SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 18
1
O TRÂNSITO DE SABERES: OLHAR SOBRE A PRODUÇÃO BRASILEIRA
Angela Arruda – UFRJ, Brasil
A escolha deste tema foi facilitada pelo convite dos Prof. Jorge Correia Jesuino e Paula Castro para
discutir com alunos da pós graduação de Psicologia do ISCTE. Agradeço aos colegas a
oportunidade, que contribuiu para a sistematização de algumas das questões que vou abordar.
Meu propósito aqui é jogar um olhar, limitado, sobre uma parte da produção brasileira, que
trabalha com representações sociais elaboradas a partir de algum saber que se dissemina fora da
sua esfera de origem. Para iniciar, vou tentar esclarecer o que é isto e o que nós, profissionais da
saúde e da educação, temos a ver com isto. Em seguida, farei uma breve contextualização da
produção brasileira para poder finalmente expor e discutir o recorte que escolhi para trazer aqui.
Quando os saberes se encontram
Os encontros de saberes podem ser considerados como um objeto de estudo da Teoria das
Representações Sociais desde o princípio, já que a teoria se inicia com a curiosidade de Moscovici
quanto ao encontro entre o saber especializado que é a psicanálise e o saber leigo da população
que ele pesquisou. O que resultou desta investigação, todos sabem, é uma teoria sobre o trânsito
de um saber originado em um tipo de universo, presidido por regras de produção e difusão do
conhecimento, por determinado script da comunicação estabelecido no âmbito deste saber - que
funcionam como salvaguarda do próprio saber e garantia da sua qualidade e legitimidade - para
um outro tipo de universo,cujas trocas são bem mais livres e cuja produção de saber não foi
sempre vista com muitos bons olhos – o senso comum.
Este desenvolvimento teórico inaugurado por Moscovici (1961) tinha alguns grandes
pressupostos, dos quais destaco dois. Um, que o saber dos leigos, profano, e o saber
especializado, canônico, são dois estilos que se diferenciam, mas não se hierarquizam, porque
cada um tem sua própria finalidade, que lhe é peculiar, e ambos são perfeitamente adequados
aos seus objetivos. Tanto a ciência, por exemplo, funciona para desenvolver conhecimentos
generalizados e generalizantes sobre a realidade quanto o senso comum funciona para lidar com
o dia a dia. O que está embutido nesse pressuposto é a idéia de que o senso comum possui uma
lógica própria, e como dizia Geertz (1989), é uma forma de conhecimento complexa e
compreensiva, um sistema cultural, dotado de razoável eficácia no trato dos problemas do
cotidiano. Nisto reside o seu interesse: colocar-se como mais um sistema e uma fonte de saber
2
entre outras possíveis, racional em sua própria cosmologia, como dizem Wagner e Hayes (2005,
p.9) e portanto, dono de uma reflexão que merece ser compreendida e aceita.
Outro pressuposto é o de que nas sociedades contemporâneas, a profusão de funções,
especialidades e novidades que circulam estabelece um fluxo de informações que está em
constante movimento, atravessando os diferentes grupos e segmentos, que se aproximam e se
apropriam de algumas delas a partir das próprias características de grupo, de suas crenças e
afetos, social e historicamente instituídos, e assim constroem representações sociais.
Tudo isso é bem conhecido de todos nós. Contudo, embora estes pressupostos continuem
vigentes de forma geral, a teoria avançou, a sociedade prosseguiu o seu caminho vertiginoso e
fragmentário, e hoje, quando as novidades chovem sobre nós não só a partir da ciência, mas de
muitos outros universos, observamos que vários deles também são profundamente reificados, ao
apresentarem características ditadas por uma regulamentação da produção e difusão do saber,
das condutas dos interlocutores e do estilo de comunicação. É o caso, por exemplo, do mundo do
Direito, ou da Teologia, por exemplo. O que leva a crer que todo universo normativo tende a
constituir um saber especializado cuja comunicação interna é bastante regulamentada e cuja
difusão – em particular, o trânsito para o leigo - dispara o engendramento de representações
sociais. Fica, então, evidente que as formas de comunicação são peça-chave na natureza dos
estilos de saber, e portanto, da diferenciação entre eles, e que muitas representações sociais são
fruto do encontro de saberes de estilos diferentes, fruto, portanto, da comunicação entre eles.
Base e desdobramento destes dois pressupostos é que vivemos numa sociedade pensante, em
que o pensar é uma forma do ser e do viver, incessante, fazendo conviverem pertenças e
perspectivas diversas. O pensar social acontece na comunicação. Quando e onde a sociedade
pensa? A toda hora e em todo lugar. Nas filas de banco ou de ônibus, nas conversas de bar ou de
corredor, nos grupos de encontro de todo tipo, nos debates de toda ordem. Os cartazes dos
corredores dos espaços públicos, os grafitti da cidade, bem como os quadros de avisos, dão
notícia de parte da circulação dessa produção pensante. Os meios de comunicação integram o
processo, bem entendido. Mas ele também acontece nas salas de aula, nos congressos, nos
próprios espaços balizados pelas regras reificantes da comunicação especializada.
Esses universos, apesar de marcados por estilos peculiares, portanto, não são perfeitamente
estanques. Alguns são mais normativos que outros, mas dificilmente, ainda que formatados por
uma rígida regulamentação, estão imunes ao pensamento leigo. Da mesma forma, o universo
3
consensual se veste cada vez mais de retalhos do pensamento reificado, fruto do trânsito
incessante dos outros tipos de pensamento nas nossas sociedades.
Wagner e Hayes (2005) afirmam que o conhecimento especial está ligado a pré-requisitos sociais,
como o desempenho de certos papéis, de natureza especializada. Mesmo se hoje é fácil o acesso
à informação produzida por este universo, por meio das bibliotecas universitárias, o
conhecimento especializado permanece privilégio de alguns, porque depende menos da
informação do que do domínio de padrões de pensamento e capacidades necessárias para
adquirir tal conhecimento, obtidas na freqüentação de instituições especiais. Contudo, mesmo os
representantes destes conhecimentos também tem um pé em cada esfera da vida: a exclusiva e a
cotidiana, no convívio com a família, em seu ambiente privado. Como conseqüência, o
pensamento e o conhecimento que eles possuem sobre a “realidade” pode provir desses dois
espaços. Assim, para Tardif e Raymond (apud Lima, 2008), ao lado do que aprenderam em sua
formação, o que a maior parte dos professores sabe sobre ensino, como ensinar e sobre os seus
papéis, vem de sua própria história de vida, principalmente de sua socialização enquanto alunos.
Trata-se de uma sabedoria que complementa e reveste o saber formal, oriunda da experiência.
Ao mesmo tempo, com o desenvolvimento da comunicação eletrônica, a apropriação de fatias do
conhecimento especializado ficou tão facilitada que certos grupos e indivíduos tornam-se quase-
especialistas de temas que lhes dizem respeito. É o caso das vítimas de alguns tipos de afecção,
que estudam o que os atinge para melhor lidar com a situação, passando a dominar uma parte
dos conhecimentos especializados relativos ao problema. Às vezes eles também se organizam
para obter melhores condições de tratamento e respeito à sua enfermidade. São os chamados
“novos pacientes”, ou impacientes, como se vê entre os portadores de certas doenças crônicas ou
fatais. Herzlich (1969), no seu clássico estudo sobre representações da saúde e da doença já
prognosticava este novo personagem no cenário da saúde ao identificar a representação social
que ela denominou de “a doença como ofício”. Trata-se de doença geralmente crônica ou fatal,
durante a qual o paciente se transforma em aprendiz do próprio organismo e do que o acomete, e
termina por estabelecer novas formas de conviver com a sua situação a partir da disposição de
buscar o conhecimento, no esforço por melhorar. Esta luta cotidiana por dominar a doença a
partir do conhecimento transforma-a em ofício, no qual o paciente adquire um novo saber,
ingressa em novos diálogos e espaços, transformando a própria identidade. O caso dos
movimentos gay e sua luta com relação ao SIDA é exemplar de como um grupo pode tornar a
doença uma bandeira e incorporar esta bandeira à sua identidade.
4
Neste torvelinho de pensares, o encontro, a troca, funcionam como estímulo ao debate,
provocação para criar e fermento do pensamento social, ao recolocarem em pauta a elaboração
das informações, perfazendo ou não uma comunicação bem sucedida. A comunicação instiga,
exercita e veicula a produção de representações sociais e o encontro de saberes.
Este é o nosso cenário profissional. Nós, profissionais de saúde e da educação - professores,
médicos, enfermeiros, dentistas, assistentes sociais, psicólogos e tantos outros - somos
mediadores culturais, habitamos o entre-lugar pelo qual transitam, com a nossa ajuda, saberes de
um universo para outro. Ou de um plano a outro. Somos profissionais do trânsito de saberes.
Nele, também nós temos um pé em cada lado, também precisamos adquirir conhecimentos
especializados, estar em dia com o que se fala, elaborar este conhecimento. E passá-lo adiante de
forma eficaz, em alguma medida: na sala de aula, no consultório, no atendimento.
Fazer transitar conhecimentos de um plano a outro é operação instigante e delicada. O entre-
lugar como espaço da difusão do saber, é também o da sua transformação, que atinge ao mesmo
tempo os saberes pré-existentes. Nós, profissionais do trânsito de saberes, vivemos às voltas com
a necessidade de fazer circular esses saberes, torná-los efetivos, e para isso também precisamos
apropriar-nos deles. O entre-lugar é um espaço de circulação e criação por excelência, porque é o
espaço dos problemas, da mobilização resolutiva, da urgência colocada pelo real. Para responder
ao apelo da necessidade, nem sempre o trânsito é de mão única, nem sempre a origem é uma só.
O trânsito é o movimento durante o qual ocorre alguma mudança, que se configura no encontro
de saberes, quando o saber que acolhe se modifica tanto quanto o saber que aporta. Ele é o
processo pelo qual o conhecimento se transfere de um plano a outro.
Os sentidos do trânsito
A passagem de um plano a outro pode ocorrer em mais de um sentido. Pode ir da ciência, da
técnica, da especialização à conversação informal, como no caso clássico da psicanálise, estudado
por Moscovici(1961); dos princípios, da teoria, à aplicação, como no uso das normas de
biossegurança pelos dentistas em contato com pacientes possivelmente ‘de risco’. Pode ser a
passagem de uma visão generalizada, amplamente compartilhada, a uma mais restrita, de menor
extensão, como a transformação de representações hegemônicas em outras. Pode ser ainda da
visão particular de um grupo para a sua ampliação a audiências maiores, com a passagem de
representações polêmicas, típicas de minorias ativas, a outras, que expandem a adesão a tal
5
visão, podendo até converter-se em representações hegemônicas – aquelas que atravessam todo
um conjunto mais amplo, que pode ser uma nação (Moscovici, 1988) . A importância da questão
ambiental no mundo atual, por exemplo, de início pregada apenas por uns poucos ‘iluminados’,
hoje se tornou uma preocupação global. Voltarei a esses aspectos mais adiante.
Abaixo apresento estes sentidos do trânsito que acabo de enunciar, e na sequência vou
desenvolver a proposta com exemplos da produção brasileira.
Tipos de
representação
Ciência-técnica à senso
comum = Represent soc.
Repres. hegemônica
à outras
Represent. polêmica
à outras à
repres.hegemônica
ELIMINAR
CASAS VAZIAS
ELIMINAR CASAS VAZIAS ELIMINAR CASAS
VAZIAS
ELIMINAR CASAS
VAZIAS
ELIMINAR
CASAS VAZIAS
ELIMINAR CASAS VAZIAS ELIMINAR CASAS
VAZIAS
ELIMINAR CASAS
VAZIAS
ELIMINAR
CASAS VAZIAS
ELIMINAR CASAS VAZIAS ELIMINAR CASAS
VAZIAS
ELIMINAR CASAS
VAZIAS
Antes de iniciar a apresentação do material, convém contextualizar resumidamente essa
produção brasileira e suas características, o que facilitará, espero, o entendimento deste tipo de
produção. Peço desculpas aos colegas brasileiros que já conhecem esta contextualização, que se
dirige em especial a nossos amigos de fora do Brasil.
Contexto da produção brasileira
A Psicologia, em particular a Psicologia Social, no Brasil, como na maior parte da América Latina, e
na Europa, passa por um período de dificuldades e efervescência a partir dos anos 60. Na década
seguinte, quando parte do continente se encontrava sob regimes autoritários, insatisfações e
novos olhares começaram a se manifestar. No fim dos anos 70, eles eram minoritários e se
expressavam sob formas propositivas, chegando a gerar algumas novas institucionalidades para a
disciplina, numericamente reduzidas na época: cursos de pós graduação com orientação para o
trabalho com a comunidade, teorização influenciada pela perspectiva marxista. Este conjunto de
6
novidades redundava em uma focalização nos problemas locais, na questão social em nossos
países, e na busca de ferramentas mais adequadas para lidar com eles do que aquelas que a
psicologia social clássica fornecera até então. Esta fase de questionamento das formas de
produção do conhecimento da área e procura de novos caminhos ficou conhecida como a crise da
psicologia social.
A etapa que se segue, para uma parte da área, é marcada pelo interesse no simbólico e na
consciência, pela abertura para novas referências teóricas, renovação dos objetos de estudo, das
populações estudadas, que passam a incluir grupos e segmentos geralmente marginalizados ou
desfavorecidos de alguma forma. Há também uma maior incorporação das questões contextuais e
macroestruturais nos trabalhos da disciplina, facilitando o diálogo interdisciplinar. A situação
política no continente, na década de 80, começava a se distender, facilitando as trocas abertas
entre perspectivas críticas, o que repercutia na produção do conhecimento.
O início dos anos 80 apresentava, desta forma, um panorama que, embora ainda formatado pelo
paradigma dominante, oferecia um espaço propício à discussão de novas alternativas conceituais
e metodológicas, e é em 1982 que a Teoria das Representações Sociais desembarca oficialmente
na América Latina, pela Venezuela, a convite de Maria Auxiliadora Banchs, chegando ao Brasil em
seguida, numa visita de Denise Jodelet.
A vinda de Denise se pautou pela interdisciplinaridade. Convidada para trabalhar na montagem
de um projeto da UFPb1
sobre representações sociais da Saúde, em Campina Grande (Paraiba), ela
discutiu com profissionais da saúde mental, antropólogos e sociólogos. Em João Pessoa, trabalhou
com a Pós Graduação em Educação da UFPb. Em São Paulo, com a Pós Graduação em Psicologia
Social da PUC2
de São Paulo, com Silvia Lane, pioneira da psicologia social crítica brasileira dos
anos 70 e 80. A chegada da Teoria se fazia, portanto, atravessando os campos disciplinares.
