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O sistema único de saúde
um processo social em construção*
Eugênio Vilaça Mendes**
O SUS está desenganado.
Francisco de Oliveira, economista do IPEA, na Folha de São Paulo , 1996.
O SUS é uma revolução sem precedentes.
Renato Fairbanks Barbosa, médico aposentado, na Folha de São Paulo, 1994.
O SUS como processo
“Plantar carvalhos? Como se já se decidiu que somente eucaliptos sobreviverão?
Plantar tâmaras, para colher frutos daqui a cem anos? Como, se já se decidiu que
todos teremos de plantar abóboras, a serem colhidas daqui a seis meses?”.
1
A fala do filósoso-educador deve ser ouvida quando se trata de discutir pro-
cessos sociais, de longa maturação, incompatíveis com a ocorrência de eventos
discretos, bruscos, determinados, seja por manifestações de grupos de interesse,
seja por construções ideológicas, de curto prazo.
O SUS, entendido como processo social em marcha, não se iniciou em 1988,
com a consagração constitucional de seus princípios, nem deve ter um momento
definido para seu término, especialmente se esse tempo está dado por avaliações
equivocadas que apontam para o fracasso dessa proposta. Assim, o SUS nem come-
çou ontem e nem termina hoje.
Reformas sociais, em ambiente democrático são, por natureza, lentas e politi-
camente custosas. Mudanças rápidas são típicas de regimes autoritários.
Falar de processo social implica reconhecer a complexidade de uma constru-
ção que se dará em ambiente habitado pela diversidade das representações de
interesses e em campos sociais de diferentes hierarquias, quais sejam, o político, o
cultural e o tecnológico.
O SUS, como processo social, tem dimensão política dado que vai sendo
construído em ambiente democrático, em que se apresentam, na arena sanitária,
diferentes atores sociais portadores de projetos diversificados.
* Texto parcialmente publicado, com autorização da editora, de: MENDES, E.V. Uma Agenda para a
Saúde. Hucitec, São Paulo, 1996. 300p. Para atender melhor a esta publicação fizemos uma nova
normalização e uma nova diagramação.
**Foi durante onze anos consultor em Sistemas e Serviços de Sáude da OPAS – Representação do
Brasil.
1
ALVES, R. Conversas com quem gosta de ensinar, São Paulo: Cortez, 1981. p. 15.
46
CADRHU
O SUS tem, também, dimensão ideológica, uma vez que parte de uma concep-
ção ampliada de processo saúde-doença e de um novo paradigma sanitário, dela
derivado, cuja implantação tem nítido caráter de mudança cultural. Essa dimensão
cultural, necessariamente, introduz, por sua natureza intrínseca, um elemento de
temporalidade longa ao processo de implantação.
Por fim, apresenta uma dimensão tecnológica que vai exigir a produção e a
utilização de conhecimentos e técnicas para sua implementação, coerentes com os
pressupostos políticos e ideológicos do projeto que o referencia.
O SUS está sendo construído no embate político, ideológico e tecnológico
entre diversos atores sociais em situação e resulta de propostas que, ao longo de
muitos anos, vêm sendo impulsionadas por um movimento social que se denomina
de reforma sanitária brasileira.
Por isso, impõe-se percorrer a trajetória do sistema de saúde brasileiro para
entender-se a natureza processual do SUS.
2
Neste século, o sistema de saúde transitou do sanitarismo campanhista (início
do século até 1965) para o modelo médico-assistencial privatista, até chegar, no final
dos anos 80, ao modelo plural, hoje vigente, que inclui, como sistema público, o SUS.
Isso tem, de um lado, uma determinação econômica e, de outro, a concepção
de saúde que vige, na sociedade, num determinado momento.
Enquanto a economia brasileira esteve dominada por um modelo
agroexportador, assentado na monocultura cafeeira, o que se exigia do sistema de
saúde era, sobretudo, uma política de saneamento dos espaços de circulação das
mercadorias exportáveis e a erradicação ou controle das doenças que poderiam
prejudicar a exportação.
O sanitarismo campanhista
3
tem, por detrás de si, uma concepção de saúde,
fundamentada na teoria dos germes, que leva ao modelo explicativo monocausal,
segundo o qual os problemas de saúde se explicam por uma relação linear entre
agente e hospedeiro.
Por isso, o sanitarismo campanhista pretendeu resolver os problemas de saúde –
ou melhor, das doenças – mediante a interposição de barreiras que quebrem esta rela-
ção agente/hospedeiro para o que estrutura ações, de inspiração militarista, de comba-
te a doenças de massa, por meio da criação de estruturas ad hoc, com forte concentra-
ção de decisões e com estilo repressivo de intervenções nos corpos individual e social.
O processo de industrialização acelerada que o Brasil vivenciou, especialmen-
te a partir do Governo Juscelino, determinou o deslocamento do pólo dinâmico da
economia para os centros urbanos e gerou uma massa operária que deveria ser
atendida, com outros objetivos, pelo sistema de saúde.
2
Para um entendimento mais completo da trajetória do sistema de saúde no Brasil, ver: MENDES, E.V.
