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Deixei-me abraçar pelo teu corpo, que cuidei meu.
Inundaste-me de felicidade, para depois me sepultares
na saudade.
És como a água fresca que se me escapa entre os
dedos.
Falo-te com a toada do silêncio
e a tua ausência fria
responde
gritando que não és meu.
E aquela memória de felicidade, materializa-se num
lago de águas envenenadas
que torna o amor fatal.
Se os teus braços pudessem abraçar o meu desnorte.
Se o teu olhar alcançasse o aceno da minha saudade.
Se a tua voz pudesse acordar esta insónia.
Se a tua indiferença pudesse arrefecer o meu desejo.
Não teria morrido o jardim,
aquele banco vazio
não seria o nosso altar
e o Amor o Cristo crucificado.
Aquele menino que brincava ao pião quando me
sorriste
é agora querubim de pedra neste jazigo.
Essa chave que tens na mão,
parecia a única capaz de abrir as portas do meu
sepulcro,
mas, o medo não te deixou alcançar a fechadura
e partiste.
Enquanto olho o teu vulto que se afasta,
a minha boca não se abre para que não corras
e eu contemplo a tua forma,
cada vez mais indefinida entre lápides e
mausoléus,
cada vez mais desoladamente nítida no meu
coração.
Há tanto tempo que corria
que já não sabia do que fugia.
De olhos fechados
nada a magoaria,
Sempre a correr,
de nada se lembraria
Sozinha,
nunca pararia.
Fábula
Era uma vez uma fada-da-praia que vivia melancólica. Ela sonhava
com um jardim encantado onde viviam violetas capazes de seduzir
o orvalho, amores-perfeitos de cujas pétalas escorria o mel que
alimentava cupidos. Hortências que, pelo crepúsculo fora,
cantavam enlouquecendo os malmequeres que se desprendiam da
terra e subiam às estrelas, vibrando as raízes em frenesim.
Por baixo da acácia, cresciam lírios que passavam as tardes a
lamentar a sua palidez de sentimentos.
Nesse jardim havia um lago de bronze onde se afogavam as
lágrimas do sol e banhavam os anjos que se demodavam em
melodias de voluptuosa redenção.
Seria lá que ela o veria pela primeira vez. Deitado sobre a erva
macia, alimentado pelas cegonhas, protegido pelos lobos,
acalentado pelos gatos. E eram felizes os seus olhos que seguiam
as nuvens apressadas pelo vento quente de Setembro.
As serpentes sibilavam ao sentir o seu aroma, mas, ao verem os
seus olhos fugiam não fosse a luz traga-las e transfoma-las em
anjos caídos porque as desgraçadas não sabem amar.
Ao vê-lo, a fada-da-praia, quis fazer-se pequenina para caber no
seu coração, dissolver-se no seu sangue.
Passar a língua pelo seu falo, soprar-lhe com força na boca e
encher-lhe os pulmões do seu desejo. Beijar-lhe os dedos, um a
um, e enlaçar-lhe o coração com uma corrente de amor... para
sempre.
Anunciou a sua partida para a descoberta que, afinal, não viria a ser mais do que um
desengano do seu karma.
Um pé à frente do outro, subia a avenida e ia tecendo propósitos que mais tarde se
concretizariam em cinzas. Afinal, até onde podia ir a realidade? Em que ponto é que
o sonho lava as memórias e os gestos para se deixar de sentir?
Estava uma noite quente e peganhenta que a agarrou ao alcatrão, forçando-a a lutar
com as pedras da calçada para que não lhe roubassem os sapatos de salto agulha.
Encandeada pelas luzes das ambulâncias e dos neons, subiu o colarinho da blusa,
esfregou as mãos e poliu a biqueira dos sapatos no focinho de um cão morto.
O fumo dos Gitanes, incenso peçonhento, levava embrulhado o ânimo para
estraçalhar vidraças e dar os estilhaços a comer a quem a fez assim.
Avançava, com uma cadência firme que escondia a dor que lhe tomava as pernas,
tal como as costas direitas escondiam o nojo e a vergonha.
Sentou-se num banco do Parque Eduardo VII, amolecendo-o com o calor que o
corpo timidamente emanava. Tentou lembrar-se de como se chamava e o Marquês
começou a rosnar, assustando o leão que fugiu para o Chão Salgado.
Lisboa já não era menina e moça, já não comprava peixe à varina nem cheirava
bem. Pintava-se com maquilhagem ordinária e arrancava-lhe à dentada a esperança
que ela sonhou.
Não me mintas, crioula badia.
Sei muito bem qual é a cor dos teus olhos,
por isso não me queiras dizer que são azuis.
Nada em ti é líquido, nem mesmo as lágrimas.
Tu és luar de pedra com um coração de lava.
És o calor fértil em cima do mar,
a melodia da morna,
a paixão do batuko,
as pedras tristes do caminho.
Bar no cais do Mindelo
Há um canto vazio lá no canto, escuro e fresco.
Puseram lá uma mesa que está parada,
aparafusada ao chão, naquela esquina da existência,
como se fora o mar alto.
Serviram-me sem pressa, porque aqui a mudança continua à espera
de um qualquer barco grande
onde também tu havias de partir
para eu, aqui sentada,
embarcar na mudança.

