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Motivação judicial sob a perspectiva ética
Paulo Mário Canabarro Trois Neto
Juiz Federal
Publicado em: Princípios de la ética judicial iberoamericana: Motivación
Judicial. “Motivación judicial bajo la perspectiva ética”, pp. 5-135. Série Monografías
Premiadas, vol. 4. México: Suprema Corte de la Justicia de la Nación; Cumbre
Judicial Iberoamericana; Comisión Iberoamericana de Ética Judicial, 2012.
Sumário: Introdução. 1 Dever de motivação e excelência judicial. 1.1 A razão de
ser do dever de motivação. 1.2 Estrutura do dever de motivação. 2 O dever de motivação na
teoria da argumentação jurídica. 2.1 A regra da universalizabilidade. 2.2 O caráter dialogal
da correção argumentativa. 3. Abrangência do dever de motivação. 3.1. Motivação das
questões de direito. 3.1.1 O uso dos cânones de interpretação. 3.1.2 A argumentação
dogmática. 3.1.3 A vinculação aos precedentes. 3.2 Motivação das questões de fato. 3.2.1
Critérios de confirmação e refutação de uma hipótese fática. 3.2.2 A estrutura da
fundamentação sobre a matéria fática. 4. Relação do dever de motivar com outros deveres
éticos do juiz. 4.1 Independência e imparcialidade. 4.2. Prudência, justiça e equidade. 4.3
Conhecimento e capacitação. 4.4. Responsabilidade institucional. 4.5 Diligência.
Conclusão. Referências bibliográficas.
Palavras-chave: motivação – justificação – ética judicial – argumentação jurídica
– teoria do discurso.
Resumo: A pretensão de correção do direito, no âmbito de um arranjo
constitucional que proíbe o exercício arbitrário do poder, exige que as decisões judiciais
sejam motivadas de acordo com critérios de correção argumentativa. O dever de motivar,
estruturado como um mandamento de otimização, ordena a apresentação das razões dotadas
da maior força de justificação possível. O inevitável entrelaçamento do dever de motivação
com outras exigências éticas impõe aos juízes que, na busca de sua perfeição profissional,
se esforcem em promover a concordância prática de todas as virtudes que integram o ideal
de excelência judicial.
2
Introdução
Neste trabalho, propõe-se investigar o dever de motivação sob o enfoque da ética
judicial. O objeto do presente estudo consiste, precisamente, em expor o fundamento, o
conteúdo e as implicações do dever de motivação, não sob a perspectiva do juiz medíocre,
que se contenta com o mínimo, mas sob a perspectiva do melhor juiz que se pode conceber.
A importância do tema pode ser comprovada pela introdução, no Código Modelo
Iberoamericano de Ética Judicial1
, de disposições das quais se extrai a alocação da
motivação das decisões do Poder Judiciário no quadro das exigências que formam o ideal
de conduta do juiz.
Emprega-se a expressão motivação, para os fins deste trabalho, para designar a
apresentação de fundamentos pelos quais uma determinada asserção se justifica
racionalmente2
. Com tal conceito se afasta qualquer significação psicológico-causal que a
locução motivação poderia suscitar em outros contextos. Essa opção terminológica vai ao
encontro da utilizada no Código Modelo, que enuncia, em seu art. 19: “Motivar implica
exprimir, de maneira ordenada e clara, razões juridicamente válidas, aptas para justificar a
decisão”.
A reconhecida disseminação da ideia de que o dever de motivar toma parte no
desempenho ótimo da prestação jurisdicional permite a opção metodológica, ora adotada,
de não limitar a abordagem do tema a um sistema judicial específico. Pretende-se que as
conclusões obtidas sejam aplicáveis a qualquer organização judiciária estruturada sob o
signo da limitação do poder estatal e da proteção de direitos fundamentais.
No Capítulo 1, justifica-se a inserção do dever de motivação no arcabouço ético-
jurídico da função judicial, tanto sob os aspectos históricos e filosóficos, como sob o
aspecto de sua aplicação prática. O Capítulo 2 trata das exigências discursivas da motivação
judicial no âmbito da teoria da argumentação jurídica contemporânea. O Capítulo 3 estuda
o modo como a exigência de motivar incide nas questões de direito e nas questões de fato.
O Capítulo 4, por fim, propõe a aproximação do dever de motivação com outros deveres
éticos judiciais.
1 Dever de motivação e excelência judicial
A ética judicial tem por propósito indicar ao juiz exigências que o dirigirão a
alcançar a plenitude ou perfeição em sua atividade, alijando-o tanto da “ruindade” judicial
como da “mediocridade” judicial3
. Perguntar pela ética judicial é, portanto, interrogar sobre
1
O Código Modelo Iberoamericano de Ética Judicial foi aprovado na VIII Cúpula Iberoamericana de
Presidentes de Cortes Supremas e Tribunais Supremos de Justiça realizada em Santo Domingo (República
Dominicana), entre 21 e 22 de junho de 2006. Doravante será chamado, neste trabalho, apenas de Código
Modelo.
2
O presente trabalho não faz distinção entre as expressões motivação e fundamentação. Quando houver
remissão à opiniões doutrinárias, será observada a nomenclatura utilizada pelos autores citados.
3
VIGO, Rodolfo Luis. “Ética Judicial. Su especificidad y responsabilidad”. Revista CEJ n. 32, v. 10, 2006.
pp. 12-25, aqui p. 16.
3
um modelo de juiz4
. Embora haja reclamos éticos judiciais de alcance universal, que podem
ser considerados constitutivos para a função, as exigências relativas à excelência judicial
variam no tempo e no espaço, conforme a cultura jurídica em que se inserem5
.
A tipologia do Estado Liberal supunha uma nítida divisão entre criação e aplicação
do direito. A fórmula montesquiana da separação radical de poderes, em que o juiz era nada
mais que a “boca da lei”, partia da ideia de um direito completo e coerente, capaz de
possibilitar a resolução de todos os casos mediante aplicação das normas gerais. Essa
pretensão de operar o direito somente com o direito, sem abertura às dimensões éticas,
políticas, econômicas e culturais6
, tem como marco a codificação napoleônica, que foi o
primeiro intento sério de lograr uma legislação completa e coerente sobre uma determinada
matéria7
.
Do Estado Liberal forma parte um modelo de juiz que se disseminou na Europa ao
longo do século XIX e permaneceu substancialmente invariável até meados do século XX.
Seus traços constitutivos estão predeterminados pelo controle ideológico, pela seleção
endogâmica no momento do acesso e pela opção cultural imperante em matéria jurídica,
própria do positivismo dogmático. O juiz resultante desse modelo expressa em si mesmo
uma curiosa síntese das duas tipologias da taxonomia weberiana: tecnicamente, ele se
apresenta como um operador legal-racional, um aplicador técnico do direito; eticamente ele
tem uma notável proclividade ao integrismo religioso-moral.8
O juiz do modelo decimonônico é um operador marcadamente autoritário9
. A
concepção de que os juízes não criam o direito, vazada no art. 5 do Código de Napoleão,
longe de limitar o poder judicial, apenas o reforçava10
, por conferir-lhe uma aura
infalibilidade ou certeza que ele nunca poderia ter. Uma deformação similar também podia
ser detectada quanto às questões fáticas: a íntima convicção, opção alternativa à prova
taxada, converte-se nas mãos desse juiz em uma peculiar garantia de irracionalidade e de
imunidade frente a possíveis controles11
.
4
IBAÑEZ, Perfecto Andrés. “Ética de la función de juzgar”. Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia Penal:
Criminologia, Teoría y Praxis n. 1, v. 1, 2002. pp. 55-68, aqui p. 59.
5
VIGO, Rodolfo Luis. “Ética Judicial. Su especificidad y responsabilidad”, p. 16.
6
VIGO, Rodolfo Luis. Ética judicial e interpretación jurídica. Edición digital: Alicante: Biblioteca Virtual
Miguel de Cervantes, 2009. Edición digital a partir de Doxa: Cuadernos de Filosofía del Derecho, núm. 29
(2006), pp. 273-294, aqui p. 274
7
Nesse sentido, BULYGIN, Eugenio. “Los jueces ¿crean derecho?” Edición digital: Alicante: Biblioteca
Virtual Miguel de Cervantes, 2005. Título de serie: Poder judicial y democracia. Edición digital a partir de
Isonomía: Revista de Teoría y Filosofía del Derecho, núm. 18 (abril 2003), pp.6-25, aqui pp. 8-9. A cultura
jurídica dessa fase pode ser sintetizada na lição de Laurent: “Os códigos não deixam nada ao arbítrio do
intérprete; este já não tem por missão fazer o direito: o direito já está feito. Não existe incerteza, pois o direito
está escrito em textos autênticos.” Cours élementaire de droit civil, t. I, p. 9. Apud VIGO, Rodolfo Luis.
Interpretação jurídica: do modelo juspositivista-legalista do século XIX às novas perspectivas. Tradução de
Susana Elena Dalle Mura. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 38.
8
IBAÑEZ, Perfecto Andrés. “Ética de la función de juzgar”, pp. 59-60.
9
IBAÑEZ, Perfecto Andrés. “Ética de la función de juzgar”, p. 60.
10
TROPER, Michel. El poder judicial y la democracia. Edición digital: Alicante: Biblioteca Virtual Miguel
de Cervantes, 2005. Título de serie: Poder judicial y democracia. Edición digital a partir de Isonomía : Revista
de Teoría y Filosofía del Derecho, núm. 18 (abril 2003), pp.47-75, aqui p. 58.
11
IBAÑEZ, Perfecto Andrés. “Ética de la función de juzgar”, p. 60.
4
Tal modelo de juiz foi fortemente questionado, a partir do segundo pós-guerra,
tanto no âmbito político, por meio de um constitucionalismo renovado, como nos meios
culturais dos próprios operadores jurídicos12
, notadamente pelo ocaso do positivismo
jurídico.
Com efeito, o Estado de Direito Constitucional de nossos dias caracteriza-se por
uma relativa autonomização dos distintos aspectos do direito que até então estavam
reduzidos à lei13
. Em que pese o ideal da certeza jurídica, a existência de uma certa
indeterminação do direito já não pode mais ser disfarçada14
. Disputas acerca da
interpretação dos materiais jurídicos, da avaliação dos elementos de prova e da
caracterização adequada dos fatos tidos como provados não são uma excrescência
patológica do sistema; elas são um elemento integrante de uma ordem jurídica que esteja
funcionando de acordo com os ideais do Estado de Direito15
. Disso decorre o
reconhecimento de que proposições jurídicas possuem um caráter derrotável ou
excepcionável (defeasible), que não se deve apenas à textura aberta do direito, mas ao
próprio caráter argumentativo do raciocínio jurídico16
.
O inevitável reconhecimento de um espaço à criatividade judicial não significa,
contudo, que os juízes sejam os novos “senhores do direito”; eles são, mais exatamente, os
garantes da complexidade estrutural do direito no Estado Constitucional, é dizer, os
12
IBAÑEZ, Perfecto Andrés. “Ética de la función de juzgar”, p. 60.
13
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. Tradução de Marina Gascón Abellán.
4ª edição. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 40
14
Essa ideia de uma relativa indeterminação do direito, registre-se, já era aceita pelos dois expoentes
máximos da fase final do positivismo jurídico. Reconhecendo a impossibilidade de a lei determinar
completamente o conteúdo da sentença judicial, lecionava Kelsen: “Tem sempre de ficar uma margem, ora
maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao
ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por
este ato”. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 388. Também Hart admitia que, dada a textura aberta do direito, haveria “áreas de conduta
em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais ou pelos funcionários, os
quais determinam o equilíbrio, à luz das circunstâncias, entre interesses conflituantes que variam em peso, de
caso para caso”. HART, Herbert L. A. O conceito de direito. 4ª edição. Tradução de A. Ribeiro Mendes.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 148.
15
MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito. Trad. Conrado Hubner Mendes. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2008, pp., 36-7.
16
A ideia de defeasibility vem de Hart (“The Ascription of Responsability and Rights”, Proceedings of
Aristetelian Society 49 (1948-1949), pp. 171-94). Embora tal conceito tenha sido renegado por seu autor em
outra obra (Punishment and Responsability. Oxford: Clarendon Press, 1968, Prefácio), foi reabilitado
posteriormente por G. P. Baker (“Defeasibility and Meaning”. Em: P. M. S. Hacker e J. Raz (orgs.) Law,
Morality and Society, Oxford: Clarendon Press, 1977, pp. 26-57). Conferir em MACCORMICK, Neil.
Retórica e Estado de Direito, p. 310. Outros desenvolvimentos sobre o caráter derrotável ou excepcionável do
raciocínio jurídico são atribuídos a G. Sartor (“Defeasibility in Legal Reasoning”. Em Z. Bankowski et al.
(eds.) Informatisc and the foundations of legal reasoning. Dordrecht/Boston/London: Kluwer, pp. 119-
57.1995), H. Prakken (Logical tools for modelling legal argument. A study of defeasible reasoning in law.
Dordrecht/Boston/London: Kluwer, 1997) J. C. Hage e A. Peczenik (“Laws, morals and defeasibility”. Ratio
Juris 13, pp. 305-25. 2000) e a R. Tur (“Defeasibilism”, Oxford Journal of Legal Studies 21, 2001, pp. 355-
68). Apud BAYÓN, Juan Carlos. “¿Por qué es derrotable el razonamiento jurídico?” Edición digital: Alicante:
Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2005. Série: Sobre el razonamiento jurídico. Edición digital a partir
de Doxa: Cuadernos de Filosofía del Derecho, núm. 24 (2001), pp. 35-62, aqui p. 35.
5
garantes da necessária e dúctil coexistência entre lei, direitos e justiça.17
O direito passa a
ser visto como um processo de concreção ou determinação crescente do qual participam
vários atores18
. Nessa mudança de paradigma do operar judicial está contida uma nova ética
da função judicial: o juiz do poder dá passo a um juiz dos direitos19
.
Como a legitimidade daqueles que operam a relevante função de dizer o direito em
casos concretos não é de origem, mas de exercício, põe-se a necessidade do
estabelecimento de certas exigências relativas ao modo como essa função deve ser
desempenhada. O juiz do modelo constitucional não pode ser nem um oráculo, nem uma
pitonisa, senão um operador racional20
, que motiva suas decisões com base em argumentos
dotados de validez intersubjetiva. Se motivar, conforme doutrina de Letizia Gianformaggio,
significa justificar ou, mais precisamente, justificar-se, dar razões à aceitabilidade do
próprio trabalho, a exigência de motivação pressupõe a admissão, em linha de princípio, da
legitimidade das críticas potenciais e da submissão do poder a uma forma de controle21
.
Uma certa margem de apreciação judicial, tanto na interpretação do direito como na fixação
formal dos fatos, conecta-se, assim, à exigência de que essa relativa liberdade seja usada
com racionalidade. E apenas com a transparência da justificação da decisão judicial essa
conciliação entre razão e liberdade pode ser obtida.
Uma vez admitido que “onde há razão e liberdade humana, cabe o juízo ético”22
, o
dever de motivar assume inegável importância na ética judicial. A aceitabilidade do
exercício ao mesmo tempo livre e racional da atividade do juiz depende da qualidade das
razões apresentadas em favor da solução que, dentre outras possíveis, foi a escolhida para
resolver o caso levado ao Judiciário. Que a obrigatoriedade da motivação judicial esteja
positivada na maioria dos ordenamentos jurídicos nacionais, em alguns casos até mesmo no
plano constitucional23
, não fala contra a relevância da perspectiva ética: o direito e suas
exigências, como se sabe, resultam insuficientes para o fim de alcançar o melhor juiz
possível para a sociedade em que este historicamente presta seu serviço24
. A projeção ética
do dever de motivação surge, então, em complemento ao aspecto estritamente jurídico,
como um meio de obter a excelência da justificação judicial, afastando a resignação com a
motivação mínima ou medíocre.
17
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil, p. 153
18
VIGO, Rodolfo Luis. Interpretação jurídica: do modelo juspositivista-legalista do século XIX às novas
perspectivas, p. 274.
19
IBAÑEZ, Perfecto Andrés. “Ética de la función de juzgar”, p. 61.
20
IBAÑEZ, Perfecto Andrés. “Ética de la función de juzgar”, p. 64.
21
GIANFORMAGGIO, Letizia. “Modelli di ragionamento giuridico. Modello deduttivo, modello indutivo,
modello retorico”. U. Scarpelli (org.). La teoria generale del diritto. Problemi i tendenze attuali. Studi
dedicati a Norberto Bobbio Milano: Edizione di Comunità, 1983, p. 136. Apud IBAÑEZ, Perfecto. Valoração
da prova e sentença penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 107.
22
VIGO, Rodolfo Luis. “Ética Judicial. Su especificidad y responsabilidad”, p 17.
23
Dentre as constituições que preveem o dever judicial de motivação estão a Constituição mexicana de 1917
(art. 16, aplicável às autoridades judiciárias), a Constituição italiana de 1947 (art. 111, § 1º), a Constituição
portuguesa de 1974 (art. 205, § 1º), a Constituição espanhola de 1978 (art. 120, § 3º), a Constituição brasileira
de 1988 (art. 93, IX), a Constituição peruana de 1993 (art. 139, § 5º), a Constituição belga de 1994 (art. 93, §
3º) e a Constituição grega de 1974, reformada em 1986 (art. 149).
24
VIGO, Rodolfo Luis. “Ética Judicial. Su especificidad y responsabilidad”, p. 24.
6
1.1 A razão de ser do dever de motivação
O Código Modelo dispõe, em seu art. 18, que a obrigação de motivar as decisões
judiciais está orientada para “assegurar a legitimidade do Juiz, o bom funcionamento de um
sistema de impugnações processuais, o adequado controle do poder do qual os juízes são
titulares e, em último caso, a justiça das resoluções judiciais”.
Alude-se, no dispositivo transcrito, às duas funções que, consoante a doutrina, são
cumpridas pelo dever de motivação. A instrumentalização do bom funcionamento do
sistema de impugnações diz respeito à função endoprocessual da motivação, já que o
conhecimento dos motivos da decisão facilita a individualização – e a correção, em grau de
recurso – de possíveis erros cometidos pelo juiz. Já o controle do poder, a asseguração da
legitimidade do juiz e a busca pela justiça referem-se à função extraprocessual da
motivação.25
Esta última função é a que, com mais intensidade, interessa à abordagem do
dever de motivação sob o prisma da ética judicial.
A obrigatoriedade das decisões judiciais é condição para o funcionamento dos
órgãos jurisdicionais. O julgador tem por trás de si todo o aparato coercitivo do Estado para
fazer com que elas sejam acatadas. Contudo, a questão de por que, em um Estado
constitucional, uma decisão judicial deve ser obedecida, pede uma resposta que vai além da
possibilidade de uso do aparelho de coerção estatal. Essa obediência pode ser imposta por
meio da força, mas não se trata de uma força qualquer, e sim de uma força legítima26
.
Coloca-se, então, o problema de como se justifica a legitimidade das decisões judiciais e da
conseqüente possibilidade de fazê-las serem cumpridas por meios coercitivos. Rejeitando o
positivismo jurídico, pelo qual o direito seria composto apenas de fatos sociais (comando e
eficácia), essa justificação apenas dá bom resultado quando a tal dimensão real ou fática
reconhecida pelos positivistas se acrescenta uma dimensão ideal ou discursiva de correção,
cujo principal elemento é a justiça27
. A monopolização do uso autorizado da força somente
pode ser aceita e realizada de modo efetivo se se concedem às partes certas garantias de
obtenção de decisões corretas28
. A legitimidade das decisões judiciais reside, portanto, na
pretensão de correção que subjaz o exercício do poder judicial.
Que a decisão judicial promova uma pretensão de correção significa, primeiro, que
a ela se une uma afirmação implícita de sua correção quanto ao conteúdo e ao
procedimento; segundo, que ela abarca uma garantia de fundamentabilidade por meio da
qual essa correção pode ser controlada; terceiro, que ela se faz acompanhar da esperança do
reconhecimento de sua correção sob o ponto de vista do sistema jurídico respectivo.29
Abrir
25
Sobre a função endoprocessual e extraprocessual da motivação, conferir: TARUFFO, Michele. “La
motivazione della sentenza”. Genesis – Revista de Direito Processual Civil. Curitiba: Gênesis, n. 31, p. 177-
185, janeiro/março 2004.
26
BAEZ SILVA, Carlos. “La motivación y la argumentación en las decisiones judiciales”, Revista Del
instituto de la Judicatura Federal n. 13, México, 2003, pp. 107-13, p. 112.
27
ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 9.
28
HABERMAS, Jürgen. Direito e democaracia entre facticidade e validade. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2003, p. 295.
29
ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo, pp. 20-1 e 23.
7
mão da pretensão de correção permitiria aceitar que os provimentos jurisdicionais possam
se apoiar em manipulações exitosas e convicções irracionais. O lugar da pretensão de
correção, assim, poderia ser ocupado por algo como uma “pretensão de poder”30
.
A concepção de decisão judicial ora defendida tem conseqüências relevantes
quanto ao modo de se compreender o dever de motivação imposto aos órgãos jurisdicionais
no Estado de Direito. A exigência de motivar busca atender ao ideal de que o processo
judicial, muito além de simplesmente absorver tensões sociais e garantir a ordem social31
,
cumpre também o papel de estabelecer soluções aceitáveis do ponto de vista da correção
jurídica. O direito de agir em juízo não é o de obter uma decisão qualquer32
, pois o dever do
Estado de tratar seus cidadãos de forma racional, conforme o mandamento da dignidade
humana, abrange o dever de apresentar as razões que apoiam uma intervenção nos
interesses de um indivíduo33
. A legitimidade da decisão judicial é, por isso, um assunto de
justificação do exercício do poder no caso concreto34
.
Vale lembrar que o controle do discurso do juiz, no marco da racionalidade legal,
não é apenas um controle de procedência externa, senão que também se projeta em face do
próprio juiz, comprometendo-o a não aceitar acriticamente as “perigosas sugestões da
certeza subjetiva”35
Se não é possível negar que fatores emotivos e ideológicos possam ter
alguma influência na solução do caso, é possível defender que a consciência do dever de
justificação favorece a que o juiz, na expectativa de uma aceitação intersubjetiva de sua
atividade, condicione a formulação da própria decisão, submetendo esta a controles
racionais e jurídicos36
. A controlabilidade do discurso por meio da exigência de argumentos
práticos e jurídicos adequados contribui, assim, para que a afirmação sobre os enunciados
fáticos ocorra apenas com base em razões confessáveis37
e, portanto, aptas a serem tidas
como corretas.
