos protestantes sobre a Reforma Protestante pode ser bastante severo. No entanto, alguns estudiosos procuram destacar diversos legados construtivos, como é o caso de Alister McGrath. Falando sobre o impacto da Reforma na história, ele arrola os seguintes fatores: uma atitude positiva em relação ao mundo, a ética protestante do trabalho, sua influência sobre o ca- pitalismo, as mudanças políticas, sua conexão com o surgimento das ciências naturais.28 No final do seu livro sobre as reformas na Europa, Carter Lindberg afirma que “os legados das Reformas afetaram cada aspecto da vida e do pen- samento modernos”.29 Ele menciona, entre outras, as seguintes áreas que foram atingidas: política, cultura, mulheres, tolerância, economia, educação, ciência, literatura e artes. O historiador Patrick Collinson observa: “É inevitável que uma coisa tão ampla como a Reforma tenha sido considerada causa de muitas coisas... é possível considerá-la causa de quase tudo o que quisermos”.30 É preciso lembrar que, sendo a Reforma acima de tudo um movimento de natureza religiosa e doutrinária, o seu maior legado se deu nessa área. O eminente historiador Owen Chadwick, falecido em 2015, observou: “Depois de Lutero, não era possível, seja aos protestantes ou aos católicos, imitar algumas das velhas maneiras de negligenciar a graça e a soberania de Deus. Na medida em que o Protesto consistiu no brado de Lutero de que a salvação não era por meio do ritual... o Protesto foi triunfante”.31 Mais concretamente, Lutero insistiu no fato de que o ser humano só pode ser salvo pela graça de Deus, e não por qualquer mérito, virtude ou esforço pessoal. Somente pela fé, ela mesma também uma dádiva divina, podemos nos apropriar do que Cristo fez por nós. Collinson observa: “A doutrina de Lutero de que o homem é re- dimido exclusivamente por meio da fé libertava o homem da moralidade, mas também para a moralidade”. E conclui: “Aí se encontra a diferença essencial entre o que se tornaria o Protestantismo e o Catolicismo, tal como este foi reconstituído no Concílio de Trento”.32 27 FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. Porto Codex, Portugal: Edições Asa, 1994, p. 264. 28 MCGRATH, O pensamento da Reforma, p. 286-300. 29 LINDGERG, As reformas na Europa, p. 423. 30 COLLINSON, Patrick. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p. 229-230. 31 CHADWICK, Owen. The Reformation. The Pelican History of the Church. Londres: Penguin, 1988, p. 444. 32 COLLINSON, A Reforma, p. 75. Minha tradução.
  • 22. FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22 21 O historiador norte-americano Mark Noll, depois de reconhecer deficiên- cias na Reforma e na personalidade de Lutero, argumenta que a concepção do reformador acerca de Deus deixou marcas profundas na história cristã. Ele se refere especificamente à chamada “teologia da cruz”, já presente nas teses 92-95 de 1517.33 Para Lutero, encontrar a Deus era encontrar a cruz. “O cristianismo torna-se uma realidade nas vidas humanas quando homens e mulheres participam da morte de Cristo ao experimentarem a destruição de suas próprias pretensões quando estão coram Deo (na própria presença de Deus)”.34 O reformador contrastou essa atitude com a “teologia da glória”, que leva os seres humanos a confiarem em si mesmos, na sua própria percepção acerca de Deus e do mundo. Aquele que deseja encontrar a Deus tem de olhar para o Calvário, onde Deus se revelou plenamente. Nas palavras de Noll: “A cruz mostra o Criador, o Deus majestoso e todo-poderoso sofrendo – e sofrendo por nós. Lutero até mesmo podia dizer que a cruz nos mostra o terrível mistério de Deus experimentando a morte por nós”.35 CONCLUSÃO Os exemplos arrolados neste artigo mostram o quanto os compromissos prévios dos historiadores afetam a maneira como interpretam a história da Reforma. Assim como alguns deles, principalmente secularistas e católicos romanos, tendem a relativizar a importância desse movimento, os evangélicos (no sentido original da palavra) se sentem no dever de apontar os elementos apreciáveis e construtivos dessa história. Eles não se recusam a admitir que a Reforma teve suas falhas. O protestantismo gerou uma grande cisão no mundo cristão e muitas vezes atribuiu importância excessiva aos governantes civis, praticou ações intolerantes, envolveu-se em guerras, não soube manter a sua própria unidade interna.Assim, os 500 anos, longe de serem uma ocasião para celebrações ufanistas, devem ser um convite para a reflexão, para a reafirmação de princípios, para a gratidão a Deus pela longa caminhada desse movimento, que, apesar dos percalços, têm produzido frutos extraordinários na vida da igreja e do mundo. Fazendo uma avaliação final da Reforma e suas vicissitudes, MacCulloch fala pelos seus contemporâneos secularizados do início do século 21 ao declarar: “Nós não temos o direito de adotar uma atitude de superioridade intelectual ou emocional, especialmente à luz das atrocidades que a Europa do século 20 33 NOLL, Mark A. Momentos decisivos na história do cristianismo. Trad. Alderi S. Matos. São Paulo: Cultura Cristã, 2000, p. 170-173. 34 Ibid., p. 174. 35 Ibid., p. 176. Ver também: MCGRATH,Alister E. Lutero e a teologia da cruz: a ruptura teológica de Martinho Lutero. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.
  • 23. ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES 22 produziu por causa de sua fé em ideologias mais novas, seculares”.36 Areforma do século 16 não deve ser julgada pelos excessos de alguns de seus personagens e movimentos, em grande medida próprios de sua época, mas pela relevância das ideias e perspectivas da vida que ela promoveu, principalmente acerca do relacionamento das pessoas com Deus, e também em muitas outras áreas da experiência humana sobre a terra. Nestes 500 anos, pode-se dizer que o seu legado é profundo, rico e duradouro. ABSTRACT The Protestant Reformation, a movement that commemorates its fifth centennial, has been the object of intense investigation by many scholars. This interest on the topic is due to the relevance of the Reformation and its vast consequences for the modern world. At the same time, it is a highly controversial subject, with a wide variety of perspectives and interpretations. Initially, this article makes some general historiographical considerations about the Reformation. Then it adresses several aspects that have given occasion to disagreements and reappraisals in the last decades. They are the multiple character of the Reformation, its intellectual sources, its primary motivations, and its consequences. Finally, the author makes some considerations about the lasting legacy of the Reformation. KEYWORDS Protestant Reformation; 500th anniversary of the Reformation; Historio- graphy; Historians; Interpretations of the Reformation. 36 MACCULLOCH, The Reformation, p. 683.
  • 24. 23 FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41 O Papel da Música na Reforma e a Formação do Saltério de Genebra Dario de Araujo Cardoso* RESUMO Destacamos no presente artigo a importância que teve para os refor- madores a discussão sobre o uso da música na liturgia. Mostramos que tanto para Lutero quanto para Calvino o poder de mobilização emocional da música deveria ser utilizado para conduzir os crentes à adoração de Deus. Calvino destacou-se por defender que esse poder deveria estar a serviço da edificação e do ensino e incentivou a produção de cânticos de fácil assimilação, cujas letras conduzissem à meditação em Deus e em suas obras. O cântico de salmos e outros textos bíblicos metrificados e adaptados ao contexto cristão mostrou-se o meio mais apropriado para isso e resultou na produção da obra que ficou conhecida como o Saltério de Genebra. PALAVRAS-CHAVE Reforma; Liturgia; Música; Lutero; Calvino; Cântico de Salmos. INTRODUÇÃO Aliturgia é um dos aspectos primordiais de uma religião. Ela é o elemento que dá forma e expressão às crenças de determinado grupo. Antes mesmo do discurso é a liturgia o primeiro aspecto a observar quando da aproximação a determinada crença. Durkheim demonstrou que as crenças e os ritos são os * Doutor em Semiótica e Linguística Geral pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Huma- nas da Universidade de São Paulo, Mestre em Teologia e Exegese pelo CPAJ, Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor assistente de Teologia Pastoral no CPAJ. Coordenador e professor do Departamento de Teologia Exegética do Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição. Membro da equipe pastoral da Igreja Presbiteriana do Centenário, em São Paulo.