Apesar da relativa abertura existente, contudo, o campo ainda era dominado pelo paradigma
experimentalista na área; como na Europa, os obstáculos epistemológicos se fizeram sentir. Por
sua vez, a imensidão do país, a dispersão dos pesquisadores familiarizados com a teoria,
concorreram para a demora da sua identificação como referente teórico importante para os
objetivos que a vertente crítica da psicologia social perseguia. Assim, não é de estranhar que ela
ganhasse espaço na saúde e na educação ao mesmo tempo e talvez com mais presença que na
própria psicologia social. Com efeito, nos países latinoamericanos, a tradição do acúmulo de
1
Universidade Federal da Paraiba
2
Pontifícia Universidade Católica
7
problemas que atingem a maior parte da população está sempre cobrando soluções, e a teoria
das representações sociais apareceria como uma contribuição na busca delas nos anos 90.
No terceiro milênio, já se pode falar em um campo consolidado. Alguns marcos balizam esta
condição. A II Conferência Internacional sobre Representações Sociais ocorrida no Rio de Janeiro
em 1994 e a primeira Jornada Internacional sobre Representações Sociais em Natal, em 1998, que
recebeu as lideranças européias e latinoamericanas do campo foram dois deles. Daí em diante as
Jornadas, que também passaram a ser denominadas de Conferências Brasileiras sobre
representações sociais, se sucedem de dois em dois anos, a cada vez em um estado de uma região
diferente da federação. A última ocorreu em Brasília, em 2007, com cerca de mil inscritos.
A consolidação deste campo passa também por uma profusão de publicações, pela introdução do
tópico no programa de disciplinas de Psicologia Social na formação em Psicologia, pela presença
de disciplinas e linhas de pesquisa sobre representações sociais em programas de pós graduação,
pela existência de grupos de trabalho sobre elas na Associação Nacional de Pós Graduação em
Psicologia (ANPEPP). O Brasil abriga hoje também dois centros internacionais de pesquisa em
representações sociais, o primeiro em Educação, na Fundação Carlos Chagas, em São Paulo, e o
segundo na Psicologia Social, na Universidade de Brasília.
Outras áreas se aproximam também da Teoria, como Arquitetura, Direito e Odontologia, por
exemplo. Os encontros do campo contam com a participação de profissionais de múltiplas
disciplinas – historiadores, antropólogos, jornalistas, lingüistas, juristas, músicos, comprovando
sua tradição de passar fronteiras e de ferramenta heurística. Isto explica as características do que
vou apresentar em seguida, e o interesse pelo trânsito de saberes.
Debate e encontro de saberes na produção brasileira
O que passo a apresentar não pretende refletir de forma exaustiva nem sistemática a produção
brasileira, hoje já com proporções consideráveis. Trata-se de um recorte, inicialmente apoiado no
Scielo, ou seja, recorrendo a textos publicados em revistas bem qualificadas. Ao pedido de
localizar trabalhos publicados (em periódicos) sobre representações sociais responderam 276
produções. Foram selecionadas aquelas que trabalhassem com o trânsito e encontro de saberes
na perspectiva da teoria das representações sociais, e vou mostrar aqui as que melhor ilustram as
linhas que identifiquei para aquele trânsito. Também foram incluídos alguns artigos aceitos para
publicação oriundos de dissertações de mestrado de pós graduações aprovadas na área da Saúde
que respondiam aos mesmos critérios, e outros, que não constavam destas fontes, como
8
capítulos de livros, que ilustrassem rubricas não atendidas pelo resto do material. Este conjunto
de materiais contém apenas trabalhos de a partir do ano 2000.
Os grandes focos deste material foram questões relativas a crianças e adolescentes, à AIDS, à
saúde mental e à saúde bucal, sugerindo que são temas a respeito dos quais ocorrem trânsitos de
saberes intensos. Estes temas às vezes se sobrepõem, como quando se estudam SIDA e
adolescência, ou observância terapêutica com crianças, o que significa dirigir-se às mães. A Saúde,
portanto, foi a área que mais apareceu para ilustrar o trânsito de saberes, com autores que são
médicos, dentistas, psicólogos e advogados. A seguir, a proposta anterior, agora desdobrada em
um quadro com exemplos de cada alternativa que ele oferece.
Neste quadro, as linhas apresentam os planos de saberes que se encontram e as colunas, os tipos
ou sistemas de representações que se transformam. Este conjunto de elementos tenta combinar
o trânsito dos saberes entre planos diferentes de conhecimento com a criação ou a mudança das
representações que ele provoca. A proposta assume, portanto, que o trânsito pode ocorrer em
sentidos diversos, e que também o sistema ou tipo de representação social que é acionado por
este trânsito, além de dinâmico, pode ser cumulativo com outro, não se encerrando
obrigatoriamente apenas em uma das colunas do quadro. A pesquisa de Li (2004 ) sobre a entrada
da China na era do mercado, que colocou lado a lado o interesse por viver bem, ligado ao
consumo e ao individualismo, e a filosofia do despojamento e primazia do coletivo características
da cultura milenar chinesa, dá exemplo da sobreposição de representações hegemônicas e
polêmicas, ambas em trânsito para a mudança.
Ciência-técnica à senso
comum
Repr. Hegemônica
à outras
Repr. polêmica à hegemônica
Especializado +
leigo
• Desnutrição. infantil
para mães
• Loucura, depres.
• Campanha contra o
câncer
• Vacina infantil para mães
9
Especializado +
especializado
• Saúde do adolesc
• SIDA,
soropositividade
para dentistas
• Meio ambiente
para gestores
• Brasil para jovens
• Meio ambiente para m
ambientalistas
Leigo + leigo • Meio ambiente para m
ambientalistas
Os dois primeiros exemplos (1ª linha do quadro) conjugam a questão da observância e do público
infantil, e foram estudos a partir do depoimento das mães. Um, sobre a RS da desnutrição por
mães de crianças de baixo peso, se refere ao trânsito da ciência para o senso comum, com a
passagem do conhecimento especializado para o leigo. Tem um desfecho original, como será
mostrado. Outro, sobre a RS da vacina pelas mães, embora possa ser considerado do mesmo
sentido, acrescenta a ele a confirmação da passagem de uma representação polêmica a
hegemônica.
A pesquisa sobre representações sociais da desnutrição infantil para mães de crianças com baixo
peso (Hein, 2005; 1ª linha, 1ª coluna do quadro) teve como contexto o serviço público de saúde
num bairro do Rio de Janeiro que tentava aumentar captação e observância no tratamento da
desnutrição infantil (DI). Uma discussão inicial com os profissionais, a observação participante e
entrevistas com as mães, que se negavam a aceitar a denominação de desnutridos para seus
filhos, revelou a necessidade de aproximar-se destas. Elas constituíram dois grupos pesquisados,
o das que já haviam recebido alta clínica para seus filhos, tendo sido acompanhadas pelos
serviços de saúde durante vários anos, e o das que haviam chegado lá há menos de um ano. Os
resultados da pesquisa mostraram que para elas, a DI era associada ao descuido da mãe, falta de
recursos, morte; e objetivada em imagens esquálidas que aparecem nos media, necessidade de
acompanhamento médico. Já o baixo peso era visto como menos grave, razão subjacente à
decisão do grupo de intitular-se como grupo de mães de crianças com baixo peso. Ficou evidente
a divergência de visão das mães e dos profissionais e a diferença entre maior e menor vivência do
problema por parte delas. Um dos resultados positivos foi a mudança de representações sociais:
as mães, no decorrer do processo de investigação (sobre o qual foram consultadas e discutiram
10
passo a passo), sentiram-se valorizadas e tornaram-se multiplicadoras, aumentando a captação; a
psicóloga autora estimulou e participou do aprendizado das mulheres, que resgataram e
transmitiram ao grupo velhos conhecimentos de nutrição herdados de suas mães, coroando assim
um encontro de saberes com trânsito de mão dupla.
Uma pesquisa sobre a representação social da vacinação infantil para as mães (Pugliesi 2007, 1ª
linha, 3ª coluna do quadro), após mais de 30 anos do Programa Nacional de Vacinação infantil,
que obtem há vários anos significativa observância das mães ao calendário vacinal, procedeu à
observação sistemática numa sala de vacinação dos serviços públicos de saúde do Rio de Janeiro,
aplicou questionário e evocação livre sobre VACINA a mães nulíparas e multíparas frequentadoras
daqueles serviços. O núcleo central encontrado foi composto pelos termos prevenção e proteção;
a periferia: bom, cuidado, responsabilidade. O questionário afirmou a força da prevenção – num
contexto histórico diverso do de 1904 (a Revolta da Vacina, em que a população reagiu à
imposição da mesma pelos serviços sanitários da cidade), as mães já falam do hábito de vacinar
que passa de geração a geração, como uma tradição, confirmando a mudança da representação
hegemônica: verificou-se a sintonia com o discurso da Epidemiologia, uma visão ativa e
consciente dos benefícios da imunização, que substituiu possíveis desconhecimentos ou
resistências
Estas duas pesquisas mostram processos bem sucedidos de trânsito de saberes. Numa, ele ocorre
praticamente durante o período de duração do trabalho, pouco mais de dois anos, e constituiu
uma verdadeira mão dupla, em que o olhar da teoria das representações operou uma
modificação na pesquisadora, facilitado pela sua sensibilidade, o tipo de pesquisa adotado (grupo
de discussão, participação das mulheres em decisões), o fato de que as mães tiveram que passar a
ser entrevistadas em suas casas. A pesquisa em si constituiu um laboratório que provocou
mudanças. A outra, mostra o processo exitoso da passagem de uma representação polêmica a
hegemônica num período mais longo, em torno de meio século, mostrando também o sucesso da
difusão de noções da epidemiologia, em sintonia com a disposição das mães para a prevenção e a
promoção da saúde de seus filhos.
Outras duas pesquisas (2ª linha do quadro, 1ª. coluna), ambas de médicas do Programa de Saúde
do Adolescente do Rio de Janeiro, funcionaram como diagnóstico para trabalhar problemas na
implementação do Programa, mostrando a dificuldade no trânsito do saber especializado para a
aplicação junto à população, e entre os dois universos.
11
Conhecer a representação social da saúde do adolescente para ele e para os profissionais de
saúde, foi o objetivo da coordenadora do Programa de Saúde do Adolescente no Rio de Janeiro,
com o interesse de torná-lo mais efetivo, mais procurado pelos adolescentes (Branco, 2003). A
primeira parte se dirigiu aos profissionais de saúde. Saúde para os profissionais de unidades
envolvidas com o programa se expressava por meio de uma única palavra que compunha o núcleo
central: informação. A segunda parte do projeto se dirigiu aos adolescentes (Cromack, no prelo).
Saúde para os adolescentes de escolas das mesmas regiões se manifesta em um núcleo central
que reúne alimentação, hospital, importante, médico. Houve diferenças entre os adolescentes: o
núcleo central dos mais jovens:doença, felicidade, vida, e dos mais velhos: sistema de saúde
deficiente. A discrepância entre as representações dos dois grupos permitia problematizar o
atendimento que o programa oferecia. O retorno dos resultados aos profissionais, numa rodada
de oficinas em todo o Programa foi uma contribuição interessante, ao abrir espaço para o debate
sobre o descompasso entre as expectativas dos adolescentes e a visão dos profissionais, e a
melhor forma de os profissionais desempenharem seu papel no Programa, funcionando
efetivamente como agentes do debate de saberes.
As pesquisas envolvendo as representações sociais de SIDA são muito numerosas. As que vou
resumir são de dois tipos. A primeira, relativa a adolescentes, trata do trânsito do saber
especializado para o público adolescente. As duas outras descortinam uma nova preocupação de
um setor da saúde. Referem-se a dentistas e a sua relação com a prevenção e o cuidado a
pacientes HIV positivos. Aqui, se trata da aplicação por especialistas de um saber especializado,
ou seja, do trânsito da teoria à prática.
A primeira delas (Camargo et al. 2007; 2ª linha, 1ª coluna do quadro) investiga a representação
social de adolescentes de Florianópolis (Santa Catarina), sobre SIDA e a relação desta
representação com o conhecimento científico de estudantes de uma escola pública de
Florianópolis sobre o tema. O núcleo central, repetindo elementos já encontrados em estudos
anteriores - doença,morte, medo, sofrimento e preconceito – acrescenta mais dois novos itens:
prevenção e responsabilidade. Um questionário e um teste sobre conhecimento científico
mostraram que mais da metade dos estudantes (55%) não foi considerada bem informada
cientificamente quanto ao HIV/SIDA. A força da prevenção da SIDA, com características
pragmáticas, pode ser verificada, com maior ênfase na dimensão afetiva da RS do que no
conhecimento biomédico e científico sobre a doença
12
As duas pesquisas de dentistas sobre problemas dos profissionais para atenderem soropositivos
para SIDA focalizaram o atendimento odontológico e as RS em torno de SIDA (Ragon, 2005;
Rodrigues, 2005, 2ª. linha, 1ª. coluna do quadro). Em ambas verificou-se a existência de
informação sobre a prevenção, dificuldade de incorporar conhecimentos sobre biossegurança e
SIDA, bem como práticas diferentes do discurso. Crenças e valores, temor, preconceito frente ao
paciente soropositivo apareceram, apesar de pouco contato dos dentistas com ele. A ênfase na
complexidade dos fatores envolvidos no conhecimento da questão e a necessidade de ir além da
dimensão racional mostrou-se importante para entendê-la e provocar mudança
Estas três pesquisas, portanto, colocam em pauta a questão dos afetos que SIDA desperta,
sublinhando a necessidade de levar em conta esta dimensão quando se lida com um problema
que mobiliza fantasmas, o medo do contágio e da morte. A informação, portanto, pode não ser
suficiente para lidar com questões que afetam as pessoas, e o saber especializado sofre um curto
circuito quando chega o momento da sua aplicação.
Mais duas pesquisas sobre o trânsito de um saber especializado para o público focalizam a saúde
mental. Uma, sobre a loucura, outra sobre a depressão, ambas com pessoas diagnosticadas com
transtornos psíquicos. A primeira (Brito, 2004, 1ª linha e 1ª coluna do quadro), realizada no Ceará
junto a familiares destas pessoas, verifica a produção das RS com fragmentos conceituais do
conhecimento científico veiculados pelo meio social; a presença de explicações míticas, espirituais
ou cósmicas revela dificuldade de dar sentido e o apelo a elementos do arcabouço cultural para
isso (por exemplo, a loucura devida à força da lua). A pesquisa, que adotou procedimentos
etnográficos, reconhece convergências com o trabalho de Jodelet.
A segunda pesquisa (Barros, 2006, 1ª linha e 1ª coluna do quadro) trabalha com a RS da
