O documento discute três pontos principais sobre o Fórum Social Mundial (FSM): 1) O FSM ressignificou a política e o poder, valorizando a diversidade de sujeitos coletivos e sua capacidade de ação transformadora; 2) Apesar de inspirador, o FSM tem limites como evento e é necessário avançar para além dele com agendas e ações concretas; 3) É preciso priorizar questões como alternativas ao capitalismo, destruição ambiental, injustiça social e racismo em uma agenda para além do FSM.
1. c u lt c u lt u r a
cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Fórum Social
Mundial,
a construção
de um outro
mundo
possível
66 Democracia ViVa Nº 44
2. ura
SAMuEl toStA
Em fins de janeiro de 2001, na cidade de Porto Alegre, realizou-se a primeira edição do
Fórum Social Mundial (FSM). Surgiu com marca de ousadia e inovação, contestando a
hegemonia do pensamento neoliberal simbolizado pelo Fórum Econômico Mundial, em
Davos, na mesma data, reunia os autoproclamados senhores e donos do mundo. De um
lado, a surpresa, a festa barulhenta de encontros e desencontros, em uma verdadeira
praça da democracia, de identidades e línguas diversas, e a constatação de que, afinal,
não somos tão poucos os que acreditam que “outro mundo é possível”, a expressão
agregadora do FSM. Do outro lado, o hotel de luxo da estação de esqui, misto de cele-
bração retórica das benesses do mercado de um capitalismo globalizado, sem fronteiras,
e de pura negociação em vista de mais e mais lucros, sem amarras.
Assim começou o FSM: um espaço aberto que, sem negar a marca de origem con-
testadora do neoliberalismo, quer ser uma espécie de recarregador de baterias da cidadania
ativa, agora, necessariamente de dimensões planetárias, pois é dela que depende a solução
JaNeiro 2010 67
3. c u lt u r a
contradições deste capitalismo levado ao seu contradições e dos limites sob as quais o capi-
extremo. Surgido como um evento, o FSM de- talismo globalizado submete a humanidade e
sencadeou uma onda que, ao longo dos últimos a sustentabilidade da própria vida no planeta.
anos, foi ganhando força, com realizações de Hoje, “outro mundo possível” torna-se uma
fóruns mundiais, continentais e regionais, nacio- urgência e uma necessidade inadiável.
nais, locais, temáticos. Perdeu-se a conta, e ela Quero pensar, por isso, nos desafios daqui
ainda não acabou. Agora, em 2010, já iniciamos para diante, para além do FSM. Não estou pro-
o décimo ano desse processo que vai penetrando pondo uma mudança da iniciativa em si, pois,
no mundo e alimentando a esperança. penso que deve continuar a tarefa inspiradora
o Fórum já conferiu fundamental contri- que é sua marca. os encontros do FSM ainda
buição para a emergência de uma cultura cidadã alimentam o sonho e a esperança para muitos
em escala mundial. Hoje, é um processo que mundo afora. E o mundo é ainda enorme para as
segue seu próprio curso, apropriado por orga- dimensões reais que o processo de realizações do
nizações de cidadania ativa, movimentos sociais FSM conseguiu até agora. Muita semente precisa
e redes em diferentes partes do mundo. Inspira ser espalhada por diferentes territórios de nosso
um modo de tentar construir uma inteligência planeta e fazer ressurgir a vontade de mudança.
política coletiva sobre os problemas, os desafios Que o FSM siga o seu curso e sua capacidade
e as possibilidades das lutas que empreendemos mobilizadora, especialmente cativando as jovens
– cada qual a seu modo – no lugar onde nos en- gerações, como vimos em janeiro de 2009, em
contramos no planeta, mas que, pelas circunstân- Belém. Sou dos que pensam que ninguém segura
cias, nos tornam interdependentes, obrigados a essa “onda de cidadania”, pois o FSM já em nada
compartir um mesmo mundo para dele fazer “um depende do nosso bando de velhos cúmplices
outro mundo”. Para a nossa grande diversidade – quase todos homens, além do mais. o FSM
de identidades e culturas, a nossa pluralidade poderá mudar muito, como, aliás, mudou a cada
de visões e perspectivas, todas legítimas, mas ano, mas erra quem decreta seu fim. Hoje é um
sempre negadas, o FSM nos oferece um espaço patrimônio da humanidade. É ela que necessita de
aberto – uma espécie de usina para nova cultura um espaço aberto como o FSM para se repensar.