  • 25. DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO... 24 aspectos fundamentais a serem abordados no estudo das religiões.1 Assim, o estudo da Reforma deve tratar com atenção os aspectos litúrgicos envolvidos em sua concepção e desenvolvimento. Nas palavras de Witvliet, Alguns dos mais dramáticos e reveladores desenvolvimentos no período foram litúrgicos. Nós não podemos entender completamente as dimensões religiosas deste (ou de qualquer outro) período sem compreender as variações e mudanças nos modos pelos quais os fiéis prestavam culto a Deus.2 McKee observa que, além da teologia e da política eclesiástica, a Reforma trouxe grandes mudanças na liturgia. Nesse campo, continua ela, Calvino e Genebra devem receber especial atenção “porque aquele padrão é usualmente reconhecido como o mais significativo para a teologia e liturgia reformada posterior”.3 Noll relata que a hinologia foi uma marca tão importante da Re- forma que personagens importantes da Igreja Católica pensaram em proibir o uso da música na missa. Ele afirma: A enxurrada de hinos protestantes que inundou a Europa juntamente com as primeiras crises da Reforma criou dificuldades incomuns para a Igreja Católica Romana. O canto congregacional estava associado ao protestantismo de maneira tão profunda e os protestantes foram tão eficazes na utilização dos hinos que alguns personagens importantes da Igreja Católica por breve tempo consideraram a proibição da música nas missas.4 Dessa forma, a consideração dos aspectos litúrgicos não dever ser vista apenas como subsidiária, mas como elemento essencial para a compreensão e análise da Reforma. Em particular, o estudo das questões relacionadas ao papel da música na liturgia e dos instrumentos preparados para este fim servirá de grande proveito para o desenvolvimento desse campo de pesquisa. Neste artigo descrevemos o pensamento de Lutero e Calvino sobre o uso da música na liturgia. Em seguida focalizamos os desdobramentos dos princípios de Calvino na proposição e confecção do Saltério de Genebra. A exposição é feita sob o referencial teórico semiológico de Nattiez, que propõe que a música remete a seu ambiente filosófico, ideológico e religioso, entre 1 DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 457. 2 MAAG, K.; WITVLIET, J. D. Worship in Medieval and Early Modern Europe: Change and continuity in religious pratice. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2004, p. 1. 3 MCKEE, E. A. Reformed Worship in Sixteenth Century. In: VISCHER, L. (Org.). Christian Worship in Reformed Churches Past and Present. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2003, p. 3. 4 NOLL, Mark A. Momentos decisivos na história do Cristianismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2000, p. 206.
  • 26. 25 FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41 outros, de modo que seu estudo procura distinguir três tipos de temporalidade: “o tempo da obra (seu desenrolar no tempo), o tempo dos processos que a ori- ginaram e das estratégias perceptivas que ela coloca em movimento, e o tempo da história”.5 Lidaremos especialmente com a segunda forma de temporalidade. 1. LUTERO E O USO DA MÚSICA NA REFORMA 1.1 A importância da música como instrumento litúrgico Antes da Reforma, o povo podia ouvir a música sacra, mas não podia participar dos cânticos. Silva descreve assim esse contexto: O canto litúrgico medieval era marcado por sua origem monástica, um canto “clerical”, elaborado e estabelecido para ser entoado por “profissionais” da religião, que dispunham de tempo e conhecimentos musicais para um apri- moramento e uma exaustiva complexidade, chegando a ponto de surgir uma rivalidade entre os diferentes mosteiros na execução destes requisitos, uma forma deturpada dos levitas bíblicos.Acelebração da missa era o lugar da apresentação do desenvolvimento de suas técnicas e aprimoramento de sua arte. O povo parti- cipava passivamente, assistindo a um espetáculo musical em que não entendia o porquê da música, nem o que se cantava, porque não compreendia a letra cujos arranjos altifônicos sufocavam a compreensão.6 Coube a Lutero o importante papel de quebrar esse paradigma e restaurar o cântico congregacional na língua do povo.7 Raynor, buscando destacar a importância de Lutero para a história da música, escreve que “sua dedicação total à música teve influência em tudo o que fizesse, não apenas na sua liturgia alemã, mas também na sua educação alemã, e a sua vida foi quase tão importante para o futuro da música como o foi para o futuro da religião”.8 Lutero tinha a música em mais alta conta. Para ele, a música era o mais precioso dos tesouros celestes. Por meio dela são dominados os pensamentos e sentidos, o coração e o espírito. Ela consola o aflito e abranda o arrogante. Portanto, [escreveu Lutero] não foi sem razão que os padres da Igreja, e os profetas, sempre quiseram intimamente juntas a Música e a Igreja; e, por isso, 5 NATTIEZ, J. J. Music and Discourse: Toward a Semiology of Music. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1990, p. 31. 6 SILVA, Jouberto Heringer da. A música na liturgia de Calvino em Genebra. Fides Reformata VII-2 (2002): 85-104, p. 93. 7 SANTOS, G. Do Salmo 5 ao “Atos 2” – Uma panorâmica sobre salmos e hinos na música evangélica no Brasil. Ex Corde, 2006, p. 2. Disponível em: http://www.hinologia.org/do-salmo-5-ao- -atos-2-uma-panoramica-sobre-salmos-e-hinos-na-musica-evangelica-no-brasil-gilson-santos/. Acesso em: 28 ago. 2017. 8 RAYNOR, H. História social da música: Da Idade Média a Beethoven. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972, p. 129.
  • 27. DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO... 26 temos tantos hinos e salmos. É mediante esse precioso dom, atribuído apenas à humanidade, que todo homem lembra seu dever de sempre louvar e glorificar a Deus.9 O reformador alemão entendeu que era impossível substituir o enorme reservatório de devoção pessoal encontrado na celebração da missa, nos ges- tos rituais e na música. Não obstante, viu a necessidade de inserir todas essas coisas num novo contexto doutrinário e por isso “dava ênfase à doutrina com estrutura tradicional da missa, que mantinha quase toda a estrutura musical”.10 Reynor faz o seguinte registro sobre a liturgia de Lutero: “Muita música na missa”, escreveu Lutero no Vermahnung zum Sakrament, “é excelente, pois exprime agradecimento e é muito apreciada. Em partes como o Gloria in excelsis, o Credo, o Prefácio, o Sanctus e Benedictus e o Agnus Dei há tão só agradecimento e louvor, e por essa razão as mantemos na missa. De toda a música na missa, o Agnus Dei é o que mais autenticamente corresponde ao sacramento, porque louva a Cristo, que carregou nossos pecados; em simples palavras ele aumenta a nossa reverência pela Paixão de Cristo”.11 Assim, Lutero deu grande atenção à estrutura musical. Por isso, chamou Johann Walther, músico experimentado que chegou a ser Kappellmeister do eleitor da Saxônia, para realizar minuciosa organização musical da música luterana.12 Além do aproveitamento de vários elementos musicais na liturgia, Lutero mostrou-se um profícuo compositor de hinos e corais. Costa registra que ele compôs 36 hinos e várias melodias.13 A mais conhecida de suas composições é uma paráfrase do Salmo 46, Ein feste Burg ist unser Gott (“Castelo Forte”), que se tornou o hino do protestantismo por toda parte. Esse modo de tratar os salmos para o cântico destacou-se na produção de Lutero, pois outro impor- tante hino de sua autoria é uma paráfrase do Salmo 130, Aus tiefer Not (“Em profunda aflição”). Vemos que Lutero tinha na liturgia um instrumento de instrução e forta- lecimento doutrinário e que foi pródigo no emprego da liturgia como elemento propagador da doutrina e da fé. Vemos também que ele tinha no canto um dos principais elementos da liturgia. O valor que Lutero dava à música era tão 9 Ibid. 10 Ibid., p. 130. 11 Ibid., p. 132. 12 Ibid., p. 130. 13 COSTA, Hermisten M. P. da. Princípios bíblicos de adoração cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 185.
