3. nº 93
CAPA
8 Existem limites seguros para o
consumo dessas substâncias
ENTREVISTA
5Ângela Patrícia Gracindo
INOVAÇÃO
18 Pesquisadores desenvolvem
aplicativo para avaliar dor em
animais domésticos e de produção
22 O cenário atual da dor em
animais
ESPECIAL
29 Aos 107, de olho no futuro
LONGEVIDADE
33 Sabedoria que inspira
SANIDADE ANIMAL
39 Profissionais unem forças
contra a Influenza Aviária de Alta
Patogenicidade
SAÚDE PÚBLICA
45 Febre amarela: estudo reforça
segurança da vacinação de
macacos
ARTIGO TÉCNICO
49 A importância de olhar
para a saúde mental dos
médicos-veterinários
53 Suplemento científico
54 Bem-estar dos organismos
aquáticos e protocolos de
avaliação para aquicultura
62 Fiscalização
SUMÁRIO
18
39
45
54
Arquivo
pessoal/Stelio
Luna
Wenderson
Araújo-Trilux/Divulgação
CNA
Josué
Damacena/IOC
Fiocruz
29
Gilberto
Soares
"Giba"/Arquivo
CFMV
4. Conselho Federal de
Medicina Veterinária
SIA – Trecho 6 – Lotes 130 e 140
Brasília-DF – CEP 71205-060
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Revista CFMV
Editora
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CRMV-MA nº 0539
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Diagramação e Revisão
Mota Produções
Capa
Gabriel Santana (estagiário), sob super-
visão da Diretoria do Decomp/CFMV
EXPEDIENTE
SAÚDE ÚNICA, NOSSA MISSÃO
Francisco Cavalcanti de Almeida
Presidente do CFMV
PALAVRA DO PRESIDENTE
Foi-se o tempo em que o médico-veterinário era, simplesmente,
aquele profissional que tratava as doenças dos animais e se ocupava
apenas em curar seus pacientes. A Medicina Veterinária é, hoje, uma
ciência gigante que deve, obrigatoriamente, levar em conta as conse-
quências de suas ações ao meio ambiente e aos seres humanos. Ou
seja, deve em qualquer circunstância, estar inserida no conceito de
saúde única.
O uso prudente de medicamentos, em especial, os antimicrobia-
nos, o combate à pirataria desses produtos e seu correto descarte são
obrigações do profissional consciente de seu papel na sociedade. Não
basta encontrar a substância adequada para tratar determinada enfer-
midade. É preciso usá-la em doses e tempo corretos, conforme explica
a reportagem de capa desta edição, que traz também o papel do zoo-
tecnista nessa cadeia de cuidados.
A ameaça da influenza aviária, uma homenagem a Milton Thiago de
Mello e aos profissionais mais maduros do país são outros destaques
deste número. Seja qual for o tema, cada vez mais tenho certeza de que
trabalhar pela saúde única é a nossa missão diante dos atuais desafios
da sociedade. Por isso, é necessário que estejamos atentos, cuidadosos
e dispostos a oferecer o nosso melhor aos animais, à humanidade e ao
planeta. Boa leitura!
A Revista CFMV é trimestral e se destina a divulgar ações do CFMV, promover
educação continuada e valorizar a Medicina Veterinária e a Zootecnia. Encontra-
se disponível exclusivamente em meio digital, em formato PDF, para ser lida
diretamente on-line ou para download, no endereço cfmv.gov.br/revista-cfmv/.
AGRIS L70
CDU619 (81)(05)
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5. ENTREVISTA
ÂNGELA PATRÍCIA
GRACINDO
O que é a pecuária 4.0?
A pecuária 4.0 é um novo modo de pensar e, sobretu-
do, aplicar tecnologias digitais nas diversas áreas da
produção animal. O zootecnista 4.0 tem seu ofício su-
portado por informações obtidas por meio de sistemas
de monitoramento digitais e de informação, sensores e
algoritmos. Tecnologias essas que estão presentes em
nosso dia a dia e vêm sendo implementadas nos siste-
mas de produção animal em busca de otimização de
mão de obra, aumento na produtividade, garantia de
bem-estar animal e rastreabilidade de todos os proces-
sos de produção.
De que forma zootecnistas estão atuando da porteira
para dentro para garantir a segurança alimentar nesse
cenário da pecuária 4.0?
A segurança alimentar é uma questão premente para
este século. Recentemente, passamos de 8 bilhões
de pessoas no planeta e alimentar essa população
exige, principalmente, aplicação tecnológica e com-
petência técnica. O zootecnista é o profissional mais
capacitado para implementar a pecuária 4.0, pois
detém conhecimento gerencial e produtivo dos di-
versos sistemas de criação animal, com grande sen-
sibilidade para a análise dos fatores que interferem
nos resultados da produção animal. Conhecendo a
necessidade atual, esses profissionais têm buscado
conhecer mais sobre as tecnologias existentes e con-
tribuído ativamente em pesquisas que visam adap-
tá-las e implantá-las nas rotinas das fazendas, reali-
zando uma gestão mais eficiente e simplificada, por
meio da utilização de softwares de gerenciamento.
Isso, sem deixar de lado a preocupação com a sus-
tentabilidade e o bem-estar animal, lançando mão da
pecuária de precisão, focando no aumento da produ-
tividade e da lucratividade.
Como isso impacta a qualidade dos alimentos que che-
gam à mesa dos consumidores?
Existem, na pecuária 4.0, diversas ferramentas de mo-
nitoramento de informações e projeção de modelos
dentro dos sistemas de produção animal. Essas infor-
mações, que chegam em maior quantidade e mais rapi-
Em um mundo onde vivem mais de 8 bilhões de pessoas, a
segurança alimentar é uma preocupação. Nesse cenário, a pecuária
4.0 alia tecnologia de ponta à Zootecnia de precisão para garantir
excelência na produção animal, aumento da produtividade e
qualidade do alimento que chega à mesa dos consumidores.
O zootecnista atua como um dos protagonistas nessa revolução
tecnológica que é tema do 32º Congresso Brasileiro de Zootecnia
– Zootec 2023, em Natal (RN). O encontro, que vai de 31 de maio
a 2 de junho de 2023, “Visa promover a integração entre ciência,
tecnologia e inovação”, explica a zootecnista Ângela Patrícia
Gracindo, membro da comissão organizadora do evento.
Angela atuou como extensionista rural pelo Instituto de
Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater/RN) e, atualmente, é
docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Rio Grande do Norte (IFRN).
Arquivo
pessoal
Adrielly Reis
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93 5
5
6. damente, promovem uma tomada
de decisão mais assertiva do zoo-
tecnista. Assim, é possível produ-
zir alimentos de origem animal de
forma mais rápida, limpa, sustentá-
vel e, sobretudo, de menor custo.
Já existe, por exemplo, um sistema
de monitoramento e rastreabilida-
de de ovos que permite ao consu-
midor, por meio da leitura de um
código de barras, ter informações
desde a data da postura, dados so-
bre a classificação, o processo de
embalagem e até resultados de
análises microbiológicas daquele
lote. Sem sombra de dúvida, isso
leva o consumidor a sentir-se mais
seguro quanto ao produto, conhe-
cendo e valorizando o trabalho
que é desenvolvido em todos os
elos da cadeia produtiva.
Quais são os principais desafios
para a atuação do profissional
nesse cenário de pecuária 4.0?
Atuar no cenário 4.0 exige um
profissional orientado por núme-
ros, capaz de analisar, interpre-
tar e predizer tendências, sendo
hábil em traçar modelos e com
grande inteligência emocional. O
perfil do zootecnista 4.0 continua
sendo construído pelos bancos
da universidade, porém, cada vez
mais é necessário relacionar-se
com os diversos setores da ca-
deia produtiva, sobretudo com a
indústria. Portanto, é necessário
ao profissional, além da robusta
formação técnica e acadêmica,
uma visão holística proporciona-
da pelo mercado e pela indústria.
De que forma, hoje, o zootecnista
está inserido no tripé ciência, tec-
nologia e inovação?
A formação universitária confe-
re robustez teórica e científica
ao bacharel em Zootecnia, mas é
necessário transformar esses co-
nhecimentos científicos em apli-
cações práticas. É aí que vem a
etapa posterior: o uso das tecno-
logias, que consiste basicamente
na aplicação do conhecimento
científico em resolução de pro-
blemas relacionados aos sistemas
de produção animal. Mobilizar o
conhecimento teórico e aplicar
em soluções tecnológicas são a
base do ofício do zootecnista.
Propor novas formas para resolver
problemas é a inovação. Os currícu-
los de formação estão sendo traba-
lhados nesse contexto de garantir
base sólida de conhecimento téc-
nico-científico, conferir habilidades
que permitam transpor achados
científicos em melhorias nos sis-
temas de criação, conservação e
produção dos animais domésticos,
assim como nas suas relações com
o homem e o meio ambiente e, so-
bretudo, capacitar esse profissional
para enxergar diferentes formas de
resolver o mesmo problema.
Quais são os conhecimentos que o
zootecnista precisa deter para se
destacar?
Além de uma sólida base de co-
nhecimento teórico, obtido nos
cinco anos de graduação, o pro-
ENTREVISTA
Existem, na pecuária 4.0, diversas
ferramentas de monitoramento de
informações e projeção de modelos
dentro dos sistemas de produção
animal. Essas informações, que
chegam em maior quantidade e
mais rapidamente, promovem uma
tomada de decisão mais assertiva
do zootecnista
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93
6
7. fissional deve ser competente em
linguagem de programação, aná-
lise de dados, modelagem e co-
municação. Aqueles que possuem
soft skills (habilidades comporta-
mentais) bem desenvolvidas são
os mais procurados. Para se des-
tacar nessa área, é preciso dispor
de conhecimentos multidiscipli-
nares, desligar-se de antigos pa-
radigmas e aprofundar-se em es-
tudos e pesquisas que envolvam
o uso das novas tecnologias no
meio agropecuário.
Conte um pouco de sua trajetória
na Zootecnia e por que escolheu a
profissão.
Eu me graduei pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), em 2005, e fiz mestrado
em Ciência Animal, na Universida-
de Federal Rural do Semiário (Ufer-
sa). Atuei por quatro anos como
extensionista rural pelo Instituto
de Assistência Técnica e Exten-
são Rural do Rio Grande do Nor-
te (Emater/RN). Atualmente, sou
professora no Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do
Rio Grande do Norte (IFRN), cam-
ENTREVISTA
tura e aquicultura), a expectativa
é que o evento em Natal receba
um público de, aproximadamen-
te, 2.500 pessoas, entre congres-
sistas (estudantes, docentes e
técnicos da área), expositores e
visitantes em geral. A Ufersa, em
parceria com a Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Norte
(UFRN) e o IFRN, escolheu como
tema e estruturou o Zootec como
um evento científico com enfo-
que na pecuária 4.0 – ciência, tec-
nologia e inovação na Zootecnia.
Serão mais de 100 palestras téc-
nicas e científicas, além de mini-
cursos e visitas técnicas a proprie-
dades rurais da região. É muito
importante ressaltar a presença
de profissionais renomados, tan-
to em âmbito nacional quanto
internacional, que estarão mi-
nistrando palestras, minicursos,
coordenando simpósios, fóruns e
mesas-redondas, com temas que
interessam estudantes, técnicos
e, é claro, profissionais das di-
versas áreas da produção animal
(zootecnistas, médicos-veteriná-
rios, agrônomos, engenheiros de
pesca, entre outros).
pus Apodi, onde dirijo a fazenda-
-escola. Além disso, presido a Co-
missão de Ética em Pesquisa com
Uso de Animais (Ceua) do IFRN e
vou coordenar o fórum dessas co-
missões no Zootec 2023.
Quais são as expectativas para
o Zootec 2023? Profissionais de
outras áreas das ciências agrárias
também podem participar, have-
rá temas de interesse deles?