As políticas de saúde no Brasil nos anos 80: a conformação da reforma sanitária e a construção da
hegemonia do projeto neoliberal. In: MENDES, E.V. (org.). Distrito sanitário: o processo social de
mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. São Paulo: Hucitec, 3.ed. 1995.
3
Sobre sanitarismo campanhista, consultar: LUZ, M.T. As instituições médicas no Brasil. Rio de Janeiro:
Graal, 1979.
47
Texto de apoio/Unidade 1
O importante já não era sanear os espaços de circulação das mercadorias
mas atuar sobre o corpo do trabalhador, mantendo e restaurando sua capacidade
produtiva.
Observou-se, então, um movimento simultâneo de crescimento da atenção
médica da Previdência Social e de esvaziamento progressivo das ações campanhistas
que acabou por levar à conformação e hegemonização, na metade da década de
60, do modelo médico-assistencial privatista.
4
O modelo médico-assistencial privatista foi gestando-se, paralelamente, a um
movimento de crescente integração e universalização da Previdência social: das
Caixas de Aposentadorias e Pensões da década de 20, aos Institutos de Aposentado-
ria e Pensões dos anos 30 a 60, até o Instituto Nacional da Previdência Social.
A criação do INPS, em 1966, foi o momento institucional de consolidação do
modelo médico-assistencial privatista, cujas principais características foram:
5
•A extensão da cobertura previdenciária de forma a abranger a quase totali-
dade da população urbana e rural;
•O privilegiamento da prática médica curativa, individual, assistencialista e
especializada, em detrimento da saúde pública;
•A criação, por meio da intervenção estatal, de um complexo médico-industrial;
•O desenvolvimento de um padrão de organização da prática médica orienta-
da para a lucratividade do setor saúde propiciando a capitalização da medi-
cina e o privilegiamento do produtor privado destes serviços.
Em 1975, com base nas diretrizes do II Plano Nacional de Desenvolvimento,
surgiu a Lei 6.229, que institucionalizou o modelo médico-assistencial privatista,
ao separar as ações de saúde pública das ditas de atenção à saúde das pessoas e, em
1977, criou-se o Sistema Nacional da Previdência Social e, com ele, a organização-
símbolo do modelo médico, o INAMPS.
O modelo médico-assistencial privatista compunha-se de três subsistemas.
Na base, um subsistema estatal, representado pelo complexo Ministério da
Saúde/Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, em que se exercitava a medi-
cina simplificada destinada à cobertura nominal de populações não-integradas eco-
nomicamente e ao desenvolvimento de ações remanescentes do sanitarismo.
O subsistema hegemônico era o subsistema privado contratado e conveniado
com a Previdência Social que cobria os beneficiários daquela instituição. Este subsistema
cresceu induzido por políticas públicas de terceirização da atenção médica que criaram
um mercado cativo na área da Previdência Social e, muito secundariamente, pelo fi-
nanciamento subsidiado de capital físico por meio do FAZ. De tal forma que, no perío-
do 1969/1984, os leitos privados subiram de 74.543 para 348.255, um crescimento
próximo a 500%.
4
Sobre o modelo médico-assistencial privatista, consultar: SILVA, P.L.B. O perfil médico-assistencial
privatista e suas contradições: a análise política da intervenção estatal em atenção à saúde na déca-
da de 70. Cadernos FUNDAP, 1983. 3:27-50.
5
OLIVEIRA, J.A. & TEIXEIRA, S.M.F. Previdência social. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 342.
48
CADRHU
Um terceiro subsistema – que começava a delinear-se e a implantar-se, aprovei-
tando os incentivos do convênio empresa – é o subsistema de atenção médica supletiva
que buscava atrair a mão-de-obra qualificada das grandes empresas. Contudo, na déca-
da de 70, este subsistema não chegou a atingir uma massa significativa de beneficiários.
As mudanças econômicas e políticas que se deram, especialmente a partir do
início dos anos 80, determinaram o esgotamento do modelo médico-assistencial
privatista e sua substituição por um outro modelo de atenção à saúde.
Por trás de tudo isso está uma profunda crise do Estado expressa, no âmbito
interno, pela crise fiscal, das relações econômicas e sociais e do aparelho do Estado
e, externamente, pelo esgotamento da liquidez internacional, pela dívida externa e
pelo realinhamento dos blocos geopolíticos.
Politicamente, deu-se a distensão lenta e gradual que culminou no processo de
transição democrática do regime autoritário para um pacto estruturado na definição
de um novo padrão de desenvolvimento. Este pacto deveria combinar crescimento
com distribuição, e implicava a elaboração de novo arcabouço jurídico – uma nova
Constituição – e a explicitação de um outro padrão de política social expresso no
discurso da superação da dívida social acumulada nos governos autoritários.
Esse pano de fundo econômico e político determinou os rumos das políticas
de saúde e fez emergir na arena sanitária novos sujeitos sociais portadores de inte-
resses e visões de mundo que foram conformando o projeto sanitário brasileiro.
Nos anos 70, coincidindo com a emergência na cena internacional da proposta
da atenção primária em saúde, decodificada, em nossa prática social, como atenção
primária seletiva, surgiram os primeiros projetos-piloto de medicina comunitária.