  • 28. 27 FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41 grande que afirmou dogmaticamente que um professor deveria saber cantar e que alguém que não tivesse estudado e praticado música não deveria ser admitido ao ministério. Assim, “nas escolas religiosas a música era entusias- ticamente ensinada não só como valiosa disciplina intelectual, mas também como dever religioso e prazer social”.14 Não obstante, é preciso observar que o modo pelo qual Lutero valorizava a música levou os luteranos, principalmente nos grandes centros, a preferir a qualidade musical à fidelidade doutrinária. Raynor observa que num centro musical como a Thomaskirche em Leipzig, ou a Michaeliskirche em Lüneburg e a Kreuzkirche em Dresden, a qualidade musical mais que a crença doutrinária ou fidelidade sectárias governavam a escolha de música, em razão do modo pelo qual Lutero, desde o início da revolta, considerara a qualidade musical um elemento importante na sua liturgia.15 É interessante que Lutero, diferentemente de Calvino, não nutria simpa- tia pelo canto congregacional uníssono, mas preferia o canto coral acompanhado pela congregação. No entanto, por causa de sua preocupação doutrinária, via o canto congregacional como um proveitoso exercício devocional.Assim permitia e até mesmo incitava o canto congregacional “apenas para que a congregação fizesse uma declaração de fé como uma compreensão completa do que estava cantando”.16 Por isso, prefaciando o livro coral publicado por Rhau e Foster em 1538, Lutero escreveu: Quando a música natural é aperfeiçoada e polida pela arte, começa-se então a perceber a grande e perfeita sabedoria de Deus em sua maravilhosa obra musical, quando uma voz assume uma única parte, e em torno dela cantam três, quatro ou cinco outras vozes, saltando, rodando, enfeitando maravilhosamente a parte original, como uma dança celeste.17 Vê-se que em Lutero a música é um instrumento primordialmente de impressão, só então de expressão. A música, entendida como um dom divino, teria em si mesma a capacidade de enlevo e aperfeiçoamento espiritual. A preocupação com o que será cantado é limitada, embora não deixasse de zelar por aquilo que contribua para a propagação da mensagem da Reforma. 14 RAYNOR, História social da música, p. 135. 15 Ibid., p. 30. 16 Ibid., p. 132-133. 17 Ibid., p. 133.
  • 29. DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO... 28 1.2 Divergências entre os reformadores sobre a presença e o papel da música na liturgia No entanto, ainda que os protestantes concordassem que deveria haver uma absoluta conexão entre a fé e a liturgia da Reforma, havia reformadores que tinham postura bastante divergente da de Lutero. Segundo White, em 1529, o encontro de líderes protestantes em Marburg demonstrou que eles não podiam concordar em todos os assuntos de culto e que seu desejo de total acordo não era possível, ainda que fosse possível ter unanimidade em um ou outro item. Eles logo descobriram que, embora todos viessem de uma única tradição cristã, tinham dois espíritos diferentes – que Lutero apontou com cândida observação, provavelmente a Martin Bucer: “Você tem um espírito diferente do meu”. Lu- tero representava a velho ensino e piedade. Zuínglio, Bucer, Oecolampadius representavam o novo ensino e o novo tipo de piedade.18 Entre essas divergências estava o uso da música na liturgia. Zuínglio, por exemplo, demonstrou “profunda suspeita com o que chamava de ‘seduti- vo’ poder da música, banindo da Igreja todo tipo de música”.19 Martin Bucer (1491-1551), em Estrasburgo, seguiu padrão comedido, mas não tão radical. Descrevendo o culto, ele relata: “Após a remissão de pecados para aqueles que creem, toda a congregação canta pequenos salmos ou hinos de louvor...”.20 Desde 1525, os salmos eram cantados pelos exilados alemães e franceses em Estrasburgo.21 Esse padrão proposto por Bucer foi de grande importância para o ensino e a prática litúrgica proposta por Calvino. Guilherme Farel (1489-1565), pregador responsável pela permanência de Calvino em Genebra, também manifestou simpatia pelo canto congregacional, particularmente dos salmos. Na controvérsia no Convento de Rive (1535), ele declarou: “Não é mau que todos os fiéis, ao se reunirem, cantem juntos, com o coração e também com a boca, salmos, em sua língua, que todos entendem, louvores a Deus”.22 Discordando de Zuínglio, Calvino, além dos perigos e seduções, via na música um poderoso instrumento de auxílio à edificação e ao zelo espiritual. No Prefácio ao Saltério de Genebra ele escreveu: “E na verdade nós sabe- 18 WHITE, J. F. Protestant Worship: Traditions in Transition. Louisville: Westminster/John Knox, 1989, p. 58. 19 SILVA, Música na liturgia de Calvino, p. 86. 20 Apud BARD, T. (Org.). Liturgies of the Western Church. Philadelphia: Fortress, 1980, p. 87. 21 SILVA, Música na liturgia de Calvino, p. 91. 22 AUGUSTIN, C.; VAN STAM, F. P. (Orgs.). Ioannis Calvini. Epistolae, vol. 1 (1530–set. 1538). Genebra: Librairie Droz, 2005, p. 158; D’AUBIGNÉ, J. H. M. History of the reformation in Europe in the time of Calvin. Vol. 5, p. 310. Londres: Longmans, Green, and Co., 1869, p. 310ss.