30
ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo, p. 24. Transcreve-se, a propósito, o seguinte trecho: “Nós
podemos tentar despedir as categorias da verdade, da correção e de objetividade. Se isso desse-nos bom
resultado, nosso falar e nosso atuar, porém, seriam algo essencialmente diferente como é agora. O preço não
seria só alto. Ele compor-se-ia, em um certo sentido, de nós mesmos.” (Obra citada, pp. 24-5)
31
ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1989,
p. 210. O autor refere-se às insuficiências da teoria da legitimação pelo procedimento de Niklas Luhmann
(Legitimation durch Verfahren, p. 121). No mesmo sentido, a crítica apresentada por Habermas de que, em
Luhmann, “a legitimidade é explicada em termos da legalidade como um autoengano estabilizador do
sistema”. Conferir: HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre facticidade e valide. Vol. II. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 223.
32
KNIJNIK, Danilo. A Prova nos Juízos Cível, Penal e Tributário. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007, p.
7.
33
LADD, J. “The place of the pratical reason in judicial decision”. Rational decision, Nomos vol. 7, C.J
Friedrich. Nova York, 1964, p. 144. Apud ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación..., p. 210.
34
BAEZ SILVA, Carlos. “La motivación y la argumentación en las decisiones judiciales”, p. 112.
35
IBAÑEZ, Perfecto Andrés. Valoração da prova e sentença penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.
107.
36
TARUFFO, Il vertice ambiguo, p. 139. Apud GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos em el derecho –
Bases argumentales de la prueba. 2ª edición. Madrid, Barcelona: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y
Sociales, 2004, p. 202.
37
GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2001, p. 113.
8
Para que uma decisão judicial esteja adequadamente justificada, é preciso que a
motivação judicial seja desenvolvida sob o influxo de um procedimento racional,
controlável e adequado às peculiaridades do caráter fortemente institucionalizado do
raciocínio jurídico.38
Identificar os principais elementos desse procedimento é uma das
tarefas a que este estudo se propõe.
1.2 Estrutura do dever de motivação
As exigências da ética judicial remetem a certos valores ou virtudes que as
sintetizam. De acordo com Rodolfo Vigo, essas exigências devem ser chamadas de
“princípios”, não só por se tratar de uma terminologia bastante estendida, mas também
porque com tal expressão se alude a mandamentos de otimização, que exigiriam a melhor
conduta possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas presentes39
. No
modelo de perfeição judicial, portanto, o dever de motivar seria um mandamento ideal que
ordena aos órgãos julgadores que suas decisões sejam proferidas mediante uma motivação
tão boa e completa quanto permitir a situação concreta.
Essa visão tem a seu favor a constatação de que os problemas ligados à justificação
das decisões judiciais não se reduzem à reconstrução do raciocínio do juiz a um silogismo
jurídico, é dizer, ao atendimento do critério lógico pelo qual a conclusão deve ser a
conseqüência de premissas normativas e fáticas (âmbito da justificação interna), senão que
dizem respeito à apresentação de passos de desenvolvimento que, para fundamentação da
própria escolha das premissas utilizadas, veiculem razões tão boas, completas e rigorosas
quanto possível (justificação externa).40
Tratar o dever de motivação como princípio
significa reconhecer que a medida de sua realização será tanto maior quanto mais e
melhores passos de desenvolvimento forem dados.
Deveras, o dever ético de motivar uma decisão é algo que pode ser realizado em
graus variados de qualidade e extensão. Na perspectiva da excelência judicial, é prima facie
exigível do juiz o emprego de todos os meios para a maximização da qualidade justificativa
da motivação judicial e, correlatamente, a superação de todos os obstáculos à realização
ótima dessa tarefa41
. Por isso, embora seja possível que determinado ordenamento jurídico,
38
No âmbito da justificação externa, ALEXY distingue diferentes tipos de premissas a que correspondem
diferentes métodos de fundamentação: regras de direito positivo, enunciados empíricos e premissas que não
são nem regras de direito positivo nem enunciados empíricos. “La fundamentación de uma regla entanto regla
de Derecho positivo consiste en mostrar su conformidad con los critérios de validez del ordenamiento
jurídico. En la fundamentación de premisas empíricas puede recorrirse a un escala completa de formas de
proceder que va desde los métodos de las ciencias empíricas, pasando por las máximas de presunción
racional, hasta las reglas de la carga de la prueba en el proceso. Finalmente, para la fundamentación de las
premisas que no son ni enunciados empíricos ni reglas de Derecho positivo sirve lo que puede designar-se
como ‘argumentación jurídica’”. Teoría de la argumentación jurídica, p. 222.
39
VIGO, Rodolfo Luis. “Ética Judicial. Su especificidad y responsabilidad”, p. 18.
40
ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 214.
41
Esse entendimento está em consonância com a doutrina de ALEXY: “[S]e é exato que existe um dever de
fundamentação judicial, então se sugere a conclusão que existe um dever de fundamentar sentenças judiciais
corretamente. Isso é um argumento contra concepções que acham compreendê-lo suficientemente com a
análise dos efeitos da atividade de fundamentação jurídica e um argumento para a relevância de esforços para
9
sob o aspecto estritamente normativo, em alguns casos tolere certos estilos de motivação,
como a motivação per relationem ou a motivação implícita42
, sob o aspecto ético essas
questões podem ser sempre problematizadas mais uma vez.
Quando o Código Modelo enuncia, em seu art. 20, que “o dever de motivar
adquire uma intensidade máxima em relação às decisões privativas ou restritivas de direitos
ou quando o juiz exerça um poder discricionário”, disso se extrai uma norma que estabelece
um importante critério para aferição da suficiência justificatória da resolução judicial:
quanto mais intensos forem os efeitos da decisão na esfera jurídica do jurisdicionado, ou
quanto maior o espaço de atuação judicial para criação da norma individual que regerá o
caso concreto, tanto mais fortes devem ser as razões que justificam a decisão adotada.
Apesar dos renovados esforços da doutrina em diminuir a discricionariedade no
direito, não se pode negar que persiste a possibilidade de, em certos casos, o juiz fazer uma
opção discricionária que terá relevância na solução do caso sob sua responsabilidade.
Analisar as hipóteses em que essa discricionariedade é justificável refoge ao objeto deste
estudo, mas cumpre, de qualquer modo, reconhecer que a exigência de motivação é um dos
elementos capazes de confiná-la a limites aceitáveis. Está em jogo, aqui, a necessidade de
um mecanismo de controle, ainda que mínimo, da justiça da decisão. Conforme lição de
Barbosa Moreira, “a motivação é tanto mais necessária quanto mais forte o teor de
discricionariedade da decisão, já que apenas à vista dela se pode saber se o juiz usou bem
ou mal a sua liberdade de escolha, e sobretudo se não terá ultrapassado os limites da
discrição para cair no arbítrio” 43
.
Para além das dificuldades conceituais que a expressão “discricionariedade”
suscita, essa exigência ampliada de motivação também deve ser estendida àquelas hipóteses
em que, embora não se trate propriamente de um espaço de discricionariedade, haja um
incremento do risco – fisiológico ou patológico – de que a subjetividade do juiz contamine
a aplicação do direito. Tais seriam, por exemplo, os casos em que é necessária interpretação
de conceitos indeterminados ou a ponderação de princípios.
Quanto às decisões privativas ou restritivas de direito, o incremento do dever de
motivação justifica-se pela concepção de que, nas sociedades modernas, a liberdade
humana e os outros direitos que lhe são correlatos devem ser levados a sério. Se o Estado
existe em função da pessoa, e não o contrário, então as razões requeridas para a admissão
da intervenção estatal na esfera jurídica de alguém devem ser tanto mais robustas quanto
mais relevante for o direito atingido e quanto maior for o grau de afetação de tal direito. É
por isso que, a título de exemplo, a motivação de uma sentença penal condenatória deve ser
ceteris paribus mais complexa que a de uma sentença absolutória, assim como a aplicação
aprofundar critérios para fundamentações jurídicas corretas.” ALEXY, Robert. Direito, Razão, Discurso.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 19, nota de rodapé n.° 14.
42
No direito brasileiro a admissão da validade da motivação implícita foi afirmada, dentre outros
julgados, nos seguintes acórdãos: STF, HC 74.892/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 1.8.199; STJ,
Resp 47.474/RS, 6ª Turma, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJ 24.10.1994.
43
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado
de Direito”. Em Temas de direito processual – 2ª série. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 88.
10
de uma pena privativa de liberdade exige razões ceteris paribus mais fortes que a aplicação
de uma pena de multa, nos casos em que há essa cominação alternativa.
Tomar o dever ético de motivação como um mandamento ideal, que pode ser
aplicado em distintos graus, implica necessariamente reconhecer que ele pode colidir com
outros deveres ético-judiciais. A aferição da conduta judicial devida, sob a perspectiva da
excelência judicial, em muitos casos exigirá um juízo de ponderação do princípio da
motivação em face de princípios éticos dotados de igual relevância. Quanto mais próximo
um juiz historicamente situado chegar à concordância prática dos deveres éticos que deve
cumprir, tanto mais próximo da perfeição judicial ele estará.
2 O dever de motivação na teoria da argumentação jurídica
A otimização da qualidade justificativa da fundamentação judicial obtém-se
mediante a realização, tão boa quanto possível, das exigências de racionalidade,
completitude e controlabilidade44
. Como o atendimento a tais qualidades pode ocorrer em
graus variados e crescentes de detalhamento da fundamentação jurídica, coloca-se o
problema do regresso ao infinito. Onde termina o dever de motivação de cada proposição
apresentada na decisão judicial?
Conforme lição de Marcelo Guerra, mesmo a ação judicial que pedisse a
providência jurisdicional ceteris paribus mais simples, qual seja, a declaração da existência
de um direito subjetivo45
, em tese admitiria infinitos níveis de fundamentação na sentença.
Em um primeiro nível, as condições de existência de um determinado direito subjetivo
poderiam ser desdobradas em duas: a) a existência de uma norma geral N que contenha a
descrição do fato F como condição de sua incidência; b) a ocorrência do fato F. Por sua
vez, as declarações relativas à existência de N e à ocorrência de F pedem, elas próprias, um
critério de correção, alocados em um segundo nível de fundamentação. A declaração da
existência da norma N implica outras duas declarações: a1) a de que a norma N é o sentido
veiculado pelo texto legislativo T; a2) a de que o ato legislativo A, que produziu o texto
legislativo T, é válido. Já a declaração de que o fato F ocorreu pressupõe que ele está
representado em um meio de prova digno de confiança, o que também pode ser enunciado
por duas declarações: b1) a ocorrência do fato F está representada no meio de prova MP;
b2) o meio de prova MP é confiável. Ocorre que as declarações sobre o sentido do texto T
(a1), a validade do ato legislativo A (a2), a representação do fato no meio de prova MP (b1)
e a confiabilidade do meio de prova MP (b2) podem exigir, ainda, o apoio de outras
declarações situadas em um terceiro nível de fundamentação. As declarações do terceiro
nível, à sua vez, podem reclamar um quarto nível de fundamentação, e assim por diante.46
44
TARUFFO, Michele. “Il significato costituzionale dell´obligo di motivazione”. Em: Paticipação e
processo, pp. 37-50. Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe (coords.) et al.
São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1988, p. 48.
45
No direito brasileiro, conferir: Código de Processo Civil/1973, art. 4º.
46
GUERRA, Marcelo Lima. “Notas sobre o dever constitucional de fundamentar as decisões judiciais (CF,
art. 93, IX)”. Em: Processo e Constituição. FUX, Luiz; NERY JR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim
(organizadores), pp. 517-41. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pp. 525-30.
11
Um regresso ao infinito aparentemente poderia ser evitado se a fundamentação
fosse interrompida, em algum momento, e substituída por uma decisão de que já não
haveria o que fundamentar. A arbitrariedade desta decisão, no entanto, contaminaria toda a
fundamentação que dela depende. Também não seria satisfatório, por outro lado, evitar o
regresso ao infinito mediante o recurso a um círculo lógico. Propor uma alternativa em face
do regresso ao infinito, da interrupção da fundamentação e do círculo lógico – situação que
H. Albert designou como “trilema de Münchausen” – é o desafio das principais teorias
discursivas da atualidade.47
Afasta-se a necessidade de regresso ao infinito se a exigência de fundamentações
ininterruptas de cada proposição por meio de outras proposições for substituída por uma
série de exigências na atividade de fundamentação. Tais exigências podem formular-se
como regras discursivas cuja observância propicie, sem necessidade de “exaurir o
universo”48
, a obtenção de um resultado dotado de validade intersubjetiva. A ideia
fundamental da teoria da argumentação é a de que o cumprimento dessas regras
pragmáticas, embora não garanta a certeza definitiva do resultado, ao menos assegura uma
correção procedimental das proposições obtidas mediante o conjunto de ações
interconectadas praticadas pelos sujeitos processuais.
O grande mérito das regras discursivas é o de que elas não dão por corretos
quaisquer resultados de uma comunicação lingüística, mas somente aqueles que provêm de
um discurso racional49
. Desprezá-las por sua suposta fraqueza de não determinar todos os
passos da argumentação não abre outras alternativas senão a ilusão de um teste de correção
substancial inalcançável, tal como pretendido por certas correntes jusnaturalistas50
, ou a
desilusão decorrente das diversas formas de ceticismo quanto à racionalidade da ciência
jurídica, tal como defendido por correntes decisionistas51
. A garantia de racionalidade que
pode ser oferecida por uma teoria procedimental da correção jurídica, portanto, não deve
ser subestimada.
2.1 A regra da universalizabilidade
O núcleo da fundamentação pragmático-universal das normas fundamentais do
diálogo racional parte de que todo o falante une a suas manifestações as pretensões de
compreensibilidade, veracidade, correção e verdade. Quem afirma um juízo de valor ou de
dever promove uma pretensão de correção, ou seja, pretende que sua afirmação seja
fundamentável racionalmente.52
Reconhece-se que, de uma forma geral, o interesse da parte no procedimento, sob
o ponto de vista subjetivo, está orientado sobretudo à obtenção de um resultado que lhe seja
vantajoso, e não que o juízo alcançado seja correto ou justo. Contudo, o ponto decisivo é
47
ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 177.
48
TARUFFO, Michele. “La motivazione della sentenza”. Gênesis Revista de Direito Processual Civil, n. 31,
pp. 177-85, jan./mar. 2004, p. 183.
49
ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 292.
50
ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 56.
51
ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo, p. 23, nota de rodapé n. 14.
52
ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 133.
12
que os participantes do discurso, ainda que não “queiram” argumentar racionalmente, ao
menos devem construir seus argumentos de tal maneira que, sob condições ideais, poderiam
encontrar o acordo de todos.53
Se, quando instado a se manifestar sobre a tese jurídica e as
robustas provas produzidas em apoio à pretensão da parte contrária, o participante se
limitasse a expressar o seu interesse subjetivo de vencer a ação, não estaria argumentando
racionalmente. Como o juiz não decide visando a dar o que é do interesse das partes, e sim
a aplicar corretamente o direito, a argumentação desenvolvida pelos “interessados”,
devidamente assistidos por profissionais habilitados, deve se nortear por critérios de
correção jurídica54
.
Com efeito, o modelo procedimental da moderna teoria da argumentação jurídica
pressupõe regras de condução do discurso que se conectam à pretensão de correção do
direito. Aquele que fala deve poder justificar o seu discurso, admitindo pressupostos
pragmáticos que o constrangem a levar em conta todas as perspectivas, dos outros
participantes inclusive55
. Nisso está contida a ideia de uma validade universal para todos os
casos em que as mesmas circunstâncias relevantes estejam presentes.56
Versões diversas
dessa exigência de universalizabilidade foram propostas por autores como Hare, Habermas
e Baier.57
Hare enuncia sua regra da universalizabilidade da seguinte forma: “Quem afirma
uma proposição normativa que pressupõe uma regra para a satisfação dos interesses de
outras pessoas, deve poder aceitar as conseqüências de tal regra no caso hipotético de ele
próprio se encontrar na situação daquelas pessoas”. Habermas complementa essa
proposição, de seu turno, com a garantia do caráter ideal das regras da razão: “As
conseqüências de cada regra para a satisfação do interesses de cada um devem poder ser
aceitas por todos”. Por fim, Baier acrescenta as exigências de abertura e sinceridade que
regem o discurso: “Toda regra deve poder ensinar-se de forma aberta e geral”.58
Esse grupo de proposições, como bem enfatiza MacCormick, exige que, “para o
presente conjunto de circunstâncias C contar como uma razão para chegar à decisão D, e
para agir sobre D, é preciso que seja aceitável manter a decisão do tipo D como uma
decisão apropriada em qualquer momento em que circunstâncias C ocorram” 59
. Com isso
se pode “testar se é possível dizer que D é uma solução apropriada em qualquer momento
em que C ocorra”, ou seja, que essa razão universalizada seja aplicável “a todas as
instâncias de C, e não apenas àquela instância sob consideração”60
.
53
ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 317.
54
“Las partes o sus abogados plantean com sus intervenciones una pretensión de corrección, aunque sólo
persigan intereses subjetivos. Lo que exponen como razones en favor de una determinada decisión podría, al
menos en principio, estar incluido en un tratado de ciencia jurídica.” ALEXY, Teoría de la argumentación
jurídica, p. 212.
55
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia, vol. I, p. 287.
56
LA TORRE, Massimo. “Teorías de la argumentación y conceptos de derecho. Una aproximación”.
Derechos y libertades, año IV, enero 1999, n. 7. Boletín oficial del Estado, pp. 303-34, aqui p. 327.
57
ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 198.
58
Apud ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, pp. 198-9.
59
MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito, pp. 28-9.
60
MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito, pp. 28-9.
13
As proposições que integram o conceito de universalização formam as regras
básicas da fundamentação no discurso prático geral. Uma realização otimizada do dever de
motivação judicial põe de manifesto a necessidade de observância de um procedimento
discursivo definido por essas e outras regras do discurso prático geral, complementadas
pelas regras e formas específicas do discurso jurídico, tais como a sujeição à lei, à
dogmática e aos precedentes61
.
2.2 O caráter dialogal da correção argumentativa
Quem fundamenta algo pretende, no que se refere ao processo de fundamentação,
aceitar o outro como parte na fundamentação62
. Todos os participantes do processo, por
mais diferentes que sejam seus motivos, fornecem contribuição para o discurso judicial63
. A
correção das decisões judiciais mede-se, então, pelo preenchimento das condições
comunicativas da argumentação que tornam possível a formação imparcial do juízo64
.
Processos jurídicos movem-se por meio de uma cadeia de certezas putativas que
são a cada ponto passíveis de questionamento65
. Por isso, a avaliação da correção dos
argumentos, no âmbito de um procedimento no qual os participantes se inter-relacionam
comunicativamente, desenvolve-se no curso das diversas fases em que a atuação destes é
exigida ou esperada. Os participantes referem-se uns aos outros por sequências de ações e
reações a outras ações cujo sentido não se obtém por si mesmas, mas pela outra parte da
conduta à qual elas se referem: em quase toda “resposta”, encontra-se a “pergunta”, que por
sua vez desafia uma nova “resposta”.66
Pode-se dizer, portanto, que o procedimento se
estrutura dialeticamente, desde que se tome dialética, aqui, no sentido gadameriano da
obtenção do conhecimento pela arte do perguntar.67
Uma vez que perguntar significa
colocar algo em suspenso e aberto, a dialética não é a arte de “atingir o ponto fraco daquilo
que foi dito”, nem de “ganhar de todo mundo na argumentação”, mas sim a arte de ir
colocando afirmações à prova, buscando atribuir-lhe sua verdadeira força68
.
Dentre as exigências que, no âmbito da argumentação prática, dizem respeito à
liberdade de discussão, está a de que todos os participantes do discurso podem introduzir e
problematizar qualquer asserção69
. Obviamente que, em face da institucionalização das
formas e dos prazos processuais, essa liberdade somente pode ser assegurada em uma
extensão limitada. Ainda que sob tais limitações, contudo, vale para o raciocínio jurídico a
regra geral da fundamentação prática de que “todo falante deve, quando lhe for pedido,
61
ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 201. Sobre a importância da lei, da dogmática e
dos precedentes na estrutura da motivação, conferir Capítulo 3.1, infra.
62
ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 189.
63
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia, vol. I, p. 288.
64
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia, vol. I, p. 287.
65
MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito, p. 37.
66
HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris Editor, 2005, pp. 177-8 e 181-2.
67
A dialética de Gadamer é a condução de uma conversação pela “arte de juntar os olhares para a unidade de
uma perspectiva (synoran eis en eidos). Conferir: Verdade e método I, p. 480.
68
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I, pp. 478-9.
69
ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 189.
14
fundamentar o que afirma, a não ser que possa dar razões que justifiquem rechaçar uma
fundamentação”70
.
Isso significa que, no cumprimento do dever de motivação sob a ótica da
excelência judicial, uma decisão justificável da disputa jurídica precisa posicionar-se em
relação à relevância de qualquer proposição aduzida na qualidade de proposição jurídica,
ou em relação à interpretação de tal proposição, ou ainda em relação à classificação
apropriada ou avaliação dos fatos à luz de conceitos descritivos e valorativos envolvidos
em tal proposição71
. O princípio da cooperação entre os sujeitos processuais abrange o ônus
das partes de levantar as razões pertinentes e relevantes para a justificação da decisão
judicial, de modo que a extensão do dever judicial de fundamentação regula-se, em grande
medida, pelo modo como as partes fazem uso de seus atos de fala no processo72
. Se a
possibilidade de tomar parte no discurso implica, por um lado, o direito de os litigantes
verem seus argumentos considerados nas decisões que lhes digam respeito, por outro
também dá a medida da autorresponsabilidade decorrente de sua condição de sujeitos (e
não meros objetos) do processo.
Nesse sentido, dispõe o art. 25 do Código Modelo Iberoamericano de Ética
Judicial que “a motivação deve estender-se a todas as alegações das partes, ou às razões
geradas pelos juízes que tenham conhecido antes do assunto, desde que sejam relevantes
para a decisão”.
Embora sob o aspecto jurídico-normativo, ao menos na realidade brasileira, haja
copiosa jurisprudência no sentido de que o juiz não está obrigado a analisar todos os
argumentos trazidos pelas partes quando sua decisão se apoiar em fundamentos por si só
aptos a justificar a providência judicial determinada73
, o próprio valor do diálogo na decisão
judicial, pelo qual esta é entendida como fruto da colaboração e cooperação das partes em
uma comunidade de trabalho74
, levaria a reconhecer que a simples articulação de
determinadas razões pelos participantes do discurso processual já falaria em favor da
relevância de tais razões para a correta justificação do provimento jurisdicional. O que
cumpre enfatizar, de todo modo, é que, se o princípio da cooperação impõe também às
partes que seus atos de fala observem as regras do discurso racional, possíveis deficiências
na articulação dos passos de desenvolvimento contidos em suas manifestações75
podem
70
ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, pp. 188-9.
71
MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito, p. 202.