política – para que nos reconheçamos iguais como Como a minha reflexão está ainda em
humanidade e parte do mesmo e único sistema elaboração, faço apenas uma espécie de guia
planetário para compartir entre todas e todos. para minha atuação como diretor do Ibase, para
SAMuEl toStA
Não pretendo relatar aqui a história do dentro e para fora, aquém e além do FSM, e
FSM. Deixo a história para a história. Mas mudou uma contribuição aberta aos parceiros e parcei-
muito o contexto cultural, político e econômi- ras em redes, articulações e lutas democráticas
co do mundo de 2001 a 2010. As múltiplas e que, juntos, empreendemos.
articuladas crises recentes são expressões das
3
68 Democracia ViVa Nº 44
4. Fórum Social muNDial, a coNStrução De um outro muNDo poSSíVel
O FSM como inspiração e como limite
A contribuição mais evidente do FSM foi
IErê FErrEIrA
reacender uma força galvanizadora ao se
contrapor a Davos e simplesmente afirmar
que “outro mundo é possível”. Isso foi possi-
bilitado ao deslocar o foco quase exclusivo no
Estado e na economia para a capacidade de
ação transformadora dos múltiplos e diversos
sujeitos coletivos, organizados em entidades,
movimentos, redes, coalizões e alianças, que
resistem, formulam propostas concretas e vão
à luta por sua concretização.
Em certo sentido, não é o FSM que ins-
pira, simplesmente, um convite a uma reflexão
compartilhada de experiências e saberes que
se desenvolvem na prática, nas mais diversas
situações, para, com abertura ao mundo,
potencializar a própria ação, segundo as pos-
sibilidades de cada sujeito e em cada contexto.
o FSM cria bases de uma nova cultura política
de transformação exatamente por estabelecer
como um imperativo o diálogo planetário
horizontal, sem protagonismos, racismos ou
patriarcalismos, diálogo intra e inter sujeitos,
uns e umas reconhecendo os outros e as outras
igualmente como sujeitos.
A nova cultura política não é uma inven-
ção do FSM, mas ele é um grande propulsor
e indutor. Por seu caráter de espaço aberto à
diversidade e pluralidade – como definido na
Carta de Princípios –, o FSM tem conseguido
se tornar uma referência de encontros e trocas,
sem hierarquias ou prioridades. No seu interior, –
forjam-se legítimos consensos e dissensos (na
verdade, outros consensos), extraindo, assim,
da diversidade social e cultural, do encontros e
desencontros, e da pluralidade política a energia
que o mantém como referência de uma nova
cultura política de caráter planetário.
Forçoso reconhecer que, se bem é uma
nova cultura política que está presente no FSM, protagonizam os sujeitos, o que no FSM, muitas
é apenas algo emergente, em construção. Nós vezes, manifesta-se na ocupação do território e
todos e todas trazemos ao FSM nossas estru- na disposição de atividades.
turas mentais, nossos valores e nossas práticas, Apesar da massiva presença de organi-
com todas as suas contradições. Começando zações e movimentos feministas, o machismo
pelo mais simples: confundimos diversidade encrustado nas relações não confere às mulhe-
com cada qual fazer o que quer, mesmo que seja res a devida relevância nos diálogos e trocas.