sintomatologia da depressão entre adolescentes de escolas particular e pública de João Pessoa
(Paraiba), portadores de depressão. Detecta que as RS não estão baseadas apenas no
conhecimento científico, nas comunicações informais, mas também no conjunto de problemas
práticos que estes jovens encontram no âmbito sociocultural, como o preconceito, as dificuldades
para lidar com suas condições de vida precárias, e o quanto isto os desconcerta em relação à sua
pertença e à identidade grupal. Estes aspectos se repartem diferentemente entre os dois tipos de
escola estudados: na escola particular aparecem elementos da Psicologia (causas afetivas,
psicológicas) e na escola pública, da Psicologia Social (inibições sociais, econômicas)
13
Ainda no mesmo sentido – do especializado para o leigo -, uma outra pesquisa analisa campanhas
de saúde, destinadas a atingir o grande público (Ramos, 2007). Frente a um contexto de alta
mortalidade por câncer no Brasil, pouco avanço na prevenção, e da força da RS vinculada à morte,
foram feitas entrevistas com universitários sobre 7 slogans de campanhas. Detectou-se, a partir
delas, que os slogans são definidos com base no impacto (a morte), não na mobilização para a
prevenção; são eficazes para chocar, e em conseqüência, mobilizam defesas e resistência ao
impacto. Trata-se, portanto de uma mobilização defensiva. As campanhas apelam para a
autoestima, colocam o problema no plano individual. A ligação à fatalidade e a visão do câncer
como problema individual tornam a prevenção mais sujeita a obstáculos individuais, defesas
psíquicas. Em conclusão, RS do câncer, autoestima, relações indivíduo-coletividade, discursos de
gênero e caráter ideológico dos slogans são elementos psicossociais importantes a serem levados
em conta na elaboração de campanhas.
Repete-se aqui a forte presença dos afetos e de uma antiga representação hegemônica do câncer,
confirmando a necessidade de considerar outras dimensões para além do estritamente racional, e
ao mesmo tempo a visão crítica do modelo individualizante de saúde (cf. texto de Luisa Lima
sobre a presença do grupo como facilitador para a dissolução do estresse, neste volume)
Voltando ao trânsito do saber especializado entre especialistas, trago agora uma outra pesquisa,
que ilustra a retomada e a modificação de uma representação hegemônica.
Trata-se de um recorte e uma comparação entre duas pesquisas de uma série histórica (1992 e
1997) sobre meio ambiente por lideranças ambientalistas de seis segmentos sociais. Enfocou-se
os fatores culturais que facilitariam ou dificultariam consciência ambiental na sociedade brasileira
(Arruda, 2000). Os gestores ambientalistas retomam e retrabalham representações hegemônicas
da natureza, numa dupla elaboração: a exuberância e a abundância tanto podem sensibilizar, pelo
sentimento estético e o bem estar que provoca, quanto levar ao descaso, pela sensação de que
não importa o mau uso, uma vez que é inesgotável. As características do ‘brasileiro’ em relação ao
meio ambiente também são vistas por ângulos diferentes: a positivação das tradições indígenas e
africanas, respeitosas do meio ambiente, e a negatividade da herança colonial portuguesa,
predadora dos recursos naturais. Desta forma, a velha representação do Brasil como país de
natureza inesgotável está em processo de mudança, apresentando novas cores mas guardando
ainda algo do seu peso e caráter anterior. Este grupo constitui uma minoria ativa que dissemina a
semente para a modificação da representação hegemônica .
14
Refletindo sobre o processo
Passo agora ao próprio trânsito que redunda no encontro de saberes, tentando pensá-lo como
processo psicossocial que se constitui de outros processos psicossociais. Um deles já foi
mencionado, é a comunicação. A comunicação é veículo e resultado deste trânsito, e para nossos
objetivos profissionais, ela importa para que esse trânsito se faça de forma a produzir um diálogo
criativo e construtivo. A TRS apresenta elementos que podem ser úteis.
Para que a comunicação aconteça como uma negociação produtiva, podemos pensar em mais de
um ângulo da questão. Um, o do próprio saber em trânsito. É preciso que aquilo que transita
encontre seu ancoradouro – ou seja, que ele ache um nicho no pensamento do grupo que ele está
a visitar, o que significa dizer que o grupo consiga acomodá-lo em algum lugar do seu repertório
de idéias e imagens. É preciso que este objeto ofereça figurabilidade para ser objetivado pelo
grupo. A substituição do termo ‘lepra’ por ‘hanseníase’, por exemplo, devido a uma
recomendação internacional de 1976 e à ação de minorias ativas, acabou vingando e modificando
todo um imaginário. As conseqüências positivas para a população atingida e para os serviços de
saúde hoje já são tangíveis (Oliveira, 2003). Um trabalho sobre representações sociais dos dois
termos para uma população que tem contato com o fenômeno indica a mudança de sentidos num
caso e noutro: a lepra guardando a marca fantasmática da morte e uma dissociação com relação
ao humano, que constrói o outro, portador da enfermidade, como alteridade radical, da qual se
quer distância,como mostrou Jodelet (1998 e 2005) enquanto a hanseníase aparece como mais
um item do repertório médico, uma doença passível de tratamento e cura.
O grupo é outro ângulo da questão. A ancoragem e a figurabilidade têm a ver com formas de
compatibilidade ou a possibilidade de interseção de repertórios, daí a importância de conhecer as
condições de produção das representações sociais, como tão bem explicou Jodelet (2001):
explorar as múltiplas inserções do interlocutor, os variados contextos, segundo Jesuino (2000) de
vai brotar a representação social que elabora o novo, promovendo seu movimento de um
universo para outro. O trabalho de Gervais e Jovchelovitch (1998) sobre a representação da saúde
para a comunidade chinesa que vive na Inglaterra trouxe uma interessante contribuição para o
entendimento da pouca freqüentação dos serviços de saúde por aquela comunidade. O olhar
antropológico, a aproximação à cultura daquele grupo e as formas como ela se modificava de uma
geração para outra em contato com o novo país de morada confirmam a vocação da TRS para
figurar como uma antropologia do mundo contemporâneo.
15
O levantamento de representações sociais, neste sentido, pode fazer parte de um trabalho
diagnóstico (no sentido psicossociológico, não psicopatológico, claro) para intervenções em
planejamento.
Ainda quanto à construção da representação que será a via de passagem do novo a um outro
espaço que não o da sua criação, a entrada em cena da dimensão afetiva tem definitiva
incidência. Não só porque sempre está em pauta a avaliação da novidade, a atitude dos sujeitos,
mas porque os afetos perseguem todos os processos elaborativos, influenciam todos eles,
infletindo-os, trazendo interferências imprevistas, agrado ou medos, prazer ou angústias,
imaginários que desenharão o contorno do objeto (Arruda, 2007). Se pensarmos em outros
processos psicossociais que importam nessas circunstâncias, como a influência social - do grupo
ou de alguns personagens -, o peso das minorias ativas ao insistirem sobre seu ponto de vista,
logo ressalta a presença do afetivo.
Também não se pode esquecer que a produção de representações sociais implica também uma
negociação, ou várias negociações. Negociação de significados, de sentidos, de influências e
afetos, negociação entre medos e desejos, entre possibilidades de representar. Negociação entre
grupos e suas maneiras de ver, suas lutas por espaço igualmente. Negociações do indivíduo com o
grupo e seu acervo afetivo-nocional. As circunstâncias em que os saberes circulam e se ancoram
no universo de pensamento pré-existente, bem como a configuração política que envolve a
incorporação da novidade e a memória de experiências assemelháveis não podem, portanto, ser
esquecidas. Tudo isto faz parte do que nós, profissionais do trânsito de saberes, podemos
pesquisar para levar a bom termo nossa função de mediadores culturais.
Derivadas e conseqüências ...
Por fim, algumas derivadas e consequências do debate de saberes são conhecidas por nós. Os
problemas de comunicação, muitas vezes originados na incompreensão do universo de sentidos
que o interlocutor traz consigo, produzem o descompasso na comunicação. Este seria a
defasagem que gera a incomunicação. Um bom exemplo se encontra em Knauth (1997) que
discute como o atendimento médico a mulheres de baixa renda visando a prevenção do SIDA.,
pode se tornar contraproducente. A anamnese realizada pelo médico contém perguntas
consideradas por elas como ofensivas (se mantinham relações extra-conjugais, se usavam
camisinha etc.). As mulheres se sentiam humilhadas pelo profissional, ao serem associadas a
um(a) Outro(a) do(a) qual querem se demarcar, e a partir daí, tudo que ele lhes recomendasse
16
perdia o valor. A comunicação entre planos diferentes pode então redundar em processos de
diferenciação e alterização que afastam os interlocutores em lugar de aproximá-los, esterilizando
o processo de trocas e seu objetivo.
Outra possibilidade é que o trânsito não se complete, e não aconteça a elaboração da
representação, caso já discutido por Celso Sá (1998), e que pode indicar que aquele objeto ainda
não está estruturado como uma representação para aquele grupo, seja porque que não tem a
relevância que se pensava para ele, seja porque não lhe foi apresentado sob a melhor forma para
o objetivo que se busca, seja porque o processo de elaboração ainda está em seu início. No
extremo oposto temos os processos de conversão, como o que apareceu na pesquisa sobre a RS
da desnutrição pelas mães de crianças de baixo peso, em que a psicóloga consegue convergir para
o olhar da sua clientela, e passa a compreender e compartilhar dos seus saberes.
Também pode ocorrer a mudança da representação, portanto, e convém lembrar que, quando se
trata de representações hegemônicas, que têm um enraizamento antigo e amplo, geralmente de
várias gerações, ela tende a ocorrer seja por uma mudança radical da situação ou das práticas,
seja no longo prazo. Por último, também acontece a aproximação de saberes e o diálogo
construtivo, bem negociado, como vimos em alguns exemplos.
À guisa de síntese
O debate ocorre, portanto, entre saberes diversificados e em sentidos diferentes. No caso do
encontro de saberes especializados com os leigos, podem acontecer a resistência, o confronto de
lógicas diferentes; a modificação do saber difundido, do outro saber, a hibridação de saberes,a
mudança das RS. Processos psicossociais intervêm neste encontro e a importância das dimensões
presentes na elaboração do saber, inclusive a afetiva, é inegável. Entender o
encontro/debate/elaboração deste saber implica a compreensão das diferenças, a facilitação do
diálogo e é a base para mudança das RS
Espero que este curto panorama de pesquisas e reflexões sobre este aspecto da produção
brasileira tenha mostrado algumas características desta e possa contribuir de alguma forma para
os colegas vislumbrarem o interesse da Teoria das Representações Sociais para nós, que além de
profissionais do trânsito de saberes somos também profissionais envolvidos com os problemas
locais e com as transformações globais e suas conseqüências.
REFERÊNCIAS
17
Arruda, A. Representaciones sociales y cultura en el pensamiento ambientalista brasileño. In
D.Jodelet & A.Guerrero (coords.) Develando la cultura. Estudios en Representationes Sociales.
México, UNAM.2000, p.31-60
______. Meandros da teoria: a dimensão afetiva das representações sociais. Conferência, V
Jornada Internacional e II Conferência Brasileira sobre Representações Sociais, Brasília, 2007
Barros, A.P.R. et al. As RS da depressão em adolescentes no contexto do ensino médio. Estudos
em Psicologia. 2006, v.23, n.1.
Branco, V.M.C. Os sentidos da saúde do adolescente para profissionais, Florianópolis, II Jornada
Internacional sobre Representações Sociais, 2003
Brito, H.B. et al. RS e subjetividade do adoecer psíquico. Estudos de Psicologia 2004, v.9, n.2
Camargo,B.V. et al Concepções Pragmáticas e científicas de adolescentes sobre SIDA. Psicologia
em estudo, 2007, vol.12, no.2, p.277-284.
Cromack, L.M.F. et al. O olhar do adolescente sobre a saúde. Um estudo de Representações
sociais. Rio de Janeiro. (no prelo)
Geertz, C. A interpretação das culturas.Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos. 1989
Gervais, M.C., Jovchelovitch, S. Health and identity: the case of the Chinese community in
England. Social Science Information 1998, vol.37, n.4, p.709-729
Hein, V. A desnutrição infantil representada por mães de crianças com baixo peso, Revista Gaúcha
de Enfermagem (no prelo)
Herzlich, C. Santé et maladie- analyse d’une représentation sociale. Paris: Mouton-Ecole de Hautes
Etudes em Sciences Sociales. 1969
Jodelet, D. A alteridade como produto e processo psicossocial. In A. Arruda (org.), Representando
a alteridade Petrópolis: Vozes. 1998, p.47-67.
______. Representações sociais. Rio de Janeiro : EDUERJ. 2001
______. Loucura e representações sociais. Petrópolis: Vozes. 2005
Jesuino, J.C. Estructuras e processos grupais. In M.B Monteiro, J. Vala (orgs.) .Psicologia Social.
Lisboa : Fundação Caloluste Gulbenkian. 2000, p.293-331
Knauth, D.R. O virus procurado e o vírus adquirido. Revista de Estudos Feminista 1997,vol.5, n.2.
p.291-301
Li, L. Sensitising concept, themata and shareness: a dialogical perspective of social
representations. Journal for the Theory of Social Behaviour 2004, 34:3, p.249-264
Lima, R.C.P. 2008. Brasília, Representações sociais e saberes docentes. III Seminário Internacional
e 4ª Reunião Técnica dos Grupos de Pesquisa Associados ao CIERS-Ed (Centro Internacional de
18
Estudos em Representações Sociais e Subjetividade – Educação), Trabalho Encomendado,
Aveiro/Portugal, 23 a 25 de janeiro/2008
Moscovici, S. La psychanalyse, son image, son public. Paris: PUF. 1961
______. Notes towards a description of social representations. European Journal of Social
Psychology 1998, 18, p.211-250
Oliveira, M. L. W. R. Social representation of Hansen's disease, thirty years after the term 'leprosy'
was replaced in Brazil. História, Ciência, Saúde: Manguinhos 2003, v. 1, n. 1, p. 41-49,
Pugliesi, M.V. et al. Vacinação, um outro olhar – Mães e vacinação das crianças. V JIRS Brasília,.
2007
Ragon, C.S.T. et al. Os sentidos da AIDS e o atendimento odontológico. João Pessoa,IV JIRS, 2005
Ramos, C. et al. Impacto e (i)mobilização: um estudo sobre campanhas de prevenção ao câncer.
Ciência & saúde coletiva 2007, v.12 n.5
Rodrigues, M.P. et al. Os cirurgiões dentistas e as RS da AIDS. Ciência & Saúde Coletiva 2005, v.10,
n.2
Sá, C.P. A construção do objeto de pesquisa em representações sociais.Rio de Janeiro: EDUERJ,
1998
Wagner, W. & Hayes, N. Everyday discourse and common sense. The theory of social
representations. New York: Palgrave MacMillan. 2005