Essas experiências desaguaram num programa de medicina simplificada, o
Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento no Nordeste, PIASS,
que, iniciando-se pelo Nordeste, alcançou abrangência nacional em 1979.
O processo de democratização, ao colocar na arena política projetos diferen-
ciados com seus respectivos grupos de interesse, fez com que a discussão penetras-
se no poder legislativo. Nesse sentido, constituiu marco importante a realização do
I Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, em Brasília.
Paralelamente, resgataram-se, em outra dimensão qualitativa, as proposições
do movimento municipalista, expressas na III Conferência Nacional de Saúde, rea-
lizada em 1963. Com base em algumas experiências de municipalização começa-
ram a suceder-se os encontros nacionais de Secretários Municipais de Saúde.
Os primeiros anos da década de 80 foram marcados pela eclosão da crise da
Previdência Social, que se refletiu em três vertentes principais:6
a crise ideológica,
o PREV-SAÚDE; a crise financeira; e a crise político-institucional, o CONASP.
O Plano do CONASP colocou como alvo a integração das ações de saúde mas
desdobrou-se, na prática, em vários projetos racionalizadores, sendo que um deles,
o Plano de Racionalização Ambulatorial, levou à proposição das Ações Integradas
de Saúde, AIS.
6
OLIVEIRA, J.A. & TEIXEIRA, S.M.F. Op. Cit. (5), p. 269-301.
49
Texto de apoio/Unidade 1
As AIS, implantadas em 1983 como um programa de atenção médica, adqui-
riram, a partir do fim do regime autoritário, na Nova República, um desenho estra-
tégico de co-gestão, de desconcentração e de universalização da atenção à saúde.
Importa salientar que as AIS modificaram-se, qualitativamente, a partir de
ações intestinais dentro da instituições propositadamente preparada para susten-
tar o modelo médico-assistencial privatista, o INAMPS.
Em março de 1986, ocorreu o evento político-sanitário mais importante da
década, a VIII Conferência Nacional de Saúde, para o qual confluiu todo o movi-
mento encetado desde o início dos anos 70.
Essa conferência difere das demais, até então realizadas, por duas caracterís-
ticas principais. Uma, o seu caráter democrático, pela significativa presença de
milhares de delegados, representantivos de quase todas as forças sociais interessa-
das na questão saúde. Outra, sua dinâmica processual, que se iniciou por conferên-
cias municipais, depois estaduais, até chegar ao âmbito nacional.
A VIII Conferência Nacional de Saúde, que teve desdobramento imediato num
conjunto de trabalhos técnicos, desenvolvidos pela Comissão Nacional da Reforma
Sanitária, passou, com sua doutrina, expressa em seu relatório final, a constituir-se
no instrumento que viria a influir de forma determinante em dois processos que se
iniciaram, concomitantemente, em 1987: um, no Executivo, a implantação do Sis-
tema Unificado e Descentralizado de Saúde, o SUDS; outro, no Congresso Nacio-
nal, a elaboração da nova Constituição Federal.
O SUDS avançou para a desconcentração estadualizada da saúde e da
municipalização dos serviços. Ao mesmo tempo, no Congresso Nacional, construía-se,
pelo consenso possível das forças sociais aí representadas, o desenho constitucional da
saúde.
De fato, a Constituição de 1988 incorporou um conjunto de conceitos, princí-
pios e diretivas extraídos da prática corrente e hegemônica, mas reorganizando-os
na nova lógica referida pelos princípios da reforma sanitária.
A saúde na Constituição é definida como resultante de políticas sociais e
econômicas, como direito de cidadania e dever do Estado, como parte da seguridade
social e cujas ações e serviços devem ser providos por um Sistema Único de Saúde,
organizado segundo as seguintes diretrizes: descentralização, mando único em cada
esfera de governo, atendimento integral e participação comunitária. Ao mesmo
tempo, o Art. 199 consagra a liberdade da iniciativa privada.
Estava criado, constitucionalmente, o Sistema Único de Saúde, que veio a ser
regulamentado pelas Leis 8.080, de 19 de setembro de 1990 e 8.142, de 28 de
dezembro de 1990.
Essas leis expressaram as conquistas contidas na Constituição, mantendo e
aprofundando as suas ambigüidades mas, também, reiterando, mais operativamente,
os princípios da reforma sanitária incorporados na Carta Magna.
Este desenho constitucional e infraconstitucional moderno, no campo da saú-
de, ocorria coetaneamente com o avanço inexorável de uma crise fiscal e política
50
CADRHU
do Estado, que sinalizava o esgotamento da estratégia nacional-desenvolvimentista
e da coalização sociopolítica que a sustentou durante os anos de esforço
industrializante e de fracassos sociais. Desse modo, tratou-se de impor novas res-
ponsabilidades a um Estado alquebrado e incapaz de reverter o quadro social gera-
do anteriormente e exponenciado pela crise.
7
Esse quadro de crise do Estado é determinante do que se convencionou deno-
minar de “universalização excludente”,
8
em que a expansão da universalização do
sistema de saúde veio sempre acompanhada da exclusão de segmentos sociais de
camadas médias e de operariado qualificado.