  • 30. 29 FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41 mos, por experiência, que cantar tem grande força, vigor de mover e inflamar os corações dos homens para envolvê-los em adoração a Deus com mais veemência e ardente zelo”.23 Isso implica o esforço em insistir que a música fosse utilizada na liturgia com esse sublime fim: “É preciso haver canções não somente honestas, mas também santas, que como aguilhões nos incitem a orar e a louvar a Deus e a meditar nas suas obras para amar, honrar e glorificá-lo”.24 Por isso, a música deveria ter foco no que se cantava, ser simples e apropriada para ser cantada sem treinamento, e em uníssono.25 2. CALVINO E OS PRINCÍPIOS QUE LEVARAM À PRODUÇÃO DO SALTÉRIO DE GENEBRA 2.1 Os princípios que devem orientar a música na liturgia segundo Calvino A tradição litúrgica de Calvino formou-se a partir daquela praticada por Bucer em Estrasburgo, mas seguiu seu próprio e marcante caminho, tendo na promoção do cântico de Salmos sua característica mais marcante. White descreve: Diferente da tradição luterana, onde o cântico de hinos era encorajado, ou da Reforma de Zurique, onde nenhum cântico era permitido, Calvino fez com que os salmos fossem colocados em métrica francesa por Clément Marot (1497-1544) e outros. Ele encorajou compositores como Claude Goudimel (c. 1510-1572) e Louis Bourgeois (1510-1561) a produzir músicas.26 A tradução e a metrificação de salmos para o cântico não eram algo iné- dito. Como foi dito, Farel tinha preferência por elas no cântico congregacional e Bucer já havia promovido essa prática em Estrasburgo. Em seu primeiro período em Genebra (1536-1538), Calvino havia proposto o uso do cântico de salmos, provavelmente em prosa, na liturgia. “Nós desejamos”, escreveu Calvino, “que os salmos sejam cantados na igreja de acordo com o antigo uso e testemunho de S. Paulo”.27 Foi em Estrasburgo que a prática do cântico de salmos conquistou o co- ração de Calvino e se tornou um elemento de seu projeto ministerial. Halsema observa que, ao chegar a Estrasburgo, muito agradou Calvino o fato de que 23 CALVINO. J. Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, 1543, p. 3. Disponível em: http:// www.monergismo.com/textos/jcalvino/prefacio_salterio_genebra_calvino.htm.Acesso em: 5 ago. 2008. 24 Ibid., p. 5. 25 SILVA, Música na liturgia de Calvino, p. 88. 26 WHITE, Protestant Worship, p. 66. 27 MCNEILL, John T. The History and Character of Calvinism. Oxford: Oxford University Press, 1967, p. 139
  • 31. DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO... 30 os refugiados franceses já cantassem salmos em francês havia dez anos e que cantavam com entusiasmo, dando gosto de ouvi-los.28 Costa registra que Calvino foi influenciado de certa maneira pela adoração dirigida por Martin Bucer em Estrasburgo, durante o período em que lá permaneceu (1538-1541), pastoreando os franceses banidos que desejavam cultivar sua fé em liberdade. Algo que chamava a atenção de Calvino era o entusiasmo com que os franceses ali exilados cantavam salmos quando se dirigiam ao culto.29 Ainda assim, pode-se considerar Calvino como o grande incentivador dessa prática e o principal promotor do processo que culminou na publicação do Saltério de Genebra. Santos afirma que “ele desejava que os salmos vol- tassem a ser cantados nos cultos, como hinos, tal como o livro dos Salmos, os quais haviam sido compostos em poesia hebraica e eram cantados no segundo templo de Jerusalém”.30 Por isso, em 1539, publicou, em Estrasburgo, um saltério francês intitu- lado Aulcuns Psaulmes et Cantiques mys em chant. Esse saltério continha 18 salmos metrificados, cinco da lavratura de Calvino e os demais retirados da edição de Clement Marot para a corte francesa. Esse saltério foi a gênese do Saltério de Genebra. Aimportância que Calvino deu a essa prática pode ser vista no prefácio à edição do Saltério publicada em 1543, agora com a participação direta de Marot. Calvino inicia o prefácio defendendo que o culto deve ser útil para todo o povo. Esse princípio da utilidade do culto para a edificação parece ser o princípio fundamental da proposta litúrgica de Calvino. Ele diz: Pois nosso Senhor não instituiu a ordem que devemos obedecer quando nos reunimos em Seu Nome, somente para entreter o mundo quando este olha e observa, antes, ele deseja que o culto seja útil para todo o seu povo; como São Paulo testemunhou, ordenando que tudo que for feito na Igreja seja direcionado à edificação comum de todos; isto ao servo não teria ordenado, não fosse esta a intenção do Mestre. Mas isto não pode ser feito, a menos que sejamos instruídos a usar a inteligência em tudo que foi ordenado para o nosso proveito. 31 Costa afirma que para Calvino a preocupação teológica deveria “ater-se à edificação da igreja”. Mais à frente ressalta que “para Calvino, a doutrina estava relacionada à nossa vida; é para ser crida, vivida e ensinada. [...] não 28 VAN HALSEMA, Thea B. João Calvino era assim. São Paulo: Vida Evangélica, 1968, p. 100. 29 COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 161. 30 SANTOS, Do Salmo 5 ao “Atos 2”, p. 2. 31 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 1.
  • 32. 31 FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41 estava teorizando ou simplesmente fazendo uma abstração”32 . Nas palavras de Calvino, O evangelho não é uma doutrina de língua, senão de vida. Não pode assimilar- -se somente por meio da razão e da memória, senão que chega a compreender-se de forma total quando ele possui toda alma, e penetra no mais íntimo recesso do coração. [...] os cristãos deveriam detestar àqueles que têm o evangelho em seus lábios, porém não em seus corações.33 Portanto, a doutrina só pode ser sã quando ensinada com o intuito de beneficiar e que se mostre proveitosa a seus ouvintes.34 Por causa desse princípio de utilidade, Calvino considerava uma grande tolice praticar orações e cerimônias que as pessoas não pudessem entender. Sua defesa dessa questão é bem clara: Portanto, se realmente queremos honrar as santas ordenanças de nosso Senhor que usamos na Igreja, a primeira coisa que devemos é saber o que elas contêm e o que elas significam e querem dizer e para que fim foram instituídas, para que o uso delas seja útil e salutar e consequentemente corretamente administrados.35 No tratado que escreveu em 1544, onde expôs diante do imperador Carlos V as razões que justificavam a Reforma, Calvino descreveu o modo de oração que estava sendo implantado nas igrejas O método pelo qual, em nossas igrejas, todos oram em comum na língua popular, e homens e mulheres indiscriminadamente cantam os salmos, nossos adversários podem ridicularizar se quiserem, aprouve ao Espírito Santo trazer testemunho a nós do céu, enquanto ele repudia os sons confusos e sem significado que são pronunciadas em outro lugar.36 Seguindo esse princípio, ele defende que há três elementos ordenados para o culto: a pregação da Palavra, as orações públicas e solenes e a adminis- tração dos sacramentos.37 A partir desses três elementos, Calvino considera o cântico como uma forma de oração. “Quanto às orações públicas, há dois tipos. Aquelas somente com palavras, e outras cantadas”.38 Por isso, a música no 32 COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 226, 229. 33 Apud Ibid., p. 230. 34 CALVINO, J. Pastorais. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009, p. 163. 35 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 1. 36 CALVIN, John. The Necessity of Reforming the Church. Dallas, TX: The Protestant Heritage Press, 1995, p. 57. 37 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 2. 38 Ibid. p. 3.
  • 33. DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO... 32 culto deve ser objeto de especial cuidado e consideração. Calvino registra que “cantar tem grande força, vigor de mover e inflamar os corações dos homens para envolvê-los em adoração a Deus com mais veemência e ardente zelo”.39 Por isso, Calvino requer que as músicas tenham peso e majestade, rejei- tando aquelas que sejam frívolas ou triviais, que haja diferença marcante entre a música de entretenimento e o que é cantado na igreja e que ela seja usada com moderação de modo que sirva a coisas honesta e não dê lugar à dissolução ou se torne instrumento de lascívia ou impureza. Isso não quer dizer que Calvino queria que a música ficasse restrita aos cultos. Ao contrário, seu intuito era que ela, como de fato aconteceu, fosse cantada nos campos e nos lares como o que ocorria na igreja cristã por volta do quarto século.40 Sua preocupação era precaver-se de futilidades e alegrias tolas e viciosas e conduzir a igreja à alegria espiritual recomendada nas Escrituras. “É preciso haver canções não somente honestas, mas também santas, que como aguilhões nos incitem a orar e a louvar a Deus e a meditar nas suas obras para amar, honrar e glorificá-lo”.41 O cântico de salmos é, dessa forma, o corolário do princípio da utilidade do culto para a edificação. Ainda que haja outros cânticos apropriados, ne- nhum deles pode superar os salmos em virtude de que estes foram dados por inspiração do Espírito Santo. Calvino escreve: “Portanto, quando procuramos diligentemente, aqui e ali, não iremos encontrar cânticos melhores, por mais apropriados que sejam os seus propósitos, do que os Salmos de Davi, que o Espírito Santo falou e preparou através dele”.42 Em confirmação disso, cita Agostinho, que viu no cântico de salmos o modo de usufruir da música sem pecado, que dizia que “ninguém é capaz de cantar algo digno de Deus, exceto aquilo que recebemos dele”; e Crisóstomo, ardoroso defensor do cântico de salmos, que entendia que essa prática nos faz associados à companhia dos anjos.43 2.2 O impacto do Livro de Salmos em Calvino O impacto que o Livro de Salmos causou na vida de Calvino está bem documentado. Como foi dito acima, em Estrasburgo, Calvino ficou muito impressionado com “o entusiasmo com que os exilados franceses cantavam salmos quando se dirigiam ao culto”.44 Não que cantar salmos fosse uma ideia nova para Calvino. Em sua primeira estada em Genebra, propusera o cântico de 39 Ibid. 40 CARDOSO, Dario A. O cântico de Salmos na Igreja Cristã até a Reforma. Ciências da Re- ligião – História e Sociedade, v. 9, n. 2 (2011): 26-51, p. 35ss. 41 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 3-5. 42 Ibid., p. 5. 43 Ibid. 44 COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 161.