uma atividade para os seus pares, dificultando língua e diversidade cultural são patrimônios
aglutinações, fusões e buscas coletivas, razão e riquezas a preservar, mas não sabemos lidar
de ser do espaço FSM. Não nos iludamos com o com o problema da tradução, apesar das tecno-
tamanho da tarefa pela frente. Nosso modo de logias de informação e comunicação ao nosso
pensar e agir de esquerda no seio do capitalismo alcance. Isso, talvez, porque está na tradução
ainda vem carregado por determinismos concei- – no sentido que Boaventura Souza Santos
tuais e políticos que priorizam, hierarquizam e lhe dá – o básico para aceitar e reconhecer os
JaNeiro 2010 69
5. c u lt u r a
outros e as outras como detentores de saberes Mas aí vem os limites. Não dá para ig-
tão ou mais importantes que os nossos, em norar que o modo de acontecer do FSM como
diálogo com os quais, como dizia Paulo Freire, espaço aberto, centrado em eventos como sua
poderemos, juntos, criar um novo saber, sobre grande realização, é o que é: um processo de
nós mesmos, a sociedade, o mundo. Enfim, eventos que vem despertando consciências e
sem ser exaustivo, assinalo esses problemas vontades para um novo fazer. Contudo, ainda
só para acentuar o caráter ainda incipiente da não é o fazer de um outro mundo. É apenas
nova cultura política. um passo, um começo fundamental, um abrir
um aspecto, que considero o grande de portas. o FSM é uma condição necessária
legado do FSM, até aqui, é o resgate e a valo- mas insuficiente do novo, no meu modo de ver.
rização da política como a arena por excelência Para surgirem forças transformadoras do que aí
da construção de outro mundo e da ação cidadã está, será preciso fazer um caminho para além
como força transformadora. Em um mundo ca- do FSM, não mais como Fórum, e sim como
pitalista, cada vez mais dominado por grandes invenção de sujeitos que acordam entre si ações
corporações de negócios, cada vez mais privati- concretas de incidência que julgarem adequadas
zado, mais mercantilizado, mais cínico e violento, nas diferentes situações e conjunturas, sobre
de um consumismo desenfreado, destruidor do relações, estruturas e processos de poder em
patrimônio comum da vida, criador de exclusões crise, mas ainda muito vivos e dominadores. os
e acentuada desigualdade social, o FSM res- desafios se vislumbram e ecoam no FSM. Seu
significa o público e a política e traz ao centro enfrentamento, porém, exige uma nova criati-
os princípios e os valores éticos para pensar a vidade políticocultural. Aí reside o dilema:
natureza, a vida, a economia e o poder. como espaço, penso que o FSM é
Considero três os pontos fortes do FSM indispensável ainda, mas por causa
como inspiração: reacender a esperança e re- do próprio Fórum, sinto-me
colocar a história no seu lugar, como produção empurrado a iniciativas
humana e não determinação metafísica; pôr em para além dele, iniciativas
questão os determinismos e protagonismos pró- de incidência do plano local
prios da cultura de esquerda; valorizar a energia ao mundial, construindo as
da diversidade de sujeitos coletivos. articulações necessárias.
SAMuEl toStA
70 Democracia ViVa Nº 44
6. 8
Fórum Social muNDial, a coNStrução De um outro muNDo poSSíVel
Elementos para uma agenda além FSM
o ponto de partida é repolitizar a vida, a relação Não sendo o FSM o objetivo da ação
com a biosfera, o poder, a cultura e a economia política transformadora, mas apenas um meio
e agir com uma perspectiva planetária e cos- de fortalecê-la, a questão da agenda política é
mopolita. Como já assinalei, o FSM ressignifica crucial para cada participante, como expressão
a política e o poder, dando-lhes centralidade de seu direito e responsabilidade humana e ci-
em contraposição às relações de mercado e dadã. É nesse sentido que penso ser um dever,
à economia. Aponta, nesse sentido, para o como participante, priorizar a agenda política
poder instituinte, constituinte e transformador no antes e no pós evento Fórum. o além FSM
da cidadania ativa. Não elabora e não define, a que me refiro tem o sentido de intervenção
enquanto tal, a agenda ou as agendas de luta. com uma agenda que se elabora, até inspirada
legitimamente, as agendas de cada sujeito por ele, mas sem se limitar, tomando o FSM
coletivo, individual ou as construídas em redes, apenas como um momento de reflexão e troca.
coalizões e alianças, são trazidas, debatidas e, A minha prioridade é avançar na agenda de
muitas vezes, atualizadas nos eventos do FSM. luta e buscar as parcerias e alianças possíveis
A responsabilidade por elas é de quem as adota, para melhor incidir nas diferentes situações e
não podendo ser impostas ao conjunto dos(as) nos contextos nos quais vivo.
participantes do Fórum. Hoje, penso que a questão central de
uma agenda de enfrentamento do capitalismo
é a busca de alternativas à “crise de civilização”
que tem por base o seu domínio colonial e
imperialista sobre povos e a nature-
za e o desenvolvimento industrial,
produtivista e consumista, que o
capitalismo promove em função
da acumulação desenfreada.