72
Sobre o recíproco condicionamento e controle da atividade das partes e da atividade do órgão judicial,
conferir: ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O formalismo no processo civil. 2ª edição. São Paulo:
Saraiva, 2003, p. 114.
73
No ordenamento brasileiro, citem-se, dentre tantos exemplos: STF - HC 74.892/SP, 1ª Turma,, Rel. Min.
Moreira Alves, DJ 1.8.1997; STJ - AGRESP 933.066/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJ
26.03.2008, p. 1; STJ - AGA 814.335/RJ, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, DJ 19.12.2007, p. 1211;
STJ - AGA 857.243/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ 10.12.2007, p. 379.
74
ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O formalismo no processo civil, p. 72.
75
A Exposição de Motivos do Código Modelo reconhece o estreito relacionamento dos deveres éticos
judiciais com os deveres éticos dos demais operadores jurídicos: “A falta de ética judicial remete, em certas
ocasiões, a outras deficiências profissionais, particularmente a de advogados, fiscais, procuradores e, até
mesmo, docentes jurídicos; um reclamo integral de excelência deve ser incorporado nesses outros espaços
profissionais.”
15
limitar a extensão e a profundidade das razões cuja apreciação pode ser exigida na
motivação judicial.
Quanto ao dever de apreciação, por um órgão judiciário revisor, das razões geradas
na decisão recorrida, conforme a parte final do art. 25 acima transcrito, não se exige que
sejam refeitos todos os passos de desenvolvimento expostos na decisão recorrida, mas é
preciso que o órgão revisor apresente tantos argumentos quanto forem precisos para acolher
ou rejeitar os passos de desenvolvimentos que sustentam a pretensão recursal. O objeto do
dever de motivação de uma instância revisora é determinado, portanto, pelo grau de
completitude, racionalidade e coerência com que a parte recorrente coloca à prova a validez
intersubjetiva das proposições que integram a decisão recorrida. Para os julgamentos em
instância final, a exigência de não obliterar os argumentos das partes faz-se particularmente
aguda. Exatamente porque se destina a prevalecer em definitivo, e, com isso, cumprir a
delicadíssima função de impedir a reabertura do litígio, ao pronunciamento final agrega-se
uma agravada responsabilidade justificatória76
.
3. Abrangência do dever de motivação
O campo de incidência das regras do discurso corresponde a toda extensão do
objeto da cognição judicial. Dispõe o Código Modelo, a propósito, que “o juiz deve motivar
as suas decisões tanto em matéria de fatos quanto de direito” (art. 25). Com uma adequada
clarificação discursiva das questões de direito e de fato, os participantes do processo podem
esperar que serão decisivos, para a decisão judicial, argumentos relevantes e não-
arbitrários77
.
Uma justificação adequada do juízo de direito deve conter uma correta motivação
sobre: a) a escolha da norma ou das normas que o juiz a que o juiz dá aplicação no caso
concreto; b) a escolha da interpretação das normas aplicáveis; c) a escolha das possíveis
conseqüências que podem derivar da aplicação da norma ao caso78
. Por sua vez, uma
justificação adequada do juízo de fato há que conter uma correta fundamentação sobre: a) a
escolha dos elementos probatórios considerados relevantes; b) a valoração da eficácia dos
meios de prova; c) a reconstrução do estado de coisas a que se refere a prova produzida em
juízo79
.
A distinção entre quaestio facti e quaestio iuris corre sob uma linha de demarcação
flutuante80
, estabelecida dinamicamente pela própria circularidade hermenêutica81
. Apesar
disso, ela é útil para pôr de manifesto os diferentes aspectos da correção almejados na
atividade judicial: justificar um enunciado normativo consiste em sustentar com razões sua
76
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “A motivação das decisões judiciais...”, pp. 89-90.
77
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre facticidade e validade. Volume I. 2ª edição. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 274
78
TARUFFO, Michele. “Il significato...”, p. 44.
79
TARUFFO, Michele. “Il significato...”, p. 45.
80
GUASTINI, R. Dalle fonti alle norme. Torino: Guappichelli, 1992, p. 52. Apud IBAÑEZ, Perfecto Andrés.
Valoração..., p. 128.
81
IBAÑEZ, Perfecto Andrés. Valoração..., p. 128.
16
validez ou sua justiça; justificar um enunciado fático consiste em aduzir razões que
permitam sustentar que ele é verdadeiro ou provável82
. Embora o exame das questões de
direito não possa ser inteiramente dissociado do exame das questões de fato (e vice-versa),
no convencimento judicial sobre a matéria de direito avulta, em primeiro plano, a
necessidade de uma teoria da interpretação jurídica; no convencimento judicial sobre a
matéria fática, por sua vez, a de uma teoria epistemológica sobre a fixação judicial dos
fatos.
3.1. Motivação das questões de direito
3.1.1 O uso dos cânones de interpretação
Sob a perspectiva da excelência judicial, o Código Modelo exige que a motivação
em matéria de direito não se limite a “invocar as normas aplicáveis” (art. 24) e que o juiz
deva se sentir “vinculado não só pelo texto das normas jurídicas vigentes, mas também
pelas razões nas quais se fundamentam” (art. 40). De fato, aplicar o direito sempre envolve
interpretá-lo, já que questões de interpretação são endêmicas ao raciocínio jurídico83
.
A questão da sujeição à lei remete à discussão sobre os cânones, também
chamados de “elementos”, “critérios” ou “métodos” de interpretação. Eles dizem respeito a
como se usam argumentos lingüísticos, genéticos e sistemáticos, dentre outros possíveis.
Até hoje não há acordo sobre qual a formulação precisa, a hierarquia e o valor de cada uma
dessas formas de argumento. Neste trabalho não cabe tomar qualquer posição nesse sentido.
Cumpre, contudo, ressaltar dois aspectos que dizem respeito à consecução do dever de
motivação.
O primeiro é o de que o dever de otimização da motivação das decisões judiciais
ordena que, sejam quais forem os cânones aplicados, as formas de argumento devem ser
saturadas. Atende-se ao requisito da saturação quando o argumento contém todas as
premissas pertencentes à sua respectiva forma.84
A título de exemplo, uma argumentação
genética, que pretenda se apoiar na vontade do legislador, deve se fundamentar
empiricamente sobre a situação jurídica anterior ao advento da lei, os debates travados à
época do processo legislativo, as razões de eventuais vetos presidenciais, as justificativas
apresentadas na “exposição de motivos” etc.
Além das premissas empíricas, as formas de argumentos contêm premissas
normativas que não se extraem apenas da lei ou de outros materiais legislativos, como nos
casos de interpretação histórica, comparativa e teleológica, que pressupõem a
caracterização de um determinado estado de coisas. Isso leva ao segundo aspecto que
interessa ao objeto deste estudo: o atendimento do requisito da saturação impõe à
82
GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 216.
83
Nesse sentido, conferir: MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito, p. 161.
84
ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 236.
17
motivação judicial uma necessária – porém controlável – abertura a argumentos práticos
gerais.85
Se todos os casos pudessem ser decididos exclusivamente em virtude de
argumentos institucionais, o direito seria um sistema fechado, autônomo ou
“autopoiético”86
. Não raramente, contudo, argumentos lingüísticos terminam com a
comprovação de um espaço semântico, argumentos genéticos fracassam na ambigüidade do
objetivo legislativo e argumentos sistemáticos indicam direções distintas... Nesses e em
outros casos de insuficiência dos argumentos institucionais, a interpretação jurídica carece,
em alguma medida, de valorações substanciais.87
Então, para uma adequada motivação
jurídica, há que admitir o recurso a argumentos pragmáticos, éticos e morais que enfeixam
a pretensão de legitimidade das normas jurídicas. Daí a afirmação de Habermas de que “a
racionalidade do direito não pode ser questão exclusiva do direito”88
.
Diferentemente dos argumentos institucionais, que se apoiam mediata ou
imediatamente na existência do sistema jurídico, os argumentos práticos gerais tiram sua
força somente da sua correção quanto ao conteúdo. A autoridade do direito positivo, assim,
leva ao reconhecimento de uma primazia prima facie dos argumentos institucionais diante
dos argumentos práticos gerais. Quem pretende fazer prevalecer um argumento prático
geral em face de um argumento institucional assume, portanto, uma carga de motivação
ceteris paribus mais pesada.89
O requisito da saturação assegura a racionalidade do uso dos cânones. Ele exclui a
simples afirmação de que um argumento possa ser o resultado de um determinado critério
de interpretação. Exigir que se aduzam premissas empíricas ou normativas, cuja verdade ou
correção possa ser objeto de novas discussões, constitui um obstáculo a que os participantes
do discurso jurídico façam uso de fórmulas vazias.90
A primazia prima facie dos
argumentos institucionais em face dos argumentos práticos gerais, por sua vez, garante a
vinculação dos participantes do discurso à ordem normativa e, com isso, contribui à
segurança jurídica.
3.1.2 A argumentação dogmática
A importância da dogmática é a de analisar conceitos jurídicos e reconduzi-los a
um sistema, possibilitando o exame da correção de uma declaração. Existem dois critérios
formais da qualidade de um sistema argumentativo: a consistência e a coerência. A
consistência é um critério negativo. Ele está cumprido quando o sistema não mostra
85
ALEXY, Robert. Direito, razão, discurso, p. 73. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia..., vol. I, p.
287.
86
ALEXY, Robert. Direito, razão, discurso, p. 73. Para um enfoque crítico sobre a doutrina do caráter
autopoiético do direito, conferir: NEVES, Marcelo. De la autopoiesis a la alapoiesis del Derecho. Edición
digital: Alicante : Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2005. Edición digital a partir de Doxa : Cuadernos
de Filosofía del Derecho. núm. 19 (1996), pp. 403-420.
87
ALEXY, Robert. Direito, razão, discurso, p. 73.
88
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia..., vol. II, p. 230.
89
ALEXY, Robert. Direito, razão, discurso, pp. 74-5.
90
ALEXY, Robert. Teoria de la argumentación jurídica, p. 236.
18
nenhuma contradição. A coerência é um critério positivo. Ele exige conexões positivas tão
fortes quanto possível entre os elementos do sistema.91
Dentre os critérios de coerência, destacam-se os relativos à quantidade, à extensão
e ao enlace das correntes de fundamentação. A exigência de que uma declaração seja
justificada pelo maior número possível de declarações é uma aplicação do critério segundo
o qual quanto mais declarações de um sistema são fundamentadas por outras declarações
desse sistema, tanto mais coerente, ceteris paribus, é o próprio sistema. O critério da
extensão complementa o da quantidade, ao exigir consideração não apenas ao número de
declarações apoiadoras de outra declaração, mas também ao alcance ou dimensão das
correntes de fundamentação que essas múltiplas declarações formam. A questão do enlace
das correntes de fundamentação, por sua vez, diz respeito ao postulado da generalidade. A
exigência de correntes de fundamentação tão extensas quanto possível implica a exigência
por fundamentações de declarações sempre mais gerais. Esse critério desdobra-se em dois.
Pelo primeiro, quanto mais correntes de fundamentação têm uma premissa de partida
comum, tanto mais coerente, ceteris paribus, é o sistema. Assim, por exemplo, o princípio
do Estado de Direito fundamenta numerosos princípios que, por sua vez, são fundamentos
para outros princípios e para decisões particulares. Mas um enlace pode ser produzido não
só por uma premissa de partida comum, mas também por uma conclusão comum de várias
correntes de fundamentação. Então, o segundo desdobramento do critério do enlace é o de
que um sistema é tão mais coerente quanto mais correntes de fundamentação, ceteris
paribus, têm uma conclusão comum. Um exemplo poderia ser a reserva de lei para obrigar
o particular a algo, exigência que se fundamenta tanto pelo princípio da legalidade da
atuação administrativa, como pelo princípio democrático, em sua cunhagem parlamentar-
representativa, como também pelos direitos fundamentais, sob a ótica da liberdade
individual.92
Enunciados dogmáticos podem contribuir à motivação das decisões judiciais
quando cumprem certas condições. A primeira é a de que, embora não se confundam com a
simples descrição de codificações ou compilação de precedentes, eles guardem relação com
as normas estabelecidas e com a jurisprudência. A segunda é a de que sua inserção em um
todo coerente possibilite fundamentar relações de inferência entre conceitos jurídicos. A
terceira é a de que enunciados de uma dogmática sejam formados, fundamentados e
comprovados no âmbito de uma ciência do direito que funciona institucionalmente.93
A exigência de otimização da motivação, conectada à pretensão de validez
intersubjetiva dos discursos jurídicos, ordena que sejam utilizados, tanto quanto possível,
argumentos dogmáticos que contribuam ao incremento da coerência da justificação da
decisão judicial.94
91
ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo, p. 14.
92
ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo, pp. 120-3.
93
Sobre tais exigências, em profundidade, conferir: ALEXY, Robert. Teoria de la argumentación jurídica,
pp. 244-6.
94
ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo, p. 129.
19
Argumentos dogmáticos podem ser utilizados sem que eles próprios tenham que
ser fundamentados. Isso se dá quando um enunciado dogmático não é, em geral, posto em
dúvida, por coincidir com a opinião doutrinária dominante. Isso não sinaliza
necessariamente uma atitude acrítica. Mesmo em trabalhos dogmáticos críticos não é
possível fundamentar simultaneamente todos os enunciados dogmáticos em que se apoia a
discussão do problema. Contudo, tal como ocorre no discurso jurídico acadêmico, também
para o discurso jurídico praticado no âmbito do processo vale a proposição de que
enunciados dogmáticos podem carecer de comprovação.95
O específico da comprovação dos enunciados dogmáticos é que ela se dá sempre
em face do sistema. Essa comprovação sistemática diz respeito às relações que o enunciado
em questão mantém com o restante dos enunciados dogmáticos e com as formulações das
normas jurídicas tidas como vigente, seja sob o aspecto lógico (comprovação sistemática
em sentido estrito), seja segundo pontos de vista práticos de tipo geral (comprovação
sistemática em sentido amplo). Contribui para a otimização do dever de motivação judicial,
portanto, aceitar a proposição de que todo enunciado dogmático empregado em uma
decisão judicial deva poder passar por uma comprovação sistemática, tanto em sentido
estrito como em sentido amplo.96
3.1.3 A vinculação aos precedentes
O fundamento para o uso dos precedentes é a regra da universalizabilidade, que
ordena a adoção de um tratamento igualitário para casos iguais. Conectada a essa razão está
a ideia de um sistema jurídico imparcial que faz a mesma justiça a todos,
independentemente de quem for parte no caso, e independentemente de quem o estiver
julgando. Fidelidade ao Estado de Direito requer que se evite qualquer variação frívola no
padrão decisório de um juiz ou corte para outro.97
O problema consiste, no mais das vezes, em identificar que elementos são
decisivos para considerar um caso igual a outro. Quando há aplicação de um precedente,
não é necessário motivar novamente a conclusão que se quer fazer valer mais uma vez; mas
pode ser necessário motivar o juízo de irrelevância das diferenças98
entre o caso concreto e
o caso paradigmático, especialmente quando um participante do processo afirmar a
existência de razões para diferenciação entre um caso e outro.
A exigência de respeito aos precedentes sustenta-se com a proposição de que uma
decisão só pode ser modificada se se puderem aduzir boas razões para tanto. Vale dizer, o
precedente fala em favor de uma determinada decisão, mas não impede absolutamente que
a solução do caso, desde que apoiada em novos argumentos, vá encaminhada em outra
direção. O que deve ser ressaltado, então, é que quem pretende ir contra o precedente
assume uma pesada carga de argumentação.99
95
ALEXY, Robert. Teoria de la argumentación jurídica, p. 250.
96
ALEXY, Robert. Teoria de la argumentación jurídica, pp. 251-4.
97
MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito, p. 191.
98
ALEXY, Robert. Teoria de la argumentación jurídica, p. 262.
99
ALEXY, Robert. Teoria de la argumentación jurídica, p. 263.
20
Duas técnicas de motivação possibilitam o proferimento de uma decisão contrária
ao precedente: a do distinguishing e a do overruling. A primeira serve para interpretar de
forma estrita a norma que apoia o precedente, mediante, por exemplo, a identificação de um
elemento do tipo normativo que não existe ou não está comprovado no caso a decidir. Com
isso, o reconhecimento da validez geral do precedente permanece. A segunda, por sua vez,
não se limita a deixar de aplicar o precedente, já que se fundamenta no rechaço de sua
validez geral.100
No caso de distinguishing, e sobretudo no caso de overruling, exige-se
motivação ceteris paribus mais extensa que a mera aplicação do precedente.101
3.2 Motivação das questões de fato
3.2.1 Critérios de confirmação e refutação de uma hipótese fática
A ideia de pretensão de correção do direito contém, em si, a ideia da pretensão de
uma reconstrução correta do estado de coisas relevante para a decisão judicial. Por isso,
embora se deva exigir do juiz a consciência dos limites que a reconstrução de um estado de
coisas enfrenta no âmbito judicial, o conhecimento judicial sobre a matéria fática deve ter
sempre a verdade como norte.
Afastado o ceticismo que subjaz às correntes que identificam a racionalidade com
o método dedutivo, mas sem desconsiderar o caráter relativo e contextualizado da verdade
processual, a aceitabilidade do conhecimento obtido no processo deve ser construída a
partir do conceito de probabilidade, que permite conceber a fixação judicial dos fatos como
uma atividade racional, ainda que se trate de uma racionalidade incapaz de oferecer
certezas incondicionadas.102
Um modelo de probabilidade adequado ao processo judicial é aquele em que o
juízo sobre os fatos é justificável mediante procedimentos que permitam aferir o grau de
confirmação fornecido pelas provas existentes a respeito de um enunciado fático e, com
isso, afirmar ou rejeitar a aptidão do grau de confirmação obtido para dar um fato como
provado. Em tal modelo cognoscitivista, o reconhecimento da correção de um enunciado
fático depende, portanto, da qualidade das inferências que as provas autorizam realizar e de
sua resistência às contraprovas.
É sob tais bases que se deve compreender aquilo que a doutrina processual chama
de “livre convencimento” ou “livre valoração da prova”. Em um modelo de
estabelecimento dos fatos que se funda em uma aproximação tão alta quanto possível da
verdade, não há espaço para valorações formais predeterminadas por um juízo superior e
prévio ao do próprio julgador, tal como nos sistemas de prova legal103
. A valoração
100
ALEXY, Robert. Teoria de la argumentación jurídica, p. 266.
101
Sobre os critérios argumentativos que, sob a ótica do dever de responsabilidade institucional, deveriam ser
considerados nos casos de overruling, ver Capítulo 4.4, infra.
102
GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos en el derecho..., p. 49.
103
Sobre o sistema inquisitório da prova legal como intento original de minimizar arbitrariedades, convém
transcrever trecho da lição de Hassemer: “Certamente a regulamentação legal da prova era conduzida por uma
desconfiança saudável contra os penalistas e formuladas, como diríamos hoje, com a boa intenção de
21
antecipada das provas, por meio de normas jurídicas abstratas, vulneraria o objetivo de
busca da verdade próprio de um modelo cognoscitivista. Se se admite que os meios de
prova garantem resultados apenas prováveis, é possível que, em um caso concreto, o grau
de probabilidade alcançado por uma determinada prova resulte insuficiente para justificar
racionalmente uma decisão, mesmo que o legislador lhe haja atribuído um valor
específico.104
Da mesma forma, também não se afiguraria compatível com o modelo
cognoscitivista aceitar que a fixação judicial dos fatos ocorra sem a sujeição a critérios ou
controles de qualquer tipo, como no sistema da íntima convicção105
. Se se entendesse que a
avaliação das provas é completamente livre, o convencimento do julgador em nada se
afastaria de uma experiência mística ou extática106
, e então não se poderia mais falar de
uma atividade racional.
Disso resulta que o livre convencimento racional, embora repila valorações
predeterminadas, não implica uma total refração a regras, notadamente àquelas hauridas da
experiência forense e enriquecidas, mediante uma adequada cooperação interdisciplinar,
com o trabalho da doutrina.
Merece menção, nessa trilha, a lição de Marina Gascón de que a probabilidade
indutiva de uma hipótese aumenta ou diminui conforme: (1) o fundamento cognoscitivo e o
grau de probabilidade alcançável pelas generalizações usadas, já que a aceitabilidade de
uma proposição seria diretamente proporcional ao fundamento e ao grau de probabilidade
expressado pelas generalizações ou máximas de experiência usadas na confirmação.107
; (2)
‘racionalizar’ o processo de produção dos fatos; certamente ela foi, à sua época, uma resposta inteiramente
correta contra um direito inseguro, arbitrário e disperso, que produzia espontaneamente violações ao direito.
No entanto, a regulamentação legal da prova, de sua parte, causou lesões sistemáticas ao Direito. Ela perdeu
de vista os fatores que são eficazes na formação da convicção humana, o papel da pré-compreensão na
compreensão, na medida em que, por um lado, eles proibiam ao juiz uma condenação quando ele não tinha ou
uma confissão ou duas boas testemunhas, mas, por outro lado, se satisfaziam com uma boa testemunha pela
imposição de tortura.” (HASSEMER, Winfried. Introdução..., p. 166). No mesmo sentido: IBAÑEZ, Perfecto
Andrés. Valoração..., pp. 88-9.
104
GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos en el derecho..., pp. 157-8.
105
No sistema da íntima convicção, há uma propensão a “reduzir a atividade cogniscitiva do juiz a um
fenômeno de pura consciência, que se exaure no plano íntimo e imprescrutável da mera subjetividade”.
NOBILI, Massimo. Il principio del libero convincimento del giudice. Milano: Giuffrè, 1974, p. 7. Apud
KNIJNIK, Danilo. “Os standards do convencimento judicial: paradigmas para seu eventual controle”. Revista
Forense, Rio de Janeiro, n. 353, pp. 15-52, jan./fev. 2001. Embora ainda existam resquícios do sistema da
íntima convicção em procedimentos como o do tribunal do júri, por exemplo, pode-se argumentar
contrariamente a um tal modelo, mesmo sob o ponto de vista do direito probatório vigente, pois o que importa
é a tendência geral do sistema. Nesse sentido: VARELA, Casimiro. Valoración de la prueba. 2ª ed. Buenos
Aires: Astrea, 1999, p. 154.
106
GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos en el derecho..., p. 159.
107
Deve se ter em mente que, enquanto algumas máximas de experiência expressam relações seguras ou
precisas, outras expressam generalizações muito discutíveis. Ademais, enquanto algumas delas possuem um
fundamento cognoscitivo sólido (como as que se originam da difusão de conhecimentos naturais ou
científicos), outras padecem de fundamento suficiente (como as que reproduzem preconceitos disseminados
no meio social). Cabe ao juiz, portanto, avaliar criteriosamente o fundamento cognoscitivo e o grau de
probabilidade que as generalizações utilizadas estão aptas a expressar. GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los
hechos..., p. 180.