Promovido pela Associação Bra-
sileira de Zootecnia (ABZ), o Con-
gresso Brasileiro de Zootecnia é o
maior encontro latino-americano
de profissionais da área, sendo
um espaço totalmente voltado
para a discussão e divulgação de
novos produtos, serviços e atua-
lizações na agropecuária, tornan-
do-se uma grande oportunidade
de encontro de profissionais e es-
tudantes da área.
Por ser o primeiro Zootec reali-
zado na capital do Rio Grande
do Norte, que possui forte apelo
turístico e pertence a um estado
com grande potencial em produ-
ção animal (bovinocultura, capri-
nocultura, ovinocultura, apicul-
32º CONGRESSO BRASILEIRO DE ZOOTECNIA – ZOOTEC 2023
Data: de 31/5 a 2/6/2023
Onde: Centro de Convenções de Natal – Rio Grande do Norte
Mais informações: https://www.zootec2023.com
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93 7
8. CAPA - MEDICAMENTOS VETERINÁRIOS
EXISTEM LIMITES SEGUROS
PARA O CONSUMO DESSAS
SUBSTÂNCIAS
Cuidadonaaquisiçãoeusoconscientedosmedicamentos
veterináriosestãodiretamenteligadosaoconceitodesaúdeúnica
Viviane Marques
E
ra uma vez o boi Tolo. Ele vivia feliz, pastando
na fazenda do senhor João. Um dia, Tolo adoe-
ceu e seu responsável comprou, sem orientação
profissional, um medicamento em uma loja on-line, pois
o preço estava muito bom. Tolo foi medicado, mas não
melhorava, até que o senhor João resolveu procurar
um médico-veterinário, que fez os exames necessários,
indicou o tratamento correto e ainda identificou que o
dono da fazenda estava utilizando um remédio falsifica-
do, que foi imediatamente jogado no lixo
comum pelo senhor João.
A historinha acima é uma alegoria, que
mostra uma sucessão de equívocos no
tratamento fictício de um animal: a com-
pra em estabelecimento desconhecido,
motivada pelo preço; a administração de
medicamentos inócuos, sem orientação
profissional e cujos componentes poderiam
ser perigosos; além do descarte
incorreto da substância, po-
dendo contaminar solo e cursos
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93
8
9. tes de produtos veterinários, em que são avaliadas as
boas práticas de fabricação para verificação da confor-
midade do processo produtivo. Em nota, a pasta expli-
ca que o combate aos produtos falsificados ocorre por
meio de operações de fiscalização especiais, as quais
são precedidas por atividades de inteligência para au-
mentar a eficiência das ações. Em 2021 e 2022, houve
quatro operações especiais, resultando na apreensão
de 55.387 produtos veterinários em situação irregular.
O problema não se restringe à compra de produtos
confiáveis e à administração adequada de medica-
mentos veterinários. Há regras que envolvem o des-
carte adequado, regulamentadas pela Lei federal nº
12.305, de 2 de agosto de 2010, que estabelece a
Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Os pa-
rágrafos 1º e 2º do artigo 33 tratam dos setores que
devem estruturar e implementar o Sistema de Logísti-
ca Reversa, de forma independente do serviço público
de limpeza urbana, e de manejo dos resíduos sólidos
na forma do disposto em regulamento ou em acordos
setoriais e termos de compromisso firmados entre o
poder público e o setor empresarial.
A médica-veterinária Elma Polegato, presidente da
Comissão Técnica de Saúde Ambiental do Conselho
Regional de Medicina Veterinária de São Paulo (CRMV-
-SP), destaca que, em vista da quantidade de medica-
mentos utilizados na área animal, o número de inicia-
tivas voltadas à logística reversa está longe de refletir
o volume de utilização dos medicamentos veterinários
no Brasil.
“Falta um sistema eficaz de logística reversa na
área veterinária que contemple todos os elos da ca-
deia produtiva, com a participação de fabricantes,
importadores, distribuidores, comerciantes, médicos-
-veterinários, tutores e produtores rurais, entre outros,
que devem compartilhar responsabilidades e cumprir
a legislação”, conclama Elma, que também
preside o Grupo de Trabalho
sobre Destinação de Resíduos
gerados nas Atividades Agrope-
cuárias do regional paulista.
d’água, chegando aos animais e às pessoas. Ou seja:
um verdadeiro desastre, se pensarmos no conceito de
saúde única!
Segundo o Sindicato Nacional da Indústria de Pro-
dutos para Saúde Animal (Sindan), o mercado legali-
zado de medicamentos ultrapassou, em 2022, os R$
10 bilhões de faturamento. Já o volume movimentado
pelos itens irregulares é desconhecido. A preocupação
com a proliferação de produtos falsificados e contra-
bandeados levou a entidade a criar a campanha "Olhos
abertos", que visa alertar médicos-veterinários, zoo-
tecnistas, produtores e consumidores para os perigos
do consumo desses produtos.
“O uso de medicamentos piratas pode trazer gran-
des problemas aos animais, visto que esses produtos
podem não apresentar eficácia no tratamento e ain-
da conter substâncias tóxicas ou proibidas no Brasil,
gerando impactos ao bem-estar dos animais e até
a morte”, assinala o vice-presidente Executivo
do Sindan, Emílio Salani.
A professora Cláudia Turra Pimpão,
titular da cadeira de Farmacologia e To-
xicologia Veterinária da Pontifícia Uni-
versidade Católica do Paraná (PUCPR),
reforça: não é possível saber do que é
composto um medicamento falsificado,
se a matéria-prima utilizada foi de pés-
sima qualidade ou se ele não possui ne-
nhum ativo específico.
“É muito provável que o medicamento
não funcione a contento e, consequentemente,
não vá curar, podendo ainda agravar o estado de saú-
de do animal. Caso seja um antimicrobiano, pode fa-
vorecer a resistência aos antimicrobianos (AMR), uma
vez que o ativo utilizado no produto falsificado não
seja aquele que foi prescrito pelo médico-veterinário”,
alerta a médica-veterinária.
O Ministério da Agricul-
tura e Pecuária (Mapa) é o
responsável pela fiscalização
dos estabelecimentos fabrican-
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93 9
10. ONDE MORA O PERIGO
O uso correto e racional de medicamentos veteri-
nários começa na aquisição do produto, que é o foco
da campanha do Sindan que combate o comércio e uso
de medicamentos piratas – o termo abarca produtos
falsificados, contrabandeados e cargas roubadas. A in-
ternet, por meio dos chamados marketplaces (sites que
congregam lojas diversas, às vezes sem necessária ve-
rificação de credibilidade), tem sido o principal meio
para o escoamento desses itens.
Nesse caso, o papel de médicos-veterinários e
zootecnistas é buscar informação, orientar e alertar
seus clientes sobre o perigo dos medicamentos pira-
tas. “Infelizmente, de acordo com a pesquisa Radar Vet,
realizada pela Comissão de Animais de Companhia do
Sindan com profissionais de todo o Brasil, 64% dos
entrevistados não sabem identificar um produto falso,
pirata ou contrabandeado”, comenta Salani.
Profissionais presentes no dia a dia das proprieda-
des rurais, os zootecnistas também cumprem impor-
tante papel visando à aquisição de produtos seguros e
à administração adequada da medicação. Sánara Melo,
coordenadora do Curso de Tecnologia em Gestão Am-
biental da Universidade Estadual do Maranhão (Uema),
afirma que os profissionais de Zootecnia podem orien-
tar os produtores a se precaver contra a aquisição de
medicamentos falsificados, direcionando-os a buscar
um médico-veterinário para indicar o tratamento ade-
quado ao animal.
“Em nosso trabalho, devemos garantir a qualidade
e a segurança dos alimentos fornecidos para a socie-
dade, estando atentos a qualquer produto que possa
vir a prejudicar ou causar danos irreversíveis ao sis-
tema de produção animal e a quem consome seu
produto final”, assinala a zootecnista.
A prevenção é outra estratégia importante. Uma
boa nutrição fortalece a saúde dos animais. Alguns
exemplos estão nas substâncias que incrementam a
saúde gastrointestinal e a imunidade, a partir do uso
de ingredientes de alta digestibilidade e de alguns
aditivos de origem natural.
“A nutrição e a saúde dos animais estão intrinse-
camente ligadas. Quando ela é feita adequadamente,
com os nutrientes ofertados nas dietas chegando na
quantidade correta e de forma eficiente ao organismo
do animal, os riscos associados à baixa imunidade e
ao acometimento de enfermidades acaba diminuindo,
reduzindo, assim, a necessidade do uso de medica-
mentos”, explica
Profissionais presentes no dia a dia das
propriedades rurais, os zootecnistas também cumprem
importante papel visando à aquisição de produtos
seguros e à administração adequada da medicação.
T Uso correto e racional de medicamentos veterinários começa na aquisição de
produtos legalizados
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93
10
11. ORIENTAÇÕES PARA A COMPRA SEGURA
menor do ativo prescrito pelo médico-veterinário, tor-
nando o tratamento inócuo e podendo promover a re-
produção e gerar resistência dos microrganismos à
substância que deveria combatê-los.
“Como não se sabe qual a substância que
está sendo administrada, há o risco de contamina-
ção ambiental, intoxicação do animal e resposta inefi-
ciente ao tratamento”, adiciona Cláudia.
Segundo a médica-veterinária paranaense, o con-
ceito de saúde única – que aborda os cuidados com a
saúde humana, animal e ambiental – acaba sendo pre-
judicado, pois uma forma de impedir a resistência aos
antimicrobianos é usá-los com consciência, sabendo
qual agente patológico se está combatendo, por meio
de antibiograma, e usando o medicamento específico
para o patógeno, na dose e no tempo adequados para
o tratamento da infecção.
SAÚDE ÚNICA
Além de não curar o animal de uma possível enfer-
midade, inclusive agravando seu estado de saúde pela
possibilidade de conter substâncias tóxicas, medica-
mentos que não são devidamente testados podem
impactar negativamente a qualidade das proteínas de
bovinos, suínos e aves de corte, por exemplo, seja por
resíduos indesejados ou pela presença de doenças
não curadas.
“Isso também pode trazer impactos às exporta-
ções brasileiras, já que os importadores são muito
exigentes e costumam testar todos os lotes recebidos.
Em caso de problemas, podem, inclusive, suspender as
compras do Brasil até que os problemas sejam resolvi-
dos”, aponta Salani.
E se for um antimicrobiano, a situação piora ain-
da mais, pois o produto pode conter uma quantidade
Evite comprar medicamentos veterinários
pela internet, principalmente em lojas
desconhecidas. No entanto, se optar pela
compra on-line, busque canais oficiais de
revendas agropecuárias ou de laboratórios.
Preços abaixo da média são outro fator de
desconfiança.
A embalagem deve estar lacrada, com
nome do produto legível e boa qualidade
de impressão, sem rasuras nem informa-
ções apagadas. Deve conter data de valida-
de, número de registro e selo de aprovação
no Mapa, além de contato do Serviço de
Atendimento ao Cliente do fabricante.
O número do lote e a validade da embalagem devem ser iguais aos que constam no frasco ou blister.
O responsável técnico e seu número de inscrição no conselho profissional (Medicina Veterinária, Quí-
mica etc.) devem constar na bula e na embalagem.
A bula deve estar em português, com impressão legível.
Na área de animais de produção, endectocidas e ectoparasiticidas são os itens mais pirateados.
Denúncias e reclamações sobre produtos ilegais devem ser encaminhadas aos órgãos federais ou es-
taduais de Polícia, Fazenda ou de defesa do consumidor. Cópias dessas denúncias podem ser enviadas
ao e-mail do Conselho Nacional de Combate à Pirataria (cncp@mj.gov.br).
