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1
A COZINHA NO CANDOMBLÉ – ESPAÇO SAGRADO
ARLETE RODRIGUES VIEIRA DE PAULA – UNIVERSIDADE PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS
INTRODUÇÃO
No sistema religioso do Candomblé, a comida de santo e todas as ações para seu
preparo e consumo ocupam um lugar de destaque, sendo o centro das oferendas aos
Orixás. Os Orixás precisam ser alimentados. É preciso ofertar algo aos habitantes do Orum.
É necessário que o ritual de troca aconteça para que o Axé possa ser retribuído e distribuído
para todos. Bastide afirma que “o santo que já não cavalga é um santo que está
desaparecendo: diz-se que voltou para a África”1
. As comidas que compõem as oferendas
fortalecem a comunicação entre os fiéis e seus respectivos Orixás.
Toda a comida que é preparada para os Orixás segue preceitos ritualísticos e votivos
de acordo com a tradição do Candomblé. Toda essa atividade culinária acontece na cozinha
dos Terreiros, espaço considerado sagrado dentro do sistema religioso dos Orixás. Nesse
contexto podemos pensar na cozinha do Candomblé como um laboratório sagrado, onde o
fogo, através das ações rituais, permite a criação de um código alimentar que comunica algo
entre os seres humanos e os Orixás num mosaico que entrelaça as forças da natureza, a
herança ancestral e as necessidades humanas da comunidade religiosa do Candomblé.
Nesse espaço sagrado de alimentação e renovação se evidencia o papel da mulher como
nutridora e mantenedora da “família de santo”.
1
BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 231.
2
A Cozinha no Candomblé – Espaço Sagrado
Em seu livro, O Cru e o Cozido, Lévi-Strauss evidencia que a utilização do fogo
para cozinhar os alimentos é um marco do início da civilização. Em sua compreensão, o par
de opostos cru e cozido, enquanto condições naturais dos alimentos, traz para além disso
uma relação entre natureza e cultura. À medida que o ser humano começou a cozinhar os
alimentos, ele se distinguiu do mundo natural, numa alusão ao processo de construção da
cultura pelo ser humano. Estudando os mitos indígenas na América, ele relata que a cocção
dos alimentos é percebida como uma operação mediadora entre os seres humanos e os
deuses, "entre o céu e a terra, a vida e a morte, a natureza e a sociedade"2
.
Começamos, assim, a compreender o lugar realmente essencial que cabe
à culinária na filosofia indígena: ela não marca apenas a passagem da
natureza à cultura; por ela e através dela, a condição humana se define em
todos os seus atributos, inclusive aqueles que – como a mortalidade –
podem parecer os mais indiscutivelmente naturais.3
Para a atual ciência da nutrição, a cocção dos alimentos facilita a posterior etapa
de digestão e assimilação dos nutrientes, que estão presentes nos alimentos. Etapas essas
que acontecem no organismo humano através dos órgãos do aparelho digestivo. A cocção
dos alimentos facilita a mastigação, desativa fatores anti-nutricionais e algumas toxinas
presentes nos alimentos. A cozinha vista como um laboratório permite a transformação dos
alimentos, dando-lhes outra qualidade nutricional. O fogo como agente transformador ocupa
lugar de destaque na culinária dietética bem como o processo de cozinhar os alimentos se
entrelaça com as transformações da cultura na sociedade. Nesse contexto, relatamos o mito
yorubá sobre o Orixá Xangô, um Orixá ligado ao fogo, e o seu ensinamento aos seres
humanos sobre cozinhar os alimentos;
Xangô ensina ao homem fazer fogo para cozinhar
2
LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido: mitológicos. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 69.
3
Ibidem, p. 163
3
Em épocas remotas, havia um homem
a quem Olorum e Exu ensinaram todos os segredos do mundo,
para que pudesse fazer o bem e o mal, como bem entendesse.
Os deuses que governavam o mundo, Obatalá, Xangô e Ifá,
determinaram que, por ter se tornado feiticeiro tão poderoso,
o homem deveria oferecer uma grande festa para os deuses,
mas eles estavam fartos de comer comida crua e fria.
Queriam coisa diferente:
comida quente, comida cozida.
Mas naquele tempo nenhum homem sabia fazer fogo
e muito menos cozinhar.
Reconhecendo a própria incapacidade de satisfazer os deuses,
o homem foi até a encruzilhada e pediu ajuda a Exu.
Esperou três dias e três noites sem nenhum sinal,
até que ouviu uns estalos na mata.
Eram as árvores que pareciam estar rindo dele,
esfregando seus galhos umas contra as outras.
Ele não gostou nada dessa brincadeira e invocou Xangô,
que o ajudou lançando uma chuva de raios sobre as árvores.
Alguns raios incendiados foram decepados e lançados no chão, onde
queimaram até restarem só as brasas.
O homem apanhou algumas brasas
e as cobriu com gravetos
e abafou tudo, colocando terra por cima.
Algum tempo depois, ao descobrir o montinho,
o homem viu pequenas lascas pretas. Era o carvão.
O homem dispôs os pedaços de carvão entre pedras e os acendeu com a
brasa que restara.
Depois soprou até ver flamejar o fogo.
E no fogo, cozinhou os alimentos.
Assim, inspirado e protegido por Xangô,
o homem inventou o fogão
e pode satisfazer as ordens dos três grandes orixás.
Os orixás comeram comidas cozidas e gostaram muito.