22
a qualidade epistêmica das provas que as confirmam, pois a probabilidade de um
enunciado fático seria tendencialmente maior quando confirmada por “conclusões” e
“constatações” que quando confirmada por “hipóteses”108
; (3) o número de passos
inferenciais que compõem a cadeia de confirmação, porquanto uma proposição seria tanto
mais provável quanto menor for o número de passos que compõem o procedimento
probatório que conduz à sua confirmação; e (4) a quantidade e a variedade de provas ou
confirmações, porquanto a probabilidade de uma hipótese aumentaria com a quantidade e a
variedade das provas que a confirmam.109
Aos critérios de confirmação, expostos acima sem pretensão de exaurir o tema,
devem-se associar procedimentos que permitam refutar um enunciado sobre os fatos. Não
basta que uma afirmação seja confirmada por determinadas provas – é igualmente
necessário submetê-las a tentativas de falsificação, ou seja, verificar se não há outras provas
que a contradigam110
. Uma única prova contrária à proposição fática pode ser suficiente
para desfazer a força confirmatória de um amplo conjunto de provas que a apoiariam. Para
dar uma hipótese como provada, portanto, é preciso que, além de se apoiar em provas de
confirmação, ela seja resistente a provas de refutação existentes no processo.111
Sob a perspectiva da excelência judicial, a motivação dos fatos deve apresentar
tanto razões relativas à aplicação de critérios de confirmação como razões relativas à
aplicação de critérios de refutação. Ainda que o dever de fundamentação não seja
propriamente uma garantia epistêmica, ele indiretamente cumpre esse papel112
, na medida
em que permite o controle possível de ser exercido sobre o convencimento judicial a
respeito dos fatos.
3.2.2 A estrutura da fundamentação sobre a matéria fática
A questão relativa a como deve se estruturar a justificação dos enunciados fáticos
remete a dois estilos, técnicas ou modelos de motivar sobre os quais a doutrina sói debater.
No modelo holista, a motivação consiste em uma exposição conjunta dos fatos por meio de
um relato que os põe em conexão narrativa. No modelo analítico, a motivação é estruturada
em uma exposição pormenorizada de todas as provas produzidas, do valor probatório que o
juiz lhes confere e da cadeia de inferências que conduzem ao convencimento judicial.113
108
Para os fins deste trabalho, “constatações” são as provas que forem o resultado de uma observação direta,
como um testemunho presencial; “conclusões” são as provas que houverem sido obtidas pelo método
dedutivo, como a maioria das provas científicas; “hipóteses” são, aqui, as provas obtidas pelo método
indutivo. GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 181.
109
GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 180.
110
IACOVELLO, Francesco Mauro. “La testimonanza auditiva posta a base di una condanna all’ergastolo.
Brevi viaggio all’interno della struttura della motivazione e della logica di un processo di parti. Cassazione
Penale, 33 (2): 1271, 1992. Apud GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 177.
111
IBAÑEZ, Perfecto Andrés. Valoração da prova..., p. 97.
112
GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 199.
113
GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 224.
23
A deficiência do modelo holístico consiste em permitir que o relato se apoie na
simples declaração apodíctica de certos fatos como provados114
. No mais das vezes, o relato
globalizante pressupõe a verdade dos enunciados que o compõem, de modo que sua adoção
favorece o risco de uma decisão insuficientemente fundamentada115
. Sob uma prática
jurisdicional ainda fortemente impregnada pela invocação da imediação116
e da valoração
conjunta da prova117
como recursos retóricos supostamente suficientes para a justificação
do convencimento judicial, esse perigo tende a se potencializar de forma não-desprezível.
O dever de maximização da motivação reclama, portanto, a utilização de uma
estruturação analítica118
, cuja observância permite, de modo mais eficiente, obstaculizar a
entrada furtiva de elementos de informação inaceitáveis ou insuficientemente justificados
na decisão, bem como controlar as inferências que compõem a cadeia de justificação do
convencimento judicial119
. Nesse sentido parece se inclinar o Código Modelo, ao enunciar,
no art. 23: “Em matéria de fatos o juiz deve proceder com rigor analítico no tratamento do
quadro de provas. Deve mostrar, em concreto, o que proporciona cada meio de prova, para
depois efetuar uma apreciação no seu conjunto.”
Deveras, pelo modelo analítico, o resultado de cada meio de prova deve ser
considerado, primeiramente, em sua individualidade, como se fosse o único120
. Com esse
exame inicial não se pretende extrair o valor definitivo de cada um dos meios examinados –
114
IBÁÑEZ, Perfecto Andrés. Valoração da prova..., p. 103; GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p.
225.
115
GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 225.
116
A imediação consiste no contato direto do juiz com as fontes de prova, em particular as de caráter pessoal.
Sua função visa a garantir que a relação dos sujeitos processuais, entre si e com os elementos probatórios, não
seja mediada por terceiros e se mantenha, portanto, livre de interferências. Ela tem, certamente, um
importante papel no modelo de compreensão cênica do processo, sobretudo ao impedir que o juiz utilize em
seu julgamento provas obtidas por outros sujeitos e em outros momentos processuais, as quais seriam
passíveis de repetição. Contudo, a maneira de compreender a imediação vem sendo freqüentemente
contaminada por uma concepção irracionalista do princípio do livre convencimento. Se este for entendido
apenas como a captação emocional ou intuitiva daquilo que é objeto da atividade probatória, a valoração das
declarações colhidas pelo juiz sequer poderia ser justificável e fiscalizável. Sobre o assunto, conferir:
GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 198.
117
Não se nega, aqui, a importância da valoração conjunta da prova na fixação judicial dos fatos. É certo que
quanto mais intensa for a conexão dos indícios que apoiam um enunciado fático, maior será, ceteris paribus, o
grau de confirmação da respectiva hipótese. O que não se pode admitir é o emprego da expressão “valoração
conjunta” à guisa de artifício retórico para dissimular a ausência de uma fundamentação adequada. É preciso
que o juiz, em sua decisão, identifique as provas consideradas em seu convencimento e exponha as razões por
que a valoração destas se encaminha em favor da confirmação ou da refutação do fato principal ou de fatos
secundários cuja comprovação for relevante para o desfecho do processo. Dizer simplesmente que a valoração
conjunta das provas levou ao convencimento, sem a indicação das razões que justificam essa afirmação,
implica incorrer na falácia da petição de princípio, pela qual o falante apoia uma demonstração sobre a
própria afirmação que pretendia demonstrar.
118
GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 225. Sobre a maior compatibilidade da motivação
analítica com o modelo cognoscitivista, aduz Taruffo que “la diferencia entre el método holista y el método
analítico parece situarse en que el prmeiro otorga preferencia a una perspectiva psicológica mientras que el
segundo se basa en una análisis racional del juicio; el método analítico, además, tiende a explicita y
razcionalizar lo que la concepción holista deja genérico e implícito”. TARUFFO, Michele. La prueba..., p.
309.
119
GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 226.
120
IBAÑEZ, Perfecto Andrés. Valoração da prova..., p. 42.
24
tarefa que somente se completa quando se colocam uns em face dos outros –, mas
assegurar que poderá servir como meio de prova apenas aquilo que tiver aptidão jurídica e
epistêmica para apoiar racionalmente a justificação de uma hipótese. A seleção dos meios
de prova (qualificação do que pode ser um meio idôneo), deve preceder à interpretação dos
elementos de prova (determinação do significado da informação obtida dos meios de prova)
e à valoração desses elementos de prova (atribuição da sua força de convencimento). O
enfrentamento transparente de questões problemáticas sobre quais meios de prova podem
ser justificados favorece a que sejam excluídos do convencimento judicial o que for
inaceitável sob o aspecto jurídico (v.g., provas repetíveis produzidas com ofensa ao
contraditório) e epistêmico (v.g., provas de “ouvir dizer”).
A chamada valoração conjunta, bem entendida, deve se dar em um momento
posterior à seleção dos meios de prova e à interpretação do seu resultado parcial, quando os
elementos probatórios aptos a integrar a fundamentação da decisão são avaliados mediante
consideração recíproca121
. Essa interferência mútua pode levar a que eles se excluam, se
complementem ou se mantenham neutros entre si. Dessa apreciação conjunta da prova
exsurge o grau de confirmação definitivo da hipótese levantada no processo.
A preferibilidade do modelo analítico avulta diante da inevitável importância das
provas indiretas122
ou indiciárias123
para o convencimento judicial. A motivação holista
parece compatível com a corrente pelas qual os requisitos da gravidade, precisão e
concordância das provas indiciárias possam ser exigidos ou considerados mediante uma
análise global, não precedida de uma avaliação individualizada de cada uma delas. De seu
turno, a motivação analítica permite a adoção do entendimento pelo qual somente aquelas
121
“Isto não quer dizer que no curso da análise deva/possa prescindir-se da perspectiva global do quadro
probatório. De forma natural o resultado de cada meio probatório irá produzindo seu efeito na consciência do
juiz, lhe dará um grau de informação, gerando um estado de conhecimento aberto à integração de novos dados
precedentes dos restantes meios de prova. Mas é inescusável que em algum momento cada um destes seja
analisado como se fosse o único disponível para avaliá-lo de forma individualizada. Só uma vez examinado
desse modo o resultado da totalidade da prova proposta, deverá o julgador proceder de forma reflexiva à
avaliação global do mesmo.” IBAÑEZ, Perfecto Andrés. Valoração da prova..., p. 44.
122
Se a distinção entre prova direta e indireta se funda no caráter mediato ou imediato do conhecimento dos
fatos que se provam, todas as provas sobre fatos passados são indiretas (ou indiciárias). O conhecimento
judicial nunca se dá pela observação imediata do fato a que o enunciado se refere, e sim por meio de um
processo inferencial que permite chegar a um fato a partir de outro. Contudo, se em vez de tratar do
procedimento probatório (contexto do descobrimento), se quiser fazer uma classificação sob a base do
resultado obtido por meio de tal procedimento (contexto da justificação), pode-se dizer que uma prova
(asserção justificada) é direta se versa sobre o fato principal, e indireta se versa sobre um fato secundário que
pode levar ao conhecimento do fato principal mediante outro procedimento probatório. Mesmo sob esta
segunda classificação, que dá algum sentido à distinção entre provas diretas e indiretas, deve ser reconhecida
a grande importância das provas indiretas para a comprovação dos fatos no processo. Sobre esses e outros
possíveis critérios para diferenciação de provas diretas e indiretas, ver: GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los
hechos..., pp. 86-93.
123
O termo “indício” pode ser utillizado em pelo menos três acepções: a) como sinônimo de presunção, para
designar o argumento mediante o qual se vinculam dois fatos, extraindo de um deles conseqüência para o
outro; b) para designar meios de provas dotados de baixo grau de confirmação; c) para designar o fato-base ou
a fonte que constitui a premissa menor da inferência presuntiva (conferir: TARUFFO, Michele. La prueba...,
pp. 479-80. Neste trabalho, reserva-se à expressão “indício” o significado de fato conhecido (provado) que
serve de base para se chegar ao conhecimento (comprovação) de outro fato (terceira acepção); e reserva-se a
expressão “prova indiciária” para designar a inferência obtida com o raciocínio presuntivo.
25
provas indiciárias que, isoladamente consideradas, são certas em seu ponto de partida
(requisito da precisão do indício ou fato-base) e que decorrem da utilização de regras de
experiência comum, lógica ou científica dotadas de um fundamento gnoseológico
minimamente aceitável (requisito da gravidade) podem complementar o valor probatório
umas das outras (requisito da concordância), mediante uma valoração conjunta124
.
4. Relação do dever de motivar com outros deveres éticos do juiz
O dever de motivação está diretamente conectado com outros deveres éticos. O
ponto de encontro das exigências de motivação e das outras exigências éticas está na
pretensão de correção do direito. O entrelaçamento de tais deveres, contudo, pode ocorrer
de diversas formas. Em muitos casos, a motivação serve, ainda que limitadamente, como
um instrumento para asseguração ou controle sobre as demais virtudes judiciais; em outros
casos, são outras virtudes que favorecem a realização ótima da motivação; e há, ainda,
hipóteses em que o dever de motivar colide com outros deveres éticos, de modo a exigir
uma ponderação.
4.1 Independência e imparcialidade
A admissão induvidosa do Poder Judiciário como elemento no sistema de freios e
contrapesos125
exige a consideração da independência judicial como pressuposto para que a
jurisdição cumpra a sua tarefa adequadamente126
. Um juiz independente, na dicção do art.
2º do Código Modelo, “é aquele que determina a partir do direito vigente a decisão justa,
sem se deixar influenciar de forma real ou aparente por fatores alheios ao próprio direito”.
O que se pretende evitar, obviamente, não é abertura do direito para outros campos do
conhecimento127
, mas a utilização de critérios particulares ou discriminatórios128
que
decorram de indevida pressão exercida pelo juiz.
Poder-se-ia se argumentar que a realização do dever de motivação seria incapaz de
contribuir para a observância da independência judicial, pois da escolha a decisão e a
apresentação das razões que a acompanham ocorrem em momentos diferentes: a primeira
situa-se no contexto do descobrimento; a segunda, no contexto da justificação129
. Contudo,
em que pese a importância de tal distinção, não se pode levá-la a extremos, pois o processo
124
Nesse sentido: KNIJNIK, Danilo. A prova..., p. 51.
125
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de
Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 376.
126
PEDRAZ PENALVA, Ernesto. Constitución, Jurisdicción y Proceso. Tordesillas: Akal, 1990, p. 35.
127
Sobre a abertura do direito a argumentos práticos gerais, conferir Capítulo 3.1.1, supra.
128
PEDRAZ PENALVA, Ernesto. Constitución, Jurisdicción y Proceso, p. 173.
129
Na teoria processual, é possível falar em contexto do descobrimento quando nos perguntamos como se
chegou a uma afirmação; e em contexto da justificação, quando nos perguntamos quais são as razões que
justificam uma afirmação. A diversidade entre contexto do descobrimento e contexto da justificação não seria
somente estrutural e funcional, mas sobretudo fenomenológica: o primeiro consiste numa atividade; o
segundo, num discurso. Nesse sentido: TARUFFO, Michele. La motivazione de la sentenza civile. Padova:
Cedam: 1975, pp. 213-4. Apud GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 112.
26
de descobrimento de uma hipótese não é estritamente independente do processo para a sua
validação130
. Vale transcrever, a propósito, a lição de Marina Gascón:
[N]o resulta descabellado pensar que la exigencia de motivar ‘retroactue’ sobre el
próprio iter de adopción de la decisión, reforzando su racionalidad; es decir,
provocando la expulsión de los elementos de convicción no suscetibles de justificación;
propiciando, en fin, que la adopción de la decisión se efectúe conforme a criterios aptos
para ser comunicados [...].131
Diante disso, embora o exercício independente da jurisdição dependa, em última
instância, da consciência individual do julgador, o papel do dever de motivar na realização
da independência judicial não deve ser subestimado. Se a independência judicial dirige-se a
assegurar a vinculação do juiz a critérios de correção jurídica132
, a exigência de motivação
contribui, em medida não desprezível, para controlar o influxo de fatores indevidos na
solução de casos concretos.
Enquanto a a independência trata de controlar os móveis do juiz frente a
influências estranhas ao direito, provenientes do sistema social, a imparcialidade pode ser
definida como a equidistância do julgador frente às partes e ao objeto do processo133
.
Deveras, dispõe o Código Modelo, em ser art. 10, que “o juiz imparcial é aquele que busca
nas provas a verdade dos fatos com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo
o processo uma distância equivalente com as partes e com os seus advogados e, evita todo o
tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito”.
Em relação à conexão dos deveres de imparcialidade e motivação, cumpre
reconhecer a reciprocidade dos controles que tais deveres impõem um em face do outro. Ao
mesmo tempo em que a consciência do dever de motivação contribui para manter a
imparcialidade do juiz, conferindo elementos para aferição in concreto de sua
observância134
, da mesma forma que o faz em favor da independência, correlatamente o
próprio dever de imparcialidade, aliado a exigências discursivas que se extraem da
concepção dialogal do processo, coloca certas exigências sobre o modo pelo qual o juiz
deve motivar sua decisão. Assim, o art. 16 do Código Modelo – topograficamente inserido
no capítulo reservado à imparcialidade –, ao enunciar que o juiz “deve respeitar o direito
das partes de afirmar e contradizer no âmbito do devido processo” conecta-se ao art. 24 do
mesmo Código, que dispõe sobre a consideração das alegações das litigantes, de modo a
exigir que a motivação judicial reflita esse tratamento igualitário na construção dos
argumentos que justificam a decisão. Essa exigência, obviamente, recrudesce a
responsabilidade judicial na tarefa de motivação, pois reclama que sua realização, em vez
130
GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., pp. 111-2.
131
GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 202. No mesmo sentido: ALEXY, Robert. Teoría de la
argumentación..., p. 221.
132
MONTERO AROCA, Juan. Sobre la imparcialidad…, pp. 101-3.
133
AGUILÓ REGLA, Josep. Independencia e imparcialidad de los jueces y argumentación jurídica.
Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2005. Edición digital a partir de Isonomía: Revista de
Teoría y Filosofía del Derecho, núm. 6 (abril 1997), pp. 71-99, aquí pp. 76-7.
134
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “A motivação das decisões judiciais...”, p. 87.
27
de ocorrer monologicamente, seja o resultado da contradição dialética que se manifesta na
participação dos litigantes.
4.2. Prudência, justiça e equidade
O termo prudência tem sua origem etimológica no verbo grego fróneo, que
significa ser sensato, ter juízo e capacidade de pensar e sentir. Na adaptação para o latim, a
expressão prudentia incorporou a seu significado a noção de previsão ou providência, no
sentido de ver antes, antecipar-se. Entende-se, por isso, que a prudência judicial é uma
qualidade da razão prática que guia a ação do juiz para, atendendo às circunstâncias do caso
concreto, dizer qual é a solução justa.135
A realização do dever de motivação também favorece a que o juiz exerça com
prudência o poder que acompanha o exercício da função jurisdicional. Se o Código Modelo
reclama que as decisões judiciais “sejam o resultado de um juízo justificado racionalmente,
depois de haver meditado e avaliado argumentos e contra-argumentos disponíveis” (art.
69), cabe ao juiz analisar criticamente as intuições que venham à sua mente, a fim de que
sua compreensão se atenha às coisas tais como elas são136
.
Em vez de negar a existência do círculo do conhecimento, cabe ao juiz entrar nele
corretamente, tomando consciência de suas próprias pré-compreensões, de modo a torná-las
comunicáveis e controláveis por meio da reflexão e da argumentação137
. Daí a exigência do
Código Modelo de que o juiz mantenha “uma atitude aberta e paciente” para ouvir e
reconhecer novos argumentos e críticas que lhe possibilitem “confirmar ou retificar
critérios ou pontos de vista assumidos” (art. 70). Com isso se remete, novamente, ao caráter
dialogal da decisão judicial e à necessidade de motivação sobre questões jurídicas ou
fáticas sobre as quais os litigantes argumentam e contra-argumentam.
Ao passar sua pré-comprensão pelo crivo da racionalidade138
, em um esforço para
maximizar a objetividade de sua decisão (Código Modelo, art. 72), o juiz submete a solução
que cogita adotar a uma operação de filtragem cultural e técnica, conforme exigências de
método e do quadro de pautas processuais constitucionalmente determinadas139
. Que o juiz
deva, frequentemente, fazer uma verdadeira cirurgia sobre as próprias impressões e
emoções140
não significa, contudo, que sua decisão deverá deixar de considerar outras
“consequências pessoais, familiares ou sociais desfavoráveis surgidas pela inevitável
135
PLATAS PACHECO, Maria del Carmen. “Prudencia y justicia: exigencias de la ética judicial”. Em:
Revista del Instituto de la Judicatura Federal, 21, 2006, pp. 197-213, aqui pp. 198-200.
136
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I, p. 355.
137
HASSEMER, Winfried. Introdução..., p 96-7
138
“O círculo não deve ser rebaixado a um vitiosum, mesmo que apenas tolerado. Nele se esconde a
possibilidade positiva do conhecimento mais originário que, de certo, só pode ser apreendida de modo
autêntico se a interpretação tiver compreendido que sua primeira, única e última tarefa é de não se deixar
guiar, na posição prévia, na concepção prévia, por conceitos ingênuos e ‘chutes’. Ela deve, na elaboração da
posição prévia, da visão prévia e da concepção prévia, assegurar o tema científico a partir das coisas elas
mesmas.” MARTIN HEIDEGGER, Ser e tempo, vol. 1, Petrópolis, Vozes, 1989, p. 210. Apud GADAMER,
Hans-Georg. Verdade e Método II. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 74.
139
IBAÑEZ, Perfecto Andrés. “Ética de la función de juzgar”, p. 58.
140
IBAÑEZ, Perfecto Andrés. “Ética de la función de juzgar”, p. 58.
28
abstração e generalidade das leis” (Código Modelo, art. 36). Em nenhuma hipótese
racionalidade e impessoalidade devem ser confundidas com abandono das exigências de
equidade. A conciliação entre racionalidade e equidade obtém-se pelo princípio da
universalização. Não é por outro motivo que o Código Modelo conceitua o juiz equitativo
como “aquele que - sem transgredir o Direito vigente - tem em consideração as
peculiaridades do caso e toma resoluções baseado em critérios coerentes com os valores do
ordenamento e que possam estender-se a todos os casos substancialmente semelhantes”
(art. 37, itálico acrescentado). Ao aplicar a equidade, o juiz deve mostrar motivadamente,
de acordo com os critérios do discurso jurídico racional, que sua decisão não é uma
corazonada, nem se baseia em critérios ad hoc.
4.3 Conhecimento e capacitação
Uma aplicação correta do direito, de acordo com os critérios da justificação
racional, pressupõe o conhecimento da ordem jurídica por parte do juiz. É o estudo
permanente, sério e sistemático, a alavanca propiciadora de melhor opção, dentre as
múltiplas escolhas possíveis141
. Com efeito, dispõe o art. 28 do Código Modelo que “a
exigência de conhecimento e de capacitação permanente dos juízes tem, como fundamento,
o direito dos processáveis e da sociedade em geral para obter um serviço de qualidade na
administração de justiça”. A realização do dever ético de conhecimento e capacitação
contínua instrumentaliza e otimiza a realização das exigências de motivação e,
consequentemente, favorece a obtenção de soluções jurídicas adequadas nos casos levados
ao Judiciário.