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Psicologia uma-nova-introducao-figueiredo-l-c
Psicologia uma-nova-introducao-figueiredo-l-cPsicologia uma-nova-introducao-figueiredo-l-c
Psicologia uma-nova-introducao-figueiredo-l-cmona-freitas
 
Alberto antonio nhatirre, turma r9, numero 01
Alberto antonio nhatirre, turma r9, numero 01Alberto antonio nhatirre, turma r9, numero 01
Alberto antonio nhatirre, turma r9, numero 01Alberto Nhatirre
 
O conceito de subjetividade nas teorias sócio-históricas
O conceito de subjetividade nas teorias sócio-históricasO conceito de subjetividade nas teorias sócio-históricas
O conceito de subjetividade nas teorias sócio-históricasJuliana Soares
 
Sobre a pesquisa ação na educação a11v1133
Sobre a pesquisa ação na educação a11v1133Sobre a pesquisa ação na educação a11v1133
Sobre a pesquisa ação na educação a11v1133Martha Hoppe
 
Psicologia uma nova introdução
Psicologia uma nova introduçãoPsicologia uma nova introdução
Psicologia uma nova introduçãoSFerreira Miranda
 
Artigo...historia da ciencia
Artigo...historia da cienciaArtigo...historia da ciencia
Artigo...historia da cienciaAmanda Ramos
 
Unidade I – evolução do conhecimento
Unidade I – evolução do conhecimentoUnidade I – evolução do conhecimento
Unidade I – evolução do conhecimentoAlex Alembert
 
Dissertação de mestrado -Mara baroni
Dissertação de mestrado -Mara baroniDissertação de mestrado -Mara baroni
Dissertação de mestrado -Mara baroniUnip e Uniplan
 
Resumo dimas floriani
Resumo dimas florianiResumo dimas floriani
Resumo dimas florianiMarta Sousa
 
Ciência e realidade científica
Ciência e realidade científicaCiência e realidade científica
Ciência e realidade científicaViviane Guerra
 
Formas de Conhecimento
Formas de ConhecimentoFormas de Conhecimento
Formas de ConhecimentoRobson Santos
 
2. Fundamentos Epistemológicos da Medicina - o conhecimento
2. Fundamentos Epistemológicos da Medicina -  o conhecimento2. Fundamentos Epistemológicos da Medicina -  o conhecimento
2. Fundamentos Epistemológicos da Medicina - o conhecimentoLuiz-Salvador Miranda-Sa
 
Filosofia e o surgimento da epistemologia ou teoria do conhecimento
Filosofia e o surgimento da epistemologia ou teoria do conhecimentoFilosofia e o surgimento da epistemologia ou teoria do conhecimento
Filosofia e o surgimento da epistemologia ou teoria do conhecimentoDiego Ventura
 

Mais procurados (20)

Construtivismo ferreira
Construtivismo ferreiraConstrutivismo ferreira
Construtivismo ferreira
 
( Espiritismo) # - ademar a c reis - magnetismo vitalismo
( Espiritismo)   # - ademar a c reis - magnetismo vitalismo( Espiritismo)   # - ademar a c reis - magnetismo vitalismo
( Espiritismo) # - ademar a c reis - magnetismo vitalismo
 
Psicologia uma-nova-introducao-figueiredo-l-c
Psicologia uma-nova-introducao-figueiredo-l-cPsicologia uma-nova-introducao-figueiredo-l-c
Psicologia uma-nova-introducao-figueiredo-l-c
 
Alberto antonio nhatirre, turma r9, numero 01
Alberto antonio nhatirre, turma r9, numero 01Alberto antonio nhatirre, turma r9, numero 01
Alberto antonio nhatirre, turma r9, numero 01
 
Morin
MorinMorin
Morin
 
A arte perdida de cuidar
A arte perdida de cuidar A arte perdida de cuidar
A arte perdida de cuidar
 
Etapas da construção do conhecimento
Etapas da construção do conhecimentoEtapas da construção do conhecimento
Etapas da construção do conhecimento
 
O conceito de subjetividade nas teorias sócio-históricas
O conceito de subjetividade nas teorias sócio-históricasO conceito de subjetividade nas teorias sócio-históricas
O conceito de subjetividade nas teorias sócio-históricas
 
Sobre a pesquisa ação na educação a11v1133
Sobre a pesquisa ação na educação a11v1133Sobre a pesquisa ação na educação a11v1133
Sobre a pesquisa ação na educação a11v1133
 
Psicologia uma nova introdução
Psicologia uma nova introduçãoPsicologia uma nova introdução
Psicologia uma nova introdução
 
Artigo...historia da ciencia
Artigo...historia da cienciaArtigo...historia da ciencia
Artigo...historia da ciencia
 
Unidade I – evolução do conhecimento
Unidade I – evolução do conhecimentoUnidade I – evolução do conhecimento
Unidade I – evolução do conhecimento
 
Dissertação de mestrado -Mara baroni
Dissertação de mestrado -Mara baroniDissertação de mestrado -Mara baroni
Dissertação de mestrado -Mara baroni
 
Resumo dimas floriani
Resumo dimas florianiResumo dimas floriani
Resumo dimas floriani
 
Ciência e realidade científica
Ciência e realidade científicaCiência e realidade científica
Ciência e realidade científica
 
Formas de Conhecimento
Formas de ConhecimentoFormas de Conhecimento
Formas de Conhecimento
 
2. Fundamentos Epistemológicos da Medicina - o conhecimento
2. Fundamentos Epistemológicos da Medicina -  o conhecimento2. Fundamentos Epistemológicos da Medicina -  o conhecimento
2. Fundamentos Epistemológicos da Medicina - o conhecimento
 
Filosofia e o surgimento da epistemologia ou teoria do conhecimento
Filosofia e o surgimento da epistemologia ou teoria do conhecimentoFilosofia e o surgimento da epistemologia ou teoria do conhecimento
Filosofia e o surgimento da epistemologia ou teoria do conhecimento
 
Ciencia e conhecimento2
Ciencia e conhecimento2Ciencia e conhecimento2
Ciencia e conhecimento2
 
Epistemologias do seculo_xx
Epistemologias do seculo_xxEpistemologias do seculo_xx
Epistemologias do seculo_xx
 

Semelhante a O trânsito de saberes entre universos

Fundamentos de Sociologia Unidade I
Fundamentos de Sociologia Unidade IFundamentos de Sociologia Unidade I
Fundamentos de Sociologia Unidade IHarutchy
 
Myriam sepúlveda interdisc
Myriam sepúlveda   interdiscMyriam sepúlveda   interdisc
Myriam sepúlveda interdiscelena_va
 
Educomunicacao o que_e_isto
Educomunicacao o que_e_istoEducomunicacao o que_e_isto
Educomunicacao o que_e_istomarcaldeira
 
Saber e ética (1)
Saber e ética (1)Saber e ética (1)
Saber e ética (1)junipampa
 
O estudo cientifico da aprendizagem
O estudo cientifico da aprendizagemO estudo cientifico da aprendizagem
O estudo cientifico da aprendizagemQuitriaSilva2
 
Metodologia Científica na Publicação de Artigos no Brasil
Metodologia Científica na Publicação de Artigos no BrasilMetodologia Científica na Publicação de Artigos no Brasil
Metodologia Científica na Publicação de Artigos no BrasilGisele Finatti Baraglio
 
Artigo comunicação científica uma revisão de seus elementos básicos
Artigo   comunicação científica uma revisão de seus elementos básicosArtigo   comunicação científica uma revisão de seus elementos básicos
Artigo comunicação científica uma revisão de seus elementos básicosJackeline Ferreira
 
1 livro de metodologia da pesquisa
1   livro de metodologia da pesquisa1   livro de metodologia da pesquisa
1 livro de metodologia da pesquisaIfeIepa
 
MIC-Métodos-2021.pptx
MIC-Métodos-2021.pptxMIC-Métodos-2021.pptx
MIC-Métodos-2021.pptxVenncioCorreia
 
Fundamentos das Ciências Sociais
Fundamentos das Ciências SociaisFundamentos das Ciências Sociais
Fundamentos das Ciências SociaisMaria Clara Silva
 
Interdisciplinaridade 21-03-2011
Interdisciplinaridade 21-03-2011Interdisciplinaridade 21-03-2011
Interdisciplinaridade 21-03-2011Procambiental
 
Boletim da ufmg patrick charaudeau
Boletim da ufmg patrick charaudeauBoletim da ufmg patrick charaudeau
Boletim da ufmg patrick charaudeauFARLEY DE OLIVEIRA
 
Aula 1 TF.pptx
Aula 1 TF.pptxAula 1 TF.pptx
Aula 1 TF.pptxCanaldaJ1
 

Semelhante a O trânsito de saberes entre universos (20)

Fundamentos de Sociologia Unidade I
Fundamentos de Sociologia Unidade IFundamentos de Sociologia Unidade I
Fundamentos de Sociologia Unidade I
 
Myriam sepúlveda interdisc
Myriam sepúlveda   interdiscMyriam sepúlveda   interdisc
Myriam sepúlveda interdisc
 
Educomunicacao o que_e_isto
Educomunicacao o que_e_istoEducomunicacao o que_e_isto
Educomunicacao o que_e_isto
 
Saber e ética (1)
Saber e ética (1)Saber e ética (1)
Saber e ética (1)
 
O estudo cientifico da aprendizagem
O estudo cientifico da aprendizagemO estudo cientifico da aprendizagem
O estudo cientifico da aprendizagem
 
Metodologia Científica na Publicação de Artigos no Brasil
Metodologia Científica na Publicação de Artigos no BrasilMetodologia Científica na Publicação de Artigos no Brasil
Metodologia Científica na Publicação de Artigos no Brasil
 
Artigo comunicação científica uma revisão de seus elementos básicos
Artigo   comunicação científica uma revisão de seus elementos básicosArtigo   comunicação científica uma revisão de seus elementos básicos
Artigo comunicação científica uma revisão de seus elementos básicos
 
1 livro de metodologia da pesquisa
1   livro de metodologia da pesquisa1   livro de metodologia da pesquisa
1 livro de metodologia da pesquisa
 
MIC-Métodos-2021.pptx
MIC-Métodos-2021.pptxMIC-Métodos-2021.pptx
MIC-Métodos-2021.pptx
 
Em torno de um novo paradigma
Em torno de um novo paradigmaEm torno de um novo paradigma
Em torno de um novo paradigma
 
Aula
Aula Aula
Aula
 
Aula de filosofia 1anos
Aula de filosofia 1anosAula de filosofia 1anos
Aula de filosofia 1anos
 
Epistemologia de Stephen Toulmin
Epistemologia de Stephen ToulminEpistemologia de Stephen Toulmin
Epistemologia de Stephen Toulmin
 
Biblioteca 123
Biblioteca 123Biblioteca 123
Biblioteca 123
 
Fundamentos das Ciências Sociais
Fundamentos das Ciências SociaisFundamentos das Ciências Sociais
Fundamentos das Ciências Sociais
 