E permitiram ao homem comer delas também.4
Os Orixás se alimentam das oferendas feitas pelos seres humanos. Sem a
alimentação que vem do Aiyê, o Orum não se manifesta. Os Orixás não comem qualquer
coisa, nem preparados de qualquer modo. Bastide afirma:
Cada orixá tem seus pratos preferidos. Os deuses não são apenas
comilões, mas também finos gourmets. Sabem apreciar o que é bom e,
como o comum dos mortais, não comem de tudo.5
O autor distingue dois momentos no ritual religioso do Candomblé: o sacrifício e
a comida. Embora a comida também seja feita com partes dos animais de sacrifício, ela
4
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 257-258.
5
BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.
332.
4
demanda atividades que podem durar até vários dias para sua preparação completa. Ações
que vão desde a compra e seleção dos alimentos e ingredientes necessários até o momento
da festa pública onde ela é partilhada com todos6
. Nesse sentido, a cozinha é o local onde
essas ações da culinária ritual acontecem. A cozinha do Terreiro se torna um lugar sagrado,
onde a comida para os Orixás é preparada e onde o Axé circula junto a cheiros, temperos e
sabores. Nas palavras de Santana Rodrigué, a cozinha, na África é conhecida como a casa
do fogo. Para a autora, o ato de cozinhar nos Terreiros simboliza também acender o fogo do
princípio, da origem do mundo e referenciar a ancestralidade. A cozinha dos Terreiros se
torna o altar onde o fogo aceso possibilita a transformação dos ingredientes que são
destinados aos Orixás e aos participantes da comunidade. Durante o preparo das refeições,
o Axé se espalha pelo local. Ainda em sua compreensão, a cozinha é o local privilegiado
para o aprendizado dos segredos e dos ritos da tradição. É um local onde se aprende a
abençoar a vida e os alimentos, um laboratório sacralizado onde ações rituais buscam a
harmonia com os Orixás possibilitando saúde e vida longa aos seres humanos7
.
De dia, o cru vai se transformando em cozido, enquanto o saber vai se
espraiando. Aprender os preceitos - como Iaô8
- é uma possibilidade de
viver a transmissão e o processo de aprendizagem. Esta se dá não só no
cozinhar em si, mas no modo de ser, no jeito nagô de ver o mundo;
cozinhar é um método, se aprende uma cosmologia.9
Na história do Candomblé, a cozinha dos Orixás se mistura com a cozinha das
fazendas escravocratas, onde as escravas negras eram as cozinheiras. Difícil precisar a
fronteira entre a cozinha africana e a cozinha ritual. Através do tempo histórico, a culinária
africana foi se adaptando ao que havia de alimentos e ingredientes no Brasil e ao que era
possível importar da própria África. Com os navios negreiros vieram os africanos e também
plantas que foram sendo cultivadas aqui em solo brasileiro. Sob esse aspecto, Sousa Júnior
6
Ibidem, p. 332.
7
RODRIGUÉ, Maria das Graças de Santana. Orí Àpéré Ó: o ritual das águas de Oxalá. São Paulo:
Summus, 2001. p. 91-95.
8
Iniciadas, filha-de-santo. BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001. p. 310.
9
RODRIGUÉ, Maria das Graças de Santana. Orí Àpéré Ó: o ritual das águas de Oxalá. São Paulo:
Summus, 2001. p. 92.
5
salienta que a cozinha africana, dentro dos Terreiros, vai se imbricar com os cardápios dos
Orixás. Para ele, a cozinha dos Terreiros foi se tornando a grande transmissora do
conhecimento ancestral e da energia do Axé através dos ritos consagrados a cada Orixá
na preparação de seus quitutes.10
Completando e reforçando essa idéia, Lody diz que a cozinha, enquanto espaço
sagrado, é um local importante para a continuidade da vida dos Orixás, através dos pratos
votivos e os preceitos rituais é assegurado a renovação do Axé11
. O autor ainda esclarece
que a cozinha é também o espaço onde os utensílios usados nos preparos das comidas-de-
santo são guardados. Esses utensílios são separados dos da cozinha doméstica, são
sacralizados e apesar do uso atual de aparelhos eletrodomésticos, o que predomina são os
vazilhames de madeira, cerâmica e de fibras naturais. Há também vários tipos de fogões,
mas o fogão a lenha é presença quase certa12
.
Sousa Júnior traz mais detalhes mostrando que o preparo da comida de santo
não perdeu seus fundamentos ligados à tradição e ao conhecimento ancestral pela
incorporação dos aparelhos eletrodomésticos usados atualmente. Ao se adaptar ao ritmo
urbano dos habitantes, principalmente, das grandes cidades, com o uso de massa pronta,
industrializada, para fazer acarajé, o fiel não invalida os rituais sagrados que são feitos para
o preparo do prato de Iansã13
.
Seja fazendo o uso de ingredientes nacionais ou de outros vindos do além-
mar, conservando, recriando ou inventando alguns pratos, a africanidade
sugerida pelos pratos que compõem a cozinha-de-santo não se explica
pelos ingredientes que entram na sua composição, mas pelas técnicas,
10
SOUSA JÚNIOR, Vilson Caetano de. A cozinha e os truques: usos e abusos das mulheres de saia
e dos povo do azeite. Práticas Terapêuticas, etnobotânica e comida, Parte III. In: CAROSO, Carlos;
BACELAR, Jeferson (org.). Faces da tradição afro-brasileira: religiosidade, sincretismo, anti-
sincretismo, reafricanização, práticas terapêuticas, etnobotânica e comida. Rio de Janeiro: Pallas;
Salvador: CEAO, 1999. p. 327-328.