O sistema, finalmente, acomodou-se: a expulsão provocada pelo racionamen-
to no sistema público foi compensada pela absorção desses segmentos num sistema
privado, o sistema de atenção médica supletiva. Assim, no final dos anos 80, fir-
mou-se, com a criação do SUS, um sistema plural de saúde, composto por três
subsistemas: o subsistema público – SUS, o subsistema de atenção médica supleti-
va e o subsistema de desembolso direto.
O subsistema de desembolso direto, em que indivíduos e famílias pagam direta-
mente de seus bolsos os serviços, portanto campo da medicina liberal, chegou a cobrir,
no ano de 1986, 34% dos brasileiros com volume de faturamento de US$2,07 bilhões.
O subsistema de atenção médica supletiva é um sistema privado, composto
por cinco modalidades assistenciais. Ele cresceu vertiginosamente a partir da se-
gunda metade da década de 80, chegando a cobrir aproximadamente 35 milhões
de brasileiros.
Finalmente, na base, o subsistema público, SUS, ao qual compete atender a
grande maioria da população brasileira, em torno de 120 milhões de brasileiros e
que se compõe dos serviços estatais diretamente prestados por União, estados e
municípios e dos privados que, de alguma forma, estão pactuados com o Estado,
seja por convênios, seja por contratos, recebendo recursos estatais pela prestação
de serviços. Assim, o SUS inclui serviços estatais e serviços privados pactuados com
o Estado.
Na realidade, quando se fala em SUS, se quer referir, de fato, não a um siste-
ma único, mas ao subsistema público único, parte de um sistema plural.
Tentei deixar claro, então, nessa trajetória brevemente reconstruída, o caráter
processual do SUS. Sua legalização se deu quando se institucionalizou na norma
constitucional e infraconstitucional. Mais ainda, sua construção processual, impri-
miu-lhe, também, legitimidade porque não se tratou de uma proposta tópica,
estabelecida por um plano miraculoso desenhado por iluminados no recôndito dos
gabinetes, mas, ao contrário, em algo que vinha sendo discutido amplamente na
sociedade há longo tempo e que, em determinado momento, no Congresso Nacio-
nal, adquiriu institucionalidade.
7
FIORI, J.L. Democracia e reformas: equívocos, obstáculos e disfunções. Brasília: OPS/OMS, 1991.
mimeo, p. 7.
8
FAVERET FILHO, P. & OLIVEIRA, P.J. de A. A universalização excludente: reflexões sobre a tendência do
sistema de saúde. Rio de Janeiro: UERJ/IEI, 1989.
51
Texto de apoio/Unidade 1
Muito diferente das propostas alternativas que vêm sendo apresentadas, qua-
se todas, resultado de elaborações tecnocráticas e acolhidas por grupos de interes-
se e apresentadas dentro da cultura nacional de planos mágicos. Nesse sentido, o
SUS segue a melhor tradição de reformas democráticas, negociadas na sociedade.
Portanto, o SUS é, a um tempo, um processo legal e legítimo e, também, um
processo em marcha, portanto inacabado.
O SUS muito além do SUS: a reforma do aparelho do estado
Há um consenso na sociedade brasileira de que, sem profunda reforma do Estado
não é possível superar a crise nacional. As divergências estão em como fazê-la e
sobre que grupos vão cair os ônus dessa imprescindível reforma.
Depois de crescer durante toda uma era de desenvolvimento, a uma média
aproximada de 7% ao ano, a economia brasileira, nos anos 80, permaneceu, à
exceção de breve período do Plano Cruzado, em permanente crise.
Nessa década, a instabilidade e a crise estrutural expressaram-se por meio da
deterioração da situação cambial, da aceleração inflacionária, da recessão e, prin-
cipalmente, da ruptura de um padrão de crescimento apoiado na articulação soli-
dária entre Estado, empresas multinacionais e empresas privadas nacionais.
9
Essa crise econômica rompeu, definitivamente, com o Estado nacional
desenvolvimentista tal como concebido desde os anos 30 e sustentado, até então,
por uma aliança liberal-desenvolvimentista de corte conservador.
A crise do Estado brasileiro que começou a manifestar-se nos anos 70, agudizou-
se na segunda metade dos anos 80 e materializou-se na crise fiscal, no esgotamento
da estratégia econômica de substituição de importações e na deterioração do apa-
relho do Estado. É, por isso, que se impõe uma reforma do Estado brasileiro.
Uma reforma do Estado admite, pelo menos, dois modelos alternativos.
Um, que propõe um Estado mínimo com privatização acelerada e incentivo a
mecanismos de regulação mercadológica, o modelo neoliberal; outro, o modelo de
reconstrução do Estado, que enfrenta o desafio do déficit público, implementa re-
formas econômicas orientadas para o mercado, muda as políticas sociais para me-
lhorar sua qualidade e moderniza o aparelho de Estado para aumentar sua capaci-
dade de implementar as políticas públicas.
Enquanto o primeiro modelo dá prioridade a uma redução do tamanho do
Estado, o segundo, sem questionar tal necessidade, vai exigir um Estado mais forte
na sua capacidade de regulação e na condução da política.
É, nessa segunda perspectiva que, aqui, vou discutir a reforma do Estado
brasileiro.