O reconhecimento da necessária abertura do direito a influências da ética, da
economia, da política, da sociologia e de vários outros campos do conhecimento exige uma
contínua formação interdisciplinar do juiz. Se o conhecimento judicial há de ser rigoroso, o
juiz deverá fazer próprios os critérios que são tidos como válidos em outros âmbitos do
conhecimento142
. Daí a exigência de que o dever de formação continuada do juiz se estenda
“tanto às matérias especificamente jurídicas quanto ao que se refere aos conhecimentos e
técnicas que possam favorecer o melhor cumprimento das funções judiciais” (Código
Modelo, art. 30). Quanto melhor o preparo intelectual do juiz, nas mais diversas áreas do
conhecimento, tanto melhor será, ceteris paribus, a justificação das suas decisões.
4.4. Responsabilidade institucional
Dispõe o Código Modelo, em ser art. 43, que cabe aos membros do Poder
Judiciário “promover na sociedade uma atitude, racionalmente fundada, de respeito e
confiança para com a administração de justiça”. O reconhecimento da responsabilidade
institucional do juiz reforça a exigência de que a qualidade no exercício da justiça não é
apenas uma questão individual de cada juiz, mas requer uma estrutura institucional
141
NALINI, José Renato. “O juiz e suas atribuições funcionais. Introdução à deontologia da magistratura”,
pp. 1-16. Em: LAZZARINI, Alvaro; NALINI, Jose Renato. Curso de deontologia da magistratura. Sao
Paulo: Saraiva, 1992, aqui p. 2.
142
IBAÑEZ, Perfecto Andrés. “Ética de la función de juzgar”, p. 63.
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  • 1. Motivação judicial sob a perspectiva ética Paulo Mário Canabarro Trois Neto Juiz Federal Publicado em: Princípios de la ética judicial iberoamericana: Motivación Judicial. “Motivación judicial bajo la perspectiva ética”, pp. 5-135. Série Monografías Premiadas, vol. 4. México: Suprema Corte de la Justicia de la Nación; Cumbre Judicial Iberoamericana; Comisión Iberoamericana de Ética Judicial, 2012. Sumário: Introdução. 1 Dever de motivação e excelência judicial. 1.1 A razão de ser do dever de motivação. 1.2 Estrutura do dever de motivação. 2 O dever de motivação na teoria da argumentação jurídica. 2.1 A regra da universalizabilidade. 2.2 O caráter dialogal da correção argumentativa. 3. Abrangência do dever de motivação. 3.1. Motivação das questões de direito. 3.1.1 O uso dos cânones de interpretação. 3.1.2 A argumentação dogmática. 3.1.3 A vinculação aos precedentes. 3.2 Motivação das questões de fato. 3.2.1 Critérios de confirmação e refutação de uma hipótese fática. 3.2.2 A estrutura da fundamentação sobre a matéria fática. 4. Relação do dever de motivar com outros deveres éticos do juiz. 4.1 Independência e imparcialidade. 4.2. Prudência, justiça e equidade. 4.3 Conhecimento e capacitação. 4.4. Responsabilidade institucional. 4.5 Diligência. Conclusão. Referências bibliográficas. Palavras-chave: motivação – justificação – ética judicial – argumentação jurídica – teoria do discurso. Resumo: A pretensão de correção do direito, no âmbito de um arranjo constitucional que proíbe o exercício arbitrário do poder, exige que as decisões judiciais sejam motivadas de acordo com critérios de correção argumentativa. O dever de motivar, estruturado como um mandamento de otimização, ordena a apresentação das razões dotadas da maior força de justificação possível. O inevitável entrelaçamento do dever de motivação com outras exigências éticas impõe aos juízes que, na busca de sua perfeição profissional, se esforcem em promover a concordância prática de todas as virtudes que integram o ideal de excelência judicial.
  • 2. 2 Introdução Neste trabalho, propõe-se investigar o dever de motivação sob o enfoque da ética judicial. O objeto do presente estudo consiste, precisamente, em expor o fundamento, o conteúdo e as implicações do dever de motivação, não sob a perspectiva do juiz medíocre, que se contenta com o mínimo, mas sob a perspectiva do melhor juiz que se pode conceber. A importância do tema pode ser comprovada pela introdução, no Código Modelo Iberoamericano de Ética Judicial1 , de disposições das quais se extrai a alocação da motivação das decisões do Poder Judiciário no quadro das exigências que formam o ideal de conduta do juiz. Emprega-se a expressão motivação, para os fins deste trabalho, para designar a apresentação de fundamentos pelos quais uma determinada asserção se justifica racionalmente2 . Com tal conceito se afasta qualquer significação psicológico-causal que a locução motivação poderia suscitar em outros contextos. Essa opção terminológica vai ao encontro da utilizada no Código Modelo, que enuncia, em seu art. 19: “Motivar implica exprimir, de maneira ordenada e clara, razões juridicamente válidas, aptas para justificar a decisão”. A reconhecida disseminação da ideia de que o dever de motivar toma parte no desempenho ótimo da prestação jurisdicional permite a opção metodológica, ora adotada, de não limitar a abordagem do tema a um sistema judicial específico. Pretende-se que as conclusões obtidas sejam aplicáveis a qualquer organização judiciária estruturada sob o signo da limitação do poder estatal e da proteção de direitos fundamentais. No Capítulo 1, justifica-se a inserção do dever de motivação no arcabouço ético- jurídico da função judicial, tanto sob os aspectos históricos e filosóficos, como sob o aspecto de sua aplicação prática. O Capítulo 2 trata das exigências discursivas da motivação judicial no âmbito da teoria da argumentação jurídica contemporânea. O Capítulo 3 estuda o modo como a exigência de motivar incide nas questões de direito e nas questões de fato. O Capítulo 4, por fim, propõe a aproximação do dever de motivação com outros deveres éticos judiciais. 1 Dever de motivação e excelência judicial A ética judicial tem por propósito indicar ao juiz exigências que o dirigirão a alcançar a plenitude ou perfeição em sua atividade, alijando-o tanto da “ruindade” judicial como da “mediocridade” judicial3 . Perguntar pela ética judicial é, portanto, interrogar sobre 1 O Código Modelo Iberoamericano de Ética Judicial foi aprovado na VIII Cúpula Iberoamericana de Presidentes de Cortes Supremas e Tribunais Supremos de Justiça realizada em Santo Domingo (República Dominicana), entre 21 e 22 de junho de 2006. Doravante será chamado, neste trabalho, apenas de Código Modelo. 2 O presente trabalho não faz distinção entre as expressões motivação e fundamentação. Quando houver remissão à opiniões doutrinárias, será observada a nomenclatura utilizada pelos autores citados. 3 VIGO, Rodolfo Luis. “Ética Judicial. Su especificidad y responsabilidad”. Revista CEJ n. 32, v. 10, 2006. pp. 12-25, aqui p. 16.
  • 3. 3 um modelo de juiz4 . Embora haja reclamos éticos judiciais de alcance universal, que podem ser considerados constitutivos para a função, as exigências relativas à excelência judicial variam no tempo e no espaço, conforme a cultura jurídica em que se inserem5 . A tipologia do Estado Liberal supunha uma nítida divisão entre criação e aplicação do direito. A fórmula montesquiana da separação radical de poderes, em que o juiz era nada mais que a “boca da lei”, partia da ideia de um direito completo e coerente, capaz de possibilitar a resolução de todos os casos mediante aplicação das normas gerais. Essa pretensão de operar o direito somente com o direito, sem abertura às dimensões éticas, políticas, econômicas e culturais6 , tem como marco a codificação napoleônica, que foi o primeiro intento sério de lograr uma legislação completa e coerente sobre uma determinada matéria7 . Do Estado Liberal forma parte um modelo de juiz que se disseminou na Europa ao longo do século XIX e permaneceu substancialmente invariável até meados do século XX. Seus traços constitutivos estão predeterminados pelo controle ideológico, pela seleção endogâmica no momento do acesso e pela opção cultural imperante em matéria jurídica, própria do positivismo dogmático. O juiz resultante desse modelo expressa em si mesmo uma curiosa síntese das duas tipologias da taxonomia weberiana: tecnicamente, ele se apresenta como um operador legal-racional, um aplicador técnico do direito; eticamente ele tem uma notável proclividade ao integrismo religioso-moral.8 O juiz do modelo decimonônico é um operador marcadamente autoritário9 . A concepção de que os juízes não criam o direito, vazada no art. 5 do Código de Napoleão, longe de limitar o poder judicial, apenas o reforçava10 , por conferir-lhe uma aura infalibilidade ou certeza que ele nunca poderia ter. Uma deformação similar também podia ser detectada quanto às questões fáticas: a íntima convicção, opção alternativa à prova taxada, converte-se nas mãos desse juiz em uma peculiar garantia de irracionalidade e de imunidade frente a possíveis controles11 . 4 IBAÑEZ, Perfecto Andrés. “Ética de la función de juzgar”. Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia Penal: Criminologia, Teoría y Praxis n. 1, v. 1, 2002. pp. 55-68, aqui p. 59. 5 VIGO, Rodolfo Luis. “Ética Judicial. Su especificidad y responsabilidad”, p. 16. 6 VIGO, Rodolfo Luis. Ética judicial e interpretación jurídica. Edición digital: Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2009. Edición digital a partir de Doxa: Cuadernos de Filosofía del Derecho, núm. 29 (2006), pp. 273-294, aqui p. 274 7 Nesse sentido, BULYGIN, Eugenio. “Los jueces ¿crean derecho?” Edición digital: Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2005. Título de serie: Poder judicial y democracia. Edición digital a partir de Isonomía: Revista de Teoría y Filosofía del Derecho, núm. 18 (abril 2003), pp.6-25, aqui pp. 8-9. A cultura jurídica dessa fase pode ser sintetizada na lição de Laurent: “Os códigos não deixam nada ao arbítrio do intérprete; este já não tem por missão fazer o direito: o direito já está feito. Não existe incerteza, pois o direito está escrito em textos autênticos.” Cours élementaire de droit civil, t. I, p. 9. Apud VIGO, Rodolfo Luis. Interpretação jurídica: do modelo juspositivista-legalista do século XIX às novas perspectivas. Tradução de Susana Elena Dalle Mura. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 38. 8 IBAÑEZ, Perfecto Andrés. “Ética de la función de juzgar”, pp. 59-60. 9 IBAÑEZ, Perfecto Andrés. “Ética de la función de juzgar”, p. 60. 10 TROPER, Michel. El poder judicial y la democracia. Edición digital: Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2005. Título de serie: Poder judicial y democracia. Edición digital a partir de Isonomía : Revista de Teoría y Filosofía del Derecho, núm. 18 (abril 2003), pp.47-75, aqui p. 58. 11 IBAÑEZ, Perfecto Andrés. “Ética de la función de juzgar”, p. 60.
  • 4. 4 Tal modelo de juiz foi fortemente questionado, a partir do segundo pós-guerra, tanto no âmbito político, por meio de um constitucionalismo renovado, como nos meios culturais dos próprios operadores jurídicos12 , notadamente pelo ocaso do positivismo jurídico. Com efeito, o Estado de Direito Constitucional de nossos dias caracteriza-se por uma relativa autonomização dos distintos aspectos do direito que até então estavam reduzidos à lei13 . Em que pese o ideal da certeza jurídica, a existência de uma certa indeterminação do direito já não pode mais ser disfarçada14 . Disputas acerca da interpretação dos materiais jurídicos, da avaliação dos elementos de prova e da caracterização adequada dos fatos tidos como provados não são uma excrescência patológica do sistema; elas são um elemento integrante de uma ordem jurídica que esteja funcionando de acordo com os ideais do Estado de Direito15 . Disso decorre o reconhecimento de que proposições jurídicas possuem um caráter derrotável ou excepcionável (defeasible), que não se deve apenas à textura aberta do direito, mas ao próprio caráter argumentativo do raciocínio jurídico16 . O inevitável reconhecimento de um espaço à criatividade judicial não significa, contudo, que os juízes sejam os novos “senhores do direito”; eles são, mais exatamente, os garantes da complexidade estrutural do direito no Estado Constitucional, é dizer, os 12 IBAÑEZ, Perfecto Andrés. “Ética de la función de juzgar”, p. 60. 13 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. Tradução de Marina Gascón Abellán. 4ª edição. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 40 14 Essa ideia de uma relativa indeterminação do direito, registre-se, já era aceita pelos dois expoentes máximos da fase final do positivismo jurídico. Reconhecendo a impossibilidade de a lei determinar completamente o conteúdo da sentença judicial, lecionava Kelsen: “Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato”. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 388. Também Hart admitia que, dada a textura aberta do direito, haveria “áreas de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais ou pelos funcionários, os quais determinam o equilíbrio, à luz das circunstâncias, entre interesses conflituantes que variam em peso, de caso para caso”. HART, Herbert L. A. O conceito de direito. 4ª edição. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 148. 15 MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito. Trad. Conrado Hubner Mendes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, pp., 36-7. 16 A ideia de defeasibility vem de Hart (“The Ascription of Responsability and Rights”, Proceedings of Aristetelian Society 49 (1948-1949), pp. 171-94). Embora tal conceito tenha sido renegado por seu autor em outra obra (Punishment and Responsability. Oxford: Clarendon Press, 1968, Prefácio), foi reabilitado posteriormente por G. P. Baker (“Defeasibility and Meaning”. Em: P. M. S. Hacker e J. Raz (orgs.) Law, Morality and Society, Oxford: Clarendon Press, 1977, pp. 26-57). Conferir em MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito, p. 310. Outros desenvolvimentos sobre o caráter derrotável ou excepcionável do raciocínio jurídico são atribuídos a G. Sartor (“Defeasibility in Legal Reasoning”. Em Z. Bankowski et al. (eds.) Informatisc and the foundations of legal reasoning. Dordrecht/Boston/London: Kluwer, pp. 119- 57.1995), H. Prakken (Logical tools for modelling legal argument. A study of defeasible reasoning in law. Dordrecht/Boston/London: Kluwer, 1997) J. C. Hage e A. Peczenik (“Laws, morals and defeasibility”. Ratio Juris 13, pp. 305-25. 2000) e a R. Tur (“Defeasibilism”, Oxford Journal of Legal Studies 21, 2001, pp. 355- 68). Apud BAYÓN, Juan Carlos. “¿Por qué es derrotable el razonamiento jurídico?” Edición digital: Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2005. Série: Sobre el razonamiento jurídico. Edición digital a partir de Doxa: Cuadernos de Filosofía del Derecho, núm. 24 (2001), pp. 35-62, aqui p. 35.
  • 5. 5 garantes da necessária e dúctil coexistência entre lei, direitos e justiça.17 O direito passa a ser visto como um processo de concreção ou determinação crescente do qual participam vários atores18 . Nessa mudança de paradigma do operar judicial está contida uma nova ética da função judicial: o juiz do poder dá passo a um juiz dos direitos19 . Como a legitimidade daqueles que operam a relevante função de dizer o direito em casos concretos não é de origem, mas de exercício, põe-se a necessidade do estabelecimento de certas exigências relativas ao modo como essa função deve ser desempenhada. O juiz do modelo constitucional não pode ser nem um oráculo, nem uma pitonisa, senão um operador racional20 , que motiva suas decisões com base em argumentos dotados de validez intersubjetiva. Se motivar, conforme doutrina de Letizia Gianformaggio, significa justificar ou, mais precisamente, justificar-se, dar razões à aceitabilidade do próprio trabalho, a exigência de motivação pressupõe a admissão, em linha de princípio, da legitimidade das críticas potenciais e da submissão do poder a uma forma de controle21 . Uma certa margem de apreciação judicial, tanto na interpretação do direito como na fixação formal dos fatos, conecta-se, assim, à exigência de que essa relativa liberdade seja usada com racionalidade. E apenas com a transparência da justificação da decisão judicial essa conciliação entre razão e liberdade pode ser obtida. Uma vez admitido que “onde há razão e liberdade humana, cabe o juízo ético”22 , o dever de motivar assume inegável importância na ética judicial. A aceitabilidade do exercício ao mesmo tempo livre e racional da atividade do juiz depende da qualidade das razões apresentadas em favor da solução que, dentre outras possíveis, foi a escolhida para resolver o caso levado ao Judiciário. Que a obrigatoriedade da motivação judicial esteja positivada na maioria dos ordenamentos jurídicos nacionais, em alguns casos até mesmo no plano constitucional23 , não fala contra a relevância da perspectiva ética: o direito e suas exigências, como se sabe, resultam insuficientes para o fim de alcançar o melhor juiz possível para a sociedade em que este historicamente presta seu serviço24 . A projeção ética do dever de motivação surge, então, em complemento ao aspecto estritamente jurídico, como um meio de obter a excelência da justificação judicial, afastando a resignação com a motivação mínima ou medíocre. 17 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil, p. 153 18 VIGO, Rodolfo Luis. Interpretação jurídica: do modelo juspositivista-legalista do século XIX às novas perspectivas, p. 274. 19 IBAÑEZ, Perfecto Andrés. “Ética de la función de juzgar”, p. 61. 20 IBAÑEZ, Perfecto Andrés. “Ética de la función de juzgar”, p. 64. 21 GIANFORMAGGIO, Letizia. “Modelli di ragionamento giuridico. Modello deduttivo, modello indutivo, modello retorico”. U. Scarpelli (org.). La teoria generale del diritto. Problemi i tendenze attuali. Studi dedicati a Norberto Bobbio Milano: Edizione di Comunità, 1983, p. 136. Apud IBAÑEZ, Perfecto. Valoração da prova e sentença penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 107. 22 VIGO, Rodolfo Luis. “Ética Judicial. Su especificidad y responsabilidad”, p 17. 23 Dentre as constituições que preveem o dever judicial de motivação estão a Constituição mexicana de 1917 (art. 16, aplicável às autoridades judiciárias), a Constituição italiana de 1947 (art. 111, § 1º), a Constituição portuguesa de 1974 (art. 205, § 1º), a Constituição espanhola de 1978 (art. 120, § 3º), a Constituição brasileira de 1988 (art. 93, IX), a Constituição peruana de 1993 (art. 139, § 5º), a Constituição belga de 1994 (art. 93, § 3º) e a Constituição grega de 1974, reformada em 1986 (art. 149). 24 VIGO, Rodolfo Luis. “Ética Judicial. Su especificidad y responsabilidad”, p. 24.
  • 6. 6 1.1 A razão de ser do dever de motivação O Código Modelo dispõe, em seu art. 18, que a obrigação de motivar as decisões judiciais está orientada para “assegurar a legitimidade do Juiz, o bom funcionamento de um sistema de impugnações processuais, o adequado controle do poder do qual os juízes são titulares e, em último caso, a justiça das resoluções judiciais”. Alude-se, no dispositivo transcrito, às duas funções que, consoante a doutrina, são cumpridas pelo dever de motivação. A instrumentalização do bom funcionamento do sistema de impugnações diz respeito à função endoprocessual da motivação, já que o conhecimento dos motivos da decisão facilita a individualização – e a correção, em grau de recurso – de possíveis erros cometidos pelo juiz. Já o controle do poder, a asseguração da legitimidade do juiz e a busca pela justiça referem-se à função extraprocessual da motivação.25 Esta última função é a que, com mais intensidade, interessa à abordagem do dever de motivação sob o prisma da ética judicial. A obrigatoriedade das decisões judiciais é condição para o funcionamento dos órgãos jurisdicionais. O julgador tem por trás de si todo o aparato coercitivo do Estado para fazer com que elas sejam acatadas. Contudo, a questão de por que, em um Estado constitucional, uma decisão judicial deve ser obedecida, pede uma resposta que vai além da possibilidade de uso do aparelho de coerção estatal. Essa obediência pode ser imposta por meio da força, mas não se trata de uma força qualquer, e sim de uma força legítima26 . Coloca-se, então, o problema de como se justifica a legitimidade das decisões judiciais e da conseqüente possibilidade de fazê-las serem cumpridas por meios coercitivos. Rejeitando o positivismo jurídico, pelo qual o direito seria composto apenas de fatos sociais (comando e eficácia), essa justificação apenas dá bom resultado quando a tal dimensão real ou fática reconhecida pelos positivistas se acrescenta uma dimensão ideal ou discursiva de correção, cujo principal elemento é a justiça27 . A monopolização do uso autorizado da força somente pode ser aceita e realizada de modo efetivo se se concedem às partes certas garantias de obtenção de decisões corretas28 . A legitimidade das decisões judiciais reside, portanto, na pretensão de correção que subjaz o exercício do poder judicial. Que a decisão judicial promova uma pretensão de correção significa, primeiro, que a ela se une uma afirmação implícita de sua correção quanto ao conteúdo e ao procedimento; segundo, que ela abarca uma garantia de fundamentabilidade por meio da qual essa correção pode ser controlada; terceiro, que ela se faz acompanhar da esperança do reconhecimento de sua correção sob o ponto de vista do sistema jurídico respectivo.29 Abrir 25 Sobre a função endoprocessual e extraprocessual da motivação, conferir: TARUFFO, Michele. “La motivazione della sentenza”. Genesis – Revista de Direito Processual Civil. Curitiba: Gênesis, n. 31, p. 177- 185, janeiro/março 2004. 26 BAEZ SILVA, Carlos. “La motivación y la argumentación en las decisiones judiciales”, Revista Del instituto de la Judicatura Federal n. 13, México, 2003, pp. 107-13, p. 112. 27 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 9. 28 HABERMAS, Jürgen. Direito e democaracia entre facticidade e validade. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 295. 29 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo, pp. 20-1 e 23.