11
LODY, Raul. Santo também come. 2. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 1998. p. 41.
12
Ibidem, p. 38-42.
13
SOUSA JÚNIOR, Vilson Caetano de. A cozinha e os truques: usos e abusos das mulheres de saia
e dos povo do azeite. Práticas Terapêuticas, etnobotânica e comida, Parte III. In: CAROSO, Carlos;
BACELAR, Jeferson (org.). Faces da tradição afro-brasileira: religiosidade, sincretismo, anti-
sincretismo, reafricanização, práticas terapêuticas, etnobotânica e comida. Rio de Janeiro: Pallas;
Salvador: CEAO, 1999. p. 342-343.
6
maneiras, pelo tratamento recebido por eles. A cozinha é um lugar de
ritual.14
Para além de um espaço doméstico, a cozinha é, em nossa sociedade brasileira,
um espaço essencialmente feminino. Na cozinha ritual estão as mulheres que sabem o
segredo das culinárias votivas. Na cozinha ritual, estão as iabassês, filhas-de-santo que
cozinham para os Orixás.
As refeições: mulher, ritual e preparo
A cozinha é um lugar de mulheres? Em nossa sociedade, cabe à mulher, em
geral, o papel de nutridora do grupo familiar? Acreditamos que sim. Desde os primeiros
cuidados com o recém-nascido, que inclui o aleitamento e todas as atividades relativas à
manutenção e continuidade de sua vida, até a responsabilidade pelas refeições domésticas
no grupo familiar na rotina da vida a mulher ocupa esse lugar de obrigação para com o
preparo dos alimentos e preservação da saúde e da vida. Essa relação se estende em
nossa sociedade ao aspecto de reprodução também. Há um imbricamento entre mulher,
comida e sexualidade. Lévi-Strauss, estudando as populações indígenas nas Américas
relata a relação, percebida nos relatos mitológicos, entre alimentos e sexualidade. Através
da linguagem, esses aspectos estão interligados em que há expressões que significam ao
mesmo tempo copular e comer. "Quando as referências são femininas, o código sexual
passa ao estado latente e se dissimula sob o código alimentar."15
Sob esse aspecto, Da Matta afirma que uma das formas de expressão da
sociedade brasileira mais significativas é feita através do "código da comida" que situa "a
mulher e o feminino no seu sentido talvez mais tradicional". Para ele, a sociedade é
expressa através do binômio comidas e mulheres. O autor cita Lévi-Strauss em sua
oposição cru/cozido ressaltando como estes dois aspectos naturais dos alimentos vão além
14
Ibidem, p. 339.
15
LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido: mitológicos. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 257.
7
de uma condição de estado biológico para uma dimensão social, "de fato, o cru e o cozido, o
alimento e a comida, o doce e o salgado, ajudam a classificar coisas, pessoas e até mesmo
ações morais importantes no nosso mundo"16
. Ainda em seu entender, há uma relação entre
a mulher e a comida no imaginário brasileiro, bem como ambas, mulher e comida, também
estão interligadas com a sexualidade, "comer" também se refere ao ato sexual17
. O autor
ainda acrescenta que as refeições e a sexualidade são percebidas como essência social e
junto com a comensalidade andam de mãos dadas18
.
Como verdadeiras comunhões onde o encontro transforma as pessoas
nele engajadas porque faz com que todos participem de uma mesma
substância comum, o prato comido ou a pessoa amada que, sabemos, vira
'comida' em nossa sociedade. E as mulheres desempenham, conforme
sabemos, um papel básico nesses dois processos.19
No sistema religioso do Candomblé, como podemos pensar o papel da mulher
na cozinha? No Candomblé, a cozinha sacralizada é também um lugar de mulheres? A esse
propósito Ruth Landes20
em suas notas afirma que na Bahia os homens são minoria na
prática religiosa do Candomblé, sendo que as mulheres ocupam um lugar de destaque na
liderança dos Terreiros, "circunstâncias históricas e culturais da escravidão baiana
favoreceram um matriarcado, bem como outros aspectos especiais da vida do negro."21
Reforçando a sua teoria de um matriarcado no Candomblé, citamos um trecho
de seus diálogos com Mãe Menininha onde a própria diz:
– Minha falecida tia – tornou a tocar o chão – herdou o cargo da mãe dela,
a grande Júlia – tocou de novo o chão – e Júlia fundou o templo depois de
chegar ao Brasil. Primeiro serviu como sacerdotisa no Engenho Velho –
mãe e filha serviam juntas… Sabe como é na Europa, minha senhora. Nós,
as mães, somos como as casas reais, passamos o nosso cargo somente a
pessoas da família, em geral as mulheres – sacudiu a cabeça e suspirou –
Candomblé é uma grande responsabilidade. Às vezes, fico pensando se
16
DA MATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 51.
17
Ibidem, p. 60.
18
Ibidem, p. 62.
19
Ibidem, p. 62.
20
Antropóloga americana, que desenvolveu seu trabalho de campo no Brasil, na Bahia e no Rio de
Janeiro em 1938 e 1939, tendo como guia e colaborador Édison Carneiro.
21
LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. p. 349-350.