Como parte da campanha "Olhos abertos", o Sindan disponibilizou um canal para denúncias em seu site
(sindan.org.br/olhosabertos). Não é preciso ter provas, basta detalhar os motivos da desconfiança, qual
é o produto e o local onde está sendo comercializado. Os relatos são encaminhados às empresas e, se
necessário, levados às autoridades competentes.
Fontes: Sindan, Cláudia Pimpão e Sánara Melo
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93 11
12. “Dessa maneira, reduzem-se os dejetos (fezes e
urina) com metabólitos de antimicrobianos, pois uma
vez que alcançam o meio ambiente, contaminam águas
e solo e entram em contato com todos os seres vivos”,
detalha Cláudia.
Com os animais de companhia com livre acesso à
residência dos responsáveis, esses cuidados também
são necessários, com o adicional de que os responsá-
veis que estiverem se tratando com esse tipo de me-
dicamento tomem precauções para que seus pets não
tenham contato com resíduos de urina ou fezes.
“Não é raro verificarmos cães e gatos com
resistência a antimicrobianos usados exclusiva-
mente em humanos”, afirma Cláudia.
Outro ponto assinalado pela médica-veteri-
nária é sobre o excesso de cuidados com a limpe-
za: não é necessário utilizar desinfetantes de última
geração ou de uso hospitalar em residências que pos-
suem animais domésticos, pois isso pode contribuir
para o aumento da resistência aos antimicrobianos. Os
produtos comuns, de uso geral, vendidos em super-
mercados, são suficientes.
PAN-BR AGRO: POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O
ENFRENTAMENTO DA AMR
As diretrizes do Plano de Ação Global para Enfren-
tamento da Resistência aos Antimicrobianos, aprovado
em 2015, na Assembleia Mundial da OMS, nortearam o
surgimento, em 2018, do Plano de Ação Nacional para
Prevenção e Controle da Resistência aos Antimicrobianos
no âmbito da Saúde Única (PAN-BR), coordenado pelo Mi-
nistério da Saúde. Como parte do PAN-BR, o Mapa elabo-
rou e implementou o PAN-BR Agro, que detalha as inter-
venções específicas sob responsabilidade do ministério.
Seus objetivos estratégicos são:
• Melhorar a conscientização e a compreensão a res-
peito da resistência aos antimicrobianos.
• Fortalecer os conhecimentos e a base científica
por meio da vigilância e pesquisa.
• Reduzir a incidência de infecções com medidas
eficazes de higiene e prevenção de infecções.
• Otimizar o uso de antimicrobianos.
• Preparar argumentos econômicos voltados ao in-
vestimento sustentável.
O Mapa destacou em nota 20 ações realizadas, de
2018 a 2022, no âmbito do PAN-BR Agro, entre as quais
estão a elaboração e implementação do Programa de Vi-
gilância e Monitoramento da Resistência aos Antimicro-
bianos no Âmbito da Agropecuária, bem como do Agri-
monitora – serviço para informar dados de venda para
monitoramento de antimicrobianos de uso veterinário.
Dois guias sobre uso racional dessa classe de medica-
mentos foram produzidos: um voltado para cães e gatos
e outro para a avicultura de postura. Uma capacitação so-
bre boas práticas de produção e uso racional, palestras,
oficinas e publicações sobre o tema, além da atuação
conjunta com organismos internacionais, órgãos pú-
blicos e instituições privadas do Brasil também se
destacaram no período.
Para o quinquênio que se inicia neste ano, há
novos desafios em vista. São eles:
• Elaboração de um plano de comunicação visando à
conscientização sobre o uso responsável dos anti-
microbianos na saúde animal e sua importância na
saúde pública. O público-alvo foca especialmente
nos médicos-veterinários, que são os responsáveis
pelas prescrições de antibióticos para os animais.
T Medicamentos não testados podem prejudicar qualidade da proteína
de origem animal e afetar exportações
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93
12
13. • Pactuação junto ao setor privado de redução de
uso de antimicrobianos em animais, com foco
na redução do uso para controle (metafilaxia) ou
prevenção (profilaxia) de produtos classificados
como criticamente importantes e de alta priori-
dade pela OMS.
• Avançar na vigilância integrada, considerando o
conceito de saúde única.
• Continuar atendendo às demandas/exigências in-
ternacionais para o tema, que tendem a continuar
crescendo consideravelmente.
• Elaboração da Rede AMR Agro, visando incentivar
a cooperação entre os pesquisadores, promover a
Antibióticos como melhoradores: é o fim?
Na produção animal, antimicrobianos são fun-
damentais para tratar, controlar ou prevenir doenças
infecciosas. Apesar disso, eles têm sido amplamente
utilizados como promotores de crescimento desde
1950, quando a agência americana de fiscalização
Food and Drug Administration (FDA) aprovou o uso
deles para essa finalidade. Entretanto, isso tem sido
associado a um fator importante na emergência e dis-
seminação da resistência aos antimicrobianos
Desde 2015, a Organização Mundial da Saúde
Animal (World Organization for Animal Health, WOAH/
antiga OIE) prepara um anuário sobre o uso de antimi-
crobianos, a partir das informações prestadas por mais
de 100 países. O fim do uso dessas substâncias de for-
ma preventiva e como melhoradores de crescimento é
Divulgação/Fays-AFA
Rodolfo
Oliveira/Agência
Pará
transferência de conhecimento técnico-científico
entre a comunidade científica, os gestores públi-
cos, os atores da cadeia agropecuária e a socieda-
de civil, por meio de reuniões, seminários e acom-
panhamento periódico dos projetos componentes.
• Aumento da supervisão veterinária, com regula-
mentação relacionada à retenção de prescrição
veterinária, à publicidade de antimicrobianos e
ao uso extrabula.
• Fortalecimento de articulações/ações conjuntas
com os demais atores envolvidos, como Conselho
Federal de Medicina Veterinária (CFMV), universida-
des, setor privado e órgãos públicos, por exemplo.
T Uma das metas da nova fase do PAN-BR Agro é pactuar com o setor privado a redução do uso de antimicrobianos em animais
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93 13
14. uma das principais medidas de combate à resistência
aos antimicrobianos.
Um trecho da apostila Atualização sobre uso ra-
cional de antimicrobianos e boas práticas de produção,
elaborada pela médica-veterinária Silvia Adriana Ma-
yer Lentz para a Organização Pan-Americana da Saúde
(Opas/OMS) e o Mapa, destaca que eles “só devem ser
administrados ou aplicados para prevenção/profilaxia
quando a supervisão profissional identificar circuns-
tâncias bem definidas e excepcionais, dose e dura-
ção apropriadas, com base no conhecimento clínico e
epidemiológico, consistente com o rótulo e de acordo
com as normas nacionais”.
A questão, segue o texto, é que essa prática vem
sendo discutida pois visa contrabalancear práticas
estressantes às quais os animais são expostos nos
sistemas intensivos de produção, que afetam a saúde
e o desempenho dos rebanhos e, “consequentemen-
te, falhas no sistema imunológico são observadas,
causando o adoecimento dos animais numa frequên-
cia maior do que se eles fossem manejados com um
bom grau de bem-estar”, diz a apostila. Para a au-
tora, é necessário inverter a lógica e evitar as so-
luções baseadas em medicamentos, buscando a
“modificação dos sistemas em que os animais
são criados na pecuária intensiva”.
A partir de 1998, tiveram início as proibições, pelo Mapa, de algumas classes de antimicrobianos com
indicação de uso como aditivos melhoradores de desempenho. O primeiro foi a avoparcina. Desde então,
seguindo as recomendações internacionais para o tema, diversas outras classes também já foram proibidas
para essa mesma finalidade:
• Avoparcina - Ofício Circular DFPA nº 047/1998
• Arsenicais e antimoniais - Portaria nº 31, 29/1/2002
• Cloranfenicol e nitrofuranos - IN nº 09, 27/6/2003
• Olaquindox - IN nº 11, 24/11/2004
• Carbadox - IN nº 35, 14/11/2005
• Violeta de Genciana - IN nº 34, 13/9/2007
• Anfenicóis, tetraciclinas, B-Lactâmicos (penicilinas e cefalospori-
nas), quinolonas e sulfonamidas sistêmicas - IN nº 26, 9/7/2009
(Portaria nº 193/1998)
• Espiramicina e eritromicina - IN nº 14, 17/5/2012
• Colistina - IN nº 45, 22/11/2016
• Tilosina, lincomicina e tiamulina - IN nº 01, 13/1/2020
No segundo semestre de 2022, o Mapa realizou consulta pública que teve como consequência a proposta
de proibição de bacitracina e virginiamicina como aditivos melhoradores de desempenho, atendendo às re-
comendações internacionais de urgência na proibição do uso de antimicrobianos de importância clínica para
essa finalidade. No entanto, outras substâncias ainda não têm previsão para deixarem de ser usadas, como
flavomicina, avilamicina e halquinol, entre outras.
A zootecnista Sánara vê a proibição dos antibióticos nas dietas como uma tendência, com a consequente
orientação por uso de aditivos, como probióticos, prebióticos, simbióticos, ácidos orgânicos e óleos essen-
ciais. “Como profissionais, temos um grande desafio, que é reduzir os custos das propriedades com a alimen-
tação animal, buscando, ao mesmo tempo, alternativas para ofertar nutrientes de qualidade e que atendam às
exigências produtivas dos animais, garantindo seu melhor desempenho”, conclui.
PROIBIDOS NO BRASIL
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93
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15. DESCARTE:AÚLTIMA,MASNÃOMENOSIMPORTANTEETAPA
Segundo a PNRS, todos
que participam da
utilização de produtos
são responsáveis por ele
até a destinação final
ambientalmente correta
Em 2010, a aprovação da Política Nacional de Re-
síduos Sólidos (PNRS) trouxe a público termos ainda
pouco usuais, como logística reversa e responsabi-
lidade compartilhada, e jogou os holofotes sobre a
importância da reciclagem e da redução do impacto
ambiental do que não se pode reaproveitar. No entan-
to, 13 anos depois, os medicamentos veterinários, as-
sim como os demais resíduos de serviços veterinários,
ainda não possuem regulamentação quanto ao seu
descarte, diferentemente dos medicamentos de uso
humano de uso domiciliar, por exemplo, regidos pelo
Decreto nº 10.388/2020 e por legislações específicas
em alguns estados e municípios.
Segundo a médica-veterinária Elma Polegato, as
iniciativas exitosas são isoladas. Autora da cartilha
Plano de Gerenciamento de Resíduos de Serviços de
Saúde Animal Simplificado (PGRSSA), publicada pelo
CFMV, ela destaca a importância da destinação dife-
renciada de acordo com a RDC Anvisa nº 222/2018,
a qual classifica os resíduos por grupos. “Quando o
descarte é feito de maneira correta, impactos sani-
tários (proliferação de vetores, microrganismos pa-
togênicos e agentes químicos), ambientais (geração de
lixiviados/chorume, produção de gases: CO2
, H2
S, CH4
e contaminação dos lençóis freáticos), sociais e eco-
nômicos (catadores de restos de alimentos e produtos
em lixões) são prevenidos. Se isso não ocorre, os pro-
blemas se multiplicam e a saúde única fica comprome-
tida”, explica.
Elma lembra que, em seu dia a dia, o médico-veteri-
nário lida diretamente com uma infinidade de produtos
químicos, biológicos e preparações destinadas à preven-
Arquivo/CFMV
A médica-veterinária Elma Polegato foi
uma das autoras da cartilha Plano de
Gerenciamento de Resíduos de Serviços
de Saúde Animal Simplificado (PGRSSA)
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16. ção, ao diagnóstico, à cura ou ao tratamento de doenças
nas diferentes espécies, a exemplo de medicamentos,
vacinas, antissépticos, desinfetantes e pesticidas.
“O destino que é dado para as embalagens desses
produtos após o uso é crucial para garantir a saúde úni-
ca. E segundo a PNRS, todos que participam da utiliza-
ção de produtos são responsáveis por ele até a destina-
ção final ambientalmente correta”, assinala a presidente
da Comissão Técnica de Saúde Ambiental do CRMV-SP.