Destruição ambiental e injustiça
social são condições intrínsecas
SAMuEl toStA
9
vANor CorrEIA
JaNeiro 2010 71
7. c u lt u r a
do capitalismo, exacerbadas com a globalização cluir. É visível a territorialização do racismo, no
a serviço dos grandes conglomerados econô- interior das socidedades (favela versus asfalto),
micos e financeiros, sob a guarda militarizada entre cidades e regiões, entre cidade e campo,
imperialista. A fratura social só se aprofunda, entre agronegócio e formas sociais diversas de
e a ruptura com a biosfera e os bens comuns produção e vida de grupos excluídos, e nas
da vida para todas e todos chega ao limite do relações entre povos e nações, em um verda-
irreversível. Não é possível tornar sustentável deiro processo de racismo ambiental. o velho
tal civilização, daí a crise. patriarcalismo é renovado e naturalizado pelo
Para tornar sustentável toda a forma de capitalismo. Com isso, domina e desvaloriza,
vida, os povos e suas sociedades, é fundamental mas se beneficia de uma economia do cuida-
enfrentar a injustiça em sua dupla face: social e do, impõe uma dupla jornada de trabalho às
ambiental, injustiça socioambiental. Para tanto, mulheres. A publicização e politização dessa
se impõe como prioridade a disputa do ideal do agenda que emerge das lutas das mulheres é
bem viver e uma busca sistemática de alternativas tarefa da cidadania como um todo, do local
de poder e economia ao modelo de desenvolvi- ao mundial.
mento industrial, produtivista e consumista do Em termos de agenda política, tendo
capitalismo. Mas não é mais possível limitar-se à presente o contexto de crise profunda no qual
mudança das relações sociais de produção para está o sistema hoje e mirando o caminho a cons-
dar vazão às forças produtivas, como posto no truir para a transformação desta civilização de
ideal dominante das esquerdas. trata-se de por injustiça socioambiental, é fundamental pensar
em questão o tipo de desenvolvimento de forças no processo necessário de rupturas cumulativas.
produtivas. ou seja, o ideal da sociedade indus- A questão que se impõe é política e ética ao
trial, dos bens e serviços que propicia e do estilo mesmo tempo. A legalidade institucional deve
de consumo e de vida que gera, é parte da in- ser tensionada pela legitimidade da mudança.
justiça socioambiental que precisamos enfrentar. o arcabouço institucional que nos confina a
A ideia de resistência à mercantilização de tudo, Estados-nação se revela como uma arena ne-
dos bens comuns e da própria vida, está bem cessária, mas extremamente limitada da luta
presente no clima do FSM. Mas isso é pouco. por “outro mundo possível” ou, como hoje
É todo o imaginário de sociedades sustentáveis prefiro, “outra civilização possível”. Estamos
que precisa ser refeito, do local ao mundial, se- diante da necessidade inadiável de contrapor
gundo as possibilidades e os limites da biosfera a soberania cidadã e dos povos aos Estados so-
e da criatividade cultural, científica e técnica de beranos e seu monopólio na esfera mundial do
cada povo, em um espírito de interdependência poder (mesmo quando Estados subordinados e
e solidariedade planetária. subservientes, como a maioria dos quase 200
um elemento-chave da nova cultura países do mundo).
política e de uma agenda de transformação Isso implica tensionar a legalidade exis-
social é descolonizar e libertar nossos modos de tente, dentro e fora, em nome de uma legitimi-
pensar e agir. Muitas formas de ver as questões dade e responsabilidade ética de rever processos
da exclusão social e pobreza nos tornam pre- e estruturas, políticas e econômicas, que negam
sas fáceis de uma agenda de desenvolvimento direitos iguais e destroem as bases naturais da
imposta pelo poder colonial e imperialista do vida. Considero fundamental radicalizar uma
capitalismo. Não conseguimos pensar alterna- concepção emergente no processo FSM: a
tivas de criação de maior justiça social fora de cidadania não é uma dádiva dos Estados, mas
um quadro estreito de crescimento. condição política de ser parte da humanidade.