  • 7. 7 mão da pretensão de correção permitiria aceitar que os provimentos jurisdicionais possam se apoiar em manipulações exitosas e convicções irracionais. O lugar da pretensão de correção, assim, poderia ser ocupado por algo como uma “pretensão de poder”30 . A concepção de decisão judicial ora defendida tem conseqüências relevantes quanto ao modo de se compreender o dever de motivação imposto aos órgãos jurisdicionais no Estado de Direito. A exigência de motivar busca atender ao ideal de que o processo judicial, muito além de simplesmente absorver tensões sociais e garantir a ordem social31 , cumpre também o papel de estabelecer soluções aceitáveis do ponto de vista da correção jurídica. O direito de agir em juízo não é o de obter uma decisão qualquer32 , pois o dever do Estado de tratar seus cidadãos de forma racional, conforme o mandamento da dignidade humana, abrange o dever de apresentar as razões que apoiam uma intervenção nos interesses de um indivíduo33 . A legitimidade da decisão judicial é, por isso, um assunto de justificação do exercício do poder no caso concreto34 . Vale lembrar que o controle do discurso do juiz, no marco da racionalidade legal, não é apenas um controle de procedência externa, senão que também se projeta em face do próprio juiz, comprometendo-o a não aceitar acriticamente as “perigosas sugestões da certeza subjetiva”35 Se não é possível negar que fatores emotivos e ideológicos possam ter alguma influência na solução do caso, é possível defender que a consciência do dever de justificação favorece a que o juiz, na expectativa de uma aceitação intersubjetiva de sua atividade, condicione a formulação da própria decisão, submetendo esta a controles racionais e jurídicos36 . A controlabilidade do discurso por meio da exigência de argumentos práticos e jurídicos adequados contribui, assim, para que a afirmação sobre os enunciados fáticos ocorra apenas com base em razões confessáveis37 e, portanto, aptas a serem tidas como corretas. 30 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo, p. 24. Transcreve-se, a propósito, o seguinte trecho: “Nós podemos tentar despedir as categorias da verdade, da correção e de objetividade. Se isso desse-nos bom resultado, nosso falar e nosso atuar, porém, seriam algo essencialmente diferente como é agora. O preço não seria só alto. Ele compor-se-ia, em um certo sentido, de nós mesmos.” (Obra citada, pp. 24-5) 31 ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1989, p. 210. O autor refere-se às insuficiências da teoria da legitimação pelo procedimento de Niklas Luhmann (Legitimation durch Verfahren, p. 121). No mesmo sentido, a crítica apresentada por Habermas de que, em Luhmann, “a legitimidade é explicada em termos da legalidade como um autoengano estabilizador do sistema”. Conferir: HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre facticidade e valide. Vol. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 223. 32 KNIJNIK, Danilo. A Prova nos Juízos Cível, Penal e Tributário. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007, p. 7. 33 LADD, J. “The place of the pratical reason in judicial decision”. Rational decision, Nomos vol. 7, C.J Friedrich. Nova York, 1964, p. 144. Apud ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación..., p. 210. 34 BAEZ SILVA, Carlos. “La motivación y la argumentación en las decisiones judiciales”, p. 112. 35 IBAÑEZ, Perfecto Andrés. Valoração da prova e sentença penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 107. 36 TARUFFO, Il vertice ambiguo, p. 139. Apud GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos em el derecho – Bases argumentales de la prueba. 2ª edición. Madrid, Barcelona: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, 2004, p. 202. 37 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 113.
  • 8. 8 Para que uma decisão judicial esteja adequadamente justificada, é preciso que a motivação judicial seja desenvolvida sob o influxo de um procedimento racional, controlável e adequado às peculiaridades do caráter fortemente institucionalizado do raciocínio jurídico.38 Identificar os principais elementos desse procedimento é uma das tarefas a que este estudo se propõe. 1.2 Estrutura do dever de motivação As exigências da ética judicial remetem a certos valores ou virtudes que as sintetizam. De acordo com Rodolfo Vigo, essas exigências devem ser chamadas de “princípios”, não só por se tratar de uma terminologia bastante estendida, mas também porque com tal expressão se alude a mandamentos de otimização, que exigiriam a melhor conduta possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas presentes39 . No modelo de perfeição judicial, portanto, o dever de motivar seria um mandamento ideal que ordena aos órgãos julgadores que suas decisões sejam proferidas mediante uma motivação tão boa e completa quanto permitir a situação concreta. Essa visão tem a seu favor a constatação de que os problemas ligados à justificação das decisões judiciais não se reduzem à reconstrução do raciocínio do juiz a um silogismo jurídico, é dizer, ao atendimento do critério lógico pelo qual a conclusão deve ser a conseqüência de premissas normativas e fáticas (âmbito da justificação interna), senão que dizem respeito à apresentação de passos de desenvolvimento que, para fundamentação da própria escolha das premissas utilizadas, veiculem razões tão boas, completas e rigorosas quanto possível (justificação externa).40 Tratar o dever de motivação como princípio significa reconhecer que a medida de sua realização será tanto maior quanto mais e melhores passos de desenvolvimento forem dados. Deveras, o dever ético de motivar uma decisão é algo que pode ser realizado em graus variados de qualidade e extensão. Na perspectiva da excelência judicial, é prima facie exigível do juiz o emprego de todos os meios para a maximização da qualidade justificativa da motivação judicial e, correlatamente, a superação de todos os obstáculos à realização ótima dessa tarefa41 . Por isso, embora seja possível que determinado ordenamento jurídico, 38 No âmbito da justificação externa, ALEXY distingue diferentes tipos de premissas a que correspondem diferentes métodos de fundamentação: regras de direito positivo, enunciados empíricos e premissas que não são nem regras de direito positivo nem enunciados empíricos. “La fundamentación de uma regla entanto regla de Derecho positivo consiste en mostrar su conformidad con los critérios de validez del ordenamiento jurídico. En la fundamentación de premisas empíricas puede recorrirse a un escala completa de formas de proceder que va desde los métodos de las ciencias empíricas, pasando por las máximas de presunción racional, hasta las reglas de la carga de la prueba en el proceso. Finalmente, para la fundamentación de las premisas que no son ni enunciados empíricos ni reglas de Derecho positivo sirve lo que puede designar-se como ‘argumentación jurídica’”. Teoría de la argumentación jurídica, p. 222. 39 VIGO, Rodolfo Luis. “Ética Judicial. Su especificidad y responsabilidad”, p. 18. 40 ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 214. 41 Esse entendimento está em consonância com a doutrina de ALEXY: “[S]e é exato que existe um dever de fundamentação judicial, então se sugere a conclusão que existe um dever de fundamentar sentenças judiciais corretamente. Isso é um argumento contra concepções que acham compreendê-lo suficientemente com a análise dos efeitos da atividade de fundamentação jurídica e um argumento para a relevância de esforços para
  • 9. 9 sob o aspecto estritamente normativo, em alguns casos tolere certos estilos de motivação, como a motivação per relationem ou a motivação implícita42 , sob o aspecto ético essas questões podem ser sempre problematizadas mais uma vez. Quando o Código Modelo enuncia, em seu art. 20, que “o dever de motivar adquire uma intensidade máxima em relação às decisões privativas ou restritivas de direitos ou quando o juiz exerça um poder discricionário”, disso se extrai uma norma que estabelece um importante critério para aferição da suficiência justificatória da resolução judicial: quanto mais intensos forem os efeitos da decisão na esfera jurídica do jurisdicionado, ou quanto maior o espaço de atuação judicial para criação da norma individual que regerá o caso concreto, tanto mais fortes devem ser as razões que justificam a decisão adotada. Apesar dos renovados esforços da doutrina em diminuir a discricionariedade no direito, não se pode negar que persiste a possibilidade de, em certos casos, o juiz fazer uma opção discricionária que terá relevância na solução do caso sob sua responsabilidade. Analisar as hipóteses em que essa discricionariedade é justificável refoge ao objeto deste estudo, mas cumpre, de qualquer modo, reconhecer que a exigência de motivação é um dos elementos capazes de confiná-la a limites aceitáveis. Está em jogo, aqui, a necessidade de um mecanismo de controle, ainda que mínimo, da justiça da decisão. Conforme lição de Barbosa Moreira, “a motivação é tanto mais necessária quanto mais forte o teor de discricionariedade da decisão, já que apenas à vista dela se pode saber se o juiz usou bem ou mal a sua liberdade de escolha, e sobretudo se não terá ultrapassado os limites da discrição para cair no arbítrio” 43 . Para além das dificuldades conceituais que a expressão “discricionariedade” suscita, essa exigência ampliada de motivação também deve ser estendida àquelas hipóteses em que, embora não se trate propriamente de um espaço de discricionariedade, haja um incremento do risco – fisiológico ou patológico – de que a subjetividade do juiz contamine a aplicação do direito. Tais seriam, por exemplo, os casos em que é necessária interpretação de conceitos indeterminados ou a ponderação de princípios. Quanto às decisões privativas ou restritivas de direito, o incremento do dever de motivação justifica-se pela concepção de que, nas sociedades modernas, a liberdade humana e os outros direitos que lhe são correlatos devem ser levados a sério. Se o Estado existe em função da pessoa, e não o contrário, então as razões requeridas para a admissão da intervenção estatal na esfera jurídica de alguém devem ser tanto mais robustas quanto mais relevante for o direito atingido e quanto maior for o grau de afetação de tal direito. É por isso que, a título de exemplo, a motivação de uma sentença penal condenatória deve ser ceteris paribus mais complexa que a de uma sentença absolutória, assim como a aplicação aprofundar critérios para fundamentações jurídicas corretas.” ALEXY, Robert. Direito, Razão, Discurso. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 19, nota de rodapé n.° 14. 42 No direito brasileiro a admissão da validade da motivação implícita foi afirmada, dentre outros julgados, nos seguintes acórdãos: STF, HC 74.892/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 1.8.199; STJ, Resp 47.474/RS, 6ª Turma, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJ 24.10.1994. 43 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado de Direito”. Em Temas de direito processual – 2ª série. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 88.
  • 10. 10 de uma pena privativa de liberdade exige razões ceteris paribus mais fortes que a aplicação de uma pena de multa, nos casos em que há essa cominação alternativa. Tomar o dever ético de motivação como um mandamento ideal, que pode ser aplicado em distintos graus, implica necessariamente reconhecer que ele pode colidir com outros deveres ético-judiciais. A aferição da conduta judicial devida, sob a perspectiva da excelência judicial, em muitos casos exigirá um juízo de ponderação do princípio da motivação em face de princípios éticos dotados de igual relevância. Quanto mais próximo um juiz historicamente situado chegar à concordância prática dos deveres éticos que deve cumprir, tanto mais próximo da perfeição judicial ele estará. 2 O dever de motivação na teoria da argumentação jurídica A otimização da qualidade justificativa da fundamentação judicial obtém-se mediante a realização, tão boa quanto possível, das exigências de racionalidade, completitude e controlabilidade44 . Como o atendimento a tais qualidades pode ocorrer em graus variados e crescentes de detalhamento da fundamentação jurídica, coloca-se o problema do regresso ao infinito. Onde termina o dever de motivação de cada proposição apresentada na decisão judicial? Conforme lição de Marcelo Guerra, mesmo a ação judicial que pedisse a providência jurisdicional ceteris paribus mais simples, qual seja, a declaração da existência de um direito subjetivo45 , em tese admitiria infinitos níveis de fundamentação na sentença. Em um primeiro nível, as condições de existência de um determinado direito subjetivo poderiam ser desdobradas em duas: a) a existência de uma norma geral N que contenha a descrição do fato F como condição de sua incidência; b) a ocorrência do fato F. Por sua vez, as declarações relativas à existência de N e à ocorrência de F pedem, elas próprias, um critério de correção, alocados em um segundo nível de fundamentação. A declaração da existência da norma N implica outras duas declarações: a1) a de que a norma N é o sentido veiculado pelo texto legislativo T; a2) a de que o ato legislativo A, que produziu o texto legislativo T, é válido. Já a declaração de que o fato F ocorreu pressupõe que ele está representado em um meio de prova digno de confiança, o que também pode ser enunciado por duas declarações: b1) a ocorrência do fato F está representada no meio de prova MP; b2) o meio de prova MP é confiável. Ocorre que as declarações sobre o sentido do texto T (a1), a validade do ato legislativo A (a2), a representação do fato no meio de prova MP (b1) e a confiabilidade do meio de prova MP (b2) podem exigir, ainda, o apoio de outras declarações situadas em um terceiro nível de fundamentação. As declarações do terceiro nível, à sua vez, podem reclamar um quarto nível de fundamentação, e assim por diante.46 44 TARUFFO, Michele. “Il significato costituzionale dell´obligo di motivazione”. Em: Paticipação e processo, pp. 37-50. Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe (coords.) et al. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1988, p. 48. 45 No direito brasileiro, conferir: Código de Processo Civil/1973, art. 4º. 46 GUERRA, Marcelo Lima. “Notas sobre o dever constitucional de fundamentar as decisões judiciais (CF, art. 93, IX)”. Em: Processo e Constituição. FUX, Luiz; NERY JR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (organizadores), pp. 517-41. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pp. 525-30.
  • 11. 11 Um regresso ao infinito aparentemente poderia ser evitado se a fundamentação fosse interrompida, em algum momento, e substituída por uma decisão de que já não haveria o que fundamentar. A arbitrariedade desta decisão, no entanto, contaminaria toda a fundamentação que dela depende. Também não seria satisfatório, por outro lado, evitar o regresso ao infinito mediante o recurso a um círculo lógico. Propor uma alternativa em face do regresso ao infinito, da interrupção da fundamentação e do círculo lógico – situação que H. Albert designou como “trilema de Münchausen” – é o desafio das principais teorias discursivas da atualidade.47 Afasta-se a necessidade de regresso ao infinito se a exigência de fundamentações ininterruptas de cada proposição por meio de outras proposições for substituída por uma série de exigências na atividade de fundamentação. Tais exigências podem formular-se como regras discursivas cuja observância propicie, sem necessidade de “exaurir o universo”48 , a obtenção de um resultado dotado de validade intersubjetiva. A ideia fundamental da teoria da argumentação é a de que o cumprimento dessas regras pragmáticas, embora não garanta a certeza definitiva do resultado, ao menos assegura uma correção procedimental das proposições obtidas mediante o conjunto de ações interconectadas praticadas pelos sujeitos processuais. O grande mérito das regras discursivas é o de que elas não dão por corretos quaisquer resultados de uma comunicação lingüística, mas somente aqueles que provêm de um discurso racional49 . Desprezá-las por sua suposta fraqueza de não determinar todos os passos da argumentação não abre outras alternativas senão a ilusão de um teste de correção substancial inalcançável, tal como pretendido por certas correntes jusnaturalistas50 , ou a desilusão decorrente das diversas formas de ceticismo quanto à racionalidade da ciência jurídica, tal como defendido por correntes decisionistas51 . A garantia de racionalidade que pode ser oferecida por uma teoria procedimental da correção jurídica, portanto, não deve ser subestimada. 2.1 A regra da universalizabilidade O núcleo da fundamentação pragmático-universal das normas fundamentais do diálogo racional parte de que todo o falante une a suas manifestações as pretensões de compreensibilidade, veracidade, correção e verdade. Quem afirma um juízo de valor ou de dever promove uma pretensão de correção, ou seja, pretende que sua afirmação seja fundamentável racionalmente.52 Reconhece-se que, de uma forma geral, o interesse da parte no procedimento, sob o ponto de vista subjetivo, está orientado sobretudo à obtenção de um resultado que lhe seja vantajoso, e não que o juízo alcançado seja correto ou justo. Contudo, o ponto decisivo é 47 ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 177. 48 TARUFFO, Michele. “La motivazione della sentenza”. Gênesis Revista de Direito Processual Civil, n. 31, pp. 177-85, jan./mar. 2004, p. 183. 49 ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 292. 50 ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 56. 51 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo, p. 23, nota de rodapé n. 14. 52 ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 133.
  • 12. 12 que os participantes do discurso, ainda que não “queiram” argumentar racionalmente, ao menos devem construir seus argumentos de tal maneira que, sob condições ideais, poderiam encontrar o acordo de todos.53 Se, quando instado a se manifestar sobre a tese jurídica e as robustas provas produzidas em apoio à pretensão da parte contrária, o participante se limitasse a expressar o seu interesse subjetivo de vencer a ação, não estaria argumentando racionalmente. Como o juiz não decide visando a dar o que é do interesse das partes, e sim a aplicar corretamente o direito, a argumentação desenvolvida pelos “interessados”, devidamente assistidos por profissionais habilitados, deve se nortear por critérios de correção jurídica54 . Com efeito, o modelo procedimental da moderna teoria da argumentação jurídica pressupõe regras de condução do discurso que se conectam à pretensão de correção do direito. Aquele que fala deve poder justificar o seu discurso, admitindo pressupostos pragmáticos que o constrangem a levar em conta todas as perspectivas, dos outros participantes inclusive55 . Nisso está contida a ideia de uma validade universal para todos os casos em que as mesmas circunstâncias relevantes estejam presentes.56 Versões diversas dessa exigência de universalizabilidade foram propostas por autores como Hare, Habermas e Baier.57 Hare enuncia sua regra da universalizabilidade da seguinte forma: “Quem afirma uma proposição normativa que pressupõe uma regra para a satisfação dos interesses de outras pessoas, deve poder aceitar as conseqüências de tal regra no caso hipotético de ele próprio se encontrar na situação daquelas pessoas”. Habermas complementa essa proposição, de seu turno, com a garantia do caráter ideal das regras da razão: “As conseqüências de cada regra para a satisfação do interesses de cada um devem poder ser aceitas por todos”. Por fim, Baier acrescenta as exigências de abertura e sinceridade que regem o discurso: “Toda regra deve poder ensinar-se de forma aberta e geral”.58 Esse grupo de proposições, como bem enfatiza MacCormick, exige que, “para o presente conjunto de circunstâncias C contar como uma razão para chegar à decisão D, e para agir sobre D, é preciso que seja aceitável manter a decisão do tipo D como uma decisão apropriada em qualquer momento em que circunstâncias C ocorram” 59 . Com isso se pode “testar se é possível dizer que D é uma solução apropriada em qualquer momento em que C ocorra”, ou seja, que essa razão universalizada seja aplicável “a todas as instâncias de C, e não apenas àquela instância sob consideração”60 . 53 ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 317. 54 “Las partes o sus abogados plantean com sus intervenciones una pretensión de corrección, aunque sólo persigan intereses subjetivos. Lo que exponen como razones en favor de una determinada decisión podría, al menos en principio, estar incluido en un tratado de ciencia jurídica.” ALEXY, Teoría de la argumentación jurídica, p. 212. 55 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia, vol. I, p. 287. 56 LA TORRE, Massimo. “Teorías de la argumentación y conceptos de derecho. Una aproximación”. Derechos y libertades, año IV, enero 1999, n. 7. Boletín oficial del Estado, pp. 303-34, aqui p. 327. 57 ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 198. 58 Apud ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, pp. 198-9. 59 MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito, pp. 28-9. 60 MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito, pp. 28-9.
  • 13. 13 As proposições que integram o conceito de universalização formam as regras básicas da fundamentação no discurso prático geral. Uma realização otimizada do dever de motivação judicial põe de manifesto a necessidade de observância de um procedimento discursivo definido por essas e outras regras do discurso prático geral, complementadas pelas regras e formas específicas do discurso jurídico, tais como a sujeição à lei, à dogmática e aos precedentes61 . 2.2 O caráter dialogal da correção argumentativa Quem fundamenta algo pretende, no que se refere ao processo de fundamentação, aceitar o outro como parte na fundamentação62 . Todos os participantes do processo, por mais diferentes que sejam seus motivos, fornecem contribuição para o discurso judicial63 . A correção das decisões judiciais mede-se, então, pelo preenchimento das condições comunicativas da argumentação que tornam possível a formação imparcial do juízo64 . Processos jurídicos movem-se por meio de uma cadeia de certezas putativas que são a cada ponto passíveis de questionamento65 . Por isso, a avaliação da correção dos argumentos, no âmbito de um procedimento no qual os participantes se inter-relacionam comunicativamente, desenvolve-se no curso das diversas fases em que a atuação destes é exigida ou esperada. Os participantes referem-se uns aos outros por sequências de ações e reações a outras ações cujo sentido não se obtém por si mesmas, mas pela outra parte da conduta à qual elas se referem: em quase toda “resposta”, encontra-se a “pergunta”, que por sua vez desafia uma nova “resposta”.66 Pode-se dizer, portanto, que o procedimento se estrutura dialeticamente, desde que se tome dialética, aqui, no sentido gadameriano da obtenção do conhecimento pela arte do perguntar.67 Uma vez que perguntar significa colocar algo em suspenso e aberto, a dialética não é a arte de “atingir o ponto fraco daquilo que foi dito”, nem de “ganhar de todo mundo na argumentação”, mas sim a arte de ir colocando afirmações à prova, buscando atribuir-lhe sua verdadeira força68 . Dentre as exigências que, no âmbito da argumentação prática, dizem respeito à liberdade de discussão, está a de que todos os participantes do discurso podem introduzir e problematizar qualquer asserção69 . Obviamente que, em face da institucionalização das formas e dos prazos processuais, essa liberdade somente pode ser assegurada em uma extensão limitada. Ainda que sob tais limitações, contudo, vale para o raciocínio jurídico a regra geral da fundamentação prática de que “todo falante deve, quando lhe for pedido, 61 ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 201. Sobre a importância da lei, da dogmática e dos precedentes na estrutura da motivação, conferir Capítulo 3.1, infra. 62 ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 189. 63 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia, vol. I, p. 288. 64 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia, vol. I, p. 287. 65 MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito, p. 37. 66 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2005, pp. 177-8 e 181-2. 67 A dialética de Gadamer é a condução de uma conversação pela “arte de juntar os olhares para a unidade de uma perspectiva (synoran eis en eidos). Conferir: Verdade e método I, p. 480. 68 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I, pp. 478-9. 69 ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 189.
  • 14. 14 fundamentar o que afirma, a não ser que possa dar razões que justifiquem rechaçar uma fundamentação”70 . Isso significa que, no cumprimento do dever de motivação sob a ótica da excelência judicial, uma decisão justificável da disputa jurídica precisa posicionar-se em relação à relevância de qualquer proposição aduzida na qualidade de proposição jurídica, ou em relação à interpretação de tal proposição, ou ainda em relação à classificação apropriada ou avaliação dos fatos à luz de conceitos descritivos e valorativos envolvidos em tal proposição71 . O princípio da cooperação entre os sujeitos processuais abrange o ônus das partes de levantar as razões pertinentes e relevantes para a justificação da decisão judicial, de modo que a extensão do dever judicial de fundamentação regula-se, em grande medida, pelo modo como as partes fazem uso de seus atos de fala no processo72 . Se a possibilidade de tomar parte no discurso implica, por um lado, o direito de os litigantes verem seus argumentos considerados nas decisões que lhes digam respeito, por outro também dá a medida da autorresponsabilidade decorrente de sua condição de sujeitos (e não meros objetos) do processo. Nesse sentido, dispõe o art. 25 do Código Modelo Iberoamericano de Ética Judicial que “a motivação deve estender-se a todas as alegações das partes, ou às razões geradas pelos juízes que tenham conhecido antes do assunto, desde que sejam relevantes para a decisão”. Embora sob o aspecto jurídico-normativo, ao menos na realidade brasileira, haja copiosa jurisprudência no sentido de que o juiz não está obrigado a analisar todos os argumentos trazidos pelas partes quando sua decisão se apoiar em fundamentos por si só aptos a justificar a providência judicial determinada73 , o próprio valor do diálogo na decisão judicial, pelo qual esta é entendida como fruto da colaboração e cooperação das partes em uma comunidade de trabalho74 , levaria a reconhecer que a simples articulação de determinadas razões pelos participantes do discurso processual já falaria em favor da relevância de tais razões para a correta justificação do provimento jurisdicional. O que cumpre enfatizar, de todo modo, é que, se o princípio da cooperação impõe também às partes que seus atos de fala observem as regras do discurso racional, possíveis deficiências na articulação dos passos de desenvolvimento contidos em suas manifestações75 podem 70 ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, pp. 188-9. 71 MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito, p. 202. 72 Sobre o recíproco condicionamento e controle da atividade das partes e da atividade do órgão judicial, conferir: ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O formalismo no processo civil. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 114. 73 No ordenamento brasileiro, citem-se, dentre tantos exemplos: STF - HC 74.892/SP, 1ª Turma,, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 1.8.1997; STJ - AGRESP 933.066/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJ 26.03.2008, p. 1; STJ - AGA 814.335/RJ, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, DJ 19.12.2007, p. 1211; STJ - AGA 857.243/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ 10.12.2007, p. 379. 74 ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O formalismo no processo civil, p. 72. 75 A Exposição de Motivos do Código Modelo reconhece o estreito relacionamento dos deveres éticos judiciais com os deveres éticos dos demais operadores jurídicos: “A falta de ética judicial remete, em certas ocasiões, a outras deficiências profissionais, particularmente a de advogados, fiscais, procuradores e, até mesmo, docentes jurídicos; um reclamo integral de excelência deve ser incorporado nesses outros espaços profissionais.”