9
BRAGA, J.C. A instabilidade estrutural do capitalismo brasileiro: uma visão dos anos 50 aos 80. São
Paulo: IESP/FUNDAP, 1989.
52
CADRHU
A crise econômico-social requer medidas drásticas e o reconhecimento de que
há, no país, um Estado demasiado grande e extremamente débil. E que, uma vez
alcançada a estabilização macroeconômica, o papel do Estado é fundamental para
garantir a retomada do desenvolvimento, pelas seguintes razões:
10
primeiro, por-
que o aumento da inversão estatal é essencial para alavancar investimentos priva-
dos; segundo, porque o setor estatal deve converter-se em melhor regulador; por
fim, porque há necessidade premente de incremento dos gastos sociais em progra-
mas para os grupos sociais postergados.
É aí, nesse espaço da reforma do aparelho do Estado, que o SUS vai muito
além do SUS. Porque é no espaço da saúde que o Estado Brasileiro tem realizado as
reformas mais conseqüentes, todas ao abrigo do processo do SUS.
Em uma ação reformista corajosa extinguiu-se o INAMPS, mega-instituição
de 162.000 funcionários, com folha de pagamento anual superior a 1 bilhão de
dólares, após um processo gradativo de transferência de recursos humanos, mate-
riais e financeiros para estados e municípios.
Essa instituição, ao longo do tempo, foi sendo formatada para constituir-se
em locus privilegiado de relações incestuosas entre Estado e produtores privados.
Essa catedral centralista, ademais, transformou-se em nicho de intermediações
clientelistas e de manifestações de interesses corporativos, além de organização-
símbolo de um modelo médico inviável.
Portanto, o fim do INAMPS é caso emblemático de reforma do aparelho do
Estado, em que se põe termo a um lugar privilegiado da administração pública
burocrática. As resistências ao término do INAMPS inscreveram-se nas ordens dos
interesses clientelistas e corporativos. A população brasileira não se deu conta da
extinção, atestado eloqüente de sua pouca utilidade para os objetivos de saúde.
Fruto do SUS, a extinção do INAMPS pode sinalizar o início de um processo
de desarticulação desses interesses que se apresentam, com as mesmas distorções e
vícios, em inúmeras instituições federais, centralizadoras e de utilidade contestável.
Mais que isso, o processo do SUS transferiu da União para estados e municípios
e, dos estados para os municípios, atribuições, pessoal, equipamentos e prédios, num
esforço inaudito de descentralização.
Mais recentemente, vem iniciando-se , ainda que timidamente, um processo de
transferência da gestão semiplena a estados e municípios, o que permitiria chegar,
mais adiante, a novo pacto federativo, com gestão plena de estados e municípios.
Certamente que a reforma do aparelho do Estado é muito mais ampla do que
o que está ocorrendo no setor saúde.
Ademais, como discutirei no terceiro capítulo, esse processo tem muito
que avançar e aprofundar, a fim de que o Estado brasileiro possa adquirir
governança sobre as políticas de saúde. Mas o que já se fez é um bom começo.
10
FISHLOW, A. The Latin American State. J. Econ. Perspectives, 1990. 4:61-74.
53
Texto de apoio/Unidade 1
Daí que o SUS transcenda, em muito, a si mesmo, uma vez que demarca as
possibilidades e os caminhos de uma imprescindível reforma do aparelho do
Estado brasileiro, porque explicita os papéis federativos, redistribui as compe-
tências, descentraliza os recursos, democratiza as decisões e procura romper
com as clássicas relações de intermediação clientelistas ou corporativas que
estão na medula do nosso Estado.
Eis, aqui também, um processo em marcha. Algo muito distinto das inúmeras
e inúteis reformas administrativas que se fazem no país.
O SUS e os paradigmas de atenção à saúde
Cresce a consciência de que a crise da saúde nada mais é que expressão fenomênica de
causas mais profundas que têm raiz no modelo de atenção médica vigente, estruturado
pelo paradigma flexneriano. Sair da crise implica, pois, necessariamente, transitar de
um modelo de atenção médica, fruto do paradigma flexneriano, para um modelo de
atenção à saúde, expressão do paradigma da produção social da saúde.
É nesse sentido, que os reformistas ingleses falam, hoje de uma imprescindível
“revolução silenciosa” no sistema de saúde que derive as preocupações da atenção
médica para resultados medidos em melhoria da qualidade de vida da população.
11
Tais considerações permitem, mais uma vez, sustentar a pertinência do SUS
como processo social de construção da saúde.
Os constituintes de 1988 tiveram a sabedoria de captar a modernidade sanitá-
ria e inscrevê-la no Art. 196 da Constituição Federal, que estabelece que a saúde é
garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos.
Demais, e reforçados pela legislação infraconstitucional, explicitaram, na lei, os
princípios fundamentais do SUS, garantidores de um processo de produção social da
saúde.
Muito diferente das alternativas liberais propostas para a superação da crise
da saúde no Brasil que, na contramão da história, estão limitadas a mera racionali-
zação da atenção médica.
Por conseqüência, essas propostas alternativas ao SUS, mais que aliviar a cri-
se, constituirão, se implantadas, forte combustível que a alimentará, pelo reforço
que dão ao paradigma flexneriano.