ENVOLVIMENTO DOS FABRICANTES
Uma das formas que o descarte incorreto de resíduos
afeta a saúde única é por meio da contaminação do solo
e de lençóis freáticos por substâncias químicas. Quan-
do essa água é usada para irrigação, por exemplo, essas
substâncias nela contidas podem levar a problemas gra-
ves de saúde, como o aumento da ocorrência de câncer.
“É responsabilidade do médico-veterinário evitar
o uso indiscriminado de produtos químicos e seguir
as recomendações para o descarte ambientalmente
adequado conforme a legislação, garantindo a
preservação da qualidade do meio ambiente,
minimizando os riscos à saúde pública, segurança e
saúde ocupacional”, destaca Elma, que reforça a impor-
tância do uso racional de medicamentos, em especial os
antimicrobianos, porque parte da substância ingerida é
excretada e chega aos esgotos em sua forma ativa.
O gerenciamento adequado de resíduos de an-
timicrobianos de uso veterinário é um dos objetivos
do PAN-BR Agro. Segundo seus gestores, a minuta de
revisão do Decreto nº 5.053/2004 propõe incluir a
obrigatoriedade dos integrantes da cadeia produtiva
de produtos de uso veterinário de implementar pro-
cedimentos de logística reversa para recolhimento e
destinação sustentável de embalagens, frascos com
conteúdo não utilizados, produtos vencidos e outros,
em conformidade com a PNRS.
Uma das formas que o
descarte incorreto de
resíduos afeta a saúde
única é por meio da
contaminação do solo e
de lençóis freáticos por
substâncias químicas
O descarte inadequado de medicamentos
veterinários gera riscos à saúde única,
contaminando solo, água, plantas e
atingindo animais e seres humanos
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93
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17. Elo relevante dessa cadeia produtiva, o Sindan
reúne 91 empresas responsáveis por cerca de 90%
do mercado brasileiro de medicamentos veterinários
e lançou, em 2022, uma iniciativa que se antecipa à
mudança na legislação proposta pelo Mapa. Em par-
ceria com a Associação dos Laboratórios Farmacêuti-
cos Nacionais (Alanac), iniciou o programa de Logísti-
ca Reversa de Medicamentos de Uso Veterinário.
O projeto começou de forma piloto pelo estado
do Paraná, que no ano passado, contava com 123
pontos para a coleta de medicamentos veterinários
vencidos ou em desuso e seu descarte adequado
(destruído por alto forno e transformado em energia).
Ao todo, 53 empresas e entidades gestoras levaram
planos de ação ao evento de lançamento, em outubro
de 2022, e a ideia é que eles sejam ampliados nos
próximos anos.
No Anuário Sindan 2022, o diretor jurídico do
sindicato destaca que, embora liderada pelo setor,
o projeto “conta com a participação de outros elos,
como distribuidores e pontos de venda, para levar a
logística reversa a cada vez mais lugares e pessoas”.
Sánara explica que o curso de Tecnologia em Ges-
tão Ambiental da Uema possui uma disciplina específi-
ca voltada à gestão adequada de todo tipo de resíduo,
da qual faz parte a gestão dos resíduos de serviços
de saúde. “Para que haja a garantia da saúde única, é
necessário que o destino dado às embalagens de pro-
dutos veterinários ocorra de forma adequada, ou seja,
ambientalmente correta”, assinala.
T Onça no Pantanal, em Mato Grosso: contaminação causada por uso excessivo de antimicrobianos e pelo descarte incorreto afeta animais selvagens
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18. A
dor é a principal causa de sofrimento animal.
Entretanto, a incapacidade dos animais de se
comunicarem com o ser humano torna difícil
a identificação da sua causa e, consequentemente, sua
cura. No campus da Universidade Estadual Paulista Júlio
de Mesquita Filho (Unesp), em Botucatu, um grupo de
pesquisadores vêm há mais de uma década trabalhan-
do para ampliar o conhecimento que permita identificar,
avaliar e curar a dor em não humanos. Parte desse conhe-
cimento foi disponibilizado na forma de um aplicativo
que permite avaliar a dor em diversos tipos de animais,
desde os pets (cães, gatos, coelhos) até os animais de
produção (bovinos, equinos, suínos e ovinos). A ideia, se-
INOVAÇÃO
PESQUISADORES DESENVOLVEM
APLICATIVO PARA AVALIAR DOR EM
ANIMAIS DOMÉSTICOS E DE PRODUÇÃO
GrupodaUnespdeBotucatuelaboratecnologiacomescalasdeavaliaçãodosofrimento
emanimais,parausoporresponsáveiseprofissionais
gundo o médico-veterinário Stelio Pacca Loureiro Luna,
anestesiologista e professor do Departamento de Cirur-
gia Veterinária e Reprodução Animal da Unesp, é popu-
larizar o conhecimento da dor nas diferentes espécies.
Batizado de VetPain, o aplicativo está disponível
para download e pode ser utilizado tanto por um espe-
cialista quanto pelo público leigo. Ao utilizar a ferra-
menta, explica Luna, o usuário pode avaliar a condição
geral do animal e decidir qual o melhor encaminha-
mento a ser feito. “O tutor vai estar apto para avaliar
seu animal, calcular a pontuação e decidir se existe
a necessidade de tratamento com analgésico ou se o
caso exige uma visita ao veterinário”, explica.
Aline Vessoni
Texto publicado originalmente no Jornal da Unesp
T O médico-veterinário Stelio Luna, professor e pesquisador da Unesp, utiliza o aplicativo VetPain para avaliar dor em um cão
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93
18
Arquivo
pessoal/Stelio
Luna
19. VÍDEOS E TESTES ORIENTAM SOBRE O USO
Para orientar na mensuração da dor, os usuários
poderão consultar uma série de vídeos disponíveis
no aplicativo que classificam as reações e os compor-
tamentos dos animais. O material descreve, por exem-
plo, a reação de um cachorro com dor e seu compor-
tamento quando está agitado ou com medo. Depois
de entender o que cada um significa, o usuário é con-
vidado a realizar alguns testes que sugerem o quanto
ele estaria apto para avaliar o seu bicho. Somente em
um terceiro momento, o aplicativo aborda a mensu-
ração da dor, com base em escalas específicas para
cada espécie.
As escalas de dor são alguns dos produtos das
pesquisas realizadas pelo grupo nos últimos anos.
Atualmente, Luna coordena um projeto de pesquisa na
Fapesp com foco na dor e na qualidade de vida de ani-
mais. Boa parte desse trabalho foi disponibilizado no
site Animal Pain (www.animalpain.org), e o aplicativo
VetPain é um desdobramento do site.
Embora o aplicativo possa atrair o interesse de res-
ponsáveis leigos, o pesquisador da Unesp afirma que
a ferramenta também é capaz de melhorar a capacida-
de de avaliação de médicos-veterinários e técnicos da
área, ao apontar o que é essencial na avaliação.
Luna cita o trabalho de um grupo de pesquisa da
Universidade de Newcastle, no Reino Unido, que avaliou
a capacidade de pessoas com ampla experiência com
roedores em identificar a dor nesses animais. O trabalho
pediu a dois grupos que identificassem quais roedores
estavam com dor. O primeiro era formado por pessoas
experientes no trato com esse tipo de animal, mas sem
acesso a informações externas; já pelo segundo grupo foi
informado quais aspectos indicavam dor em roedores.
O resultado apontou que o grupo que conhecia os
indicadores da dor obteve 80% de precisão em suas res-
postas, enquanto os participantes que não sabiam o que
era importante ser analisado alcançaram 50% de acerto,
mesmo com a experiência prévia com a espécie. “A expe-
riência não garante uma boa avaliação. O fato de saber o
que observar, que é o que as escalas de dor promovem,
vai possibilitar melhores resultados”, argumenta Luna.
O professor garante que pessoas que nunca tive-
ram gatos, porcos ou vacas na vida e não têm a menor
TSinais de dor em bovinos: A - cabeça abaixo da linha da coluna; B - membros pélvicos estendidos caudalmente; C - dorso arqueado; D - escoiceia a área
Sinais de dor em bovinos: A - cabeça abaixo da linha da coluna; B - membros pélvicos estendidos caudalmente; C - dorso arqueado; D - escoiceia a área
afetada; E - lambe a área afetada; F – deitado em decúbito ventral estendendo um ou mais membros
afetada; E - lambe a área afetada; F – deitado em decúbito ventral estendendo um ou mais membros
Fonte: Oliveira et al. (2014).
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93 19
20. ideia de como eles se comportam são capazes de ava-
liá-los. “Ao olhar a escala e entender os comportamen-
tos, é possível detectar com precisão a presença de
dor. Quando aprendemos o que analisar, o resultado é
muito bom”, afirma.
ESTUDOS DA DOR INCORPORARAM O USO DE
MEDICAMENTOS E ESCALAS
Desde o início de sua carreira acadêmica, em
1987, como professor da disciplina de anestesiologia,
a dor tem sido um assunto recorrente nas pesquisas de
Luna. Contudo, nessa época, e mesmo enquanto aluno
de graduação, a Medicina Veterinária tinha o conceito
de que os animais não deveriam ser tratados com an-
ti-inflamatórios e analgésicos. Nem mesmo em casos
cirúrgicos, a analgesia era recomendada.
“Acreditava-se que a analgesia tiraria a dor patoló-
gica, mas também a dor fisiológica. Dessa forma, os ani-
mais poderiam correr, se movimentar e até se mutilar,
colocando a perder o procedimento cirúrgico”, explica.
Essa postura só começou a mudar em meados dos
anos 1990. O próprio docente, nessa época, orientou
um trabalho de mestrado em que foi feito um estudo
com um grupo controle, tratando alguns dos animais
em pós-operatório de cirurgia ortopédica com anti-in-
flamatório, e outros, sem.
“O resultado foi fantástico: aqueles tratados com
anti-inflamatório não só tinham menos dor, como se
recuperaram melhor. Os animais tinham menos ede-
mas, o pino dentro do osso migrava menos, a consoli-
dação da fratura foi mais rápida”, relembra.
Nesse primeiro estudo, como ainda não existia
escala de dor, eles tiveram que improvisar, com base
em escalas aplicadas em seres humanos. A diferença é
que, para mensurar a dor em humanos, existe sempre a
possibilidade de comprovar os níveis de dor através do
autorrelato. Para expandir essa avaliação para espécies
não humanas, pesquisadores do mundo inteiro preci-
sam investir muito tempo em observação comporta-
mental. A primeira dessas tabelas, a de Glasgow, surgiu
em 2007 e é específica para cães.
T Sinais de dor em suínos.
Fonte: Fonte: Luna et al. (2020).
[...] a Medicina Veterinária
tinha o conceito de que
os animais não deveriam
ser tratados com anti-
inflamatórios e analgésicos
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93
20
21. No entanto, essa escala ainda tinha algumas lacu-
nas no caráter de reprodutibilidade, ou seja, a possibi-
lidade de duas pessoas avaliarem o mesmo animal e
chegarem a resultados parecidos. Foi exatamente isso
o que o grupo de pesquisa de Luna alcançou, em 2013,
ao inaugurar a categoria intraobservador, baseada em
avaliações de outros observadores.
Hoje, a escala para gatos, que leva o nome
Unesp-Botucatu, é a mais citada na literatura e a
mais validada do ponto de vista estatístico. Depois
da escala de dor para os felinos domésticos, vieram
as de bovinos e ovinos, que também levam o nome
Unesp-Botucatu e integram o aplicativo.
Em geral, essas escalas são produzidas em proje-
tos de doutorado e pós-doutorado, em que os pesqui-
sadores filmam os animais de forma exaustiva – cerca
de 700 horas de vídeos. Na sequência, avaliam e des-
crevem minuciosamente o comportamento animal: em
quadro normal versus em sofrimento. As condutas mais
significativas para o quesito da dor em cada espécie
são transformadas em vídeos curtos, de poucos segun-
dos, e passam a integrar a escala.