  • 34. 33 FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41 salmos que seria ensinado por um coro de crianças à congregação. No entanto, essa ideia se tornou um propósito em Estrasburgo. “Quando Calvino retornou a Genebra, adaptou muitos elementos da liturgia de Bucer, tornando-se o rito de Genebra (1542) a base para a adoração das igrejas calvinistas em toda a Europa – Suíça, França, Alemanha, Holanda e Escócia”.45 Esse padrão litúrgico tinha o cântico de salmos como um de seus principais elementos. Na dedicatória de Calvino ao Comentário de Salmos, ele faz impressionan- tes menções ao valor desse livro. Essa dedicatória foi endereçada aos leitores piedosos e sinceros. Ao explicar as razões de sua relutância em empreender uma série de pregações no livro de Salmos, Calvino reconheceu sua limitação em expor a riqueza de seu conteúdo. As riquezas variadas e esplêndidas que compõem este tesouro não são algo fácil de se expressar em palavras; tanto é verdade que estou bem consciente de que, seja como melhor me expresse, estarei longe de revelar todas a excelência do tema.46 Além da excelência, Calvino reconhecia a absoluta abrangência do livro acerca das emoções e necessidades humanas. É bem conhecida a alcunha atribuída por Calvino a esse livro: “Uma Anatomia de Todas as Partes da Alma”, pois não há sequer uma emoção da qual alguém porventura tenha participado que não esteja aí representada como num espelho. Ou, melhor, o Espírito Santo, aqui, extirpa da vida todas as tristezas, as dores, os temores, as dúvidas, as expectativas, as preocupações, as perplexidades, enfim, todas as emoções perturbadas com que a mente humana se agita47 . Dessa forma também ficam expostas nossas debilidades e os vícios a que estamos sujeitos, e o nosso “coração é trazido à claridade e purgado da mais perniciosa das infecções – a hipocrisia!”. Mais adiante, ele diz que “tudo quanto nos serve de encorajamento, ao nos pormos a buscar a Deus em oração, nos é ensinado nesse livro”.48 O valor dos salmos para a promoção de uma genuína e fervorosa oração também é registrado nessa dedicatória. Diferentemente das outras partes das Escrituras em que são registrados os mandamentos de Deus aos homens, aqui os profetas “são descritos falando com Deus e pondo a descoberto todos os seus mais íntimos pensamentos e afeições”, e demonstram 45 Ibid., p. 290. 46 CALVINO, Pastorais, p. 26. 47 CALVINO, J. O livro dos Salmos. vol. 1. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009, p. 27. 48 Ibid., p. 27.
  • 35. DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO... 34 ... como invocar a Deus é um dos principais meios de garantir nossa segurança, e como a melhor e mais inerrante regra para guiar-nos nesse exercício não pode ser encontrada em outra parte senão nos Salmos, segue-se que em proporção à proficiência que uma pessoa haja alcançado em compreendê-los, terá também alcançado o conhecimento da mais importante parte da doutrina celestial.49 Através dos salmos aprendemos a colocar diante de Deus aquelas fraque- zas que tememos confessar diante dos homens e “não há outro livro em que somos mais perfeitamente instruídos na correta maneira de louvar a Deus, ou em que somos mais poderosamente estimulados à realização desse sacro exer- cício”. Neles também somos estimulados a uma vida cristã que seja plena “de santidade, de piedade e de justiça, todavia eles principalmente nos ensinarão e nos exercitarão para podermos levar a cruz”.50 Amenção da cruz nesse trecho deixa bem claro que a piedade promovida pelos salmos não pode ser denominada veterotestamentária, no sentido de ser pré-cristã, mas bíblica e cristã no melhor sentido dos termos. Dessa forma, não há para Calvino a necessidade de cristianizar os salmos, como mais tarde propôs Charles Wesley. Portanto, não é por acaso que seja nessa dedicatória que encontramos as mais claras declarações de Calvino quanto à sua conversão. A partir dessa visão de Calvino, o jovem pastor norte-irlandês Angus Stewart faz a seguinte observação sobre a atualidade: Se isso é verdade, devemos confessar o quanto precisamos dos Salmos! Po- demos tê-los em excesso, se a oração cristã (que o Catecismo de Heidelberg, Dia do Senhor 45, chama de “a parte principal da gratidão, que Deus requer de nós”) é tão forte ou fraca quanto a nossa compreensão sincera dos Salmos? O raciocínio de Calvino aqui deveria nos estimular a ler, cantar e meditar nos Salmos. Está o Reformador de Genebra aqui identificando o problema com a oração em nosso país? A ignorância dos Salmos e a popularidade dos hinos modernos não-inspirados?51 2.3 Elementos distintivos do cântico de salmos proposto por Calvino Ao unir-se à longa tradição da igreja de cantar de salmos, Calvino, seguin- do a prática dos reformadores, traz inovações importantes.Amais evidente é o uso da língua vernácula. Esse princípio protestante não se limitou às traduções da Bíblia. Assim como Lutero, que introduziu o alemão na prática litúrgica, 49 Ibid. 50 Ibid., p. 29. 51 STEWART,A. João Calvino sobre a Excelência dos Salmos, 2007, p. 4. Disponível em: <http:// www.cprf.co.uk/languages/portuguese_calvinonpsalms.htm> Acesso em: 16 dez. 2010.