8
terei forças para continuar e se tenho o direito de sobrecarregar as minhas
filhas com ela.22
A autora cita que Mãe Menininha não se casou oficialmente para não ficar sob o
poder que é delegado ao marido num país católico de herança latina patriarcal, pois as
mulheres do Candomblé devem se submeter apenas aos seus Orixás23
. Reforçando esse
raciocínio, Landes diz que as sacerdotisas almejavam um amante que lhes fosse útil
financeiramente e fornecessem respeitabilidade social junto a políticos. "O casamento
significa outro mundo, algo assim como ser branco."24
O estudo de Ruth Landes retrata um momento histórico no Candomblé, quando
se estabeleceram as grandes lideranças do sacerdócio baiano, onde a predominância das
mulheres era vista a olhos nus. A liderança se estabelece como matriarcado. "No Brasil, em
relação ao Candomblé, instalou-se um matriarcado importante e bem-vindo o que não
elimina a participação masculina"25
. Mas a cozinha continua sendo um lugar reservado às
mulheres, onde homens não são proibidos, mas são raros. Mantendo-se inclusive o tabu da
menstruação. Mulheres menstruadas não podem cozinhar. A esse propósito citamos
Amaral:
Depois de limpos os bichos, cozinham-se as carnes, separa-se o que cada
orixá deseja, e, no dia seguinte, são preparadas as comidas que serão
servidas à assistência da festa, no ajeun. É preciso lembrar que as
mulheres que cozinham as comidas de santo não podem, sob nenhuma
hipótese estar menstruadas, o que também pode representar um problema
para a casa, que precisa estar ciente das datas de menstruação de suas
filhas antes de marcar qualquer obrigação a que estas devam estar
presentes. Por este motivo, a iabassê quase sempre é uma mulher que já
esteja na menopausa, garantindo-lhe as condições necessárias ao pleno
desempenho de suas funções.26
22
Ibidem, p. 127.
23
Ibidem, p. 200.
24
Ibidem, p. 201.
25
SODRÉ, Jaime. Ialorixá: o poder singular feminino. In: MARTINS, Cleo; LODY, Raul (orgs.).
Faraimará: o caçador traz alegria: Mãe Stella, 60 anos de iniciação. Rio de Janeiro: Pallas, 2000. p.
258-259.
26
AMARAL, Rita de Cássia. Awon Xirê! A festa de candomblé como elemento estruturante da
religião. In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (org.). Leopardo dos olhos de fogo: escrito sobre
a religião dos orixás VI. São Paulo: Ateliê Editora, 1998. p. 103.
9
Seguindo com essa abordagem, recorremos mais uma vez ao estudo de Da
Matta sobre a questão da identidade brasileira no qual ele afirma haver em nossa sociedade
uma oposição casa/rua. Onde a rua representa o lugar do trabalho, da luta pela
sobrevivência. A rua representa a realidade dura da vida. Na contramão, a casa representa:
a família, os laços consangüíneos, os valores morais, as tradições mais cultuadas. A casa
em sua compreensão vai além de um espaço físico, se torna um espaço moral.27
Podemos perceber que a casa se torna o lugar tradicionalmente reservado à
mulher. Mesmo nos tempos atuais, em que a mão de obra feminina é significativa como
força de trabalho produtivo, ocupando o espaço "rua", o "espaço casa" ainda é percebido
como de responsabilidade da mulher. Nesse sentido, a mulher que trabalha fora de casa
tem dupla jornada de trabalho, em sua grande maioria. E se além dessa dupla obrigação a
mulher fizer o santo, suas obrigações para com o Terreiro lhe darão uma tripla jornada.
A presença maternal, protetora e de poder da mulher, em especial negra
ou mulata, no candomblé, reserva um espaço propício ao exercício de suas
habilidades intelectuais, místicas e míticas sem esquecer a beleza realçada
pelos parâmetros da estética africana e da sensualidade, valores inclusos
nos ritos afro-brasileiros.28
O autor –- também ogã –- ainda ressalta as responsabilidades da mãe-de-santo,
que inclui abnegação e serviços de amor ao próximo. Para ele, a condição de mãe-de-santo
se enquadra bem na "condição feminina", pela própria natureza da mulher, quanto à
possibilidade da maternidade. Cita também a fertilidade e os seios grandes e generosos da
mulher africana, fazendo a relação das amas de leite no período da escravatura e sua
função como nutridora dos filhos brancos do engenho29
.
Conseqüentemente, cabe, principalmente, à mulher o trabalho de nutrir a família-
de-santo. As iabassês, cozinheiras dos Terreiros, executam as atividades específicas da
cozinha ritual sob o comando da mãe ou do pai-de-santo. Essas atividades culinárias votivas
27
DA MATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 23-29.
28
SODRÉ, Jaime. Ialorixá: o poder singular feminino. In: MARTINS, Cleo; LODY, Raul (orgs.).
Faraimará: o caçador traz alegria: Mãe Stella, 60 anos de iniciação. Rio de Janeiro: Pallas, 2000. p.
259.
29
Ibidem, p. 249-250.
10
podem durar vários dias e se iniciam com a aquisição dos gêneros alimentícios e
ingredientes necessários para a execução dos pratos específicos para cada Orixá.
Após a aquisição do material necessário, seguem-se as operações de limpeza,
de higienização dos ingredientes, seguidas das ações de picar, amassar, misturar, moer,
triturar, deixar de molho e principalmente cozinhar. O fogo transforma os ingredientes em
pratos votivos através do trabalho litúrgico realizado pelas iabassês. Todas essas atividades
são realizadas dentro dos ditames ritualísticos que abrange gestos e comportamentos que
são aprendidos durante o processo de iniciação. Conhecer as receitas, os preceitos
necessários para o preparo da comida de santo, é parte intrínseca do aprendizado ritual do
filho e filha de santo. A cozinha ritual, com seus odores e sabores, recria o cotidiano
alimentar dos filhos de santos e de seus Orixás. As atividades exercidas na “casa do fogo”
sacralizam o ato de comer e a comensalidade no sistema religioso do Candomblé.