PESQUISA SEGUE AVANÇANDO
Outra vertente de pesquisa é a da avaliação da dor
de forma automatizada. De acordo com o pesquisador,
a inteligência artificial (IA) chega a uma exatidão de
80%, contra 70% da avaliação humana. Como a face é
muito expressiva para a dor, tanto em humanos quanto
em não humanos, o grupo de pesquisa do qual Luna
faz parte analisou as expressões faciais de gatas em
pós-operatório de retirada de ovários.
“Medimos cada unidade de ação facial e o sentido
dos movimentos. O computador mede todos os veto-
res, tanto a direção quanto a distância, e calcula um
índice de dor”, explica Luna.
Nessa primeira fase, os pesquisadores ainda pre-
cisam identificar os pontos faciais a serem avaliados,
o computador só faz os cálculos. Mas a ideia é avançar
para a segunda fase e desenvolver o reconhecimento
automático dos pontos.
Luna ressalta que, para as pesquisas avançarem na
identificação da dor com o uso da inteligência artificial, é
preciso ampliar o banco de dados imagéticos. “Como são
os dados que alimentam o algoritmo, quanto mais dados,
melhor fica. Senão, começa a haver erros”, afirma ele, que
vê no recurso da IA uma nova tendência de pesquisas.
PROMOVER BEM-ESTAR ANIMAL TAMBÉM TRAZ
RETORNOS FINANCEIROS
Além do caráter ético de amenizar o sofrimento
dos animais, o professor também atenta para o fato de
que investir em analgesia acarreta ganhos financeiros
para os criadores de animais de produção, como bovi-
nos, suínos e ovinos. Um exemplo, segundo ele, está na
analgesia para a castração de porcos que, ainda hoje, é
realizada sem anestesia em quase todo o mundo.
“A dor compromete não apenas o bem-estar ani-
mal, mas também a produção de leite, o ganho de
peso, ou seja, tudo o que é de interesse do produtor.
Fizemos um estudo em suínos que comprova que a
castração com anestesia local faz com que o animal
ganhe mais peso. Isso quer dizer que, mesmo com o
custo da anestesia, a analgesia é vantajosa do ponto
de vista financeiro”, declara.
O médico-veterinário avalia que os cuidados tanto
com animais de produção quanto de pesquisa evoluí-
ram bastante desde o início de sua carreira. Um dos
pontos de destaque foi a criação do Conselho Nacio-
nal de Controle de Experimentação Animal (Concea),
órgão integrante do Ministério da Ciência e Tecnologia,
que passou a garantir a formulação de normas relativas
à utilização humanitária de animais para o ensino e a
pesquisa científica.
No que tange à pecuária leiteira e de corte, mui-
tos produtores já entenderam que o bem-estar ani-
mal influencia na produção e investem nisso. Ainda
assim, a produção de suínos e aves continua muito
precária, deixando esses animais confinados em es-
paços em que eles não podem se coçar, mexer-se e
nem se levantar.
Bem-estar não é apenas dor. Existem as famosas cin-
co liberdades que preconizam que o animal esteja livre
de fome, sede, dor, doença e medo. Antigamente, dizia-se
que se o animal estivesse se reproduzindo, estava tudo
bem. Entretanto, uma porca pode até não ter medo, mas
ela tem muita frustração psíquica ao não conseguir nem
se coçar. E isso também é relevante”, garante Luna.
REFERÊNCIAS
LUNA, S. P. L. et al. Validation of the UNESP-Botucatu pig composite acute
pain scale (UPAPS). Plos One, v. 15, n. 6, e0233552, 2020. DOI: https://doi.
org/10.1371/journal.pone.0233552.
OLIVEIRA, F. A. et al. Validation of the UNESP-Botucatu unidimensional com-
posite pain scale for assessing postoperative pain in cattle. BMC Veterinary
Research,[s.l.],v.10,2014.DOI:https://doi.org/10.1186/s12917-014-0200-0.
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93 21
22. ARTIGO - BEM-ESTAR ANIMAL
O CENÁRIO ATUAL DA DOR EM
ANIMAIS
Em artigo, o médico-veterinário Stelio Luna, coordenador do estudo que criou
aplicativo que mensura dor em animais, detalha como foi a construção do
trabalho e funcionamento da ferramenta
A
dor é a principal causa e a expressão mais
óbvia do sofrimento animal. A dor aguda é
adaptativa e necessária para autoproteção
na sobrevivência, porém ao se tornar patológica é má
adaptativa, contraproducente e acarreta sofrimento
desnecessário. A dor causa alterações nocivas em pra-
ticamente todos os sistemas orgânicos, o que culmina
em imunossupressão, aumento da mortalidade, agra-
vamento dos processos patológicos, além de afetar a
produtividade, pois reduz o ganho de peso (TELLES et
al., 2016).
O avanço da ciência do bem-estar animal aguçou
o senso crítico da necessidade de prevenção e trata-
mento da dor em animais e se tornou um aliado im-
portante para a viabilidade financeira do agronegócio,
agregando valor ao produto. Entretanto, a avaliação da
dor e o uso de analgésicos pelos médicos veterinários
ainda são insatisfatórios (LORENA et al., 2013, 2014),
especialmente em animais de produção (LORENA et al.,
2013). Até recentemente, a ausência de métodos vali-
dados para avaliar a dor de forma espécie-específica
em situações clínicas limitava o tratamento apropriado
da dor nos animais.
Não se pode tratar a dor sem identificá-la, daí a
importância de escalas validadas que afiancem uma
avaliação confiável e quantitativa da dor e do efeito
qualitativo e temporal da terapia antálgica. Para uso na
rotina, tais escalas devem ser de fácil aplicabilidade e
validadas clinicamente.
Diferentemente do ser humano, que pode se ex-
pressar verbalmente, os animais expressam a dor por
alteração de comportamento, forma mais simples de
avaliá-la e facilmente implementável em situações clí-
nicas e experimentais. Baseado nessas premissas, de-
senvolvemos um site e o aplicativo Vetpain (Figura 1),
disponível para Android, que está registrado em nome
da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Fi-
lho (Unesp), com escalas para avaliar a dor em todas as
espécies de animais domésticos. O sistema ainda está
em implantação na Apple, por isso, para iOS, o acesso
deve ser feito pelo site, que possui a mesma configura-
ção do aplicativo.
T Figura 1 – Logomarca e QR code do aplicativo Vetpain
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93
22
23. Os estudos contaram com um total de oito colabo-
res do Brasil, provenientes de sete instituições: Unesp,
campus Botucatu (SP); Universidade Federal Rural do
Semiárido (Ufersa), em Mossoró (RN); Universidade Es-
tadual do Paraná, campus Umuarama e Londrina; Uni-
versidade de São Paulo (USP), em Pirassununga (SP);
Universidade Federal de Goiás, campus Jataí; Instituto
de Zootecnia, em Nova Odessa (SP); Universidade Fe-
deral de Campina Grande (UFCG), em Patos (PB). Além
deles, participaram mais 26 colaboradores internacio-
nais de 19 instituições de todos os continentes: Ásia
(Japão), América do Norte (Canadá e Estados Unidos),
América do Sul (Argentina e Uruguai), Europa (Inglater-
ra, Itália, Bélgica, Suíça, Espanha e Finlândia), Oceania
(Nova Zelândia) e Oriente Médio (Israel).
Os projetos se iniciaram há mais de duas décadas,
por meio do apoio financeiro da Fundação de Apoio
à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp, projetos
temáticos 2010/08967-0 e 2017/12815-0), e com-
preenderam duas iniciações científicas, três mestra-
dos, 12 doutorados e seis pós-doutorados financiados
por Fapesp, Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) e Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
O desenvolvimento do site e do aplicativo receberam
patrocínio privado.
HISTÓRICO DO DESENVOLVIMENTO DAS ESCALAS DE
DOR NA MEDICINA VETERINÁRIA
O cão foi a primeira espécie a se beneficiar com
uma escala de dor, publicada no fim da década de
1990 pela Universidade de Melbourne (FIRTH; HAL-
DANE, 1999). Na sequência, ainda em cães, desenvol-
veu-se a escala de Glasgow (HOLTON et al., 2001), a
escala de qualidade de vida, pelo grupo da Faculdade
de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP (YAZBECK;
FANTONI, 2005), e a versão curta da escala de Glasgow
(REID et al., 2007). Ainda em 2007, desenvolveu-se
uma escala para avaliar a dor ortopédica em equinos
(BUSSIÈRES et al., 2008), o que abriu as portas para a
criação de escalas em outras espécies.
A primeira escala de dor em gatos da literatura foi
a Ufeps (Unesp-Botucatu Feline Pain Scale), desen-
volvida e validada em cinco línguas (BRONDANI et al.,
2011, 2012, 2013a, 2013b). É a escala comportamen-
tal mais difundida mundialmente e com o maior nível
de validação (MONTEIRO et al., 2022). Essa e todas as
outras que validamos a seguir estão de acordo com as
diretrizes do Consensus-Based Standards for the Se-
lection of Health Measurement Instruments (Cosmin),
utilizadas como referência para critérios de validação
de instrumentos de saúde humana, o que garante os
mais rigorosos critérios científicos e o mais alto nível
de evidência na literatura mundial (MOKKINK et al.,
2010a, 2010b).
Na sequência, autores escoceses publicaram a escala
de Glasgow para gatos (REID et al., 2007). A versão curta
da UFEPS, lançada em 2022, foi validada para dor clínica
e para cirurgias ortopédicas e de tecidos moles (BELLI et
al., 2021) em oito línguas diferentes (LUNA et al., 2022).
Recentemente, a escala facial para avaliar a dor em gatos
(Feline Grimace Scale), validada por parceiros brasileiros
que atuam na Universidade de Montreal, entrou para o
ranking das escalas que apresentam alto nível de evidên-
cia (EVANGELISTA; MONTEIRO; STEAGALL, 2022) e tam-
bém possui aplicativo Android e Apple.
Em outras espécies, desenvolvemos e validamos
as escalas de bovinos (OLIVEIRA et al., 2014), equi-
nos (ROCHA et al., 2021; TAFFAREL et al., 2015), ovinos
(SILVA et al., 2020), suínos (LUNA et al., 2020), jumen-
tos, em parceria com a Universidade Federal Rural de
Mossoró (OLIVEIRA et al., 2021) e coelhos (PINHO et al.,
2022), bem como as versões de escalas de dor crôni-
ca em cães na língua portuguesa (MATSUBARA et al.,
2019, 2022). As escalas de bovinos, ovinos e suínos
são as únicas da literatura que apresentam forte nível
de evidência científica na literatura mundial, de acordo
com uma revisão sistemática recente (TOMACHEUSKI
et al., 2023a, 2023b), e a de suínos será utilizada pelo
Food and Drug Administration dos Estados Unidos em
testes para lançamentos de analgésicos na espécie.
O cão foi a primeira
espécie a se beneficiar
com uma escala de
dor, publicada no fim
da década de 1990
pela Universidade de
Melbourne
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93 23
24. COMO SÃO DESENVOLVIDAS E VALIDADAS AS ESCALAS
O processo de validação de uma escala consiste
em avaliar as confiabilidades e as validades. As con-
fiabilidades intraobservador (repetibilidade) e inte-
robservador (reprodutibilidade) são a concordância
de um avaliador consigo mesmo e com outros obser-
vadores, respectivamente.
Para cada escala, após extenso trabalho de fil-
magem do comportamento dos animais, antes e após
um procedimento que cause dor, como, por exemplo,
cirurgia, identificamos as alterações dos compor-
tamentos de manutenção (normais) e os comporta-
mentos característicos de dor por meio de etogra-
mas. Nessa fase, realizamos a primeira validação, que
é a de conteúdo, e a seguir, inserimos os comporta-
mentos relevantes na escala em desenvolvimento.