Mais uma vez, impõe-se reiterar o caráter processual do SUS e a necessidade de
dar tempo e condições a esse processo social que, por envolver mudança paradigmática,
transformação cultural portanto, será, por natureza, de maturação lenta.
11
NICHOL, D. Oppening Adress. In: BENGOA, R. & HUNTER, D.J. New Directions in Managing Health
Care. Leeds: Edwin Harmer, 1991. p. 9-11.
54
CADRHU
O SUS como espaço social de construção de cidadania
Há várias interpretações do conceito de cidadania. Numa visão mais jurídica, ex-
pressa na definição aristotélica, cidadão “é aquele que tem uma parte legal na
autoridade deliberativa e na autoridade judiciária da cidade”, isto é, cidadão é
quem participa das decisões que regem a vida social, seja conformando-a, fazendo
suas leis, seja materializando-a, executando suas leis.
12
Numa perspectiva mais sociológica, o conceito de cidadania faz apelo a desti-
nos e projetos, historicamente compartilhados, a processos de conquistas coletivas
e à igualdade, mas também ao princípio de alteridade, baseado na concepção da
universidade cujo fundamento é o direito a ter direito.
13
A cidadania não é dada, como também nunca está acabada, pois constitui
processo em permanente construção no cotidiano social. Historicamente, o concei-
to de cidadania vem sofrendo alterações no curso da história. No século XVIII,
significava pertença à sociedade nacional; no século XIX, referia-se ao direito de
associação; e, no século XX, implica a reivindicação e a defesa dos direitos sociais.
No Brasil, o direito de cidadania é visto como privilégio de poucos e concessão
do Estado. Trazido para o campo das políticas sociais, as relações entre Estado e
segmentos populares instituem um padrão de “cidadania regulada”,
14
em que os
direitos dos cidadãos aparecem como benesse, sujeitos ao controle de uma buro-
cracia que, por meio de normas, estabelece quem tem ou não direitos.
Não obstante, no final dos anos 80, especialmente por meio do processo cons-
tituinte, propõe-se o aprofundamento das condições estruturais democráticas, o
fundamento da cidadania, com o resgate da dívida social.
É preciso relevar que a cidadania só tem espaço para construir-se socialmente
em ambiente democrático, o qual propicia a formação de atores sociais,
15
sujeitos
em situação, portadores de demandas e reivindicações; portanto, muito mais que
meros participantes sociais ou titulares de poder político. Daí que a questão cen-
tral, para aperfeiçoamento das instituições democráticas, passa a ser como sujeitar
o Estado ao controle de uma cidadania emergente. É, aí, que “o processo das polí-
ticas sociais é também um processo de constituição de cidadania, em que os bene-
fícios e os impactos, além do lado assistencial, só podem ser concebidos como pro-
cesso fundamental de uma dialética de construção de cidadania”.
16
A democratização das políticas sociais exige ruptura com processos de inter-
venção social centralizados. Nesse sentido, a descentralização emerge como ques-
tão estratégica básica na construção de uma cidadania.
12
DALLARI, S.G. Brasil: o doente mental rumo à cidadania. São Paulo: CEPEDISA, mimeo, s.d.
13
ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
14
SANTOS, W.G. Cidadania e justiça. Rio de Janeiro: Campus, 1979.
15
TOURAINE, A. As possibilidades da democracia na América Latina. Rev. Bras. Ciências Sociais, 1986. 1:5-15.
16
O’DONNEL, G. & OZLAK, O. Transição democrática e políticas sociais. Rev. Adm. Publ., 1987. 4:8-14.
55
Texto de apoio/Unidade 1
O cerne da questão é, de novo, como transformar as políticas sociais e de saúde, não em
manipulação clientelista ou corporativista, mas num espaço ético e legítimo de garantia
aos direitos da cidadania, ou de resposta eficaz do Estado às pressões democráticas.
17
Com base nessas reflexões, a legislação constitucional e infraconstitucional da
saúde postula a saúde como direito de saúde sob princípios da descentralização e
da participação da comunidade.
Saúde é, por conseqüência, direito dos cidadãos e seus serviços, e suas ações
devem ser providos de forma descentralizada e submetidas ao controle social. Des-
sa forma, a proposta do SUS encontra-se como a melhor doutrina da construção da
cidadania.
Na prática social, esse exercício de cidadania tem sido realizado por meio da
instituição dos Conselhos de Saúde, em que a sociedade vive a relação Estado/
População e constrói seu conceito de direito à saúde.
Uma questão, então, se coloca: esta relação legítima entre Estado e sociedade
civil deve ser legalizada e institucionalizada? A resposta está dada por Donato &
Lobo
18
quando dizem que essa questão se refere à relação instituído/instituinte.
“O movimento social não deve se transformar em uma personalidade jurídica, sob
pena de reduzir sua particularidade e capacidade de interlocução a mais uma das
entidades ou organizações sociais. É própria do movimento, sua capacidade instituinte.