  • 36. 35 FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41 Calvino queria que seus irmãos cantassem em francês. No prefácio do Saltério de Genebra ele diz: “Por isso, é um grande descaramento por parte daqueles que introduziram a língua latina na igreja, onde geralmente não é entendida. E não há nem sutileza nem casuísmo que possa desculpá-los, porque essa prática é perversa e desagrada a Deus”.52 Por conta disso, não mais era apropriado que os salmos continuassem a ser cantados em latim como se fazia nas missas romanas. Outro elemento distintivo da tradução e cântico de salmos foi o uso da metrificação, e não do cântico dos salmos em prosa. Pode-se depreender que essa técnica foi adotada com vistas a facilitar a memorização. Segundo Calvino, o maior proveito do uso dos salmos não pode ocorrer se eles não estiverem impressos em nossa memória. “Após a inteligência, deve seguir o coração e a afeição, uma coisa impossível de acontecer exceto se tivermos o hino impresso em nossa memória, a fim de nunca cessarmos de cantar”.53 De fato, os registros pessoais dos calvinistas demonstram que a memorização dos salmos foi um importante elemento de apoio nas mais diversas situações. 2.4 O cântico de salmos não era propriamente exclusivo Deve-se observar que, conquanto Calvino manifeste preferência pelo cân- tico de salmos, não parece ter defendido que isso se fizesse exclusivamente. Na edição de 1545 das Formas de Oração na Igreja Francesa ele assim descreve a ordem litúrgica do culto: “Começamos com a confissão de pecados. (...) Continuamos com salmos, hinos e louvor, a leitura do evangelho, a confissão de nossa fé (ou seja, o CredoApostólico), e as santas oblações e oferendas...”.54 É importante notar, então, que desde a primeira e em todas as suas edições o Saltério de Genebra não foi composto unicamente pelos salmos bíblicos. Ha- via versões metrificadas de “cânticos bíblicos, da Oração do Senhor, do Credo dos Apóstolos, dos Dez Mandamentos, e paráfrases de passagens familiares do Novo Testamento”.55 Além de vários salmos, Calvino traduziu o Cântico de Simeão, conhecido com Nunc dimittis, e os Dez Mandamentos para o francês e compôs um hino. Segundo Cabaniss “essa tradição aponta para uma antiga percepção de que os salmos são quase, mas não totalmente, suficientes para a adoração cristã”.56 No decorrer da história da formação e da propagação do saltério, pode- -se registrar, além dos 150 salmos metrificados, onze metrificações de outros 52 CALVINO, Prefácio, p. 3. 53 Ibid., p. 5. 54 Apud COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 295. 55 CABANISS, A. The Background of Metrical Psalmody. Calvin Theological Journal, v. 20, n. 2 (1985): 191-206, p. 203. 56 Ibid.
  • 37. DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO... 36 textos canônicos e cinco de hinos não canônicos. Os outros hinos canônicos eram o Decálogo, o Cântico de Ana, o Primeiro Cântico do Servo, o Cântico de Jonas, o Cântico de Maria, o Cântico de Zacarias, duas versões do Cântico de Simeão, Romanos 8, o Hino filipense e o Hino colossense. Os extrabíblicos são o Cântico dos Três Jovens (presente na LXX e na Vulgata),57 o Credo, o Te Deum, a Pergunta e a Resposta nº 1 do Catecismo de Heidelberg e Um Hino para o Pentecoste.58 McNeill registra que Calvino também escreveu poemas. Não afirma se eles eram cantados, mas diz que, na edição de Genebra em 1545, foi incluído o melhor poema de Calvino, “Je Te salue, mon certain Redempteur”, uma declaração de fé fervorosa e pessoal.59 Entretanto, essa prática foi abandonada por Calvino, preferindo a proposta de metrificação do texto bíblico. Sobre o uso do texto bíblico como fonte da liturgia protestante, Raynor faz uma inte- ressante observação Para os luteranos, como para os reformadores mais radicais, a autoridade em religião estava na Bíblia, a Palavra de Deus, mais que na tradição viva da Igreja. Tudo o que se dissesse na Igreja era retirado de textos bíblicos, e quase em grau igual preces como o Kyrie e textos instrutivos como os do Credo tinham de ser ouvidos e compreendidos; as palavras não deviam ser apenas matérias-primas da música para dar uma estrutura e se destinarem a certa coisa autonomamente musical, como foi o caso da maioria das obras de mestres do Renascimento. Caso fossem musicadas, era dever do compositor cuidar para que fossem transmiti- das com toda clareza. Essa atitude para com a música não era, evidentemente, especificamente protestante; era apenas uma revivescência numa nova situação das objeções católicas tradicionais à música religiosa por demais complicada e assinala um ponto no qual se encerrava um ciclo e os protestantes extremados viram-se utilizando os mesmos argumentos que os conservadores extremados na Igreja Católica.60 Por reformadores mais radicais e protestantes extremados deve-se enten- der os calvinistas. Percebe-se aqui a ligação com as discussões que envolveram a salmódia desde o 4º século. A observação mostra-se verdadeira uma vez que o próprio Calvino citou várias vezes Agostinho e uma vez Crisóstomo no Prefácio do Saltério de Genebra. 57 Essa porção do livro de Daniel foi posteriormente considerada apócrifa, ou seja, não canônica, pelas igrejas protestantes. 58 KOYZIS, D. T. The Genevan Psalter, 2010. Disponível em: http://genevanpsalter.redeemer.ca/. Acesso em: 14 dez. 2010. 59 MCNEILL, The History and Character of Calvinism, p. 148. 60 RAYNOR, História social da música, p. 137.
  • 38. 37 FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41 2.5 Os salmos metrificados por Calvino Koysis informa que os salmos metrificados por Calvino não sobrevive- ram.61 Segundo ele, o reformador era melhor teólogo do que poeta. De fato, todas as metrificações de Calvino presentes na versão do saltério publicada em Estrasburgo foram substituídas pelas produzidas por Clement Marot e Teodoro Beza. Costa registra que Calvino fez metrificações dos salmos 25, 36, 43, 46, 91, 113, 120, 138 e 142.62 Das composições originais de Calvino foi possível localizar apenas uma. Trata-se da metrificação do Salmo 113 feita a partir da metrificação do mesmo salmo em alemão em 1525 em Estrasburgo. Esse salmo metrificado encontra-se sob o número 374 na revisão de 1964 do Psaumes Cantiques et Textes pour le culte à l’usage des Eglises réformées suisses de langue française. Figura 1: Salmo 113 metrificado por Calvino 61 KOYZIS, The Genevan Psalter. 62 COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 182.
  • 39. DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO... 38 O texto francês pode ser traduzido da seguinte forma: Vós, servidores do Deus do céu, Louvai o seu nome constantemente Que a cada dia, em todos os lugares, Seu povo a si mesmo dirige. Desde a manhã até a noite Louvai, louvai seu nome bendito Com canções de alegria. Único todo-poderoso, único Senhor A ele pertence o império. Ele tem o seu trono no mais alto céu Sobre tudo o que respira. Mas do mais humilde ele se lembra, Em seu amor ele o mantém, Seu cuidado está sobre nossas vidas. A quem ele vê pobre e sofredor Sua graça libera. Ele nos abençoa em nossos filhos, Ele é em si mesmo um pai. Ninguém além dele é glorioso, Louvai seu nome sobre a terra. A comparação com a versão Almeida Revista e Atualizada auxilia na percepção dos aspectos envolvidos no processo de metrificação utilizado por Calvino. 1 Aleluia!   Louvai, servos do Senhor,   louvai o nome do Senhor. 2 Bendito seja o nome do Senhor,   agora e para sempre. 3 Do nascimento do sol até ao ocaso,   louvado seja o nome do Senhor. 4 Excelso é o Senhor, acima de todas as nações,   e a sua glória, acima dos céus. 5 Quem há semelhante ao Senhor, nosso Deus,   cujo trono está nas alturas, 6 que se inclina para ver   o que se passa no céu e sobre a terra?