  • 15. 15 limitar a extensão e a profundidade das razões cuja apreciação pode ser exigida na motivação judicial. Quanto ao dever de apreciação, por um órgão judiciário revisor, das razões geradas na decisão recorrida, conforme a parte final do art. 25 acima transcrito, não se exige que sejam refeitos todos os passos de desenvolvimento expostos na decisão recorrida, mas é preciso que o órgão revisor apresente tantos argumentos quanto forem precisos para acolher ou rejeitar os passos de desenvolvimentos que sustentam a pretensão recursal. O objeto do dever de motivação de uma instância revisora é determinado, portanto, pelo grau de completitude, racionalidade e coerência com que a parte recorrente coloca à prova a validez intersubjetiva das proposições que integram a decisão recorrida. Para os julgamentos em instância final, a exigência de não obliterar os argumentos das partes faz-se particularmente aguda. Exatamente porque se destina a prevalecer em definitivo, e, com isso, cumprir a delicadíssima função de impedir a reabertura do litígio, ao pronunciamento final agrega-se uma agravada responsabilidade justificatória76 . 3. Abrangência do dever de motivação O campo de incidência das regras do discurso corresponde a toda extensão do objeto da cognição judicial. Dispõe o Código Modelo, a propósito, que “o juiz deve motivar as suas decisões tanto em matéria de fatos quanto de direito” (art. 25). Com uma adequada clarificação discursiva das questões de direito e de fato, os participantes do processo podem esperar que serão decisivos, para a decisão judicial, argumentos relevantes e não- arbitrários77 . Uma justificação adequada do juízo de direito deve conter uma correta motivação sobre: a) a escolha da norma ou das normas que o juiz a que o juiz dá aplicação no caso concreto; b) a escolha da interpretação das normas aplicáveis; c) a escolha das possíveis conseqüências que podem derivar da aplicação da norma ao caso78 . Por sua vez, uma justificação adequada do juízo de fato há que conter uma correta fundamentação sobre: a) a escolha dos elementos probatórios considerados relevantes; b) a valoração da eficácia dos meios de prova; c) a reconstrução do estado de coisas a que se refere a prova produzida em juízo79 . A distinção entre quaestio facti e quaestio iuris corre sob uma linha de demarcação flutuante80 , estabelecida dinamicamente pela própria circularidade hermenêutica81 . Apesar disso, ela é útil para pôr de manifesto os diferentes aspectos da correção almejados na atividade judicial: justificar um enunciado normativo consiste em sustentar com razões sua 76 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “A motivação das decisões judiciais...”, pp. 89-90. 77 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre facticidade e validade. Volume I. 2ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 274 78 TARUFFO, Michele. “Il significato...”, p. 44. 79 TARUFFO, Michele. “Il significato...”, p. 45. 80 GUASTINI, R. Dalle fonti alle norme. Torino: Guappichelli, 1992, p. 52. Apud IBAÑEZ, Perfecto Andrés. Valoração..., p. 128. 81 IBAÑEZ, Perfecto Andrés. Valoração..., p. 128.
  • 16. 16 validez ou sua justiça; justificar um enunciado fático consiste em aduzir razões que permitam sustentar que ele é verdadeiro ou provável82 . Embora o exame das questões de direito não possa ser inteiramente dissociado do exame das questões de fato (e vice-versa), no convencimento judicial sobre a matéria de direito avulta, em primeiro plano, a necessidade de uma teoria da interpretação jurídica; no convencimento judicial sobre a matéria fática, por sua vez, a de uma teoria epistemológica sobre a fixação judicial dos fatos. 3.1. Motivação das questões de direito 3.1.1 O uso dos cânones de interpretação Sob a perspectiva da excelência judicial, o Código Modelo exige que a motivação em matéria de direito não se limite a “invocar as normas aplicáveis” (art. 24) e que o juiz deva se sentir “vinculado não só pelo texto das normas jurídicas vigentes, mas também pelas razões nas quais se fundamentam” (art. 40). De fato, aplicar o direito sempre envolve interpretá-lo, já que questões de interpretação são endêmicas ao raciocínio jurídico83 . A questão da sujeição à lei remete à discussão sobre os cânones, também chamados de “elementos”, “critérios” ou “métodos” de interpretação. Eles dizem respeito a como se usam argumentos lingüísticos, genéticos e sistemáticos, dentre outros possíveis. Até hoje não há acordo sobre qual a formulação precisa, a hierarquia e o valor de cada uma dessas formas de argumento. Neste trabalho não cabe tomar qualquer posição nesse sentido. Cumpre, contudo, ressaltar dois aspectos que dizem respeito à consecução do dever de motivação. O primeiro é o de que o dever de otimização da motivação das decisões judiciais ordena que, sejam quais forem os cânones aplicados, as formas de argumento devem ser saturadas. Atende-se ao requisito da saturação quando o argumento contém todas as premissas pertencentes à sua respectiva forma.84 A título de exemplo, uma argumentação genética, que pretenda se apoiar na vontade do legislador, deve se fundamentar empiricamente sobre a situação jurídica anterior ao advento da lei, os debates travados à época do processo legislativo, as razões de eventuais vetos presidenciais, as justificativas apresentadas na “exposição de motivos” etc. Além das premissas empíricas, as formas de argumentos contêm premissas normativas que não se extraem apenas da lei ou de outros materiais legislativos, como nos casos de interpretação histórica, comparativa e teleológica, que pressupõem a caracterização de um determinado estado de coisas. Isso leva ao segundo aspecto que interessa ao objeto deste estudo: o atendimento do requisito da saturação impõe à 82 GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 216. 83 Nesse sentido, conferir: MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito, p. 161. 84 ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica, p. 236.
  • 17. 17 motivação judicial uma necessária – porém controlável – abertura a argumentos práticos gerais.85 Se todos os casos pudessem ser decididos exclusivamente em virtude de argumentos institucionais, o direito seria um sistema fechado, autônomo ou “autopoiético”86 . Não raramente, contudo, argumentos lingüísticos terminam com a comprovação de um espaço semântico, argumentos genéticos fracassam na ambigüidade do objetivo legislativo e argumentos sistemáticos indicam direções distintas... Nesses e em outros casos de insuficiência dos argumentos institucionais, a interpretação jurídica carece, em alguma medida, de valorações substanciais.87 Então, para uma adequada motivação jurídica, há que admitir o recurso a argumentos pragmáticos, éticos e morais que enfeixam a pretensão de legitimidade das normas jurídicas. Daí a afirmação de Habermas de que “a racionalidade do direito não pode ser questão exclusiva do direito”88 . Diferentemente dos argumentos institucionais, que se apoiam mediata ou imediatamente na existência do sistema jurídico, os argumentos práticos gerais tiram sua força somente da sua correção quanto ao conteúdo. A autoridade do direito positivo, assim, leva ao reconhecimento de uma primazia prima facie dos argumentos institucionais diante dos argumentos práticos gerais. Quem pretende fazer prevalecer um argumento prático geral em face de um argumento institucional assume, portanto, uma carga de motivação ceteris paribus mais pesada.89 O requisito da saturação assegura a racionalidade do uso dos cânones. Ele exclui a simples afirmação de que um argumento possa ser o resultado de um determinado critério de interpretação. Exigir que se aduzam premissas empíricas ou normativas, cuja verdade ou correção possa ser objeto de novas discussões, constitui um obstáculo a que os participantes do discurso jurídico façam uso de fórmulas vazias.90 A primazia prima facie dos argumentos institucionais em face dos argumentos práticos gerais, por sua vez, garante a vinculação dos participantes do discurso à ordem normativa e, com isso, contribui à segurança jurídica. 3.1.2 A argumentação dogmática A importância da dogmática é a de analisar conceitos jurídicos e reconduzi-los a um sistema, possibilitando o exame da correção de uma declaração. Existem dois critérios formais da qualidade de um sistema argumentativo: a consistência e a coerência. A consistência é um critério negativo. Ele está cumprido quando o sistema não mostra 85 ALEXY, Robert. Direito, razão, discurso, p. 73. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia..., vol. I, p. 287. 86 ALEXY, Robert. Direito, razão, discurso, p. 73. Para um enfoque crítico sobre a doutrina do caráter autopoiético do direito, conferir: NEVES, Marcelo. De la autopoiesis a la alapoiesis del Derecho. Edición digital: Alicante : Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2005. Edición digital a partir de Doxa : Cuadernos de Filosofía del Derecho. núm. 19 (1996), pp. 403-420. 87 ALEXY, Robert. Direito, razão, discurso, p. 73. 88 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia..., vol. II, p. 230. 89 ALEXY, Robert. Direito, razão, discurso, pp. 74-5. 90 ALEXY, Robert. Teoria de la argumentación jurídica, p. 236.
  • 18. 18 nenhuma contradição. A coerência é um critério positivo. Ele exige conexões positivas tão fortes quanto possível entre os elementos do sistema.91 Dentre os critérios de coerência, destacam-se os relativos à quantidade, à extensão e ao enlace das correntes de fundamentação. A exigência de que uma declaração seja justificada pelo maior número possível de declarações é uma aplicação do critério segundo o qual quanto mais declarações de um sistema são fundamentadas por outras declarações desse sistema, tanto mais coerente, ceteris paribus, é o próprio sistema. O critério da extensão complementa o da quantidade, ao exigir consideração não apenas ao número de declarações apoiadoras de outra declaração, mas também ao alcance ou dimensão das correntes de fundamentação que essas múltiplas declarações formam. A questão do enlace das correntes de fundamentação, por sua vez, diz respeito ao postulado da generalidade. A exigência de correntes de fundamentação tão extensas quanto possível implica a exigência por fundamentações de declarações sempre mais gerais. Esse critério desdobra-se em dois. Pelo primeiro, quanto mais correntes de fundamentação têm uma premissa de partida comum, tanto mais coerente, ceteris paribus, é o sistema. Assim, por exemplo, o princípio do Estado de Direito fundamenta numerosos princípios que, por sua vez, são fundamentos para outros princípios e para decisões particulares. Mas um enlace pode ser produzido não só por uma premissa de partida comum, mas também por uma conclusão comum de várias correntes de fundamentação. Então, o segundo desdobramento do critério do enlace é o de que um sistema é tão mais coerente quanto mais correntes de fundamentação, ceteris paribus, têm uma conclusão comum. Um exemplo poderia ser a reserva de lei para obrigar o particular a algo, exigência que se fundamenta tanto pelo princípio da legalidade da atuação administrativa, como pelo princípio democrático, em sua cunhagem parlamentar- representativa, como também pelos direitos fundamentais, sob a ótica da liberdade individual.92 Enunciados dogmáticos podem contribuir à motivação das decisões judiciais quando cumprem certas condições. A primeira é a de que, embora não se confundam com a simples descrição de codificações ou compilação de precedentes, eles guardem relação com as normas estabelecidas e com a jurisprudência. A segunda é a de que sua inserção em um todo coerente possibilite fundamentar relações de inferência entre conceitos jurídicos. A terceira é a de que enunciados de uma dogmática sejam formados, fundamentados e comprovados no âmbito de uma ciência do direito que funciona institucionalmente.93 A exigência de otimização da motivação, conectada à pretensão de validez intersubjetiva dos discursos jurídicos, ordena que sejam utilizados, tanto quanto possível, argumentos dogmáticos que contribuam ao incremento da coerência da justificação da decisão judicial.94 91 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo, p. 14. 92 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo, pp. 120-3. 93 Sobre tais exigências, em profundidade, conferir: ALEXY, Robert. Teoria de la argumentación jurídica, pp. 244-6. 94 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo, p. 129.
  • 19. 19 Argumentos dogmáticos podem ser utilizados sem que eles próprios tenham que ser fundamentados. Isso se dá quando um enunciado dogmático não é, em geral, posto em dúvida, por coincidir com a opinião doutrinária dominante. Isso não sinaliza necessariamente uma atitude acrítica. Mesmo em trabalhos dogmáticos críticos não é possível fundamentar simultaneamente todos os enunciados dogmáticos em que se apoia a discussão do problema. Contudo, tal como ocorre no discurso jurídico acadêmico, também para o discurso jurídico praticado no âmbito do processo vale a proposição de que enunciados dogmáticos podem carecer de comprovação.95 O específico da comprovação dos enunciados dogmáticos é que ela se dá sempre em face do sistema. Essa comprovação sistemática diz respeito às relações que o enunciado em questão mantém com o restante dos enunciados dogmáticos e com as formulações das normas jurídicas tidas como vigente, seja sob o aspecto lógico (comprovação sistemática em sentido estrito), seja segundo pontos de vista práticos de tipo geral (comprovação sistemática em sentido amplo). Contribui para a otimização do dever de motivação judicial, portanto, aceitar a proposição de que todo enunciado dogmático empregado em uma decisão judicial deva poder passar por uma comprovação sistemática, tanto em sentido estrito como em sentido amplo.96 3.1.3 A vinculação aos precedentes O fundamento para o uso dos precedentes é a regra da universalizabilidade, que ordena a adoção de um tratamento igualitário para casos iguais. Conectada a essa razão está a ideia de um sistema jurídico imparcial que faz a mesma justiça a todos, independentemente de quem for parte no caso, e independentemente de quem o estiver julgando. Fidelidade ao Estado de Direito requer que se evite qualquer variação frívola no padrão decisório de um juiz ou corte para outro.97 O problema consiste, no mais das vezes, em identificar que elementos são decisivos para considerar um caso igual a outro. Quando há aplicação de um precedente, não é necessário motivar novamente a conclusão que se quer fazer valer mais uma vez; mas pode ser necessário motivar o juízo de irrelevância das diferenças98 entre o caso concreto e o caso paradigmático, especialmente quando um participante do processo afirmar a existência de razões para diferenciação entre um caso e outro. A exigência de respeito aos precedentes sustenta-se com a proposição de que uma decisão só pode ser modificada se se puderem aduzir boas razões para tanto. Vale dizer, o precedente fala em favor de uma determinada decisão, mas não impede absolutamente que a solução do caso, desde que apoiada em novos argumentos, vá encaminhada em outra direção. O que deve ser ressaltado, então, é que quem pretende ir contra o precedente assume uma pesada carga de argumentação.99 95 ALEXY, Robert. Teoria de la argumentación jurídica, p. 250. 96 ALEXY, Robert. Teoria de la argumentación jurídica, pp. 251-4. 97 MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito, p. 191. 98 ALEXY, Robert. Teoria de la argumentación jurídica, p. 262. 99 ALEXY, Robert. Teoria de la argumentación jurídica, p. 263.
  • 20. 20 Duas técnicas de motivação possibilitam o proferimento de uma decisão contrária ao precedente: a do distinguishing e a do overruling. A primeira serve para interpretar de forma estrita a norma que apoia o precedente, mediante, por exemplo, a identificação de um elemento do tipo normativo que não existe ou não está comprovado no caso a decidir. Com isso, o reconhecimento da validez geral do precedente permanece. A segunda, por sua vez, não se limita a deixar de aplicar o precedente, já que se fundamenta no rechaço de sua validez geral.100 No caso de distinguishing, e sobretudo no caso de overruling, exige-se motivação ceteris paribus mais extensa que a mera aplicação do precedente.101 3.2 Motivação das questões de fato 3.2.1 Critérios de confirmação e refutação de uma hipótese fática A ideia de pretensão de correção do direito contém, em si, a ideia da pretensão de uma reconstrução correta do estado de coisas relevante para a decisão judicial. Por isso, embora se deva exigir do juiz a consciência dos limites que a reconstrução de um estado de coisas enfrenta no âmbito judicial, o conhecimento judicial sobre a matéria fática deve ter sempre a verdade como norte. Afastado o ceticismo que subjaz às correntes que identificam a racionalidade com o método dedutivo, mas sem desconsiderar o caráter relativo e contextualizado da verdade processual, a aceitabilidade do conhecimento obtido no processo deve ser construída a partir do conceito de probabilidade, que permite conceber a fixação judicial dos fatos como uma atividade racional, ainda que se trate de uma racionalidade incapaz de oferecer certezas incondicionadas.102 Um modelo de probabilidade adequado ao processo judicial é aquele em que o juízo sobre os fatos é justificável mediante procedimentos que permitam aferir o grau de confirmação fornecido pelas provas existentes a respeito de um enunciado fático e, com isso, afirmar ou rejeitar a aptidão do grau de confirmação obtido para dar um fato como provado. Em tal modelo cognoscitivista, o reconhecimento da correção de um enunciado fático depende, portanto, da qualidade das inferências que as provas autorizam realizar e de sua resistência às contraprovas. É sob tais bases que se deve compreender aquilo que a doutrina processual chama de “livre convencimento” ou “livre valoração da prova”. Em um modelo de estabelecimento dos fatos que se funda em uma aproximação tão alta quanto possível da verdade, não há espaço para valorações formais predeterminadas por um juízo superior e prévio ao do próprio julgador, tal como nos sistemas de prova legal103 . A valoração 100 ALEXY, Robert. Teoria de la argumentación jurídica, p. 266. 101 Sobre os critérios argumentativos que, sob a ótica do dever de responsabilidade institucional, deveriam ser considerados nos casos de overruling, ver Capítulo 4.4, infra. 102 GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos en el derecho..., p. 49. 103 Sobre o sistema inquisitório da prova legal como intento original de minimizar arbitrariedades, convém transcrever trecho da lição de Hassemer: “Certamente a regulamentação legal da prova era conduzida por uma desconfiança saudável contra os penalistas e formuladas, como diríamos hoje, com a boa intenção de
  • 21. 21 antecipada das provas, por meio de normas jurídicas abstratas, vulneraria o objetivo de busca da verdade próprio de um modelo cognoscitivista. Se se admite que os meios de prova garantem resultados apenas prováveis, é possível que, em um caso concreto, o grau de probabilidade alcançado por uma determinada prova resulte insuficiente para justificar racionalmente uma decisão, mesmo que o legislador lhe haja atribuído um valor específico.104 Da mesma forma, também não se afiguraria compatível com o modelo cognoscitivista aceitar que a fixação judicial dos fatos ocorra sem a sujeição a critérios ou controles de qualquer tipo, como no sistema da íntima convicção105 . Se se entendesse que a avaliação das provas é completamente livre, o convencimento do julgador em nada se afastaria de uma experiência mística ou extática106 , e então não se poderia mais falar de uma atividade racional. Disso resulta que o livre convencimento racional, embora repila valorações predeterminadas, não implica uma total refração a regras, notadamente àquelas hauridas da experiência forense e enriquecidas, mediante uma adequada cooperação interdisciplinar, com o trabalho da doutrina. Merece menção, nessa trilha, a lição de Marina Gascón de que a probabilidade indutiva de uma hipótese aumenta ou diminui conforme: (1) o fundamento cognoscitivo e o grau de probabilidade alcançável pelas generalizações usadas, já que a aceitabilidade de uma proposição seria diretamente proporcional ao fundamento e ao grau de probabilidade expressado pelas generalizações ou máximas de experiência usadas na confirmação.107 ; (2) ‘racionalizar’ o processo de produção dos fatos; certamente ela foi, à sua época, uma resposta inteiramente correta contra um direito inseguro, arbitrário e disperso, que produzia espontaneamente violações ao direito. No entanto, a regulamentação legal da prova, de sua parte, causou lesões sistemáticas ao Direito. Ela perdeu de vista os fatores que são eficazes na formação da convicção humana, o papel da pré-compreensão na compreensão, na medida em que, por um lado, eles proibiam ao juiz uma condenação quando ele não tinha ou uma confissão ou duas boas testemunhas, mas, por outro lado, se satisfaziam com uma boa testemunha pela imposição de tortura.” (HASSEMER, Winfried. Introdução..., p. 166). No mesmo sentido: IBAÑEZ, Perfecto Andrés. Valoração..., pp. 88-9. 104 GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos en el derecho..., pp. 157-8. 105 No sistema da íntima convicção, há uma propensão a “reduzir a atividade cogniscitiva do juiz a um fenômeno de pura consciência, que se exaure no plano íntimo e imprescrutável da mera subjetividade”. NOBILI, Massimo. Il principio del libero convincimento del giudice. Milano: Giuffrè, 1974, p. 7. Apud KNIJNIK, Danilo. “Os standards do convencimento judicial: paradigmas para seu eventual controle”. Revista Forense, Rio de Janeiro, n. 353, pp. 15-52, jan./fev. 2001. Embora ainda existam resquícios do sistema da íntima convicção em procedimentos como o do tribunal do júri, por exemplo, pode-se argumentar contrariamente a um tal modelo, mesmo sob o ponto de vista do direito probatório vigente, pois o que importa é a tendência geral do sistema. Nesse sentido: VARELA, Casimiro. Valoración de la prueba. 2ª ed. Buenos Aires: Astrea, 1999, p. 154. 106 GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos en el derecho..., p. 159. 107 Deve se ter em mente que, enquanto algumas máximas de experiência expressam relações seguras ou precisas, outras expressam generalizações muito discutíveis. Ademais, enquanto algumas delas possuem um fundamento cognoscitivo sólido (como as que se originam da difusão de conhecimentos naturais ou científicos), outras padecem de fundamento suficiente (como as que reproduzem preconceitos disseminados no meio social). Cabe ao juiz, portanto, avaliar criteriosamente o fundamento cognoscitivo e o grau de probabilidade que as generalizações utilizadas estão aptas a expressar. GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 180.