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Abraço saudade amor

  • 1. Deixei-me abraçar pelo teu corpo, que cuidei meu. Inundaste-me de felicidade, para depois me sepultares na saudade. És como a água fresca que se me escapa entre os dedos. Falo-te com a toada do silêncio
  • 2. e a tua ausência fria responde gritando que não és meu. E aquela memória de felicidade, materializa-se num lago de águas envenenadas que torna o amor fatal.
  • 3. Se os teus braços pudessem abraçar o meu desnorte. Se o teu olhar alcançasse o aceno da minha saudade. Se a tua voz pudesse acordar esta insónia. Se a tua indiferença pudesse arrefecer o meu desejo. Não teria morrido o jardim, aquele banco vazio não seria o nosso altar
  • 4. e o Amor o Cristo crucificado.
  • 5. Aquele menino que brincava ao pião quando me sorriste é agora querubim de pedra neste jazigo. Essa chave que tens na mão, parecia a única capaz de abrir as portas do meu sepulcro, mas, o medo não te deixou alcançar a fechadura e partiste. Enquanto olho o teu vulto que se afasta, a minha boca não se abre para que não corras e eu contemplo a tua forma, cada vez mais indefinida entre lápides e mausoléus, cada vez mais desoladamente nítida no meu coração.
  • 6. Há tanto tempo que corria que já não sabia do que fugia. De olhos fechados nada a magoaria, Sempre a correr, de nada se lembraria Sozinha, nunca pararia.
  • 7. Fábula Era uma vez uma fada-da-praia que vivia melancólica. Ela sonhava com um jardim encantado onde viviam violetas capazes de seduzir o orvalho, amores-perfeitos de cujas pétalas escorria o mel que alimentava cupidos. Hortências que, pelo crepúsculo fora, cantavam enlouquecendo os malmequeres que se desprendiam da terra e subiam às estrelas, vibrando as raízes em frenesim. Por baixo da acácia, cresciam lírios que passavam as tardes a lamentar a sua palidez de sentimentos.
  • 8. Nesse jardim havia um lago de bronze onde se afogavam as lágrimas do sol e banhavam os anjos que se demodavam em melodias de voluptuosa redenção. Seria lá que ela o veria pela primeira vez. Deitado sobre a erva macia, alimentado pelas cegonhas, protegido pelos lobos, acalentado pelos gatos. E eram felizes os seus olhos que seguiam as nuvens apressadas pelo vento quente de Setembro. As serpentes sibilavam ao sentir o seu aroma, mas, ao verem os seus olhos fugiam não fosse a luz traga-las e transfoma-las em anjos caídos porque as desgraçadas não sabem amar. Ao vê-lo, a fada-da-praia, quis fazer-se pequenina para caber no seu coração, dissolver-se no seu sangue. Passar a língua pelo seu falo, soprar-lhe com força na boca e encher-lhe os pulmões do seu desejo. Beijar-lhe os dedos, um a um, e enlaçar-lhe o coração com uma corrente de amor... para sempre.
  • 9. Anunciou a sua partida para a descoberta que, afinal, não viria a ser mais do que um desengano do seu karma. Um pé à frente do outro, subia a avenida e ia tecendo propósitos que mais tarde se concretizariam em cinzas. Afinal, até onde podia ir a realidade? Em que ponto é que o sonho lava as memórias e os gestos para se deixar de sentir? Estava uma noite quente e peganhenta que a agarrou ao alcatrão, forçando-a a lutar com as pedras da calçada para que não lhe roubassem os sapatos de salto agulha. Encandeada pelas luzes das ambulâncias e dos neons, subiu o colarinho da blusa, esfregou as mãos e poliu a biqueira dos sapatos no focinho de um cão morto. O fumo dos Gitanes, incenso peçonhento, levava embrulhado o ânimo para estraçalhar vidraças e dar os estilhaços a comer a quem a fez assim. Avançava, com uma cadência firme que escondia a dor que lhe tomava as pernas, tal como as costas direitas escondiam o nojo e a vergonha. Sentou-se num banco do Parque Eduardo VII, amolecendo-o com o calor que o corpo timidamente emanava. Tentou lembrar-se de como se chamava e o Marquês começou a rosnar, assustando o leão que fugiu para o Chão Salgado. Lisboa já não era menina e moça, já não comprava peixe à varina nem cheirava bem. Pintava-se com maquilhagem ordinária e arrancava-lhe à dentada a esperança que ela sonhou.
  • 10. Não me mintas, crioula badia. Sei muito bem qual é a cor dos teus olhos, por isso não me queiras dizer que são azuis. Nada em ti é líquido, nem mesmo as lágrimas. Tu és luar de pedra com um coração de lava. És o calor fértil em cima do mar, a melodia da morna, a paixão do batuko, as pedras tristes do caminho.
  • 11. Bar no cais do Mindelo Há um canto vazio lá no canto, escuro e fresco. Puseram lá uma mesa que está parada, aparafusada ao chão, naquela esquina da existência, como se fora o mar alto. Serviram-me sem pressa, porque aqui a mudança continua à espera de um qualquer barco grande onde também tu havias de partir para eu, aqui sentada, embarcar na mudança.