  • 40. 39 FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41 7 Ele ergue do pó o desvalido   e do monturo, o necessitado, 8 para o assentar ao lado dos príncipes,   sim, com os príncipes do seu povo. 9 Faz que a mulher estéril viva em família   e seja alegre mãe de filhos.  Aleluia!63 É possível perceber que certos elementos como o dever de louvar a Deus e a descrição de seus atributos são transferidos quase que literalmente para a metrificação. No entanto, os elementos circunstanciais de seus atos são contex- tualizados e descritos em termos da experiência coletiva descrita na primeira pessoa do plural, enquanto no salmo são descritos em terceira pessoa. Com essa simples técnica, o salmo recebe um caráter atual e prático, tendo a graciosa providência de Deus como elemento teológico que exige que o Senhor seja louvado e que se dê testemunho do cuidado que ele tem dispensado. 2.6 Clement Marot e o benefício de cantar salmos Um personagem chave na história do Saltério de Genebra é Clement Marot. Cabaniss descreve Marot como um filho da Idade Média, um poeta refinado e brilhante.64 Marot e Calvino se conheceram na corte da Duquesa de Ferrara, na Itália, em 1536. Quando passou por Genebra, no final de 1542, Calvino o contratou para dar continuidade ao projeto de metrificação dos salmos.65 Marot dedicou a edição de 1542 ao rei Francisco I. Nela, ele descreve o livro de salmos como “real e cristão”, escrito e cantado por Davi sob a ins- piração do Espírito Santo. Também afirma que os salmos não descrevem um amor terreno, como a Eneida ou a Ilíada, mas que na obra de Davi poderia ser encontrado o verdadeiro Amante, o Rei dos reis, e por isso Davi supera Homero e Horácio. Continua Marot que os corações gentis e as almas amáveis encontram neles consolação em todas as tribulações.66 Os temas espirituais são proeminentes nesse primeiro prefácio. Além da inspiração dos salmos, Marot menciona o cuidado providencial de Deus, a importância da lei na distinção entre o bem e mal e a prefiguração dos sofrimentos de Cristo como temas importantes dos salmos. Curiosamente, no prefácio à segunda edição (1543), Marot acrescenta uma palavra às senhoras “encorajando-as a abandonar as canções mundanas 63 Sociedade Bíblica do Brasil. Bíblia Sagrada – Almeida Revista e Atualizada, com números de Strong (Ps 113:1–9). Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil. 64 CABANISS, The Background of Metrical Psalmody, p. 200. 65 VAN HALSEMA, João Calvino era assim, p. 100, 143; COSTA, Ibid., p. 182. 66 CABANISS, The Background of Metrical Psalmody, p. 201.
  • 41. DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO... 40 em favor daquelas que ele lhes oferecia”.67 Assim, ao presumir que elas teriam interesse em canções de amor, ressalta que os salmos falam somente deAmor e que, de fato, foram compostos por aquele que é o próprioAmor. Então, conclui o seu apelo dizendo: Comecem, minhas senhoras, a promover a idade áurea na qual Deus é adorado como ele próprio ordenou, cantando este livro sagrado de canções. Vocês têm sorte, minhas senhoras, de poderem ver a hora se aproximar quando um traba- lhador em seu trabalho, um condutor em seu carro, um artesão em sua oficina, ilumina sua labuta com salmo ou cântico, quando pastores e pastoras fazem as rochas ecoarem com música louvando o santo nome de seu Criador.68 Cabaniss, observa que, propriamente falando, Marot não era protestante. Ele parece pertencer a um grupo evangélico, bíblico e humanístico chamado “círculo de Meaux”.69 Entretanto, foi muito bem recebido em Genebra e tanto ele quanto sua poesia granjearam a mais alta consideração de Calvino, de modo que um de seus salmos é utilizado no início da versão francesa do Novo Tes- tamento publicada em Genebra em 1543. Essa admiração perdurou por toda a vida do reformador, o que é demonstrado pelo fato de que na Páscoa de 1564, última ocasião em que Calvino, já muito adoecido, participou da Comunhão, foi cantada no encerramento do culto a versão do Nunc dimittis metrificada por Marot em 1543,70 não obstante, Calvino ter feito anteriormente sua própria versão metrificada do cântico de Simeão. Em 1543, os teólogos da Sorbonne condenaram formalmente as tradu- ções de Marot ao considerarem uma ameaça a prática protestante do uso do vernáculo nos cultos. Ainda assim, suas melodias eram cantadas tanto por católicos quanto por protestantes. Foi somente depois da edição de 1551, que foi expandida por Teodoro Beza, que “os salmos e suas melodias se tornaram muito mais fortemente identificados com a causa huguenote”.71 Dessa forma, Henrique II, que em sua juventude havia cantado na corte as traduções de Marot, baniu oficialmente o cântico público de salmos em 1558. Tal proibição e o importante papel simbólico do Saltério de Genebra nas guerras da religião levaram a um baixo índice de sobrevivência das suas fontes musicais. Os 67 Ibid. 68 Apud Ibid. 69 Ibid., p. 202. 70 Ibid. 71 BROOKS, J. Les cent cinquante pseaumes de David, mis en musique a quatre parties. 1998, p. 1. Disponível em: <http://www.thefreelibrary.com/Les+cent+cinquante+pseaumes +de+David,+mis+en+ musique+a+quatre+(et...-a020825591> Acesso em: 18 dez. 2010.
  • 42. 41 FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41 militantes católicos se comprometeram a destruir todas as cópias do Saltério que caíssem em suas mãos.72 CONSIDERAÇÕES FINAIS Observamos neste artigo o importante espaço que a música ocupou nas discussões da Reforma. Notamos que de modos diferentes Lutero e Calvino reconheceram o valor litúrgico da música e empenharam seus melhores es- forços para que seus benefícios fossem sentidos na vida da igreja. Um ponto relevante dessa discussão é a ênfase que Lutero deu ao poder de impressão que a música poderia exercer sobre os crentes, ao passo em que Calvino pre- feriu investir na música como um meio de expressão da fé e de ensino. Para Calvino, desde que fosse simples e focada no que se cantava, a música tinha o poder de envolver os homens na adoração a Deus e na meditação acerca de suas obras. O reformador encontrou nos salmos o ponto máximo do princípio da utilidade da música para a edificação. Com isso, um dos grandes projetos de seu ministério foi a produção de um livro de cânticos composto de salmos e outros textos bíblicos metrificados e adaptados ao contexto cristão. Essa obra ficou conhecida como o Saltério de Genebra. Com Lutero e Calvino aprendemos sobre a importância do investimento na produção musical para a edificação da igreja. Para isso, não podemos tratar a questão musical como uma discussão de estética clássica ou contempo- rânea. Precisamos nos certificar de que a música utilizada no culto reflita a majestade de Deus, incite os crentes à adoração e mova mentes e corações para o louvor de Deus e para o compromisso com sua Palavra. ABSTRACT This article highlights how important it was for the reformers to discuss the use of music in liturgy. It shows that for both Luther and Calvin the emo- tionally mobilizing power of music should be used in order to lead believers to worship God. Calvin was known for stressing that this power should be instrumental to upbuilding and teaching. He emphasized the production of songs that were easy to be learned and whose lyrics led to meditation upon God and God’s works. The singing of psalms and other biblical passages, metrified and adapted to the Christian context, proved to be the most adequate means to meet this goal and it resulted in the production of the work that became known as the Geneva Psalter. KEYWORDS Reformation; Liturgy; Music; Luther; Calvin; Singing of Psalms. 72 Ibid.
  • 43.
  • 44. 43 FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65 Lutero e os Antinomistas: Qual é a visão evangélica da lei? Heber Carlos de Campos Júnior* RESUMO Depois de apresentar os componentes essenciais da doutrina luterana de justificação em diálogo com os intérpretes de Martinho Lutero, este artigo introduz a controvérsia antinomista com João Agrícola na qual ele questio- na se o arrependimento era resultado da exposição da lei ou da pregação do evangelho. É apresentada como cenário da discussão a estrutura hermenêutica de lei e evangelho e resumida a oposição de Agrícola aos ensinos de Filipe Melanchton, seguida da resposta de Lutero e da ratificação da Fórmula de Concórdia. O propósito em resumir a controvérsia antinomista em contextos luteranos é suscitar pontos de contato com antinomismos na Inglaterra do século 17, quando surgiram discussões semelhantes, e consequentes lições para os dias atuais. Este artigo defende que há uma necessidade de contar essa história novamente para atender a certas necessidades do cenário evangélico brasileiro e internacional. PALAVRAS-CHAVE Martinho Lutero;Antinomista;Antinomismo; JoãoAgrícola; Justificação; Lei e evangelho; Arrependimento. INTRODUÇÃO É bem sabido que a doutrina da justificação ocupou lugar central na Refor- ma Protestante do século 16. Utilizando linguagem aristotélica, os historiadores tendem a denominar essa doutrina o “princípio material” da Reforma, isto é, * Doutor em Teologia Histórica pelo Calvin Theological Seminary, em Grand Rapids, Michigan; professor de teologia histórica e teologia sistemática no CPAJ; pastor da Igreja Presbiteriana Aliança, em Limeira (SP).