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  • 1. 1 A COZINHA NO CANDOMBLÉ – ESPAÇO SAGRADO ARLETE RODRIGUES VIEIRA DE PAULA – UNIVERSIDADE PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS INTRODUÇÃO No sistema religioso do Candomblé, a comida de santo e todas as ações para seu preparo e consumo ocupam um lugar de destaque, sendo o centro das oferendas aos Orixás. Os Orixás precisam ser alimentados. É preciso ofertar algo aos habitantes do Orum. É necessário que o ritual de troca aconteça para que o Axé possa ser retribuído e distribuído para todos. Bastide afirma que “o santo que já não cavalga é um santo que está desaparecendo: diz-se que voltou para a África”1 . As comidas que compõem as oferendas fortalecem a comunicação entre os fiéis e seus respectivos Orixás. Toda a comida que é preparada para os Orixás segue preceitos ritualísticos e votivos de acordo com a tradição do Candomblé. Toda essa atividade culinária acontece na cozinha dos Terreiros, espaço considerado sagrado dentro do sistema religioso dos Orixás. Nesse contexto podemos pensar na cozinha do Candomblé como um laboratório sagrado, onde o fogo, através das ações rituais, permite a criação de um código alimentar que comunica algo entre os seres humanos e os Orixás num mosaico que entrelaça as forças da natureza, a herança ancestral e as necessidades humanas da comunidade religiosa do Candomblé. Nesse espaço sagrado de alimentação e renovação se evidencia o papel da mulher como nutridora e mantenedora da “família de santo”. 1 BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 231.
  • 2. 2 A Cozinha no Candomblé – Espaço Sagrado Em seu livro, O Cru e o Cozido, Lévi-Strauss evidencia que a utilização do fogo para cozinhar os alimentos é um marco do início da civilização. Em sua compreensão, o par de opostos cru e cozido, enquanto condições naturais dos alimentos, traz para além disso uma relação entre natureza e cultura. À medida que o ser humano começou a cozinhar os alimentos, ele se distinguiu do mundo natural, numa alusão ao processo de construção da cultura pelo ser humano. Estudando os mitos indígenas na América, ele relata que a cocção dos alimentos é percebida como uma operação mediadora entre os seres humanos e os deuses, "entre o céu e a terra, a vida e a morte, a natureza e a sociedade"2 . Começamos, assim, a compreender o lugar realmente essencial que cabe à culinária na filosofia indígena: ela não marca apenas a passagem da natureza à cultura; por ela e através dela, a condição humana se define em todos os seus atributos, inclusive aqueles que – como a mortalidade – podem parecer os mais indiscutivelmente naturais.3 Para a atual ciência da nutrição, a cocção dos alimentos facilita a posterior etapa de digestão e assimilação dos nutrientes, que estão presentes nos alimentos. Etapas essas que acontecem no organismo humano através dos órgãos do aparelho digestivo. A cocção dos alimentos facilita a mastigação, desativa fatores anti-nutricionais e algumas toxinas presentes nos alimentos. A cozinha vista como um laboratório permite a transformação dos alimentos, dando-lhes outra qualidade nutricional. O fogo como agente transformador ocupa lugar de destaque na culinária dietética bem como o processo de cozinhar os alimentos se entrelaça com as transformações da cultura na sociedade. Nesse contexto, relatamos o mito yorubá sobre o Orixá Xangô, um Orixá ligado ao fogo, e o seu ensinamento aos seres humanos sobre cozinhar os alimentos; Xangô ensina ao homem fazer fogo para cozinhar 2 LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido: mitológicos. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 69. 3 Ibidem, p. 163
  • 3. 3 Em épocas remotas, havia um homem a quem Olorum e Exu ensinaram todos os segredos do mundo, para que pudesse fazer o bem e o mal, como bem entendesse. Os deuses que governavam o mundo, Obatalá, Xangô e Ifá, determinaram que, por ter se tornado feiticeiro tão poderoso, o homem deveria oferecer uma grande festa para os deuses, mas eles estavam fartos de comer comida crua e fria. Queriam coisa diferente: comida quente, comida cozida. Mas naquele tempo nenhum homem sabia fazer fogo e muito menos cozinhar. Reconhecendo a própria incapacidade de satisfazer os deuses, o homem foi até a encruzilhada e pediu ajuda a Exu. Esperou três dias e três noites sem nenhum sinal, até que ouviu uns estalos na mata. Eram as árvores que pareciam estar rindo dele, esfregando seus galhos umas contra as outras. Ele não gostou nada dessa brincadeira e invocou Xangô, que o ajudou lançando uma chuva de raios sobre as árvores. Alguns raios incendiados foram decepados e lançados no chão, onde queimaram até restarem só as brasas. O homem apanhou algumas brasas e as cobriu com gravetos e abafou tudo, colocando terra por cima. Algum tempo depois, ao descobrir o montinho, o homem viu pequenas lascas pretas. Era o carvão. O homem dispôs os pedaços de carvão entre pedras e os acendeu com a brasa que restara. Depois soprou até ver flamejar o fogo. E no fogo, cozinhou os alimentos. Assim, inspirado e protegido por Xangô, o homem inventou o fogão e pode satisfazer as ordens dos três grandes orixás. Os orixás comeram comidas cozidas e gostaram muito. E permitiram ao homem comer delas também.4 Os Orixás se alimentam das oferendas feitas pelos seres humanos. Sem a alimentação que vem do Aiyê, o Orum não se manifesta. Os Orixás não comem qualquer coisa, nem preparados de qualquer modo. Bastide afirma: Cada orixá tem seus pratos preferidos. Os deuses não são apenas comilões, mas também finos gourmets. Sabem apreciar o que é bom e, como o comum dos mortais, não comem de tudo.5 O autor distingue dois momentos no ritual religioso do Candomblé: o sacrifício e a comida. Embora a comida também seja feita com partes dos animais de sacrifício, ela 4 PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 257-258. 5 BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 332.