Interdisciplinaridade 21-03-2011
Interdisciplinaridade 21-03-2011Interdisciplinaridade 21-03-2011
Interdisciplinaridade 21-03-2011
 
Fichamento - Eunice
Fichamento - EuniceFichamento - Eunice
Fichamento - Eunice
 
Manual
ManualManual
Manual
 
Boletim da ufmg patrick charaudeau
Boletim da ufmg patrick charaudeauBoletim da ufmg patrick charaudeau
Boletim da ufmg patrick charaudeau
 
Aula 1 TF.pptx
Aula 1 TF.pptxAula 1 TF.pptx
Aula 1 TF.pptx
 

Último

Grupo Tribalhista - Música Velha Infância (cruzadinha e caça palavras)
Grupo Tribalhista - Música Velha Infância (cruzadinha e caça palavras)Grupo Tribalhista - Música Velha Infância (cruzadinha e caça palavras)
Grupo Tribalhista - Música Velha Infância (cruzadinha e caça palavras)Mary Alvarenga
 
1.ª Fase do Modernismo Brasileira - Contexto histórico, autores e obras.
1.ª Fase do Modernismo Brasileira - Contexto histórico, autores e obras.1.ª Fase do Modernismo Brasileira - Contexto histórico, autores e obras.
1.ª Fase do Modernismo Brasileira - Contexto histórico, autores e obras.MrPitobaldo
 
[Bloco 7] Recomposição das Aprendizagens.pptx
[Bloco 7] Recomposição das Aprendizagens.pptx[Bloco 7] Recomposição das Aprendizagens.pptx
[Bloco 7] Recomposição das Aprendizagens.pptxLinoReisLino
 
Literatura Brasileira - escolas literárias.ppt
Literatura Brasileira - escolas literárias.pptLiteratura Brasileira - escolas literárias.ppt
Literatura Brasileira - escolas literárias.pptMaiteFerreira4
 
“Sobrou pra mim” - Conto de Ruth Rocha.pptx
“Sobrou pra mim” - Conto de Ruth Rocha.pptx“Sobrou pra mim” - Conto de Ruth Rocha.pptx
“Sobrou pra mim” - Conto de Ruth Rocha.pptxthaisamaral9365923
 
AD2 DIDÁTICA.KARINEROZA.SHAYANNE.BINC.ROBERTA.pptx
AD2 DIDÁTICA.KARINEROZA.SHAYANNE.BINC.ROBERTA.pptxAD2 DIDÁTICA.KARINEROZA.SHAYANNE.BINC.ROBERTA.pptx
AD2 DIDÁTICA.KARINEROZA.SHAYANNE.BINC.ROBERTA.pptxkarinedarozabatista
 
Gerenciando a Aprendizagem Organizacional
Gerenciando a Aprendizagem OrganizacionalGerenciando a Aprendizagem Organizacional
Gerenciando a Aprendizagem OrganizacionalJacqueline Cerqueira
 
ATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptx
ATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptxATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptx
ATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptxOsnilReis1
 
DESAFIO LITERÁRIO - 2024 - EASB/ÁRVORE -
DESAFIO LITERÁRIO - 2024 - EASB/ÁRVORE -DESAFIO LITERÁRIO - 2024 - EASB/ÁRVORE -
DESAFIO LITERÁRIO - 2024 - EASB/ÁRVORE -Aline Santana
 
E agora?! Já não avalio as atitudes e valores?
E agora?! Já não avalio as atitudes e valores?E agora?! Já não avalio as atitudes e valores?
E agora?! Já não avalio as atitudes e valores?Rosalina Simão Nunes
 
LEMBRANDO A MORTE E CELEBRANDO A RESSUREIÇÃO
LEMBRANDO A MORTE E CELEBRANDO A RESSUREIÇÃOLEMBRANDO A MORTE E CELEBRANDO A RESSUREIÇÃO
LEMBRANDO A MORTE E CELEBRANDO A RESSUREIÇÃOColégio Santa Teresinha
 
Habilidades Motoras Básicas e Específicas
Habilidades Motoras Básicas e EspecíficasHabilidades Motoras Básicas e Específicas
Habilidades Motoras Básicas e EspecíficasCassio Meira Jr.
 
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...licinioBorges
 
UFCD_10392_Intervenção em populações de risco_índice .pdf
UFCD_10392_Intervenção em populações de risco_índice .pdfUFCD_10392_Intervenção em populações de risco_índice .pdf
UFCD_10392_Intervenção em populações de risco_índice .pdfManuais Formação
 
Slides Lição 4, Betel, Ordenança quanto à contribuição financeira, 2Tr24.pptx
Slides Lição 4, Betel, Ordenança quanto à contribuição financeira, 2Tr24.pptxSlides Lição 4, Betel, Ordenança quanto à contribuição financeira, 2Tr24.pptx
Slides Lição 4, Betel, Ordenança quanto à contribuição financeira, 2Tr24.pptxLuizHenriquedeAlmeid6
 
Slides Lição 04, Central Gospel, O Tribunal De Cristo, 1Tr24.pptx
Slides Lição 04, Central Gospel, O Tribunal De Cristo, 1Tr24.pptxSlides Lição 04, Central Gospel, O Tribunal De Cristo, 1Tr24.pptx
Slides Lição 04, Central Gospel, O Tribunal De Cristo, 1Tr24.pptxLuizHenriquedeAlmeid6
 
Slides Lição 5, CPAD, Os Inimigos do Cristão, 2Tr24, Pr Henrique.pptx
Slides Lição 5, CPAD, Os Inimigos do Cristão, 2Tr24, Pr Henrique.pptxSlides Lição 5, CPAD, Os Inimigos do Cristão, 2Tr24, Pr Henrique.pptx
Slides Lição 5, CPAD, Os Inimigos do Cristão, 2Tr24, Pr Henrique.pptxLuizHenriquedeAlmeid6
 
William J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdf
William J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdfWilliam J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdf
William J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdfAdrianaCunha84
 
Nova BNCC Atualizada para novas pesquisas
Nova BNCC Atualizada para novas pesquisasNova BNCC Atualizada para novas pesquisas
Nova BNCC Atualizada para novas pesquisasraveccavp
 

Último (20)

Grupo Tribalhista - Música Velha Infância (cruzadinha e caça palavras)
Grupo Tribalhista - Música Velha Infância (cruzadinha e caça palavras)Grupo Tribalhista - Música Velha Infância (cruzadinha e caça palavras)
Grupo Tribalhista - Música Velha Infância (cruzadinha e caça palavras)
 
1.ª Fase do Modernismo Brasileira - Contexto histórico, autores e obras.
1.ª Fase do Modernismo Brasileira - Contexto histórico, autores e obras.1.ª Fase do Modernismo Brasileira - Contexto histórico, autores e obras.
1.ª Fase do Modernismo Brasileira - Contexto histórico, autores e obras.
 
[Bloco 7] Recomposição das Aprendizagens.pptx
[Bloco 7] Recomposição das Aprendizagens.pptx[Bloco 7] Recomposição das Aprendizagens.pptx
[Bloco 7] Recomposição das Aprendizagens.pptx
 
Literatura Brasileira - escolas literárias.ppt
Literatura Brasileira - escolas literárias.pptLiteratura Brasileira - escolas literárias.ppt
Literatura Brasileira - escolas literárias.ppt
 
“Sobrou pra mim” - Conto de Ruth Rocha.pptx
“Sobrou pra mim” - Conto de Ruth Rocha.pptx“Sobrou pra mim” - Conto de Ruth Rocha.pptx
“Sobrou pra mim” - Conto de Ruth Rocha.pptx
 
AD2 DIDÁTICA.KARINEROZA.SHAYANNE.BINC.ROBERTA.pptx
AD2 DIDÁTICA.KARINEROZA.SHAYANNE.BINC.ROBERTA.pptxAD2 DIDÁTICA.KARINEROZA.SHAYANNE.BINC.ROBERTA.pptx
AD2 DIDÁTICA.KARINEROZA.SHAYANNE.BINC.ROBERTA.pptx
 
Gerenciando a Aprendizagem Organizacional
Gerenciando a Aprendizagem OrganizacionalGerenciando a Aprendizagem Organizacional
Gerenciando a Aprendizagem Organizacional
 
ATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptx
ATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptxATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptx
ATIVIDADE AVALIATIVA VOZES VERBAIS 7º ano.pptx
 
DESAFIO LITERÁRIO - 2024 - EASB/ÁRVORE -
DESAFIO LITERÁRIO - 2024 - EASB/ÁRVORE -DESAFIO LITERÁRIO - 2024 - EASB/ÁRVORE -
DESAFIO LITERÁRIO - 2024 - EASB/ÁRVORE -
 
E agora?! Já não avalio as atitudes e valores?
E agora?! Já não avalio as atitudes e valores?E agora?! Já não avalio as atitudes e valores?
E agora?! Já não avalio as atitudes e valores?
 
LEMBRANDO A MORTE E CELEBRANDO A RESSUREIÇÃO
LEMBRANDO A MORTE E CELEBRANDO A RESSUREIÇÃOLEMBRANDO A MORTE E CELEBRANDO A RESSUREIÇÃO
LEMBRANDO A MORTE E CELEBRANDO A RESSUREIÇÃO
 
Habilidades Motoras Básicas e Específicas
Habilidades Motoras Básicas e EspecíficasHabilidades Motoras Básicas e Específicas
Habilidades Motoras Básicas e Específicas
 
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
11oC_-_Mural_de_Portugues_4m35.pptxTrabalho do Ensino Profissional turma do 1...
 
UFCD_10392_Intervenção em populações de risco_índice .pdf
UFCD_10392_Intervenção em populações de risco_índice .pdfUFCD_10392_Intervenção em populações de risco_índice .pdf
UFCD_10392_Intervenção em populações de risco_índice .pdf
 
Orientação Técnico-Pedagógica EMBcae Nº 001, de 16 de abril de 2024
Orientação Técnico-Pedagógica EMBcae Nº 001, de 16 de abril de 2024Orientação Técnico-Pedagógica EMBcae Nº 001, de 16 de abril de 2024
Orientação Técnico-Pedagógica EMBcae Nº 001, de 16 de abril de 2024
 
Slides Lição 4, Betel, Ordenança quanto à contribuição financeira, 2Tr24.pptx
Slides Lição 4, Betel, Ordenança quanto à contribuição financeira, 2Tr24.pptxSlides Lição 4, Betel, Ordenança quanto à contribuição financeira, 2Tr24.pptx
Slides Lição 4, Betel, Ordenança quanto à contribuição financeira, 2Tr24.pptx
 
Slides Lição 04, Central Gospel, O Tribunal De Cristo, 1Tr24.pptx
Slides Lição 04, Central Gospel, O Tribunal De Cristo, 1Tr24.pptxSlides Lição 04, Central Gospel, O Tribunal De Cristo, 1Tr24.pptx
Slides Lição 04, Central Gospel, O Tribunal De Cristo, 1Tr24.pptx
 
Slides Lição 5, CPAD, Os Inimigos do Cristão, 2Tr24, Pr Henrique.pptx
Slides Lição 5, CPAD, Os Inimigos do Cristão, 2Tr24, Pr Henrique.pptxSlides Lição 5, CPAD, Os Inimigos do Cristão, 2Tr24, Pr Henrique.pptx
Slides Lição 5, CPAD, Os Inimigos do Cristão, 2Tr24, Pr Henrique.pptx
 
William J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdf
William J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdfWilliam J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdf
William J. Bennett - O livro das virtudes para Crianças.pdf
 
Nova BNCC Atualizada para novas pesquisas
Nova BNCC Atualizada para novas pesquisasNova BNCC Atualizada para novas pesquisas
Nova BNCC Atualizada para novas pesquisas
 