  • 45. HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS 44 a matéria prima com a qual ela foi moldada.1 Em contrapartida ao conceito católico romano de justiça infusa, derramada no interior do ser humano para torná-lo pessoalmente justo, a Reforma passou a falar de uma justiça atribuída ao ser humano. Sua diferença quanto à doutrina de Roma era mais do que mera semântica, ou apenas uma falta de distinção entre justificação e santificação, mas, de acordo com os reformadores, atingia a pureza do evangelho (boa nova). Essa diferença pode ser expressa com a seguinte pergunta: Como você quer ser avaliado por Deus e pelos homens, pela quantidade de justiça que há em você ou pela justiça atribuída a você? Em outras palavras, você quer ser recebido por Deus baseado em seu próprio desempenho ou baseado no desempenho de outro (Cristo) a seu favor? Você acha que os relacionamentos na igreja devem se iniciar e se perpetuar com base em uma pureza inerente às partes ou no perdão restaurador? Essas perguntas revelam qual é a base de nossas relações verticais e horizontais. Foi na doutrina da justificação que Martinho Lutero (1483-1546) trouxe algumas de suas maiores contribuições teológicas para a Reforma. Podemos resumir algumas de suas contribuições em três pontos que estão interligados. Primeiro, Lutero descobriu uma justiça salvadora, antes que punitiva. No renomado trecho autobiográfico contido no prefácio de suas obras em latim publicadas no final de sua vida (1545),2 Lutero relembra que quando era um jovem monge a expressão “justiça de Deus” (Rm 1.17) aterrorizava a sua alma. Todas as suas tentativas de satisfazer a Deus – orações, jejuns, vigílias, boas obras – não lhe aquietavam a alma, pois ele sempre se julgava aquém do padrão de santidade em Deus. Continuamente confessava suas falhas mais insignificantes ao seu mentor, Johann von Staupitz, a ponto de cansá-lo. Além disso, Lutero diz que nutria certa fúria velada contra o Deus que pune peca- dores.3 Sua descoberta, contudo, se deu quando a “justiça de Deus” passou de castigo para a provisão redentora de Deus. Sua alma encontrou alívio, nasceu de novo, quando ele mudou seu entendimento do que era a “justiça de Deus” 1 MCGRATH, Alister E. O pensamento da Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 113. Aristóteles desenvolveu uma teoria quanto à causa das coisas no mundo natural, como forma de investi- gação do mundo ao nosso redor. Esta teoria é descrita de forma praticamente idêntica em Física II.3 e em Metafísica V.2. Sendo que Aristóteles está buscando uma resposta para a pergunta “por quê?” podemos pensar na causa como um certo tipo de explicação. Cada uma das quatro causas é a explicação de algo. Eis as quatro causas: 1) “causa material”, aquilo do qual sai algo, e.g. o bronze de uma estátua; 2) “causa formal”, o relato do que há de se tornar, o formato da estátua; 3) “causa eficiente”, a fonte primária de mudança, o artesão; 4) “causa final”, o propósito de algo, o embelezamento de um prédio e a glória de um imperador. FALCON, Andrea. “Aristotle on Causality”. Stanford Encyclopedia of Philosophy. Disponível em: http://plato.stanford.edu/entries/aristotle-causality/. Acesso em: 29 ago. 2017. 2 Cf. LULL, Timothy F. Martin Luther’s Basic Theological Writings. 2ª ed. Minneapolis: Fortress, 2005, p. 8-9. 3 GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 64, 66.
  • 46. 45 FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65 em Romanos. Heiko Oberman diz que as doutrinas medievais de justificação tratavam daquele que está no estado de graça como tendo recebido a iustitia Christi (justiça de Cristo) sacramentalmente, mas que restam as obras de obediência à lei divina para satisfazer as exigências da iustitia Dei (justiça de Deus). Lutero perturbava-se com o conceito de iustitia Dei, pois sempre se via distante de uma obediência satisfatória. A grande descoberta de Lutero foi esta: “O coração do evangelho é que a iustitia Christi e a iustitia Dei coincidem e são concedidas simultaneamente”.4 Essa descoberta foi seu grande deleite, e um dos marcos na transição para uma teologia madura do reformador. Em segundo lugar, Lutero enfatizou uma justiça passiva (isto é, que eu recebo), não ativa.5 Lutero rompeu com a tradição medieval ao asseverar que certos homens são intrinsecamente pecadores, mas extrinsecamente justos. En- quanto a tradição agostiniana de justificação progressiva entendia a expressão simul iustus et peccator (simultaneamente justo e pecador) significando “em parte” pecador e “em parte” justo – como num processo de santificação – a ênfase de Lutero recaía em sermos pecadores em nós mesmos e justos porque Cristo nos foi dado.6 Ele compreendeu que é possível alguém ser internamente poluído ainda que seja tratado por Deus como puro. Enquanto na teologia me- dieval o veredito de justificação vinha por meio da infusão de uma qualidade sobrenatural (“graça habitual”) que habilitava o homem a fazer boas obras,7 Lutero destacou como o crente é visto por Deus como justo (mediante o per- dão dos pecados) ainda que não tenha obras suficientes em si mesmo. Essa é outra forma de falar de “justificação pela fé somente”. Fé, aqui, não é uma das virtudes teológicas agostinianas como esperança e amor, mas constitui uma relação de confiança (fiducia) em Deus por causa da obra de Cristo. Lutero reconhece que a palavra “somente” não é derivada de um texto da Escritura, mas contra a tradição medieval solidifica a necessidade de a fé ser o único instrumento pelo qual somos justificados por Deus em Cristo. Tanto é que sua tradução de Romanos 3.28 ficou polemicamente famosa quando ele inseriu a palavra “somente” (allein em alemão) para captar a ênfase paulina, ainda que o original não explicitasse tal qualificação.8 4 OBERMAN, Heiko A. ‘Iustitia Christi’ and ‘Iustitia Dei’: Luther and the Scholastic Doctrines of Justification. Harvard Theological Review, vol. 59, no. 1 (Jan. 1966), p. 19. 5 Lutero escreveu: “Ajustiça que provém de nós não é a justiça cristã, e por ela não nos tornamos justos. A justiça cristã é bem o contrário, a justiça passiva, que apenas recebemos, em que não agimos, mas deixamos um outro agir em nós, Deus”. Apud EBELING, Gerhard. O pensamento de Lutero: uma introdução. São Leopoldo: Sinodal, 1988, p. 96. 6 GEORGE, Teologia dos reformadores, p. 72-73. 7 Ibid., p. 66. 8 CAMPOS JÚNIOR, Heber Carlos de. O lugar da fé e da obediência na justificação: Um histó- rico das discussões reformadas do século XVII. In: FERREIRA, Franklin (Org.). A glória da graça de Deus: Ensaios em honra a J. Richard Denham Jr. sobre história, teologia, igreja e sociedade. São José