No contexto de “crise de civilização” no tirando as consequências de tal afirmação,
qual vivemos é outro poder e outra economia surge, necessariamente, a agenda de repensar
que precisam ser pensados. Precisamos, ainda, e refundar o Estado como expressão política do
desnaturalizar as relações que condenem mui- poder que as “cidadanias”, iguais e diversas, lhe
tos à pobreza, exclusão, às múltiplas formas de conferem. vasta tarefa de construção política,
desigualdade e dominação. Não é a falta de que precisa ser feita com mente aberta e muita
desenvolvimento que explica tais situações, pelo ousadia política.
contrário, é por causa dele. o desenvolvimento, Isso me remete a mais um elemento es-
como símbolo da civilização no qual vivemos alia sencial da agenda: a nova arquitetura do poder.
o velho e o novo e deles se alimenta. reinventa A interdependência entre povos e nações, no
constantemente o racismo para dominar e ex- quadro do capitalismo globalizado de hoje, é,
72 Democracia ViVa Nº 44
8. Fórum Social muNDial, a coNStrução De um outro muNDo poSSíVel
sem dúvida, um grande problema gerado pela As cartas de Direitos Humanos – revista
dominação imperialista dos países desenvolvidos, de uma perspectiva cosmopolita e liberta, ela
particularmente dos EuA. Mas a interdepen- também, da perspectiva civilizatória ocidental –
dência traz, contraditoriamente, uma enorme e a emergente, das responsabilidades Humanas,
possibilidade de futuro. o próprio FSM, como fornecem elementos, mas ainda insuficientes.
espaço de uma emergente cidadania planetária, Em termos políticos, uma agenda fundamental
não seria possível não fosse a difusa consciência é politizar e radicalizar as potencialidades que
de interdependência, na qual, em nossa diversi- oferecem as tecnologias de informação e co-
dade de povos, culturas e identidades políticas, municação (tIC), por permitirem a participação
somos parte de uma mesma humanidade e horizontal em escala planetária, com formação
compartimos um mesmo Planeta. de redes sem fronteiras de países. Não se trata
Interdependência, porém, não pode só de usar a tIC, mas de politizar o espaço que
ser pensada e praticada sem uma localização oferecem como arena política de uma perspec-
concreta, onde temos o essencial de nossas tiva cidadã cosmopolita.
vidas e relações com os outro(as) e realizamos Finalmente, como brasileiro, penso que é
nossas trocas com a biosfera. Como repensar indispensável problematizar o Brasil no contexto
esse fundamental local, em termos de poder, mundial. Sabemos que temos muita injustiça
cultura e economia, de uma perspectiva cidadã social e ambiental para dentro com que nos
planetária? E como repensar o poder mundial ocupar. Corremos, porém, o risco de referendar
de uma perspectiva de cidadania territorializa- uma agenda que vai contra tudo o que apontei
da? Para não sermos pegos pelo pragmatismo anteriormente. Como país emergente, o Brasil
mais multilateral (mas nada cosmopolita) que tende a usar a base de recursos naturais de que
a crise impôs aos países dominantes do G-8, é dotado, em um mundo carente de tais recursos,
abrindo-se ao G-20, com a inclusão de novos para, a seu modo, fazer valer a estrutura de poder
sócios no clube do poder – incluindo o Brasil – e, regional e mundial a seu favor. A velha agenda
assim melhor dominar o mundo, é fundamental do petróleo, como vem ficando claro no debate
que enfrentemos a agenda da nova arquitetura sobre as reservas do pré-sal, e as propaladas possi-
do poder, que implica necessa- bilidades de felicidade geral da nação podem nos
riamente uma refundação da levar a referendar um conjunto de políticas que
oNu e dos Estados-nação, reforçam o modelo de desenvolvimento ambien-
no horizonte não tão talmente predatório e socialmente excludente. É
distante assim. deste Brasil que a cidadania planetária precisa?
