O documento descreve a solidão e sofrimento de uma pessoa que perdeu a alegria de viver. Apesar da tristeza, a lua dentro de casa traz algum conforto, iluminando a escuridão. O documento também descreve cenas de uma paisagem outonal e uma mulher que adormece sonhando com o mar, aguardando um amor que não chega.
1. Hoje, já não posso dizer que anda um espirito comigo.
Já não me arrasta em todas as direcções deixando-me à porta de nenhures,
com as mãos cheias de angústias.
Hoje já não habitam aqui sonhos mas dentro de casa tenho a lua.
É ela que mantém direitos os móveis que um dia gostava de comprar,
dilui a miséria que entra pelas janelas, amacia a fome, rasga o cerco da insularidade.
Faz da minha casa um altar
onde o Piloto ora,
leal, devoto.
2. Gostava de correr daqui para fora nem que fosse de rastos mas,
espetam-se-me na vontade os espinhos que largas pelo caminho.
Gela-se-me o sangue na falta de um abraço e chove.
Afinal sofrer tornou-se uma necessidade quando viver se tornou um vicío.
Só não entendo para quê a chuva neste vale de lágrimas.
3. Pôr-do-sol em Santiago, Setembro.
Foram-se as chuvas e fazia quase frio. A cor era quase a do seu sangue,
o tempo quase de melancolia e a vontade era precisamente de terminar algo que nunca existira.
Foi o cansaço que a impulsionou desalmadamente até chegar a casa.
Perdeu os sapatos na correria e, quando vislumbrou a porta da sua casa amarela,
lançou-se como uma pantera ferida, desfalecendo ao transpor a porta.
Quando acordou, viu que tinha esquecido o corpo na rua e algum cão o tinha levado.
Ficou ali, inanimada entre os móveis, as vidraças e as memórias da beatitude.
Ainda hoje lá está, sempre a aguardar o pôr-do-sol.
4. Antes desse dia, sim, antes a terra era verde e azul,
não tinha todas as cores do arco-íris.
Almoçou tarde, sentia na pele as línguas efervescentes do sol
que faziam da paisagem um bailado de véus.
A sesta era inevitável. Atirou-se para um monte de palha esquecido à sombra de umas acácias
e abriu os braços, como se assim o universo se tornasse infinito,
e adormeceu, embalada pela memória do mar.
Em sonhos, ouvia-o de encontro à falésia, tal como o desejo de encontro à sua pele.
Ali, naquela aridez escaldante, era um polvo na maré baixa,
aguardando a vaga certa, expectante, curioso.
Com a volúpia dos seus tentáculos excitava o mar, que ejaculava espuma efervescente,
oferecendo ao mundo o perfume da maresia.
Onde estava esse amante sonhado, que cobardemente
enviara o mar em seu nome?
Decerto virá envolto na maresia.