Na sequência, de três a quatro observadores, cola-
boradores do Brasil e de diversos países, assistem
aos vídeos desses animais antes e depois da cirur-
gia e identificam a ocorrência dos comportamentos
em quatro momentos (antes e após a cirurgia, após
o resgate analgésico e 24 horas após a cirurgia) de
uma forma encoberta, sem saberem qual é o momen-
to avaliado. Repete-se tal avaliação após 30 dias para
calcular a reprodutibilidade. Com os resultados das
avaliações, procede-se uma validação estatística ro-
busta, segundo o Cosmin (LUNA et al., 2022), na qual
se selecionam os comportamentos relevantes para
detectar a dor e criam-se as escalas, que a seguir são
testadas em situações clínicas. Os projetos são de-
senvolvidos em um período de três a cinco anos para
cada espécie. Tais escalas estão inseridas no site Ani-
mal Pain e no aplicativo Vetpain.
Como a avaliação da dor só tem importância quan-
do os animais se beneficiam do tratamento, o segundo
apelo é tratar a dor para melhorar a qualidade de vida
dos animais. Nesse sentido, as escalas não apenas iden-
tificam a dor, mas a quantificam para que os médicos-ve-
terinários possam tomar decisão quanto à modalidade de
tratamento, bem como avaliar a sua eficácia e duração.
FUNCIONAMENTO DO SITE E DO APLICATIVO VETPAIN
No site e no aplicativo, há escalas para pets (cães,
gatos e coelhos), animais de produção (ovinos, bovi-
nos, suínos e, em breve, caprinos), equídeos (equinos
e asininos) e animais de pesquisa (coelhos, ratos e ca-
mundongos). Todas as escalas, exceto a de cães, ratos e
camundongos, foram elaboradas pelo nosso grupo de
pesquisa da FMVZ-Unesp de Botucatu juntamente com
outros colaboradores. As demais foram gentilmente
cedidas pelos autores.
O aplicativo e o site estão disponíveis em portu-
guês e inglês, são fáceis de usar e dispõem de quatro
etapas (há um tutorial disponível):
1ª - vídeos que demonstram cada comportamento
que compõe as escalas, para aprendizado prévio do
usuário e melhoria da confiabilidade dos resultados;
1 2 3 4
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93
24
25. 6 7
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26. 15
17 18
13 14 16
19
T Figura 2 – Etapas de uso do aplicativo
Passo a passo das páginas de acesso ao aplicativo Vetpain: 1) tela de entrada para cadastro; 2 e 3) espécies animais disponíveis para acessar as escalas; 4)
menu de entrada de cada espécie; 5) escalas disponíveis; 6) menu contendo a escala, os testes de habilidade, a decisão para tratamento da dor e avaliação da
dor do seu animal; 7) escala com descrição dos comportamentos e vídeos correspondentes; 8) vídeo de cada comportamento; 9) videos testes; 10) avaliação de
um vídeo teste; 11) finalização da avaliação do vídeo teste; 12) resultado do vídeo teste; 13) comparação do resultado com o gabarito para checar a habilidade
do usuário; 14) cadastro do animal a ser avaliado; 15) avaliação do animal do usuário; 16) finalização da avaliação do animal do usuário; 17) resultado da
avaliação do animal do usuário; 18) infomação sobre o ponto de corte da escala para o usuário comparar com o resultado de sua avaliação e checar se é
necessário tratar ou não o animal; 19) informação de que a decisão em tratar ou não cabe ao médico-veterinário.
Fonte: Luna (2023).
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93
26
27. 2ª - vídeos para treinamento, nos quais o usuário
pode checar o seu aprendizado pelo gabarito antes de
avaliar seu animal ou seu caso clínico, bem como pode
servir para o ensino e a avaliação de graduandos e pós-
-graduandos em Medicina Veterinária;
3ª - avaliação da dor em seu próprio animal (para
tutores e cuidadores) ou de pacientes atendidos pe-
los médicos-veterinários ou, ainda, de animais de
pesquisa por pesquisadores, com cálculo automático
do escore;
4ª - escore definido para cada escala que indica a
tomada de decisão para tratar ou não a dor com anal-
gésicos.
No caso da dor crônica, como o tutor é responsável
por avaliá-la, também há escalas disponíveis para cães
e, em breve, inseriremos para gatos. O aplicativo arma-
zena os resultados das avaliações para acompanhar a
evolução do animal.
QUEM PODE USAR O SITE E O APLICATIVO?
Embora as escalas se baseiem nas avaliações de
médicos-veterinários, estudos recentes demonstram
que mesmo pessoas que não têm familiaridade com
animais podem usar a ferramenta, desde que passem
pela fase de treinamento já inserida no Vetpain. Dessa
forma, pesquisadores, enfermeiros, tutores, tratadores
ou fazendeiros podem utilizá-lo.
Salientamos nas ferramentas que, quando o usuá-
rio não for médico-veterinário e houver indicação de
tratamento da dor, cabe ao profissional a decisão de
tratar ou não o animal, devendo o usuário buscar orien-
tação para saber qual é a causa da dor, se é necessário
tratá-la e qual seria o tratamento indicado.
COMO O VETPAIN PODE AUXILIAR NO TRATAMENTO
DOS ANIMAIS?
As escalas definem e intensidade da dor dos ani-
mais. Quando o escore de dor está acima do ponto
de corte para resgate analgésico, o médico-veteriná-
rio pode tentar identificar a causa da dor para prover
o tratamento. Uma vez instituído e eficaz, espera-se
que com ele o escore de dor se reduza para valores
abaixo do ponto de resgate analgésico (ponto de
corte). Do contrário, pode-se instituir um tratamento
suplementar ou diferente do inicial e, ainda, avaliar
quanto tempo ele deve durar a partir do momento em
que o escore de dor esteja novamente acima do pon-
to de resgate analgésico.
QUAL É O NÍVEL DE CERTEZA DAS AVALIAÇÕES E
QUAIS SÃO AS LIMITAÇÕES?
Como as escalas passam por análises estatísticas
robustas, o nível de exatidão para identificar a dor é
acima de 90%, ou seja, há uma alta confiabilidade de
se identificar corretamente os animais com dor, em re-
lação àqueles sem dor ou com pouca dor.
A principal limitação das escalas é quando os ani-
mais estão sedados ou prostrados por enfermidades,
agressivos ou muito tímidos. Nessas circunstâncias,
podem ocorrer casos falso-positivos, ou seja, o aplica-
tivo apresentar escores compatíveis com resgate anal-
gésico em animais desprovidos de dor. Para minimizar
o problema, também há no aplicativo e no site escalas
para avaliar a sedação de cães e equinos. Em todos os
casos, cabe ao médico-veterinário decidir entre minis-
trar ou não analgésicos de acordo com a anamnese e a
avaliação clínica.
CONCLUSÕES
Uma vez detectada a dor, é fundamental procu-
rar um médico-veterinário para saber se é necessário
tratá-la ou não, e de que forma. Ou seja, é imperativo
diagnosticar a causa da dor para corrigi-la, e apenas
o médico-veterinário tem a capacitação e o respaldo
legal para o tratamento.
Esperamos popularizar ao máximo, junto ao pú-
blico especializado e leigo, a identificação da dor em
animais, para que se proceda a terapia antálgica e se
garanta o bem-estar animal. Além do emprego em si-
tuações clínicas e experimentais pelos médicos-vete-
rinários, parece-nos importante divulgar a ciência ao
público e, nesse sentido, tais ferramentas propiciam
seu uso cotidiano por aqueles que possuem animais
no âmbito doméstico, de produção, dos esportes, das
exposições ou mesmo para o ensino de estudantes de
Medicina Veterinária.
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2005. DOI: https://doi.org/10.2460/javma.2005.226.1354.
AUTOR
STELIO PACCA LOUREIRO LUNA
Médico-veterinário
CRMV-SP no
4420
Mestre em Medicina Veterinária – FMVZ, Unesp, campus Botucatu
PhD – Universidade de Cambridge, Inglaterra
Diplomado pelo Colégio Europeu de Anestesiologia e Analgesia
Veterinária
Especialista em Anestesiologia Veterinária (2005-2015) e
Acupuntura Veterinária – CFMV
Membro da Comissão de Homeopatia e do Grupo de Trabalho
sobre a Cannabis medicinal na Medicina Veterinária – CRMV-SP
Professor titular aposentado (voluntário) – FMVZ, Unesp, campus
Botucatu
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93
28
29. ESPECIAL
AOS 107, DE OLHO NO FUTURO
UmpapocomoprofessorMiltonThiagodeMello,vencedordoPrêmioPauloDacorso
Filho2021eumdosmaisprestigiadosmédicos-veterináriosdomundo
vinha sendo tratado. Ali, entre os cantos dos pássaros e
diante de tanta bagagem intelectual intacta pelo tem-
po, nada se perde ou carece de sentido. Tudo é fruto de,
como ele mesmo diz, mais de 90 anos de vida adulta,
na qual, tantas vezes, “viu o futuro virar passado”.
Frustra-se, no entanto, quem espera nostalgia sau-
dosista ou mágoas pretéritas brotarem de suas memó-
rias. Seu lema é não remoer o que de ruim passou, fi-
losofia de vida que resume na frase “As amargas, não”,
título de um livro de 1954, do poeta Álvaro Moreyra.
Nem o falecido membro da Academia Brasileira de Le-
tras, casado com uma feminista, escapa. Mello discorre
sobre inconfidências da vida do escritor como se fato
atual fossem. E justifica do nome da obra de Moreyra
como lema de vida.
D
everia ter sido uma conversa breve, de meia
hora, no máximo uma hora. Afinal, um senhor
de mais de 100 anos de idade deve se cansar
e/ou ficar impaciente logo. Ledo engano. O que seria
uma entrevista curta virou um bate-papo de mais de
três horas, na ventilada varanda da casa do professor
Milton Thiago de Mello, com vista para o jardim arbo-
rizado e o Lago Paranoá. Reminiscências da carreira,
citações literárias e causos permearam o encontro que
se alongaria por mais três horas, se dependesse dele.
Ao longo desse tempo, a cada pergunta, ele digres-
siona, cita poetas, escritores, fatos históricos e faz graça.
Nada escapa à sua mente inquieta e, se for para fazer o
outro rir, agarra a oportunidade. Às vezes, perde o fio da
meada e pede ajuda para retornar ao tema inicial que
T Milton Thiago de Mello: "Não ando de cara amarrada, nem quando estou dormindo. Um cara com 107 anos já viu 5 milhões de amargas. [Falando] Na
linguagem de vocês, deleto tudo”
Gilberto
Soares
"Giba"/Arquivo
CFMV
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93 29
30. “Não ando de cara amarrada, nem quando estou
dormindo. Um cara com 107 anos já viu 5 milhões
de amargas. [Falando] Na linguagem de vocês, deleto
tudo”, conta.
Talvez esse seja um dos segredos da lucidez e
vivacidade desses 107 anos vividos entre livros,
pesquisas e a academia, com destaque para seus tra-
balhos em microbiologia, primatologia e brucelose.
Hoje, brinca, vive para receber prêmios, não sabe se
por antiguidade ou merecimento. “Acho que minha
escolha é como o que a Academia de Artes Cinema-
tográficas de Hollywood hoje denomina de ‘conjunto
da obra’”, avalia.
No quesito “não perder a piada”, a própria longevi-
dade é mote recorrente. Autodenomina-se “velhinho”.
Resvala, vez em quando, no politicamente incorreto,
mas engana-se quem pensa que Mello estacionou no
passado. Está de olho no futuro, principalmente no da
Medicina Veterinária, e alerta sobre a necessidade de
se ter a mentalidade aberta para o novo.