  • 22. 22 a qualidade epistêmica das provas que as confirmam, pois a probabilidade de um enunciado fático seria tendencialmente maior quando confirmada por “conclusões” e “constatações” que quando confirmada por “hipóteses”108 ; (3) o número de passos inferenciais que compõem a cadeia de confirmação, porquanto uma proposição seria tanto mais provável quanto menor for o número de passos que compõem o procedimento probatório que conduz à sua confirmação; e (4) a quantidade e a variedade de provas ou confirmações, porquanto a probabilidade de uma hipótese aumentaria com a quantidade e a variedade das provas que a confirmam.109 Aos critérios de confirmação, expostos acima sem pretensão de exaurir o tema, devem-se associar procedimentos que permitam refutar um enunciado sobre os fatos. Não basta que uma afirmação seja confirmada por determinadas provas – é igualmente necessário submetê-las a tentativas de falsificação, ou seja, verificar se não há outras provas que a contradigam110 . Uma única prova contrária à proposição fática pode ser suficiente para desfazer a força confirmatória de um amplo conjunto de provas que a apoiariam. Para dar uma hipótese como provada, portanto, é preciso que, além de se apoiar em provas de confirmação, ela seja resistente a provas de refutação existentes no processo.111 Sob a perspectiva da excelência judicial, a motivação dos fatos deve apresentar tanto razões relativas à aplicação de critérios de confirmação como razões relativas à aplicação de critérios de refutação. Ainda que o dever de fundamentação não seja propriamente uma garantia epistêmica, ele indiretamente cumpre esse papel112 , na medida em que permite o controle possível de ser exercido sobre o convencimento judicial a respeito dos fatos. 3.2.2 A estrutura da fundamentação sobre a matéria fática A questão relativa a como deve se estruturar a justificação dos enunciados fáticos remete a dois estilos, técnicas ou modelos de motivar sobre os quais a doutrina sói debater. No modelo holista, a motivação consiste em uma exposição conjunta dos fatos por meio de um relato que os põe em conexão narrativa. No modelo analítico, a motivação é estruturada em uma exposição pormenorizada de todas as provas produzidas, do valor probatório que o juiz lhes confere e da cadeia de inferências que conduzem ao convencimento judicial.113 108 Para os fins deste trabalho, “constatações” são as provas que forem o resultado de uma observação direta, como um testemunho presencial; “conclusões” são as provas que houverem sido obtidas pelo método dedutivo, como a maioria das provas científicas; “hipóteses” são, aqui, as provas obtidas pelo método indutivo. GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 181. 109 GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 180. 110 IACOVELLO, Francesco Mauro. “La testimonanza auditiva posta a base di una condanna all’ergastolo. Brevi viaggio all’interno della struttura della motivazione e della logica di un processo di parti. Cassazione Penale, 33 (2): 1271, 1992. Apud GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 177. 111 IBAÑEZ, Perfecto Andrés. Valoração da prova..., p. 97. 112 GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 199. 113 GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 224.
  • 23. 23 A deficiência do modelo holístico consiste em permitir que o relato se apoie na simples declaração apodíctica de certos fatos como provados114 . No mais das vezes, o relato globalizante pressupõe a verdade dos enunciados que o compõem, de modo que sua adoção favorece o risco de uma decisão insuficientemente fundamentada115 . Sob uma prática jurisdicional ainda fortemente impregnada pela invocação da imediação116 e da valoração conjunta da prova117 como recursos retóricos supostamente suficientes para a justificação do convencimento judicial, esse perigo tende a se potencializar de forma não-desprezível. O dever de maximização da motivação reclama, portanto, a utilização de uma estruturação analítica118 , cuja observância permite, de modo mais eficiente, obstaculizar a entrada furtiva de elementos de informação inaceitáveis ou insuficientemente justificados na decisão, bem como controlar as inferências que compõem a cadeia de justificação do convencimento judicial119 . Nesse sentido parece se inclinar o Código Modelo, ao enunciar, no art. 23: “Em matéria de fatos o juiz deve proceder com rigor analítico no tratamento do quadro de provas. Deve mostrar, em concreto, o que proporciona cada meio de prova, para depois efetuar uma apreciação no seu conjunto.” Deveras, pelo modelo analítico, o resultado de cada meio de prova deve ser considerado, primeiramente, em sua individualidade, como se fosse o único120 . Com esse exame inicial não se pretende extrair o valor definitivo de cada um dos meios examinados – 114 IBÁÑEZ, Perfecto Andrés. Valoração da prova..., p. 103; GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 225. 115 GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 225. 116 A imediação consiste no contato direto do juiz com as fontes de prova, em particular as de caráter pessoal. Sua função visa a garantir que a relação dos sujeitos processuais, entre si e com os elementos probatórios, não seja mediada por terceiros e se mantenha, portanto, livre de interferências. Ela tem, certamente, um importante papel no modelo de compreensão cênica do processo, sobretudo ao impedir que o juiz utilize em seu julgamento provas obtidas por outros sujeitos e em outros momentos processuais, as quais seriam passíveis de repetição. Contudo, a maneira de compreender a imediação vem sendo freqüentemente contaminada por uma concepção irracionalista do princípio do livre convencimento. Se este for entendido apenas como a captação emocional ou intuitiva daquilo que é objeto da atividade probatória, a valoração das declarações colhidas pelo juiz sequer poderia ser justificável e fiscalizável. Sobre o assunto, conferir: GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 198. 117 Não se nega, aqui, a importância da valoração conjunta da prova na fixação judicial dos fatos. É certo que quanto mais intensa for a conexão dos indícios que apoiam um enunciado fático, maior será, ceteris paribus, o grau de confirmação da respectiva hipótese. O que não se pode admitir é o emprego da expressão “valoração conjunta” à guisa de artifício retórico para dissimular a ausência de uma fundamentação adequada. É preciso que o juiz, em sua decisão, identifique as provas consideradas em seu convencimento e exponha as razões por que a valoração destas se encaminha em favor da confirmação ou da refutação do fato principal ou de fatos secundários cuja comprovação for relevante para o desfecho do processo. Dizer simplesmente que a valoração conjunta das provas levou ao convencimento, sem a indicação das razões que justificam essa afirmação, implica incorrer na falácia da petição de princípio, pela qual o falante apoia uma demonstração sobre a própria afirmação que pretendia demonstrar. 118 GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 225. Sobre a maior compatibilidade da motivação analítica com o modelo cognoscitivista, aduz Taruffo que “la diferencia entre el método holista y el método analítico parece situarse en que el prmeiro otorga preferencia a una perspectiva psicológica mientras que el segundo se basa en una análisis racional del juicio; el método analítico, además, tiende a explicita y razcionalizar lo que la concepción holista deja genérico e implícito”. TARUFFO, Michele. La prueba..., p. 309. 119 GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 226. 120 IBAÑEZ, Perfecto Andrés. Valoração da prova..., p. 42.
  • 24. 24 tarefa que somente se completa quando se colocam uns em face dos outros –, mas assegurar que poderá servir como meio de prova apenas aquilo que tiver aptidão jurídica e epistêmica para apoiar racionalmente a justificação de uma hipótese. A seleção dos meios de prova (qualificação do que pode ser um meio idôneo), deve preceder à interpretação dos elementos de prova (determinação do significado da informação obtida dos meios de prova) e à valoração desses elementos de prova (atribuição da sua força de convencimento). O enfrentamento transparente de questões problemáticas sobre quais meios de prova podem ser justificados favorece a que sejam excluídos do convencimento judicial o que for inaceitável sob o aspecto jurídico (v.g., provas repetíveis produzidas com ofensa ao contraditório) e epistêmico (v.g., provas de “ouvir dizer”). A chamada valoração conjunta, bem entendida, deve se dar em um momento posterior à seleção dos meios de prova e à interpretação do seu resultado parcial, quando os elementos probatórios aptos a integrar a fundamentação da decisão são avaliados mediante consideração recíproca121 . Essa interferência mútua pode levar a que eles se excluam, se complementem ou se mantenham neutros entre si. Dessa apreciação conjunta da prova exsurge o grau de confirmação definitivo da hipótese levantada no processo. A preferibilidade do modelo analítico avulta diante da inevitável importância das provas indiretas122 ou indiciárias123 para o convencimento judicial. A motivação holista parece compatível com a corrente pelas qual os requisitos da gravidade, precisão e concordância das provas indiciárias possam ser exigidos ou considerados mediante uma análise global, não precedida de uma avaliação individualizada de cada uma delas. De seu turno, a motivação analítica permite a adoção do entendimento pelo qual somente aquelas 121 “Isto não quer dizer que no curso da análise deva/possa prescindir-se da perspectiva global do quadro probatório. De forma natural o resultado de cada meio probatório irá produzindo seu efeito na consciência do juiz, lhe dará um grau de informação, gerando um estado de conhecimento aberto à integração de novos dados precedentes dos restantes meios de prova. Mas é inescusável que em algum momento cada um destes seja analisado como se fosse o único disponível para avaliá-lo de forma individualizada. Só uma vez examinado desse modo o resultado da totalidade da prova proposta, deverá o julgador proceder de forma reflexiva à avaliação global do mesmo.” IBAÑEZ, Perfecto Andrés. Valoração da prova..., p. 44. 122 Se a distinção entre prova direta e indireta se funda no caráter mediato ou imediato do conhecimento dos fatos que se provam, todas as provas sobre fatos passados são indiretas (ou indiciárias). O conhecimento judicial nunca se dá pela observação imediata do fato a que o enunciado se refere, e sim por meio de um processo inferencial que permite chegar a um fato a partir de outro. Contudo, se em vez de tratar do procedimento probatório (contexto do descobrimento), se quiser fazer uma classificação sob a base do resultado obtido por meio de tal procedimento (contexto da justificação), pode-se dizer que uma prova (asserção justificada) é direta se versa sobre o fato principal, e indireta se versa sobre um fato secundário que pode levar ao conhecimento do fato principal mediante outro procedimento probatório. Mesmo sob esta segunda classificação, que dá algum sentido à distinção entre provas diretas e indiretas, deve ser reconhecida a grande importância das provas indiretas para a comprovação dos fatos no processo. Sobre esses e outros possíveis critérios para diferenciação de provas diretas e indiretas, ver: GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., pp. 86-93. 123 O termo “indício” pode ser utillizado em pelo menos três acepções: a) como sinônimo de presunção, para designar o argumento mediante o qual se vinculam dois fatos, extraindo de um deles conseqüência para o outro; b) para designar meios de provas dotados de baixo grau de confirmação; c) para designar o fato-base ou a fonte que constitui a premissa menor da inferência presuntiva (conferir: TARUFFO, Michele. La prueba..., pp. 479-80. Neste trabalho, reserva-se à expressão “indício” o significado de fato conhecido (provado) que serve de base para se chegar ao conhecimento (comprovação) de outro fato (terceira acepção); e reserva-se a expressão “prova indiciária” para designar a inferência obtida com o raciocínio presuntivo.
  • 25. 25 provas indiciárias que, isoladamente consideradas, são certas em seu ponto de partida (requisito da precisão do indício ou fato-base) e que decorrem da utilização de regras de experiência comum, lógica ou científica dotadas de um fundamento gnoseológico minimamente aceitável (requisito da gravidade) podem complementar o valor probatório umas das outras (requisito da concordância), mediante uma valoração conjunta124 . 4. Relação do dever de motivar com outros deveres éticos do juiz O dever de motivação está diretamente conectado com outros deveres éticos. O ponto de encontro das exigências de motivação e das outras exigências éticas está na pretensão de correção do direito. O entrelaçamento de tais deveres, contudo, pode ocorrer de diversas formas. Em muitos casos, a motivação serve, ainda que limitadamente, como um instrumento para asseguração ou controle sobre as demais virtudes judiciais; em outros casos, são outras virtudes que favorecem a realização ótima da motivação; e há, ainda, hipóteses em que o dever de motivar colide com outros deveres éticos, de modo a exigir uma ponderação. 4.1 Independência e imparcialidade A admissão induvidosa do Poder Judiciário como elemento no sistema de freios e contrapesos125 exige a consideração da independência judicial como pressuposto para que a jurisdição cumpra a sua tarefa adequadamente126 . Um juiz independente, na dicção do art. 2º do Código Modelo, “é aquele que determina a partir do direito vigente a decisão justa, sem se deixar influenciar de forma real ou aparente por fatores alheios ao próprio direito”. O que se pretende evitar, obviamente, não é abertura do direito para outros campos do conhecimento127 , mas a utilização de critérios particulares ou discriminatórios128 que decorram de indevida pressão exercida pelo juiz. Poder-se-ia se argumentar que a realização do dever de motivação seria incapaz de contribuir para a observância da independência judicial, pois da escolha a decisão e a apresentação das razões que a acompanham ocorrem em momentos diferentes: a primeira situa-se no contexto do descobrimento; a segunda, no contexto da justificação129 . Contudo, em que pese a importância de tal distinção, não se pode levá-la a extremos, pois o processo 124 Nesse sentido: KNIJNIK, Danilo. A prova..., p. 51. 125 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 376. 126 PEDRAZ PENALVA, Ernesto. Constitución, Jurisdicción y Proceso. Tordesillas: Akal, 1990, p. 35. 127 Sobre a abertura do direito a argumentos práticos gerais, conferir Capítulo 3.1.1, supra. 128 PEDRAZ PENALVA, Ernesto. Constitución, Jurisdicción y Proceso, p. 173. 129 Na teoria processual, é possível falar em contexto do descobrimento quando nos perguntamos como se chegou a uma afirmação; e em contexto da justificação, quando nos perguntamos quais são as razões que justificam uma afirmação. A diversidade entre contexto do descobrimento e contexto da justificação não seria somente estrutural e funcional, mas sobretudo fenomenológica: o primeiro consiste numa atividade; o segundo, num discurso. Nesse sentido: TARUFFO, Michele. La motivazione de la sentenza civile. Padova: Cedam: 1975, pp. 213-4. Apud GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 112.
  • 26. 26 de descobrimento de uma hipótese não é estritamente independente do processo para a sua validação130 . Vale transcrever, a propósito, a lição de Marina Gascón: [N]o resulta descabellado pensar que la exigencia de motivar ‘retroactue’ sobre el próprio iter de adopción de la decisión, reforzando su racionalidad; es decir, provocando la expulsión de los elementos de convicción no suscetibles de justificación; propiciando, en fin, que la adopción de la decisión se efectúe conforme a criterios aptos para ser comunicados [...].131 Diante disso, embora o exercício independente da jurisdição dependa, em última instância, da consciência individual do julgador, o papel do dever de motivar na realização da independência judicial não deve ser subestimado. Se a independência judicial dirige-se a assegurar a vinculação do juiz a critérios de correção jurídica132 , a exigência de motivação contribui, em medida não desprezível, para controlar o influxo de fatores indevidos na solução de casos concretos. Enquanto a a independência trata de controlar os móveis do juiz frente a influências estranhas ao direito, provenientes do sistema social, a imparcialidade pode ser definida como a equidistância do julgador frente às partes e ao objeto do processo133 . Deveras, dispõe o Código Modelo, em ser art. 10, que “o juiz imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente com as partes e com os seus advogados e, evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito”. Em relação à conexão dos deveres de imparcialidade e motivação, cumpre reconhecer a reciprocidade dos controles que tais deveres impõem um em face do outro. Ao mesmo tempo em que a consciência do dever de motivação contribui para manter a imparcialidade do juiz, conferindo elementos para aferição in concreto de sua observância134 , da mesma forma que o faz em favor da independência, correlatamente o próprio dever de imparcialidade, aliado a exigências discursivas que se extraem da concepção dialogal do processo, coloca certas exigências sobre o modo pelo qual o juiz deve motivar sua decisão. Assim, o art. 16 do Código Modelo – topograficamente inserido no capítulo reservado à imparcialidade –, ao enunciar que o juiz “deve respeitar o direito das partes de afirmar e contradizer no âmbito do devido processo” conecta-se ao art. 24 do mesmo Código, que dispõe sobre a consideração das alegações das litigantes, de modo a exigir que a motivação judicial reflita esse tratamento igualitário na construção dos argumentos que justificam a decisão. Essa exigência, obviamente, recrudesce a responsabilidade judicial na tarefa de motivação, pois reclama que sua realização, em vez 130 GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., pp. 111-2. 131 GASCÓN ABELLÁN, Marina. Los hechos..., p. 202. No mesmo sentido: ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación..., p. 221. 132 MONTERO AROCA, Juan. Sobre la imparcialidad…, pp. 101-3. 133 AGUILÓ REGLA, Josep. Independencia e imparcialidad de los jueces y argumentación jurídica. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2005. Edición digital a partir de Isonomía: Revista de Teoría y Filosofía del Derecho, núm. 6 (abril 1997), pp. 71-99, aquí pp. 76-7. 134 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “A motivação das decisões judiciais...”, p. 87.
  • 27. 27 de ocorrer monologicamente, seja o resultado da contradição dialética que se manifesta na participação dos litigantes. 4.2. Prudência, justiça e equidade O termo prudência tem sua origem etimológica no verbo grego fróneo, que significa ser sensato, ter juízo e capacidade de pensar e sentir. Na adaptação para o latim, a expressão prudentia incorporou a seu significado a noção de previsão ou providência, no sentido de ver antes, antecipar-se. Entende-se, por isso, que a prudência judicial é uma qualidade da razão prática que guia a ação do juiz para, atendendo às circunstâncias do caso concreto, dizer qual é a solução justa.135 A realização do dever de motivação também favorece a que o juiz exerça com prudência o poder que acompanha o exercício da função jurisdicional. Se o Código Modelo reclama que as decisões judiciais “sejam o resultado de um juízo justificado racionalmente, depois de haver meditado e avaliado argumentos e contra-argumentos disponíveis” (art. 69), cabe ao juiz analisar criticamente as intuições que venham à sua mente, a fim de que sua compreensão se atenha às coisas tais como elas são136 . Em vez de negar a existência do círculo do conhecimento, cabe ao juiz entrar nele corretamente, tomando consciência de suas próprias pré-compreensões, de modo a torná-las comunicáveis e controláveis por meio da reflexão e da argumentação137 . Daí a exigência do Código Modelo de que o juiz mantenha “uma atitude aberta e paciente” para ouvir e reconhecer novos argumentos e críticas que lhe possibilitem “confirmar ou retificar critérios ou pontos de vista assumidos” (art. 70). Com isso se remete, novamente, ao caráter dialogal da decisão judicial e à necessidade de motivação sobre questões jurídicas ou fáticas sobre as quais os litigantes argumentam e contra-argumentam. Ao passar sua pré-comprensão pelo crivo da racionalidade138 , em um esforço para maximizar a objetividade de sua decisão (Código Modelo, art. 72), o juiz submete a solução que cogita adotar a uma operação de filtragem cultural e técnica, conforme exigências de método e do quadro de pautas processuais constitucionalmente determinadas139 . Que o juiz deva, frequentemente, fazer uma verdadeira cirurgia sobre as próprias impressões e emoções140 não significa, contudo, que sua decisão deverá deixar de considerar outras “consequências pessoais, familiares ou sociais desfavoráveis surgidas pela inevitável 135 PLATAS PACHECO, Maria del Carmen. “Prudencia y justicia: exigencias de la ética judicial”. Em: Revista del Instituto de la Judicatura Federal, 21, 2006, pp. 197-213, aqui pp. 198-200. 136 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I, p. 355. 137 HASSEMER, Winfried. Introdução..., p 96-7 138 “O círculo não deve ser rebaixado a um vitiosum, mesmo que apenas tolerado. Nele se esconde a possibilidade positiva do conhecimento mais originário que, de certo, só pode ser apreendida de modo autêntico se a interpretação tiver compreendido que sua primeira, única e última tarefa é de não se deixar guiar, na posição prévia, na concepção prévia, por conceitos ingênuos e ‘chutes’. Ela deve, na elaboração da posição prévia, da visão prévia e da concepção prévia, assegurar o tema científico a partir das coisas elas mesmas.” MARTIN HEIDEGGER, Ser e tempo, vol. 1, Petrópolis, Vozes, 1989, p. 210. Apud GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 74. 139 IBAÑEZ, Perfecto Andrés. “Ética de la función de juzgar”, p. 58. 140 IBAÑEZ, Perfecto Andrés. “Ética de la función de juzgar”, p. 58.
  • 28. 28 abstração e generalidade das leis” (Código Modelo, art. 36). Em nenhuma hipótese racionalidade e impessoalidade devem ser confundidas com abandono das exigências de equidade. A conciliação entre racionalidade e equidade obtém-se pelo princípio da universalização. Não é por outro motivo que o Código Modelo conceitua o juiz equitativo como “aquele que - sem transgredir o Direito vigente - tem em consideração as peculiaridades do caso e toma resoluções baseado em critérios coerentes com os valores do ordenamento e que possam estender-se a todos os casos substancialmente semelhantes” (art. 37, itálico acrescentado). Ao aplicar a equidade, o juiz deve mostrar motivadamente, de acordo com os critérios do discurso jurídico racional, que sua decisão não é uma corazonada, nem se baseia em critérios ad hoc. 4.3 Conhecimento e capacitação Uma aplicação correta do direito, de acordo com os critérios da justificação racional, pressupõe o conhecimento da ordem jurídica por parte do juiz. É o estudo permanente, sério e sistemático, a alavanca propiciadora de melhor opção, dentre as múltiplas escolhas possíveis141 . Com efeito, dispõe o art. 28 do Código Modelo que “a exigência de conhecimento e de capacitação permanente dos juízes tem, como fundamento, o direito dos processáveis e da sociedade em geral para obter um serviço de qualidade na administração de justiça”. A realização do dever ético de conhecimento e capacitação contínua instrumentaliza e otimiza a realização das exigências de motivação e, consequentemente, favorece a obtenção de soluções jurídicas adequadas nos casos levados ao Judiciário. O reconhecimento da necessária abertura do direito a influências da ética, da economia, da política, da sociologia e de vários outros campos do conhecimento exige uma contínua formação interdisciplinar do juiz. Se o conhecimento judicial há de ser rigoroso, o juiz deverá fazer próprios os critérios que são tidos como válidos em outros âmbitos do conhecimento142 . Daí a exigência de que o dever de formação continuada do juiz se estenda “tanto às matérias especificamente jurídicas quanto ao que se refere aos conhecimentos e técnicas que possam favorecer o melhor cumprimento das funções judiciais” (Código Modelo, art. 30). Quanto melhor o preparo intelectual do juiz, nas mais diversas áreas do conhecimento, tanto melhor será, ceteris paribus, a justificação das suas decisões. 4.4. Responsabilidade institucional Dispõe o Código Modelo, em ser art. 43, que cabe aos membros do Poder Judiciário “promover na sociedade uma atitude, racionalmente fundada, de respeito e confiança para com a administração de justiça”. O reconhecimento da responsabilidade institucional do juiz reforça a exigência de que a qualidade no exercício da justiça não é apenas uma questão individual de cada juiz, mas requer uma estrutura institucional 141 NALINI, José Renato. “O juiz e suas atribuições funcionais. Introdução à deontologia da magistratura”, pp. 1-16. Em: LAZZARINI, Alvaro; NALINI, Jose Renato. Curso de deontologia da magistratura. Sao Paulo: Saraiva, 1992, aqui p. 2. 142 IBAÑEZ, Perfecto Andrés. “Ética de la función de juzgar”, p. 63.