  • 4. 4 demanda atividades que podem durar até vários dias para sua preparação completa. Ações que vão desde a compra e seleção dos alimentos e ingredientes necessários até o momento da festa pública onde ela é partilhada com todos6 . Nesse sentido, a cozinha é o local onde essas ações da culinária ritual acontecem. A cozinha do Terreiro se torna um lugar sagrado, onde a comida para os Orixás é preparada e onde o Axé circula junto a cheiros, temperos e sabores. Nas palavras de Santana Rodrigué, a cozinha, na África é conhecida como a casa do fogo. Para a autora, o ato de cozinhar nos Terreiros simboliza também acender o fogo do princípio, da origem do mundo e referenciar a ancestralidade. A cozinha dos Terreiros se torna o altar onde o fogo aceso possibilita a transformação dos ingredientes que são destinados aos Orixás e aos participantes da comunidade. Durante o preparo das refeições, o Axé se espalha pelo local. Ainda em sua compreensão, a cozinha é o local privilegiado para o aprendizado dos segredos e dos ritos da tradição. É um local onde se aprende a abençoar a vida e os alimentos, um laboratório sacralizado onde ações rituais buscam a harmonia com os Orixás possibilitando saúde e vida longa aos seres humanos7 . De dia, o cru vai se transformando em cozido, enquanto o saber vai se espraiando. Aprender os preceitos - como Iaô8 - é uma possibilidade de viver a transmissão e o processo de aprendizagem. Esta se dá não só no cozinhar em si, mas no modo de ser, no jeito nagô de ver o mundo; cozinhar é um método, se aprende uma cosmologia.9 Na história do Candomblé, a cozinha dos Orixás se mistura com a cozinha das fazendas escravocratas, onde as escravas negras eram as cozinheiras. Difícil precisar a fronteira entre a cozinha africana e a cozinha ritual. Através do tempo histórico, a culinária africana foi se adaptando ao que havia de alimentos e ingredientes no Brasil e ao que era possível importar da própria África. Com os navios negreiros vieram os africanos e também plantas que foram sendo cultivadas aqui em solo brasileiro. Sob esse aspecto, Sousa Júnior 6 Ibidem, p. 332. 7 RODRIGUÉ, Maria das Graças de Santana. Orí Àpéré Ó: o ritual das águas de Oxalá. São Paulo: Summus, 2001. p. 91-95. 8 Iniciadas, filha-de-santo. BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 310. 9 RODRIGUÉ, Maria das Graças de Santana. Orí Àpéré Ó: o ritual das águas de Oxalá. São Paulo: Summus, 2001. p. 92.
  • 5. 5 salienta que a cozinha africana, dentro dos Terreiros, vai se imbricar com os cardápios dos Orixás. Para ele, a cozinha dos Terreiros foi se tornando a grande transmissora do conhecimento ancestral e da energia do Axé através dos ritos consagrados a cada Orixá na preparação de seus quitutes.10 Completando e reforçando essa idéia, Lody diz que a cozinha, enquanto espaço sagrado, é um local importante para a continuidade da vida dos Orixás, através dos pratos votivos e os preceitos rituais é assegurado a renovação do Axé11 . O autor ainda esclarece que a cozinha é também o espaço onde os utensílios usados nos preparos das comidas-de- santo são guardados. Esses utensílios são separados dos da cozinha doméstica, são sacralizados e apesar do uso atual de aparelhos eletrodomésticos, o que predomina são os vazilhames de madeira, cerâmica e de fibras naturais. Há também vários tipos de fogões, mas o fogão a lenha é presença quase certa12 . Sousa Júnior traz mais detalhes mostrando que o preparo da comida de santo não perdeu seus fundamentos ligados à tradição e ao conhecimento ancestral pela incorporação dos aparelhos eletrodomésticos usados atualmente. Ao se adaptar ao ritmo urbano dos habitantes, principalmente, das grandes cidades, com o uso de massa pronta, industrializada, para fazer acarajé, o fiel não invalida os rituais sagrados que são feitos para o preparo do prato de Iansã13 . Seja fazendo o uso de ingredientes nacionais ou de outros vindos do além- mar, conservando, recriando ou inventando alguns pratos, a africanidade sugerida pelos pratos que compõem a cozinha-de-santo não se explica pelos ingredientes que entram na sua composição, mas pelas técnicas, 10 SOUSA JÚNIOR, Vilson Caetano de. A cozinha e os truques: usos e abusos das mulheres de saia e dos povo do azeite. Práticas Terapêuticas, etnobotânica e comida, Parte III. In: CAROSO, Carlos; BACELAR, Jeferson (org.). Faces da tradição afro-brasileira: religiosidade, sincretismo, anti- sincretismo, reafricanização, práticas terapêuticas, etnobotânica e comida. Rio de Janeiro: Pallas; Salvador: CEAO, 1999. p. 327-328. 11 LODY, Raul. Santo também come. 2. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 1998. p. 41. 12 Ibidem, p. 38-42. 13 SOUSA JÚNIOR, Vilson Caetano de. A cozinha e os truques: usos e abusos das mulheres de saia e dos povo do azeite. Práticas Terapêuticas, etnobotânica e comida, Parte III. In: CAROSO, Carlos; BACELAR, Jeferson (org.). Faces da tradição afro-brasileira: religiosidade, sincretismo, anti- sincretismo, reafricanização, práticas terapêuticas, etnobotânica e comida. Rio de Janeiro: Pallas; Salvador: CEAO, 1999. p. 342-343.