“Para fazer uma descoberta, a mente precisa estar
preparada. Para aceitar o futuro, você tem de estar com
a mentalidade livre. E normalmente as pessoas rea-
gem, são os reacionários”, comenta.
Ele é enfático ao dizer que, se no século 20 a moe-
da mundial foi o dólar, a moeda do século 21 será a
comida. Por conta disso, um dos temas recorrentes nas
falas recentes de Mello, e que desperta reações posi-
tivas e negativas, é de que o futuro é a carne artificial.
“Ninguém compreende, muito menos os veteri-
nários. Acontece que a ciência não tinha, até dez anos
atrás, como sair dessa armadilha: para plantar, tem que
ter terra; para ter terra, tem que desmatar. Mas você
pode pegar uma célula de tecido, botar umas ‘aguinhas’
e aquela célula se torna embrionária”, resume, comple-
mentando: “O erro é as pessoas acharem que o futuro é
hoje. Mutatis mutandis, mudando o que tem de ser mu-
dado. Em 80 anos, haverá outra maneira de se produzir
proteínas”, conclui, visionário, pero sin perder la ternura.
ROTINA
Um leve sabor amargo surge ao relatar a queda, so-
frida no início de 2020, na qual fraturou o quadril e o
“Para fazer uma descoberta,
a mente precisa estar
preparada. Para aceitar
o futuro, você tem de
estar com a mentalidade
livre. E normalmente as
pessoas reagem, são os
reacionários”
Na cerimônia de entrega do
Prêmio Paulo Dacorso, Mello e
a esposa, Ângela, rodeados por
Marcílio Magalhães (à esquerda),
Francisco Cavalcanti, René Dubois
e Josélio Moura
Wellington
Oliveira/Arquivo
CFMV
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93
30
31. deixou entre a vida e a morte. Superada a fase crítica,
ficou a locomoção vagarosa e com apoio obrigatório,
mas a mente inquieta segue a toda. Lê e escreve diaria-
mente em seu quarto, onde há um escritório. “Escapei
de tudo isso e estou aqui”, diz, chutando a amargura
longe ao contar que negocia com o cardiologista o
consumo do seu sagrado líquido, o whisky. Recebeu
permissão para consumir meia garrafa em sua festa de
aniversário, previsto para dali a alguns dias.
Mello acorda às 7h, horário em que começam a
chegar as suas colaboradoras – cuidadora, secretária e
outras encarregadas das tarefas domésticas. Senta-se
à mesa posta com fartura e depois segue para suas ati-
vidades, sempre em modo analógico. Não usa celular
(que abomina e chama de “essas maquininhas”) nem
computador, cujo uso delega às ajudantes para recebi-
mento e envio de e-mails e outras atividades. Às 18h, a
cuidadora vai embora.
“Daí, fico por conta dessa mulher fantástica, a Ân-
gela, essa jovem de cabelo branco que vai completar
exatamente 90 anos. Guia seu próprio carro até sua
clínica psiquiátrica. Vamos completar, lá pelo meio do
ano, 60 anos de casados”, derrete-se.
CAUSOS
Sobram histórias para contar por trás das homena-
gens e vivências profissionais de Mello. Por ocasião da
entrega do Prêmio John Gamgee, em Praga (República
Tcheca), lembra que escreveu um longo discurso em
português, que verteu ao inglês. Ao iniciá-lo, logo per-
cebeu que a audiência estava entediada, consultando
o relógio. Resolveu partir para o improviso. “Quando
terminei, o auditório parecia ter mola no traseiro e (faz
gesto de palmas) até não acabar mais”, descreve.
Outro relato leva a uma homenagem recebida, me-
ses atrás. “Fizeram um troço de matar velhinho na SBPC
(Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), toda
a cúpula da ciência brasileira lá. Terminei com duas im-
precações: uma de Castro Alves, no Navio Negreiro; outra
do José Américo de Almeida, em A bagaceira”, conta.
Da primeira obra, citou o trecho “Senhor Deus dos
desgraçados!/Dizei-me vós, Senhor Deus!/Se é loucu-
ra... se é verdade/Tanto horror perante os céus...”; da
segunda, lembrou o trecho “morrer de fome na terra
de Canaã”, ambas em referência aos 33 milhões de
pessoas em situação de insegurança alimentar no
Brasil, muitas delas bem perto da área central de Bra-
sília. “Como um país que é potência alimentar deixa
isso?”, questiona.
Sobre já ter visto “muito futuro virar passado”, ou
seja, ter visto surgir coisas que pareciam inovadoras e
foram importantes, mas hoje ninguém mais sabe o que
é ou se lembra, cita uma da Medicina Veterinária.
“Já ouviu falar em banheiro carrapaticida? Era um
grande futuro, virou presente e o passado já passou,
ninguém se lembra mais. Os bois trazidos da Europa
pegavam carrapato, o que os matava ou tornava sus-
cetíveis a doenças, além de magros, sem carne. Para
tratamento, surgiu o carrapaticida líquido e, depois, o
tanque em que os bovinos passavam. Esse foi o meu
futuro que virou passado”, relata.
Na saída, fez questão de acompanhar a visita até
a porta. O caminho é permeado pela coleção de obras
de arte e artesanato, do Brasil e de dezenas de paí-
ses visitados por Mello. Após o elogio pelo bom gosto
das peças, que poderiam compor um museu de ótima
coleção, soltou: “Na próxima, chamo o curador para
conversar com você” e, ao ser perguntado sobre quem
seria, vem a resposta: “Eu, mesmo”, dando uma risadi-
nha. Definitivamente, perder a oportunidade de fazer
rir não está nos alfarrábios do professor.
T Mello (à esquerda) recebe cumprimento da Rainha Elizabeth II,
da Inglaterra, em 1988
Repro
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pesso
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Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93 31
32. ENTREGA DO PRÊMIO PAULO DACORSO FILHO FOI NA SEDE DO CFMV
Para receber o Prêmio Professor Paulo Dacorso
2021, o professor, cientista e leitor voraz, surge com
alguma dificuldade de locomoção, devido a um aciden-
te sofrido três anos atrás, porém lúcido como sempre
e bem-humorado como nunca. A cerimônia ocorreu no
dia 27 de janeiro, na sede provisória do Conselho Fede-
ral de Medicina Veterinária (CFMV), em Brasília.
À mesa, além dele e de sua esposa, a psiquiatra
Ângela, estavam o presidente do CFMV, Francisco Ca-
valcanti de Almeida; o ex-presidente do fede-
ral, René Dubois
(representando a
Sociedade Brasi-
leira de Medicina
Veterinária – SBMV);
Josélio de Andrade
Moura, presidente da
Academia Brasileira
de Medicina Veteri-
nária (Abramvet); e
o conselheiro titular
do CFMV Marcílio Ma-
galhães, responsável
pela indicação de Mel-
lo ao prêmio.
O evento contou com a presença da Diretoria Exe-
cutiva, de conselheiros titulares e suplentes do CFMV,
além de presidentes de regionais e do corpo funcional,
de familiares, colegas e admiradores do homenagea-
do. A solenidade teve transmissão on-line, assistida
por mais de 30 pessoas, simultaneamente.
Magalhães fez o primeiro da série de discursos
emocionantes que marcaram a tarde. “A honra de con-
tar com a amizade do Dr. Milton não foi o principal mo-
tivo da minha indicação. Expoente figura da Medicina
Veterinária brasileira e mundial, nosso ilustre agracia-
do é possuidor de um dos mais brilhantes currículos
profissionais de que temos conhecimento. Sua desta-
cada carreira de médico-veterinário, militar do Exérci-
to, pesquisador e cientista, e sua vasta produção aca-
dêmica é incomparável”, assinalou.
Em seguida, foi a vez de o presidente da Academia
Brasileira de Medicina Veterinária, Josélio de Andrade
Moura, manifestar sua alegria pela entrega da honraria
a Mello e lembrar uma de suas frases emblemáticas.
“Quero deixar um pequeno recado da ‘segunda lei de
Milton’, que é um recado a professores e alunos: os
professores têm a obrigação de fazer seus alunos me-
lhores que eles próprios; e os alunos têm a obrigação
de estudar tanto para se tornarem melhores que seus
próprios mestres."
Em sua fala, Dubois destacou ser a entrega do Prê-
mio Paulo Dacorso Filho a Mello um momento histórico.
“Sem demérito aos demais (vencedores do prêmio), hoje
estamos homenageando
um super-homem, o maior
de todos os agraciados até
agora”, afirmou, provocan-
do aplausos da plateia.
Após descrever a
emoção sentida ao ser co-
municado sobre o recebi-
mento do Prêmio Paulo
Dacorso e agradecer as
falas de Magalhães, Lima
e Dubois, Mello falou
sobre a importância da
saúde única e seguran-
ça alimentar. “Todo o futuro da
Veterinária repousa sobre essa dupla”, afirmou, segui-
do de aplausos.
Alegre, citou o dramaturgo francês Moliére, recor-
dou a própria trajetória na atuação com equinos, bo-
vinos e primatas. E confessou que passou alguns anos
como clínico de cães no Exército. “Sou também um ve-
terinário de cachorrinhos, embora ache um exagero o
que ocorre hoje”, resumiu.
O presidente do CFMV, último a discursar, afirmou
que ao homenagear Mello, era uma forma de coroar o
trabalho de Laerte e Waldemar, criadores do prêmio.
“Solenidade simples, mas de coração, mostrando ao
Brasil e ao mundo esse querido médico-veterinário
que dignificou a Medicina Veterinária brasileira e, qui-
çá, mundial”, saudou.
Ele aproveitou para agradecer o apoio e a parceria das
autoridades presentes, ressaltando que entregar o Prêmio
Paulo Dacorso ao professor Milton Thiago foi uma das
maiores honras de sua carreira como médico-veterinário.
A cobertura do Prêmio Paulo Dacorso Filho 2021
está no site do CFMV.
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Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93
32
33. SABEDORIA QUE INSPIRA
Médicos-veterinários e zootecnistas com mais de 40 anos de
profissão compartilham suas experiências e dicas de longevidade
Flávia Lôbo
Veterinária, 33 são dedicados à segurança de alimen-
tos. O médico-veterinário, inscrito sob o registro de nú-
mero 003 do Rio Grande do Norte e um dos fundado-
res do CRMV-RN, continua na ativa como responsável
técnico de uma rede do varejo e atacado do estado.
Ele conta que veio ao mundo para escrever uma
biografia que ainda vai render muitas páginas e revela
que sua força e energia para trabalhar vêm da dedi-
cação e do seu propósito de vida. Ao falar da Medici-
na Veterinária, expõe a preocupação sobre o acúmu-
lo de profissionais no setor pet. “A área de alimentos,
por exemplo, é muito esquecida pelos profissionais. A
maioria se junta em torno das atividades de pequenos
LONGEVIDADE
C
om tantas descobertas e avanços na Medicina
Veterinária e Zootecnia, conhecer histórias de
profissionais experientes pode acalentar a an-
siedade de quem procura uma luz para tomar decisões
na carreira. Além de ensinamentos sobre desafios, con-
quistas e frustrações, são apresentadas narrativas de
seis profissionais maiores de 70 anos, que não gostam
muito de revelar a idade, mas que seguem em ativi-
dade com muita determinação, compartilhando o que
sabem e adquirindo novos conhecimentos. São, acima
de tudo, histórias e pessoas inspiradoras.
A trajetória de José Arimateia da Silva é um exem-
plo disso. Dos seus 50 anos de atuação na Medicina
Arquivo
pessoal/Mitika
K.
Higiwara
T Até nos momentos de lazer, a professora Mitika (de braço levantado) busca desafios. Ela conta que, nos últimos anos, passou a se cuidar mais.
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93 33
34. animais. E aí chega o momento em que não vai ter es-
paço para todo mundo”, alerta.