Todavia, o Conselho de Saúde, que não é nem pode ser o movimento, ainda que deva
com ele manter uma relação orgânica, necessita ser institucionalizado, a fim de cons-
tituir uma regularidade no fluxo decisório da instituição. Em outras palavras, necessi-
ta constituir um sujeito coletivo regular ou contínuo com delegação de autoridade
para poder influir na gestão e produção de políticas de saúde”.
Na sua curta existência, o SUS tem estimulado o controle social dos serviços
de saúde mediante a criação e o desenvolvimento de Conselhos Estaduais, Munici-
pais, Distritais e Locais de Saúde. Dessa forma, têm surgido, em inúmeros municí-
pios brasileiros, esses conselhos que, de modo mais ou menos consciente, começam
a controlar o sistema de saúde. Há quem estime que, hoje, há mais conselheiros
municipais de saúde que vereadores em nosso país.
Ainda que, em muitos lugares, esses conselhos sejam motivo de distorções
partidárias, clientelistas ou corporativas, o resultado global é positivo e aponta
para um movimento democratizador na saúde, sem precedentes em nenhum outro
espaço social da vida nacional.
Algumas experiências municipais avançam para propiciar a capacitação dos
conselheiros mediante cursos regulares e de prover, de forma sistemática, as infor-
mações necessárias para o exercício do controle social da saúde.
17
BOLDSTEIN, R.C. de A. Assistência médica na agenda pública. In: BODSTEIN, R.C. de A. (org).
Serviços locais de saúde: construção de atores e políticas. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1983. p. 34.
18
DONATO, A. F. & LOBO, E. Conselhos Municipais de Saúde. São Paulo. Trabalho preparado para a
OPS/OMS, Representação do Brasil, 1994, mimeo. p. 8.
56
CADRHU
Este é, também, um processo de lenta maturação mas que acompanha uma das
tendências universais das reformas sanitárias – a de estabelecer o controle da cidada-
nia sobre os sistemas de saúde. É preciso avançar muito mais: na melhoria da quali-
dade dos conselhos de saúde e de sua representatividade; no aperfeiçoamento da
ação do Ministério Público para garantir o preceito constitucional da relevância pú-
blica das ações e serviços de saúde; na presença de representantes da população nos
conselhos administrativos das unidades de saúde, estatais ou de utilidade pública; na
introdução dos cidadãos como co-decisores nos conselhos corporativos (Conselhos
de Medicina, Odontologia, Farmácia, Enfermagem, etc.); na criação de ouvidorias
independentes em todas as instituições pactadas com o SUS, etc.
Mas é inegável que o SUS vem constituindo-se num espaço privilegiado de
construção de cidadania.
O SUS na prática
O caos da saúde
Sem pretender negá-las, as críticas que fazem ao SUS decorrem de uma análise
superficial das causas do que vem sendo denominado de “caos da saúde”. Em
realidade, trata-se de uma crise dos serviços de atenção médica, mais agudamente
manifestada na desorganização dos hospitais e dos ambulatórios, em que se mis-
turam ingredientes perversos: filas, atendimento desumanizado, pacientes nos
corredores, mortes desnecessárias, grevismo crônico etc.
São problemas indiscutíveis mas que não surgiram como conseqüência do SUS;
ao contrário, constituem problemas históricos em nosso país e, como já mencionei,
são, de um lado, reflexos da crise do Estado brasileiro e, de outro, expressão localiza-
da de crise universal do paradigma flexneriano da atenção médica.
Certamente que esses problemas agravaram-se em virtude da contempo-
raneidade do SUS com brutal e rápida diminuição de seu financiamento, no início
de sua implantação.
No primeiro ano de existência do SUS, 1989, o gasto público federal em
saúde foi da ordem de US$ 11,3 bilhões, o que representou gasto per capita/ano
de US$ 80,32. A partir daí, esses gastos caíram para US$ 9,4 bilhões em 1990,
para US$ 7,8 bilhões em 1992, até atingirem, em 1993, US$ 7,5 bilhões. Isso
significa que, no período crítico de implantação do SUS, os gastos federais, res-
ponsáveis por mais de 70% dos gastos públicos totais em saúde reduziram-se em
4,8 bilhões de dólares. No tocante ao gasto público total per capita/ano (soma de
gastos federais, estaduais e municipais) a queda foi de US$ 99,26 em 1989 para
US 65,11 em 1993.
19
Cabe acrescentar que essa brutal queda veio acompanhada
19
MÉDICI, A. C. & MARQUES, R. M. Saúde: entre gastos e resultados. São Paulo: IESP/FUNDAP, 1994.
mimeo.
57
Texto de apoio/Unidade 1
da instabilidade de fontes e fluxos de financiamento, o que agravou, extrema-
mente, um quadro, em si, já dramático. Tudo isso, junto com a incorporação ao
SUS de milhões de brasileiros, resultado da universalização do sistema.
Por uma série de razões jurídicas e políticas, a saúde ficou sem fontes estáveis
de financiamento e passou a depender, cada vez mais, do combalido caixa do Te-
souro Federal, num momento de estabilização econômica, em que a eliminação do
déficit público constituía a prioridade de governo.