  • 6. 6 maneiras, pelo tratamento recebido por eles. A cozinha é um lugar de ritual.14 Para além de um espaço doméstico, a cozinha é, em nossa sociedade brasileira, um espaço essencialmente feminino. Na cozinha ritual estão as mulheres que sabem o segredo das culinárias votivas. Na cozinha ritual, estão as iabassês, filhas-de-santo que cozinham para os Orixás. As refeições: mulher, ritual e preparo A cozinha é um lugar de mulheres? Em nossa sociedade, cabe à mulher, em geral, o papel de nutridora do grupo familiar? Acreditamos que sim. Desde os primeiros cuidados com o recém-nascido, que inclui o aleitamento e todas as atividades relativas à manutenção e continuidade de sua vida, até a responsabilidade pelas refeições domésticas no grupo familiar na rotina da vida a mulher ocupa esse lugar de obrigação para com o preparo dos alimentos e preservação da saúde e da vida. Essa relação se estende em nossa sociedade ao aspecto de reprodução também. Há um imbricamento entre mulher, comida e sexualidade. Lévi-Strauss, estudando as populações indígenas nas Américas relata a relação, percebida nos relatos mitológicos, entre alimentos e sexualidade. Através da linguagem, esses aspectos estão interligados em que há expressões que significam ao mesmo tempo copular e comer. "Quando as referências são femininas, o código sexual passa ao estado latente e se dissimula sob o código alimentar."15 Sob esse aspecto, Da Matta afirma que uma das formas de expressão da sociedade brasileira mais significativas é feita através do "código da comida" que situa "a mulher e o feminino no seu sentido talvez mais tradicional". Para ele, a sociedade é expressa através do binômio comidas e mulheres. O autor cita Lévi-Strauss em sua oposição cru/cozido ressaltando como estes dois aspectos naturais dos alimentos vão além 14 Ibidem, p. 339. 15 LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido: mitológicos. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 257.
  • 7. 7 de uma condição de estado biológico para uma dimensão social, "de fato, o cru e o cozido, o alimento e a comida, o doce e o salgado, ajudam a classificar coisas, pessoas e até mesmo ações morais importantes no nosso mundo"16 . Ainda em seu entender, há uma relação entre a mulher e a comida no imaginário brasileiro, bem como ambas, mulher e comida, também estão interligadas com a sexualidade, "comer" também se refere ao ato sexual17 . O autor ainda acrescenta que as refeições e a sexualidade são percebidas como essência social e junto com a comensalidade andam de mãos dadas18 . Como verdadeiras comunhões onde o encontro transforma as pessoas nele engajadas porque faz com que todos participem de uma mesma substância comum, o prato comido ou a pessoa amada que, sabemos, vira 'comida' em nossa sociedade. E as mulheres desempenham, conforme sabemos, um papel básico nesses dois processos.19 No sistema religioso do Candomblé, como podemos pensar o papel da mulher na cozinha? No Candomblé, a cozinha sacralizada é também um lugar de mulheres? A esse propósito Ruth Landes20 em suas notas afirma que na Bahia os homens são minoria na prática religiosa do Candomblé, sendo que as mulheres ocupam um lugar de destaque na liderança dos Terreiros, "circunstâncias históricas e culturais da escravidão baiana favoreceram um matriarcado, bem como outros aspectos especiais da vida do negro."21 Reforçando a sua teoria de um matriarcado no Candomblé, citamos um trecho de seus diálogos com Mãe Menininha onde a própria diz: – Minha falecida tia – tornou a tocar o chão – herdou o cargo da mãe dela, a grande Júlia – tocou de novo o chão – e Júlia fundou o templo depois de chegar ao Brasil. Primeiro serviu como sacerdotisa no Engenho Velho – mãe e filha serviam juntas… Sabe como é na Europa, minha senhora. Nós, as mães, somos como as casas reais, passamos o nosso cargo somente a pessoas da família, em geral as mulheres – sacudiu a cabeça e suspirou – Candomblé é uma grande responsabilidade. Às vezes, fico pensando se 16 DA MATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 51. 17 Ibidem, p. 60. 18 Ibidem, p. 62. 19 Ibidem, p. 62. 20 Antropóloga americana, que desenvolveu seu trabalho de campo no Brasil, na Bahia e no Rio de Janeiro em 1938 e 1939, tendo como guia e colaborador Édison Carneiro. 21 LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. p. 349-350.