O trânsito de saberes entre universos

  • 1. 1 O TRÂNSITO DE SABERES: OLHAR SOBRE A PRODUÇÃO BRASILEIRA Angela Arruda – UFRJ, Brasil A escolha deste tema foi facilitada pelo convite dos Prof. Jorge Correia Jesuino e Paula Castro para discutir com alunos da pós graduação de Psicologia do ISCTE. Agradeço aos colegas a oportunidade, que contribuiu para a sistematização de algumas das questões que vou abordar. Meu propósito aqui é jogar um olhar, limitado, sobre uma parte da produção brasileira, que trabalha com representações sociais elaboradas a partir de algum saber que se dissemina fora da sua esfera de origem. Para iniciar, vou tentar esclarecer o que é isto e o que nós, profissionais da saúde e da educação, temos a ver com isto. Em seguida, farei uma breve contextualização da produção brasileira para poder finalmente expor e discutir o recorte que escolhi para trazer aqui. Quando os saberes se encontram Os encontros de saberes podem ser considerados como um objeto de estudo da Teoria das Representações Sociais desde o princípio, já que a teoria se inicia com a curiosidade de Moscovici quanto ao encontro entre o saber especializado que é a psicanálise e o saber leigo da população que ele pesquisou. O que resultou desta investigação, todos sabem, é uma teoria sobre o trânsito de um saber originado em um tipo de universo, presidido por regras de produção e difusão do conhecimento, por determinado script da comunicação estabelecido no âmbito deste saber - que funcionam como salvaguarda do próprio saber e garantia da sua qualidade e legitimidade - para um outro tipo de universo,cujas trocas são bem mais livres e cuja produção de saber não foi sempre vista com muitos bons olhos – o senso comum. Este desenvolvimento teórico inaugurado por Moscovici (1961) tinha alguns grandes pressupostos, dos quais destaco dois. Um, que o saber dos leigos, profano, e o saber especializado, canônico, são dois estilos que se diferenciam, mas não se hierarquizam, porque cada um tem sua própria finalidade, que lhe é peculiar, e ambos são perfeitamente adequados aos seus objetivos. Tanto a ciência, por exemplo, funciona para desenvolver conhecimentos generalizados e generalizantes sobre a realidade quanto o senso comum funciona para lidar com o dia a dia. O que está embutido nesse pressuposto é a idéia de que o senso comum possui uma lógica própria, e como dizia Geertz (1989), é uma forma de conhecimento complexa e compreensiva, um sistema cultural, dotado de razoável eficácia no trato dos problemas do cotidiano. Nisto reside o seu interesse: colocar-se como mais um sistema e uma fonte de saber
  • 2. 2 entre outras possíveis, racional em sua própria cosmologia, como dizem Wagner e Hayes (2005, p.9) e portanto, dono de uma reflexão que merece ser compreendida e aceita. Outro pressuposto é o de que nas sociedades contemporâneas, a profusão de funções, especialidades e novidades que circulam estabelece um fluxo de informações que está em constante movimento, atravessando os diferentes grupos e segmentos, que se aproximam e se apropriam de algumas delas a partir das próprias características de grupo, de suas crenças e afetos, social e historicamente instituídos, e assim constroem representações sociais. Tudo isso é bem conhecido de todos nós. Contudo, embora estes pressupostos continuem vigentes de forma geral, a teoria avançou, a sociedade prosseguiu o seu caminho vertiginoso e fragmentário, e hoje, quando as novidades chovem sobre nós não só a partir da ciência, mas de muitos outros universos, observamos que vários deles também são profundamente reificados, ao apresentarem características ditadas por uma regulamentação da produção e difusão do saber, das condutas dos interlocutores e do estilo de comunicação. É o caso, por exemplo, do mundo do Direito, ou da Teologia, por exemplo. O que leva a crer que todo universo normativo tende a constituir um saber especializado cuja comunicação interna é bastante regulamentada e cuja difusão – em particular, o trânsito para o leigo - dispara o engendramento de representações sociais. Fica, então, evidente que as formas de comunicação são peça-chave na natureza dos estilos de saber, e portanto, da diferenciação entre eles, e que muitas representações sociais são fruto do encontro de saberes de estilos diferentes, fruto, portanto, da comunicação entre eles. Base e desdobramento destes dois pressupostos é que vivemos numa sociedade pensante, em que o pensar é uma forma do ser e do viver, incessante, fazendo conviverem pertenças e perspectivas diversas. O pensar social acontece na comunicação. Quando e onde a sociedade pensa? A toda hora e em todo lugar. Nas filas de banco ou de ônibus, nas conversas de bar ou de corredor, nos grupos de encontro de todo tipo, nos debates de toda ordem. Os cartazes dos corredores dos espaços públicos, os grafitti da cidade, bem como os quadros de avisos, dão notícia de parte da circulação dessa produção pensante. Os meios de comunicação integram o processo, bem entendido. Mas ele também acontece nas salas de aula, nos congressos, nos próprios espaços balizados pelas regras reificantes da comunicação especializada. Esses universos, apesar de marcados por estilos peculiares, portanto, não são perfeitamente estanques. Alguns são mais normativos que outros, mas dificilmente, ainda que formatados por uma rígida regulamentação, estão imunes ao pensamento leigo. Da mesma forma, o universo
  • 3. 3 consensual se veste cada vez mais de retalhos do pensamento reificado, fruto do trânsito incessante dos outros tipos de pensamento nas nossas sociedades. Wagner e Hayes (2005) afirmam que o conhecimento especial está ligado a pré-requisitos sociais, como o desempenho de certos papéis, de natureza especializada. Mesmo se hoje é fácil o acesso à informação produzida por este universo, por meio das bibliotecas universitárias, o conhecimento especializado permanece privilégio de alguns, porque depende menos da informação do que do domínio de padrões de pensamento e capacidades necessárias para adquirir tal conhecimento, obtidas na freqüentação de instituições especiais. Contudo, mesmo os representantes destes conhecimentos também tem um pé em cada esfera da vida: a exclusiva e a cotidiana, no convívio com a família, em seu ambiente privado. Como conseqüência, o pensamento e o conhecimento que eles possuem sobre a “realidade” pode provir desses dois espaços. Assim, para Tardif e Raymond (apud Lima, 2008), ao lado do que aprenderam em sua formação, o que a maior parte dos professores sabe sobre ensino, como ensinar e sobre os seus papéis, vem de sua própria história de vida, principalmente de sua socialização enquanto alunos. Trata-se de uma sabedoria que complementa e reveste o saber formal, oriunda da experiência. Ao mesmo tempo, com o desenvolvimento da comunicação eletrônica, a apropriação de fatias do conhecimento especializado ficou tão facilitada que certos grupos e indivíduos tornam-se quase- especialistas de temas que lhes dizem respeito. É o caso das vítimas de alguns tipos de afecção, que estudam o que os atinge para melhor lidar com a situação, passando a dominar uma parte dos conhecimentos especializados relativos ao problema. Às vezes eles também se organizam para obter melhores condições de tratamento e respeito à sua enfermidade. São os chamados “novos pacientes”, ou impacientes, como se vê entre os portadores de certas doenças crônicas ou fatais. Herzlich (1969), no seu clássico estudo sobre representações da saúde e da doença já prognosticava este novo personagem no cenário da saúde ao identificar a representação social que ela denominou de “a doença como ofício”. Trata-se de doença geralmente crônica ou fatal, durante a qual o paciente se transforma em aprendiz do próprio organismo e do que o acomete, e termina por estabelecer novas formas de conviver com a sua situação a partir da disposição de buscar o conhecimento, no esforço por melhorar. Esta luta cotidiana por dominar a doença a partir do conhecimento transforma-a em ofício, no qual o paciente adquire um novo saber, ingressa em novos diálogos e espaços, transformando a própria identidade. O caso dos movimentos gay e sua luta com relação ao SIDA é exemplar de como um grupo pode tornar a doença uma bandeira e incorporar esta bandeira à sua identidade.
  • 4. 4 Neste torvelinho de pensares, o encontro, a troca, funcionam como estímulo ao debate, provocação para criar e fermento do pensamento social, ao recolocarem em pauta a elaboração das informações, perfazendo ou não uma comunicação bem sucedida. A comunicação instiga, exercita e veicula a produção de representações sociais e o encontro de saberes. Este é o nosso cenário profissional. Nós, profissionais de saúde e da educação - professores, médicos, enfermeiros, dentistas, assistentes sociais, psicólogos e tantos outros - somos mediadores culturais, habitamos o entre-lugar pelo qual transitam, com a nossa ajuda, saberes de um universo para outro. Ou de um plano a outro. Somos profissionais do trânsito de saberes. Nele, também nós temos um pé em cada lado, também precisamos adquirir conhecimentos especializados, estar em dia com o que se fala, elaborar este conhecimento. E passá-lo adiante de forma eficaz, em alguma medida: na sala de aula, no consultório, no atendimento. Fazer transitar conhecimentos de um plano a outro é operação instigante e delicada. O entre- lugar como espaço da difusão do saber, é também o da sua transformação, que atinge ao mesmo tempo os saberes pré-existentes. Nós, profissionais do trânsito de saberes, vivemos às voltas com a necessidade de fazer circular esses saberes, torná-los efetivos, e para isso também precisamos apropriar-nos deles. O entre-lugar é um espaço de circulação e criação por excelência, porque é o espaço dos problemas, da mobilização resolutiva, da urgência colocada pelo real. Para responder ao apelo da necessidade, nem sempre o trânsito é de mão única, nem sempre a origem é uma só. O trânsito é o movimento durante o qual ocorre alguma mudança, que se configura no encontro de saberes, quando o saber que acolhe se modifica tanto quanto o saber que aporta. Ele é o processo pelo qual o conhecimento se transfere de um plano a outro. Os sentidos do trânsito A passagem de um plano a outro pode ocorrer em mais de um sentido. Pode ir da ciência, da técnica, da especialização à conversação informal, como no caso clássico da psicanálise, estudado por Moscovici(1961); dos princípios, da teoria, à aplicação, como no uso das normas de biossegurança pelos dentistas em contato com pacientes possivelmente ‘de risco’. Pode ser a passagem de uma visão generalizada, amplamente compartilhada, a uma mais restrita, de menor extensão, como a transformação de representações hegemônicas em outras. Pode ser ainda da visão particular de um grupo para a sua ampliação a audiências maiores, com a passagem de representações polêmicas, típicas de minorias ativas, a outras, que expandem a adesão a tal
  • 5. 5 visão, podendo até converter-se em representações hegemônicas – aquelas que atravessam todo um conjunto mais amplo, que pode ser uma nação (Moscovici, 1988) . A importância da questão ambiental no mundo atual, por exemplo, de início pregada apenas por uns poucos ‘iluminados’, hoje se tornou uma preocupação global. Voltarei a esses aspectos mais adiante. Abaixo apresento estes sentidos do trânsito que acabo de enunciar, e na sequência vou desenvolver a proposta com exemplos da produção brasileira. Tipos de representação Ciência-técnica à senso comum = Represent soc. Repres. hegemônica à outras Represent. polêmica à outras à repres.hegemônica ELIMINAR CASAS VAZIAS ELIMINAR CASAS VAZIAS ELIMINAR CASAS VAZIAS ELIMINAR CASAS VAZIAS ELIMINAR CASAS VAZIAS ELIMINAR CASAS VAZIAS ELIMINAR CASAS VAZIAS ELIMINAR CASAS VAZIAS ELIMINAR CASAS VAZIAS ELIMINAR CASAS VAZIAS ELIMINAR CASAS VAZIAS ELIMINAR CASAS VAZIAS Antes de iniciar a apresentação do material, convém contextualizar resumidamente essa produção brasileira e suas características, o que facilitará, espero, o entendimento deste tipo de produção. Peço desculpas aos colegas brasileiros que já conhecem esta contextualização, que se dirige em especial a nossos amigos de fora do Brasil. Contexto da produção brasileira A Psicologia, em particular a Psicologia Social, no Brasil, como na maior parte da América Latina, e na Europa, passa por um período de dificuldades e efervescência a partir dos anos 60. Na década seguinte, quando parte do continente se encontrava sob regimes autoritários, insatisfações e novos olhares começaram a se manifestar. No fim dos anos 70, eles eram minoritários e se expressavam sob formas propositivas, chegando a gerar algumas novas institucionalidades para a disciplina, numericamente reduzidas na época: cursos de pós graduação com orientação para o trabalho com a comunidade, teorização influenciada pela perspectiva marxista. Este conjunto de
  • 6. 6 novidades redundava em uma focalização nos problemas locais, na questão social em nossos países, e na busca de ferramentas mais adequadas para lidar com eles do que aquelas que a psicologia social clássica fornecera até então. Esta fase de questionamento das formas de produção do conhecimento da área e procura de novos caminhos ficou conhecida como a crise da psicologia social. A etapa que se segue, para uma parte da área, é marcada pelo interesse no simbólico e na consciência, pela abertura para novas referências teóricas, renovação dos objetos de estudo, das populações estudadas, que passam a incluir grupos e segmentos geralmente marginalizados ou desfavorecidos de alguma forma. Há também uma maior incorporação das questões contextuais e macroestruturais nos trabalhos da disciplina, facilitando o diálogo interdisciplinar. A situação política no continente, na década de 80, começava a se distender, facilitando as trocas abertas entre perspectivas críticas, o que repercutia na produção do conhecimento. O início dos anos 80 apresentava, desta forma, um panorama que, embora ainda formatado pelo paradigma dominante, oferecia um espaço propício à discussão de novas alternativas conceituais e metodológicas, e é em 1982 que a Teoria das Representações Sociais desembarca oficialmente na América Latina, pela Venezuela, a convite de Maria Auxiliadora Banchs, chegando ao Brasil em seguida, numa visita de Denise Jodelet. A vinda de Denise se pautou pela interdisciplinaridade. Convidada para trabalhar na montagem de um projeto da UFPb1 sobre representações sociais da Saúde, em Campina Grande (Paraiba), ela discutiu com profissionais da saúde mental, antropólogos e sociólogos. Em João Pessoa, trabalhou com a Pós Graduação em Educação da UFPb. Em São Paulo, com a Pós Graduação em Psicologia Social da PUC2 de São Paulo, com Silvia Lane, pioneira da psicologia social crítica brasileira dos anos 70 e 80. A chegada da Teoria se fazia, portanto, atravessando os campos disciplinares. Apesar da relativa abertura existente, contudo, o campo ainda era dominado pelo paradigma experimentalista na área; como na Europa, os obstáculos epistemológicos se fizeram sentir. Por sua vez, a imensidão do país, a dispersão dos pesquisadores familiarizados com a teoria, concorreram para a demora da sua identificação como referente teórico importante para os objetivos que a vertente crítica da psicologia social perseguia. Assim, não é de estranhar que ela ganhasse espaço na saúde e na educação ao mesmo tempo e talvez com mais presença que na própria psicologia social. Com efeito, nos países latinoamericanos, a tradição do acúmulo de 1 Universidade Federal da Paraiba 2 Pontifícia Universidade Católica