SAMuEl toStA
JaNeiro 2010 73
9. 13
c u lt u r a
Um possível novo modo de agir
Aqui, quero chamar a atenção para a incon- mais amplo que seja sempre será dos que a
tornável necessidade de organizar, de forma ele aderem. Portanto, ele já aponta para um
nova, as forças para impulsionar a agenda. além FSM. A questão mais delicada é construir
Novamente o FSM serve como um caldo ins- coalizões de sujeitos coletivos com um máximo
pirador, mas falta a tarefa difícil e contínua de denominador comum – para me contrapor ao
organizar os sujeitos, avaliar as oportunidades mínimo denominador comum de certas decla-
políticas e ir à luta. Só destaco alguns pon- rações genéricas e vazias – sobre a agenda e a
tos, pois, de fato, é no agir que se faz ação política. Falo de coalizões intermovimentos
a ação (é caminhando que se faz e organizações de cidadania ativa. A experiência
o caminho). Ele começa pelo existente, de relativo sucesso, é de campanhas
acordo sobre a agenda, temáticas. No caso, porém, falo em ações di-
que, por ferenciadas e coordenadas de uma cidadania
militante, visando tensionar estruturas
e poderes constituídos, nas
mais diversas situações.
A cultura política de inci-
dência internacional é intra-
movimentos e organizações,
ligando o local ao mundial
(confederações sindicais, via
Campesina, Plataforma de Direitos
Humanos, oxfam Internacional, Alop,
Articulação Feminista Marcosul, para
dar alguns exemplos). Falta-nos o inter-
movimentos, organizações e redes.
um elemento metodológico a conside-
rar é a possibilidade de transformar a ideia de
redes – dominantemente de diálogo político e
concertação sobre agendas temáticas comuns
– para algo mais no sentido da iniciativa e
incidência coordenadas, como um verdadeiro
15
vANor CorrEIA
74 Democracia ViVa Nº 44
10. 17
Fórum Social muNDial, a coNStrução De um outro muNDo poSSíVel
trabalho político de cidadania desenvolvido em prioridade. A comunicação e as campanhas
rede pelo conjunto diferenciado de sujeitos em públicas são, assim, uma arena prioritária do
coalizão. Além da agenda propriamente dita modo de agir necessário.
para a ação, definem-se os princípios e valores No FSM, fala-se em democratizar a de-
éticos norteadores, os objetivos comuns e as mocracia. Como? Como concretizar a radicalida-
formas de mobilizar e compartir recursos entre de do agir contido em tal afirmação? Penso que
os parceiros. Isso exige paciente trabalho de se trata de apostar na democracia
construção do que, potencialmente, venha a ser como modo de transformar a
um sujeito político de novo tipo, com identidade sociedade, sem a opção
e propostas, do local ao mundial. pela violência da força
A questão crucial do agir é a disputa e armada. ou seja, a
construção políticocultural de hegemonia nas radicalidade está em
sociedades locais concretas e nos vários pata- fazer valer as contra-
mares de incidência política, até as estruturas dições da disputa de
de poder mundial (mídia, fóruns de dirigentes hegemonia e poder que
políticos e empresariais, cúpulas etc.). refiro-me a democracia propicia, com
à disputa de hegemonia no sentido gramsciano uma estratégia de re-
que, em uma apropriação livre, defino como volução permanente,
a criação de “grandes movimentos cidadãos de legitimidade das
irresistíveis”. Como fazer isso sem protagonis- demandas cida-
mos a priori, como é da tradição de esquerda? dãs, instituindo
o segredo, me parece, está na construção de a legalidade do
coalizões abertas, que partem de reconhecer direito como
como indispensáveis os outros e outras e que conquistas de-
de todos e todas depende a própria agenda e mocráticas.
a construção do caminho de sua implementa-
ção. Desse modo podem gestar-se consensos
ativos, fundamentais para dar força na disputa
de hegemonia. Mas é fundamental reconhecer
que, para a cidadania, sempre o espaço público
do debate e da livre-circulação de ideias é a
lEoNArDo MEllo
SAMuEl toStA
JaNeiro 2010 75