  • 8. 8 terei forças para continuar e se tenho o direito de sobrecarregar as minhas filhas com ela.22 A autora cita que Mãe Menininha não se casou oficialmente para não ficar sob o poder que é delegado ao marido num país católico de herança latina patriarcal, pois as mulheres do Candomblé devem se submeter apenas aos seus Orixás23 . Reforçando esse raciocínio, Landes diz que as sacerdotisas almejavam um amante que lhes fosse útil financeiramente e fornecessem respeitabilidade social junto a políticos. "O casamento significa outro mundo, algo assim como ser branco."24 O estudo de Ruth Landes retrata um momento histórico no Candomblé, quando se estabeleceram as grandes lideranças do sacerdócio baiano, onde a predominância das mulheres era vista a olhos nus. A liderança se estabelece como matriarcado. "No Brasil, em relação ao Candomblé, instalou-se um matriarcado importante e bem-vindo o que não elimina a participação masculina"25 . Mas a cozinha continua sendo um lugar reservado às mulheres, onde homens não são proibidos, mas são raros. Mantendo-se inclusive o tabu da menstruação. Mulheres menstruadas não podem cozinhar. A esse propósito citamos Amaral: Depois de limpos os bichos, cozinham-se as carnes, separa-se o que cada orixá deseja, e, no dia seguinte, são preparadas as comidas que serão servidas à assistência da festa, no ajeun. É preciso lembrar que as mulheres que cozinham as comidas de santo não podem, sob nenhuma hipótese estar menstruadas, o que também pode representar um problema para a casa, que precisa estar ciente das datas de menstruação de suas filhas antes de marcar qualquer obrigação a que estas devam estar presentes. Por este motivo, a iabassê quase sempre é uma mulher que já esteja na menopausa, garantindo-lhe as condições necessárias ao pleno desempenho de suas funções.26 22 Ibidem, p. 127. 23 Ibidem, p. 200. 24 Ibidem, p. 201. 25 SODRÉ, Jaime. Ialorixá: o poder singular feminino. In: MARTINS, Cleo; LODY, Raul (orgs.). Faraimará: o caçador traz alegria: Mãe Stella, 60 anos de iniciação. Rio de Janeiro: Pallas, 2000. p. 258-259. 26 AMARAL, Rita de Cássia. Awon Xirê! A festa de candomblé como elemento estruturante da religião. In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (org.). Leopardo dos olhos de fogo: escrito sobre a religião dos orixás VI. São Paulo: Ateliê Editora, 1998. p. 103.
  • 9. 9 Seguindo com essa abordagem, recorremos mais uma vez ao estudo de Da Matta sobre a questão da identidade brasileira no qual ele afirma haver em nossa sociedade uma oposição casa/rua. Onde a rua representa o lugar do trabalho, da luta pela sobrevivência. A rua representa a realidade dura da vida. Na contramão, a casa representa: a família, os laços consangüíneos, os valores morais, as tradições mais cultuadas. A casa em sua compreensão vai além de um espaço físico, se torna um espaço moral.27 Podemos perceber que a casa se torna o lugar tradicionalmente reservado à mulher. Mesmo nos tempos atuais, em que a mão de obra feminina é significativa como força de trabalho produtivo, ocupando o espaço "rua", o "espaço casa" ainda é percebido como de responsabilidade da mulher. Nesse sentido, a mulher que trabalha fora de casa tem dupla jornada de trabalho, em sua grande maioria. E se além dessa dupla obrigação a mulher fizer o santo, suas obrigações para com o Terreiro lhe darão uma tripla jornada. A presença maternal, protetora e de poder da mulher, em especial negra ou mulata, no candomblé, reserva um espaço propício ao exercício de suas habilidades intelectuais, místicas e míticas sem esquecer a beleza realçada pelos parâmetros da estética africana e da sensualidade, valores inclusos nos ritos afro-brasileiros.28 O autor –- também ogã –- ainda ressalta as responsabilidades da mãe-de-santo, que inclui abnegação e serviços de amor ao próximo. Para ele, a condição de mãe-de-santo se enquadra bem na "condição feminina", pela própria natureza da mulher, quanto à possibilidade da maternidade. Cita também a fertilidade e os seios grandes e generosos da mulher africana, fazendo a relação das amas de leite no período da escravatura e sua função como nutridora dos filhos brancos do engenho29 . Conseqüentemente, cabe, principalmente, à mulher o trabalho de nutrir a família- de-santo. As iabassês, cozinheiras dos Terreiros, executam as atividades específicas da cozinha ritual sob o comando da mãe ou do pai-de-santo. Essas atividades culinárias votivas 27 DA MATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 23-29. 28 SODRÉ, Jaime. Ialorixá: o poder singular feminino. In: MARTINS, Cleo; LODY, Raul (orgs.). Faraimará: o caçador traz alegria: Mãe Stella, 60 anos de iniciação. Rio de Janeiro: Pallas, 2000. p. 259. 29 Ibidem, p. 249-250.
  • 10. 10 podem durar vários dias e se iniciam com a aquisição dos gêneros alimentícios e ingredientes necessários para a execução dos pratos específicos para cada Orixá. Após a aquisição do material necessário, seguem-se as operações de limpeza, de higienização dos ingredientes, seguidas das ações de picar, amassar, misturar, moer, triturar, deixar de molho e principalmente cozinhar. O fogo transforma os ingredientes em pratos votivos através do trabalho litúrgico realizado pelas iabassês. Todas essas atividades são realizadas dentro dos ditames ritualísticos que abrange gestos e comportamentos que são aprendidos durante o processo de iniciação. Conhecer as receitas, os preceitos necessários para o preparo da comida de santo, é parte intrínseca do aprendizado ritual do filho e filha de santo. A cozinha ritual, com seus odores e sabores, recria o cotidiano alimentar dos filhos de santos e de seus Orixás. As atividades exercidas na “casa do fogo” sacralizam o ato de comer e a comensalidade no sistema religioso do Candomblé.