  • 7. 7 problemas que atingem a maior parte da população está sempre cobrando soluções, e a teoria das representações sociais apareceria como uma contribuição na busca delas nos anos 90. No terceiro milênio, já se pode falar em um campo consolidado. Alguns marcos balizam esta condição. A II Conferência Internacional sobre Representações Sociais ocorrida no Rio de Janeiro em 1994 e a primeira Jornada Internacional sobre Representações Sociais em Natal, em 1998, que recebeu as lideranças européias e latinoamericanas do campo foram dois deles. Daí em diante as Jornadas, que também passaram a ser denominadas de Conferências Brasileiras sobre representações sociais, se sucedem de dois em dois anos, a cada vez em um estado de uma região diferente da federação. A última ocorreu em Brasília, em 2007, com cerca de mil inscritos. A consolidação deste campo passa também por uma profusão de publicações, pela introdução do tópico no programa de disciplinas de Psicologia Social na formação em Psicologia, pela presença de disciplinas e linhas de pesquisa sobre representações sociais em programas de pós graduação, pela existência de grupos de trabalho sobre elas na Associação Nacional de Pós Graduação em Psicologia (ANPEPP). O Brasil abriga hoje também dois centros internacionais de pesquisa em representações sociais, o primeiro em Educação, na Fundação Carlos Chagas, em São Paulo, e o segundo na Psicologia Social, na Universidade de Brasília. Outras áreas se aproximam também da Teoria, como Arquitetura, Direito e Odontologia, por exemplo. Os encontros do campo contam com a participação de profissionais de múltiplas disciplinas – historiadores, antropólogos, jornalistas, lingüistas, juristas, músicos, comprovando sua tradição de passar fronteiras e de ferramenta heurística. Isto explica as características do que vou apresentar em seguida, e o interesse pelo trânsito de saberes. Debate e encontro de saberes na produção brasileira O que passo a apresentar não pretende refletir de forma exaustiva nem sistemática a produção brasileira, hoje já com proporções consideráveis. Trata-se de um recorte, inicialmente apoiado no Scielo, ou seja, recorrendo a textos publicados em revistas bem qualificadas. Ao pedido de localizar trabalhos publicados (em periódicos) sobre representações sociais responderam 276 produções. Foram selecionadas aquelas que trabalhassem com o trânsito e encontro de saberes na perspectiva da teoria das representações sociais, e vou mostrar aqui as que melhor ilustram as linhas que identifiquei para aquele trânsito. Também foram incluídos alguns artigos aceitos para publicação oriundos de dissertações de mestrado de pós graduações aprovadas na área da Saúde que respondiam aos mesmos critérios, e outros, que não constavam destas fontes, como
  • 8. 8 capítulos de livros, que ilustrassem rubricas não atendidas pelo resto do material. Este conjunto de materiais contém apenas trabalhos de a partir do ano 2000. Os grandes focos deste material foram questões relativas a crianças e adolescentes, à AIDS, à saúde mental e à saúde bucal, sugerindo que são temas a respeito dos quais ocorrem trânsitos de saberes intensos. Estes temas às vezes se sobrepõem, como quando se estudam SIDA e adolescência, ou observância terapêutica com crianças, o que significa dirigir-se às mães. A Saúde, portanto, foi a área que mais apareceu para ilustrar o trânsito de saberes, com autores que são médicos, dentistas, psicólogos e advogados. A seguir, a proposta anterior, agora desdobrada em um quadro com exemplos de cada alternativa que ele oferece. Neste quadro, as linhas apresentam os planos de saberes que se encontram e as colunas, os tipos ou sistemas de representações que se transformam. Este conjunto de elementos tenta combinar o trânsito dos saberes entre planos diferentes de conhecimento com a criação ou a mudança das representações que ele provoca. A proposta assume, portanto, que o trânsito pode ocorrer em sentidos diversos, e que também o sistema ou tipo de representação social que é acionado por este trânsito, além de dinâmico, pode ser cumulativo com outro, não se encerrando obrigatoriamente apenas em uma das colunas do quadro. A pesquisa de Li (2004 ) sobre a entrada da China na era do mercado, que colocou lado a lado o interesse por viver bem, ligado ao consumo e ao individualismo, e a filosofia do despojamento e primazia do coletivo características da cultura milenar chinesa, dá exemplo da sobreposição de representações hegemônicas e polêmicas, ambas em trânsito para a mudança. Ciência-técnica à senso comum Repr. Hegemônica à outras Repr. polêmica à hegemônica Especializado + leigo • Desnutrição. infantil para mães • Loucura, depres. • Campanha contra o câncer • Vacina infantil para mães
  • 9. 9 Especializado + especializado • Saúde do adolesc • SIDA, soropositividade para dentistas • Meio ambiente para gestores • Brasil para jovens • Meio ambiente para m ambientalistas Leigo + leigo • Meio ambiente para m ambientalistas Os dois primeiros exemplos (1ª linha do quadro) conjugam a questão da observância e do público infantil, e foram estudos a partir do depoimento das mães. Um, sobre a RS da desnutrição por mães de crianças de baixo peso, se refere ao trânsito da ciência para o senso comum, com a passagem do conhecimento especializado para o leigo. Tem um desfecho original, como será mostrado. Outro, sobre a RS da vacina pelas mães, embora possa ser considerado do mesmo sentido, acrescenta a ele a confirmação da passagem de uma representação polêmica a hegemônica. A pesquisa sobre representações sociais da desnutrição infantil para mães de crianças com baixo peso (Hein, 2005; 1ª linha, 1ª coluna do quadro) teve como contexto o serviço público de saúde num bairro do Rio de Janeiro que tentava aumentar captação e observância no tratamento da desnutrição infantil (DI). Uma discussão inicial com os profissionais, a observação participante e entrevistas com as mães, que se negavam a aceitar a denominação de desnutridos para seus filhos, revelou a necessidade de aproximar-se destas. Elas constituíram dois grupos pesquisados, o das que já haviam recebido alta clínica para seus filhos, tendo sido acompanhadas pelos serviços de saúde durante vários anos, e o das que haviam chegado lá há menos de um ano. Os resultados da pesquisa mostraram que para elas, a DI era associada ao descuido da mãe, falta de recursos, morte; e objetivada em imagens esquálidas que aparecem nos media, necessidade de acompanhamento médico. Já o baixo peso era visto como menos grave, razão subjacente à decisão do grupo de intitular-se como grupo de mães de crianças com baixo peso. Ficou evidente a divergência de visão das mães e dos profissionais e a diferença entre maior e menor vivência do problema por parte delas. Um dos resultados positivos foi a mudança de representações sociais: as mães, no decorrer do processo de investigação (sobre o qual foram consultadas e discutiram
  • 10. 10 passo a passo), sentiram-se valorizadas e tornaram-se multiplicadoras, aumentando a captação; a psicóloga autora estimulou e participou do aprendizado das mulheres, que resgataram e transmitiram ao grupo velhos conhecimentos de nutrição herdados de suas mães, coroando assim um encontro de saberes com trânsito de mão dupla. Uma pesquisa sobre a representação social da vacinação infantil para as mães (Pugliesi 2007, 1ª linha, 3ª coluna do quadro), após mais de 30 anos do Programa Nacional de Vacinação infantil, que obtem há vários anos significativa observância das mães ao calendário vacinal, procedeu à observação sistemática numa sala de vacinação dos serviços públicos de saúde do Rio de Janeiro, aplicou questionário e evocação livre sobre VACINA a mães nulíparas e multíparas frequentadoras daqueles serviços. O núcleo central encontrado foi composto pelos termos prevenção e proteção; a periferia: bom, cuidado, responsabilidade. O questionário afirmou a força da prevenção – num contexto histórico diverso do de 1904 (a Revolta da Vacina, em que a população reagiu à imposição da mesma pelos serviços sanitários da cidade), as mães já falam do hábito de vacinar que passa de geração a geração, como uma tradição, confirmando a mudança da representação hegemônica: verificou-se a sintonia com o discurso da Epidemiologia, uma visão ativa e consciente dos benefícios da imunização, que substituiu possíveis desconhecimentos ou resistências Estas duas pesquisas mostram processos bem sucedidos de trânsito de saberes. Numa, ele ocorre praticamente durante o período de duração do trabalho, pouco mais de dois anos, e constituiu uma verdadeira mão dupla, em que o olhar da teoria das representações operou uma modificação na pesquisadora, facilitado pela sua sensibilidade, o tipo de pesquisa adotado (grupo de discussão, participação das mulheres em decisões), o fato de que as mães tiveram que passar a ser entrevistadas em suas casas. A pesquisa em si constituiu um laboratório que provocou mudanças. A outra, mostra o processo exitoso da passagem de uma representação polêmica a hegemônica num período mais longo, em torno de meio século, mostrando também o sucesso da difusão de noções da epidemiologia, em sintonia com a disposição das mães para a prevenção e a promoção da saúde de seus filhos. Outras duas pesquisas (2ª linha do quadro, 1ª. coluna), ambas de médicas do Programa de Saúde do Adolescente do Rio de Janeiro, funcionaram como diagnóstico para trabalhar problemas na implementação do Programa, mostrando a dificuldade no trânsito do saber especializado para a aplicação junto à população, e entre os dois universos.
  • 11. 11 Conhecer a representação social da saúde do adolescente para ele e para os profissionais de saúde, foi o objetivo da coordenadora do Programa de Saúde do Adolescente no Rio de Janeiro, com o interesse de torná-lo mais efetivo, mais procurado pelos adolescentes (Branco, 2003). A primeira parte se dirigiu aos profissionais de saúde. Saúde para os profissionais de unidades envolvidas com o programa se expressava por meio de uma única palavra que compunha o núcleo central: informação. A segunda parte do projeto se dirigiu aos adolescentes (Cromack, no prelo). Saúde para os adolescentes de escolas das mesmas regiões se manifesta em um núcleo central que reúne alimentação, hospital, importante, médico. Houve diferenças entre os adolescentes: o núcleo central dos mais jovens:doença, felicidade, vida, e dos mais velhos: sistema de saúde deficiente. A discrepância entre as representações dos dois grupos permitia problematizar o atendimento que o programa oferecia. O retorno dos resultados aos profissionais, numa rodada de oficinas em todo o Programa foi uma contribuição interessante, ao abrir espaço para o debate sobre o descompasso entre as expectativas dos adolescentes e a visão dos profissionais, e a melhor forma de os profissionais desempenharem seu papel no Programa, funcionando efetivamente como agentes do debate de saberes. As pesquisas envolvendo as representações sociais de SIDA são muito numerosas. As que vou resumir são de dois tipos. A primeira, relativa a adolescentes, trata do trânsito do saber especializado para o público adolescente. As duas outras descortinam uma nova preocupação de um setor da saúde. Referem-se a dentistas e a sua relação com a prevenção e o cuidado a pacientes HIV positivos. Aqui, se trata da aplicação por especialistas de um saber especializado, ou seja, do trânsito da teoria à prática. A primeira delas (Camargo et al. 2007; 2ª linha, 1ª coluna do quadro) investiga a representação social de adolescentes de Florianópolis (Santa Catarina), sobre SIDA e a relação desta representação com o conhecimento científico de estudantes de uma escola pública de Florianópolis sobre o tema. O núcleo central, repetindo elementos já encontrados em estudos anteriores - doença,morte, medo, sofrimento e preconceito – acrescenta mais dois novos itens: prevenção e responsabilidade. Um questionário e um teste sobre conhecimento científico mostraram que mais da metade dos estudantes (55%) não foi considerada bem informada cientificamente quanto ao HIV/SIDA. A força da prevenção da SIDA, com características pragmáticas, pode ser verificada, com maior ênfase na dimensão afetiva da RS do que no conhecimento biomédico e científico sobre a doença
  • 12. 12 As duas pesquisas de dentistas sobre problemas dos profissionais para atenderem soropositivos para SIDA focalizaram o atendimento odontológico e as RS em torno de SIDA (Ragon, 2005; Rodrigues, 2005, 2ª. linha, 1ª. coluna do quadro). Em ambas verificou-se a existência de informação sobre a prevenção, dificuldade de incorporar conhecimentos sobre biossegurança e SIDA, bem como práticas diferentes do discurso. Crenças e valores, temor, preconceito frente ao paciente soropositivo apareceram, apesar de pouco contato dos dentistas com ele. A ênfase na complexidade dos fatores envolvidos no conhecimento da questão e a necessidade de ir além da dimensão racional mostrou-se importante para entendê-la e provocar mudança Estas três pesquisas, portanto, colocam em pauta a questão dos afetos que SIDA desperta, sublinhando a necessidade de levar em conta esta dimensão quando se lida com um problema que mobiliza fantasmas, o medo do contágio e da morte. A informação, portanto, pode não ser suficiente para lidar com questões que afetam as pessoas, e o saber especializado sofre um curto circuito quando chega o momento da sua aplicação. Mais duas pesquisas sobre o trânsito de um saber especializado para o público focalizam a saúde mental. Uma, sobre a loucura, outra sobre a depressão, ambas com pessoas diagnosticadas com transtornos psíquicos. A primeira (Brito, 2004, 1ª linha e 1ª coluna do quadro), realizada no Ceará junto a familiares destas pessoas, verifica a produção das RS com fragmentos conceituais do conhecimento científico veiculados pelo meio social; a presença de explicações míticas, espirituais ou cósmicas revela dificuldade de dar sentido e o apelo a elementos do arcabouço cultural para isso (por exemplo, a loucura devida à força da lua). A pesquisa, que adotou procedimentos etnográficos, reconhece convergências com o trabalho de Jodelet. A segunda pesquisa (Barros, 2006, 1ª linha e 1ª coluna do quadro) trabalha com a RS da sintomatologia da depressão entre adolescentes de escolas particular e pública de João Pessoa (Paraiba), portadores de depressão. Detecta que as RS não estão baseadas apenas no conhecimento científico, nas comunicações informais, mas também no conjunto de problemas práticos que estes jovens encontram no âmbito sociocultural, como o preconceito, as dificuldades para lidar com suas condições de vida precárias, e o quanto isto os desconcerta em relação à sua pertença e à identidade grupal. Estes aspectos se repartem diferentemente entre os dois tipos de escola estudados: na escola particular aparecem elementos da Psicologia (causas afetivas, psicológicas) e na escola pública, da Psicologia Social (inibições sociais, econômicas)