O médico-veterinário iniciou sua carreira em 1975,
na bacia leiteira de Alagoas, atuou na extensão rural e
em vários projetos de inovação no agro no seu estado
natal, em Santa Catarina e Alagoas. Mas foi na dificul-
dade que ele encontrou a oportunidade. Em 1988, de-
cidiu fazer concurso público e atuou na coordenação
da Vigilância no estado.
“Eu não falava aquela língua da saúde pública. Daí,
solicitei ao coordenador um curso. Foi nesse momento
que tive contato com profissionais voltados para a ques-
tão do alimento. Eu me interessei e não deixei mais essa
área. Implementei o primeiro Programa de Controle Sani-
tário de Alimentos em Supermercado no Brasil”, revela.
“Os tempos passados eram mais difíceis e sem as
tecnologias de hoje, mas tempo difíceis criam homens
fortes. Isso se reflete em algumas profissões que ficam
carentes de profissionais que atendam à vida rural”,
diz o médico-veterinário, que também trabalhou com
reprodução de fêmeas bovinas em Santa Catarina.
Pra quem quer se dedicar à segurança de alimen-
tos, Arimateia orienta: “O profissional precisa entender
de microbiologia e ter noção também de todos os pro-
cessos de boas práticas, da produção à fabricação. En-
quanto o médico cuida da doença, o médico-veteriná-
rio previne a doença. Ração para cães, açougue, água,
lixo e resíduo: tudo isso é oportunidade para você con-
trair e propagar doenças e contaminações”, reflete.
“O profissional do passado era mais persistente e
mais corajoso, pois havia mais dificuldades. Os médicos-
-veterinários devem ter a visão do crescimento voltado
ao desenvolvimento do país; ser atuantes e honrar sua
profissão, defendendo e atuando junto dos conselhos.”
ZOOTECNISTA NÚMERO 1
Primeiro zootecnista inscrito no Ministério da Edu-
cação (MEC), folha e livro de número 1, o gaúcho Pe-
dro Adair Fagundes dos Santos também foi o primeiro
profissional da Zootecnia a ocupar um cargo público. A
história dele é daquelas que rendem uma publicação
para ficar na cabeceira da cama de estudantes e pro-
fissionais do agro.
Formado na primeira turma de zootecnistas do
Brasil, figurou entre os primeiros profissionais inscritos
no Conselho Regional de Medicina Veterinária do Rio
Grande do Sul (CRMV-RS). A maior parte dos seus 53
anos de atuação é dedicada à genética e ao melhora-
mento animal. “Meu trabalho é ajudar a fazer animais
mais produtivos, eficientes e com atributos. Antiga-
mente, a gente ia ao mercado e, dificilmente, encon-
Arquivo
pessoal/Pedro
Adair
Arquivo
pessoal/José
Arimateia
T O zootecnista gaúcho Pedro Adair tem 53 anos de profissão e segue na
ativa atendendo em propriedades rurais
T Com 50 anos de atuação, Arimateia é responsável técnico em um estabe-
lecimento comercial do Rio Grande do Norte
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93
34
35. trava um produto de qualidade. Hoje, você encontra a
carne marmorizada com maciez e sabor com muita fa-
cilidade”, argumenta Fagundes, para quem os zootec-
nistas são os profissionais mais bem preparados para
trabalhar na produção animal.
Fagundes foi professor de ovinocultura na Facul-
dade de Zootecnia da PUC de Uruguaiana (RS), jurado
em concursos de animais domésticos em mais de 300
exposições e trabalhou como assessor técnico do es-
tado e em associações. Seu orgulho e amor à profissão
influenciou e deixou legado: dois dos seus três filhos
são zootecnistas. “Juntos, trabalhamos e aprendemos.
Minhas conquistas também foram graças ao apoio da
minha esposa, Joana, e da família”, conta, emocionado.
A disposição ao trabalho é de invejar. O físico ele
mantém com alimentação saudável, muita caminhada
e a correria do dia a dia. “Além de atuar em várias pro-
priedades no Rio Grande do Sul, às vezes, vou atender
no Paraná, em Tocantins e outros estados. No meu sí-
tio, procuro explorar a parte de agropecuária também,
ando muito e tenho criação de ovelhas e galinhas, en-
tão não paro”, relata o zootecnista.
Sua trajetória profissional mostra dinamismo e vi-
gor. Ingressou, por concurso, como técnico agrícola na
Secretaria de Agricultura do estado, em 1967, e cursou
faculdade na sua cidade natal, Uruguaiana (RS), a pri-
meira de Zootecnia do Brasil. “Os zootecnistas têm que
ter a vivência do campo. Sair e colocar a mão. Se tiver
que conter o animal, tem que saber como. Eu vejo, às
vezes, o profissional ter dificuldade de realizar alguma
atividade simples com o animal por falta de vivência. O
graduando tem que ter experiência e isso só se adqui-
re com estágio, na prática”, assinala.
SÓ O VENTO OUVE E LEVA MINHAS PALAVRAS
“Você vai entrar no transporte coletivo exarando
odor dos animais com os quais lidou. Por mais que
tenha tomado um vigoroso banho, ainda vai haver
resquícios, que nem mesmo um bom perfume pode
camuflar.” Foi essa sentença que Mitika Kuribayashi
Hagiwara ouviu de um professor de Biologia, no in-
terior paulista, ao lhe revelar que gostaria de cursar
Medicina Veterinária. Assim era a visão leiga sobre a
profissão, em 1950. Obstáculo? De jeito nenhum! O in-
teresse pela vida e saúde dos animais era muito maior
do que qualquer pedra no caminho. Com seu espírito
desafiador, tomou a decisão que mudaria sua vida.
A trajetória de Mitika possui inúmeras conquistas,
como especialização, mestrado e doutorado em Saúde
Pública Veterinária. O meio século de atividade profissio-
nal no exercício da clínica médica de pequenos animais,
do ensino e da pesquisa renderam-lhe dezenas de tra-
balhos publicados e centenas de palestras em congres-
sos nacionais e internacionais, além do reconhecimento
e da admiração de milhares de formandos em Medicina
Veterinária de várias universidades, particularmente, da
Universidade de São Paulo (USP), onde é professora ti-
tular aposentada e professora emérita do Departamento
de Clínica Médica da Faculdade de Medicina Veterinária
e Zootecnia. Ela leciona as matérias Clínica Médica de Pe-
quenos Animais e Patologia Clínica Veterinária.
“Quando encontro uma pedra no caminho, se ela
for instransponível, eu posso, simplesmente, contor-
ná-la e seguir em frente”, afirma. Apesar da altivez e
disciplina de uma mulher forte, de ascendência japo-
nesa, a médica-veterinária lembra que houve momen-
tos de insegurança na carreira, como, por exemplo, seu
primeiro atendimento clínico e suas primeiras cirurgias
de piometra e castração. “Eu estava sem o professor,
sem ninguém para me orientar”, lembra.
No entanto, Mitika aprendeu a transformar dificul-
dades em aprendizado e fortaleza. “O primeiro caso de
parvovirose, uma doença nova que estava dizimando
os cães no mundo inteiro, na década de 1970, tive de
pesquisar muito, vasculhar a literatura mundial, acom-
panhar a necropsia dos animais que morriam na mesa
de atendimento, até obter êxito no isolamento do vírus
que causava a doença”, relata.
Mitika conta que, após uma consulta de rotina, teve
a prova de que o seu esforço e dedicação à carreira não
eram em vão. A profissional abriu seu coração a uma
tutora: “Penso sempre no bem-estar do animal. Os con-
Arquivo
pessoal/Mitika
K.
Higiwara
T Professora da USP, Mitika Kuribayashi escolheu ser médica-veterinária na
década de 1950
Revista CFMV Brasília DF Ano XXIX nº 93 35
36. ceitos e a forma com que procuro exercer a profissão
nem sempre são compreendidos e sinto-me muitas ve-
zes sozinha no deserto e apenas o vento leva minhas
palavras”, disse. Como resposta, ouviu: “Pois então
você vai ter, a partir de agora, uma companhia no de-
serto. Essas palavras não serão palavras inúteis”. Nesse
dia, diz, “descobri que deixava um legado”.
Mitika também lembra saudosa de quando a re-
lação com o animal era mais próxima. Àquela época,
poucas clínicas possuíam equipamento de raios-X, não
havia disponibilidade de laboratório clínico e, muito
menos, de ultrassonografia Veterinária.
“Não havia muitos recursos tecnológicos. A con-
sulta era baseada na anamnese, no exame físico de-
talhado, por meio da cuidadosa inspeção, palpação,
percussão e auscultação. Com o histórico do paciente,
as alterações observadas no exame clínico e os conhe-
cimentos advindos do estudo e da experiência prévia,
era alcançado o diagnóstico e formulado o tratamento.
Nada de, simplesmente, aplicação de um protocolo te-
rapêutico!”, afirma.
Atualmente, o profissional tende a tratar apenas
as alterações observadas nos resultados dos exames,
e não o doente, analisa. “Falta sensibilidade e maior
contato com o animal para entender e reconhecer o
que acontece, realmente. E boa parte dos tutores já vai
à consulta com informações obtidas no Google”, diz.
Ao longo de sua carreira, Mitika passou por situa-
ções insólitas. Um homem levava, continuamente, um
pastor alemão para consulta. O animal apresentava fe-
bre recorrente, cuja origem nunca pôde ser determina-
da com os recursos disponíveis na ocasião. “Sentia-me
incompetente por não conseguir descobrir a causa da
hipertermia daquele cão”, descreve. Após um período
de ausência, o responsável retornou com o cão sadio,
sem febre, e revelou à médica-veterinária que o animal
havia sido curado por uma benzedeira. “Fiquei feliz
pelo animal, mas intrigada”, relembra. Após um mês,
um episódio macabro é noticiado na imprensa: “Aque-
le cão havia atacado e ferido gravemente uma pessoa
próxima, no próprio ambiente doméstico!”, espanta-se.
Por muito tempo, além da carreira, Mitika dedicou-
-se à família. Entre consultório, universidade e filhos,
não tinha tempo para si. “Só fui incluir exercícios fí-
sicos na minha vida depois dos 40 anos”, diz a profis-
sional, que sempre cuidou da alimentação e evitou ao
máximo tomar medicamentos.
“Com 60 anos, fui praticar natação, dança de salão
e pilates. Atualmente, caminho de três a cinco quilô-
metros por dia. Fiz a rota de Santiago de Compostela
para comemorar meus 75 anos”, conta, dando exemplo
de resiliência e disposição.
APRENDENDO COM OS MAIS JOVENS
“A Medicina Veterinária é uma carreira sem fim”,
diz, empolgado, o médico-veterinário baiano Antônio
Valentim Fidalgo. A fala animada não deixa transpa-
recer os incômodos causados por algumas hérnias de
disco, aparentando a disposição do jovem recém-for-
mado de 49 anos atrás, na Universidade Federal da
Bahia (Ufba).
A retórica simpática e modesta do profissional
tenta esconder sua experiência e autoridade na téc-
nica Veterinária. “Continuadamente aprendo com os
colegas mais novos. Tenho a perspicácia de observar,
analisar e a força de vontade de aprender com eles. Os
avanços na profissão têm sido muitos, principalmente
com tecnologia.”
Apesar da humildade, Fidalgo sabe o seu valor
para a defesa sanitária animal brasileira, especialmen-
te a epidemiologia. Ele atuou em frentes importantes,
como raiva, brucelose e febre aftosa, cujo trabalho de
sorologia foi coordenado por ele, na Bahia.
Sua capacidade como multiplicador de conhe-
cimento o forçou a se “desaposentar” da Agência de
Defesa Agropecuária do estado da Bahia (Adab), onde
foi diretor por dois anos. Ele continua se dedicando às
Arquivo
pessoal/Antônio
Valentim
T Simpático e disposto, Antônio Valentim aposentou-se da Adab, mas segue
dando aulas e palestras
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