  • 13. 13 Ainda no mesmo sentido – do especializado para o leigo -, uma outra pesquisa analisa campanhas de saúde, destinadas a atingir o grande público (Ramos, 2007). Frente a um contexto de alta mortalidade por câncer no Brasil, pouco avanço na prevenção, e da força da RS vinculada à morte, foram feitas entrevistas com universitários sobre 7 slogans de campanhas. Detectou-se, a partir delas, que os slogans são definidos com base no impacto (a morte), não na mobilização para a prevenção; são eficazes para chocar, e em conseqüência, mobilizam defesas e resistência ao impacto. Trata-se, portanto de uma mobilização defensiva. As campanhas apelam para a autoestima, colocam o problema no plano individual. A ligação à fatalidade e a visão do câncer como problema individual tornam a prevenção mais sujeita a obstáculos individuais, defesas psíquicas. Em conclusão, RS do câncer, autoestima, relações indivíduo-coletividade, discursos de gênero e caráter ideológico dos slogans são elementos psicossociais importantes a serem levados em conta na elaboração de campanhas. Repete-se aqui a forte presença dos afetos e de uma antiga representação hegemônica do câncer, confirmando a necessidade de considerar outras dimensões para além do estritamente racional, e ao mesmo tempo a visão crítica do modelo individualizante de saúde (cf. texto de Luisa Lima sobre a presença do grupo como facilitador para a dissolução do estresse, neste volume) Voltando ao trânsito do saber especializado entre especialistas, trago agora uma outra pesquisa, que ilustra a retomada e a modificação de uma representação hegemônica. Trata-se de um recorte e uma comparação entre duas pesquisas de uma série histórica (1992 e 1997) sobre meio ambiente por lideranças ambientalistas de seis segmentos sociais. Enfocou-se os fatores culturais que facilitariam ou dificultariam consciência ambiental na sociedade brasileira (Arruda, 2000). Os gestores ambientalistas retomam e retrabalham representações hegemônicas da natureza, numa dupla elaboração: a exuberância e a abundância tanto podem sensibilizar, pelo sentimento estético e o bem estar que provoca, quanto levar ao descaso, pela sensação de que não importa o mau uso, uma vez que é inesgotável. As características do ‘brasileiro’ em relação ao meio ambiente também são vistas por ângulos diferentes: a positivação das tradições indígenas e africanas, respeitosas do meio ambiente, e a negatividade da herança colonial portuguesa, predadora dos recursos naturais. Desta forma, a velha representação do Brasil como país de natureza inesgotável está em processo de mudança, apresentando novas cores mas guardando ainda algo do seu peso e caráter anterior. Este grupo constitui uma minoria ativa que dissemina a semente para a modificação da representação hegemônica .
  • 14. 14 Refletindo sobre o processo Passo agora ao próprio trânsito que redunda no encontro de saberes, tentando pensá-lo como processo psicossocial que se constitui de outros processos psicossociais. Um deles já foi mencionado, é a comunicação. A comunicação é veículo e resultado deste trânsito, e para nossos objetivos profissionais, ela importa para que esse trânsito se faça de forma a produzir um diálogo criativo e construtivo. A TRS apresenta elementos que podem ser úteis. Para que a comunicação aconteça como uma negociação produtiva, podemos pensar em mais de um ângulo da questão. Um, o do próprio saber em trânsito. É preciso que aquilo que transita encontre seu ancoradouro – ou seja, que ele ache um nicho no pensamento do grupo que ele está a visitar, o que significa dizer que o grupo consiga acomodá-lo em algum lugar do seu repertório de idéias e imagens. É preciso que este objeto ofereça figurabilidade para ser objetivado pelo grupo. A substituição do termo ‘lepra’ por ‘hanseníase’, por exemplo, devido a uma recomendação internacional de 1976 e à ação de minorias ativas, acabou vingando e modificando todo um imaginário. As conseqüências positivas para a população atingida e para os serviços de saúde hoje já são tangíveis (Oliveira, 2003). Um trabalho sobre representações sociais dos dois termos para uma população que tem contato com o fenômeno indica a mudança de sentidos num caso e noutro: a lepra guardando a marca fantasmática da morte e uma dissociação com relação ao humano, que constrói o outro, portador da enfermidade, como alteridade radical, da qual se quer distância,como mostrou Jodelet (1998 e 2005) enquanto a hanseníase aparece como mais um item do repertório médico, uma doença passível de tratamento e cura. O grupo é outro ângulo da questão. A ancoragem e a figurabilidade têm a ver com formas de compatibilidade ou a possibilidade de interseção de repertórios, daí a importância de conhecer as condições de produção das representações sociais, como tão bem explicou Jodelet (2001): explorar as múltiplas inserções do interlocutor, os variados contextos, segundo Jesuino (2000) de vai brotar a representação social que elabora o novo, promovendo seu movimento de um universo para outro. O trabalho de Gervais e Jovchelovitch (1998) sobre a representação da saúde para a comunidade chinesa que vive na Inglaterra trouxe uma interessante contribuição para o entendimento da pouca freqüentação dos serviços de saúde por aquela comunidade. O olhar antropológico, a aproximação à cultura daquele grupo e as formas como ela se modificava de uma geração para outra em contato com o novo país de morada confirmam a vocação da TRS para figurar como uma antropologia do mundo contemporâneo.
  • 15. 15 O levantamento de representações sociais, neste sentido, pode fazer parte de um trabalho diagnóstico (no sentido psicossociológico, não psicopatológico, claro) para intervenções em planejamento. Ainda quanto à construção da representação que será a via de passagem do novo a um outro espaço que não o da sua criação, a entrada em cena da dimensão afetiva tem definitiva incidência. Não só porque sempre está em pauta a avaliação da novidade, a atitude dos sujeitos, mas porque os afetos perseguem todos os processos elaborativos, influenciam todos eles, infletindo-os, trazendo interferências imprevistas, agrado ou medos, prazer ou angústias, imaginários que desenharão o contorno do objeto (Arruda, 2007). Se pensarmos em outros processos psicossociais que importam nessas circunstâncias, como a influência social - do grupo ou de alguns personagens -, o peso das minorias ativas ao insistirem sobre seu ponto de vista, logo ressalta a presença do afetivo. Também não se pode esquecer que a produção de representações sociais implica também uma negociação, ou várias negociações. Negociação de significados, de sentidos, de influências e afetos, negociação entre medos e desejos, entre possibilidades de representar. Negociação entre grupos e suas maneiras de ver, suas lutas por espaço igualmente. Negociações do indivíduo com o grupo e seu acervo afetivo-nocional. As circunstâncias em que os saberes circulam e se ancoram no universo de pensamento pré-existente, bem como a configuração política que envolve a incorporação da novidade e a memória de experiências assemelháveis não podem, portanto, ser esquecidas. Tudo isto faz parte do que nós, profissionais do trânsito de saberes, podemos pesquisar para levar a bom termo nossa função de mediadores culturais. Derivadas e conseqüências ... Por fim, algumas derivadas e consequências do debate de saberes são conhecidas por nós. Os problemas de comunicação, muitas vezes originados na incompreensão do universo de sentidos que o interlocutor traz consigo, produzem o descompasso na comunicação. Este seria a defasagem que gera a incomunicação. Um bom exemplo se encontra em Knauth (1997) que discute como o atendimento médico a mulheres de baixa renda visando a prevenção do SIDA., pode se tornar contraproducente. A anamnese realizada pelo médico contém perguntas consideradas por elas como ofensivas (se mantinham relações extra-conjugais, se usavam camisinha etc.). As mulheres se sentiam humilhadas pelo profissional, ao serem associadas a um(a) Outro(a) do(a) qual querem se demarcar, e a partir daí, tudo que ele lhes recomendasse
  • 16. 16 perdia o valor. A comunicação entre planos diferentes pode então redundar em processos de diferenciação e alterização que afastam os interlocutores em lugar de aproximá-los, esterilizando o processo de trocas e seu objetivo. Outra possibilidade é que o trânsito não se complete, e não aconteça a elaboração da representação, caso já discutido por Celso Sá (1998), e que pode indicar que aquele objeto ainda não está estruturado como uma representação para aquele grupo, seja porque que não tem a relevância que se pensava para ele, seja porque não lhe foi apresentado sob a melhor forma para o objetivo que se busca, seja porque o processo de elaboração ainda está em seu início. No extremo oposto temos os processos de conversão, como o que apareceu na pesquisa sobre a RS da desnutrição pelas mães de crianças de baixo peso, em que a psicóloga consegue convergir para o olhar da sua clientela, e passa a compreender e compartilhar dos seus saberes. Também pode ocorrer a mudança da representação, portanto, e convém lembrar que, quando se trata de representações hegemônicas, que têm um enraizamento antigo e amplo, geralmente de várias gerações, ela tende a ocorrer seja por uma mudança radical da situação ou das práticas, seja no longo prazo. Por último, também acontece a aproximação de saberes e o diálogo construtivo, bem negociado, como vimos em alguns exemplos. À guisa de síntese O debate ocorre, portanto, entre saberes diversificados e em sentidos diferentes. No caso do encontro de saberes especializados com os leigos, podem acontecer a resistência, o confronto de lógicas diferentes; a modificação do saber difundido, do outro saber, a hibridação de saberes,a mudança das RS. Processos psicossociais intervêm neste encontro e a importância das dimensões presentes na elaboração do saber, inclusive a afetiva, é inegável. Entender o encontro/debate/elaboração deste saber implica a compreensão das diferenças, a facilitação do diálogo e é a base para mudança das RS Espero que este curto panorama de pesquisas e reflexões sobre este aspecto da produção brasileira tenha mostrado algumas características desta e possa contribuir de alguma forma para os colegas vislumbrarem o interesse da Teoria das Representações Sociais para nós, que além de profissionais do trânsito de saberes somos também profissionais envolvidos com os problemas locais e com as transformações globais e suas conseqüências. REFERÊNCIAS
  • 17. 17 Arruda, A. Representaciones sociales y cultura en el pensamiento ambientalista brasileño. In D.Jodelet & A.Guerrero (coords.) Develando la cultura. Estudios en Representationes Sociales. México, UNAM.2000, p.31-60 ______. Meandros da teoria: a dimensão afetiva das representações sociais. Conferência, V Jornada Internacional e II Conferência Brasileira sobre Representações Sociais, Brasília, 2007 Barros, A.P.R. et al. As RS da depressão em adolescentes no contexto do ensino médio. Estudos em Psicologia. 2006, v.23, n.1. Branco, V.M.C. Os sentidos da saúde do adolescente para profissionais, Florianópolis, II Jornada Internacional sobre Representações Sociais, 2003 Brito, H.B. et al. RS e subjetividade do adoecer psíquico. Estudos de Psicologia 2004, v.9, n.2 Camargo,B.V. et al Concepções Pragmáticas e científicas de adolescentes sobre SIDA. Psicologia em estudo, 2007, vol.12, no.2, p.277-284. Cromack, L.M.F. et al. O olhar do adolescente sobre a saúde. Um estudo de Representações sociais. Rio de Janeiro. (no prelo) Geertz, C. A interpretação das culturas.Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos. 1989 Gervais, M.C., Jovchelovitch, S. Health and identity: the case of the Chinese community in England. Social Science Information 1998, vol.37, n.4, p.709-729 Hein, V. A desnutrição infantil representada por mães de crianças com baixo peso, Revista Gaúcha de Enfermagem (no prelo) Herzlich, C. Santé et maladie- analyse d’une représentation sociale. Paris: Mouton-Ecole de Hautes Etudes em Sciences Sociales. 1969 Jodelet, D. A alteridade como produto e processo psicossocial. In A. Arruda (org.), Representando a alteridade Petrópolis: Vozes. 1998, p.47-67. ______. Representações sociais. Rio de Janeiro : EDUERJ. 2001 ______. Loucura e representações sociais. Petrópolis: Vozes. 2005 Jesuino, J.C. Estructuras e processos grupais. In M.B Monteiro, J. Vala (orgs.) .Psicologia Social. Lisboa : Fundação Caloluste Gulbenkian. 2000, p.293-331 Knauth, D.R. O virus procurado e o vírus adquirido. Revista de Estudos Feminista 1997,vol.5, n.2. p.291-301 Li, L. Sensitising concept, themata and shareness: a dialogical perspective of social representations. Journal for the Theory of Social Behaviour 2004, 34:3, p.249-264 Lima, R.C.P. 2008. Brasília, Representações sociais e saberes docentes. III Seminário Internacional e 4ª Reunião Técnica dos Grupos de Pesquisa Associados ao CIERS-Ed (Centro Internacional de
  • 18. 18 Estudos em Representações Sociais e Subjetividade – Educação), Trabalho Encomendado, Aveiro/Portugal, 23 a 25 de janeiro/2008 Moscovici, S. La psychanalyse, son image, son public. Paris: PUF. 1961 ______. Notes towards a description of social representations. European Journal of Social Psychology 1998, 18, p.211-250 Oliveira, M. L. W. R. Social representation of Hansen's disease, thirty years after the term 'leprosy' was replaced in Brazil. História, Ciência, Saúde: Manguinhos 2003, v. 1, n. 1, p. 41-49, Pugliesi, M.V. et al. Vacinação, um outro olhar – Mães e vacinação das crianças. V JIRS Brasília,. 2007 Ragon, C.S.T. et al. Os sentidos da AIDS e o atendimento odontológico. João Pessoa,IV JIRS, 2005 Ramos, C. et al. Impacto e (i)mobilização: um estudo sobre campanhas de prevenção ao câncer. Ciência & saúde coletiva 2007, v.12 n.5 Rodrigues, M.P. et al. Os cirurgiões dentistas e as RS da AIDS. Ciência & Saúde Coletiva 2005, v.10, n.2 Sá, C.P. A construção do objeto de pesquisa em representações sociais.Rio de Janeiro: EDUERJ, 1998 Wagner, W. & Hayes, N. Everyday discourse and common sense. The theory of social representations. New York: Palgrave MacMillan. 2005