Como conseqüência, o fluxo financeiro do Tesouro para o Ministério da Saúde
e, deste, para os prestadores públicos e privados, tornou-se completamente irregu-
lar, num momento de altíssima inflação. Isso determinou uma diferença entre re-
cursos devidos e pagos, da ordem de 35,2% a menos, uma perda de US$ 2,3 bilhões
somente em recursos de AIH e UCA, no ano de 1993.
20
Cabe revelar que enquanto os recursos diminuíam violentamente, a produção
de serviços aumentava quase na mesma proporção. Como exemplo, as internações
hospitalares do SUS cresceram de 11,5 milhões em 1989 para 14,7 milhões em 1994.
21
Os problemas de financiamento do SUS e a dificuldade de governança causa-
da pelas incertezas dos fluxos financeiros constituíram fator perturbador para
implementação de um processo de mudança do sistema de saúde no País. A esse
fator econômico devem somar-se as turbulências política e moral vividas no Gover-
no Collor.
A crise da saúde brasileira carrega as dimensões de uma crise universal e da
singularidade nacional, apresentando, contudo, ingrediente próprio: carga de emo-
ção muito forte, contida numa visão fenomênica da crise e normalmente referida
como o “caos da saúde”.
Não há de se negar o óbvio: existe grave crise na atenção médica, constatável
especialmente nos hospitais e nos ambulatórios que atendem urgências e emergên-
cias, nas grandes e médias cidades brasileiras. Mas, também, há de se concordar
que a mídia nacional cria um “aqui, agora” sanitário por onde se vem construindo,
no imaginário social, a idéia do caos da saúde. A área da saúde é campo privilegia-
do para produção de “fatóides”, expressão cunhada para expressar pseudo-aconte-
cimentos, polêmicas ridículas, escândalos sem importância ou eventos espetaculosos
que sustentam o cotidiano da mídia.
Esse gosto pelos fatóides parece integrar os costumes do jornalismo brasileiro
contemporâneo. Isso é dito por Clóvis Rossi:
22
“Quem cobriu o Brasil de 1984 para
cá [...] tomou doses maciças de emoções fortes diretamente na veia... agora que a
democracia vai se tornando uma rotina [...] os viciados em emoções fortes estamos
20
MINISTÉRIO DA SAÚDE/SAS. Diferença entre recursos devidos e pagos por serviços de saúde prestados
dentro do SUS. Brasília, 1994. mimeo.
21
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Definição de recursos adicionais necessários às atividades a serem desenvolvi-
das até dezembro de 1995 pelo Ministério da Saúde. Brasília, 1995. mimeo.
22
ROSSI, C. Autocrítica. Folha de São Paulo, p. 1.2, 12 de novembro de 1994.
58
CADRHU
passando pela típica crise de abstinência...” A maneira de atuar da mídia faz com
que a notícia se transforme em espetáculo e que, por conseqüência, vá afastando-se
da ordem do jornalismo para aproximar-se da dramaturgia.
Comparo, para ilustrar, as repercussões, na mídia, de dois eventos contempo-
râneos: a entrega, pelo diretor da OPS, ao presidente da República, em 12 de outu-
bro de 1994, da certificação de erradicação da poliomielite e, algumas horas de-
pois, o parto espetacular acontecido na pia do Hospital Souza Aguiar, no Rio de
Janeiro. O primeiro – coroamento de esforço de anos a fio de trabalho solidário de
instituições internacionais, governo e sociedade civil – recebeu, apenas, discreta
referência nos jornais; o segundo, ampla e indignada cobertura em todos os meios
de comunicação. E, veja, a cada ano, o SUS propicia três milhões de partos hospita-
lares, uma cobertura fantástica que, contudo, nada tem de espetacular.
Além disso, a mídia não noticia as excelentes experiências desenvolvidas em
vários municípios brasileiros, em que a crise da saúde foi substituída por atenção
integral à família, humanizada, contínua, feita nas casas, resolutiva, com satisfação
de usuários e profissionais de saúde e que impacta favoravelmente os níveis de
saúde, especialmente os de mortalidade infantil e materna. Itapiúna, Quixadá e
Iguatu, no Ceará; Campina Grande, na Paraíba; Camarajibe e Olinda, em
Pernambuco; Niterói, no Rio de Janeiro; Curitiba, no Paraná; Joinville, em Santa
Catarina; o programa de saúde comunitária do Grupo Hospitalar Conceição, em
Porto Alegre, Rio Grande do Sul, e muitas outras. São alguns exemplos dessa nova
forma de prestar serviços de saúde que se vai espalhando pelo país. Só que como
disse uma repórter da Televisão Globo, ao visitar o programa de médico de família
de Niterói, “isso não tem interesse jornalístico”. E foi atrás de emoções fortes no
hospital de emergência da cidade.
Assim, a percepção fenomênica da crise da saúde brasileira e sua vinculação
ao SUS é, em parte, construída pela forma como a mídia seleciona e difunde os
fatos relativos ao sistema de saúde. Nesse sentido, é fundamental que se elabore e
implemente, agressivamente, uma política de comunicação social do SUS que visa-
rá a comunicar, a diferentes públicos, com absoluta transparência e sem triunfalismos,
as dificuldades, os erros e os êxitos do Sistema Único de Saúde, bem como a infor-
mar os cidadãos sobre seus direitos e deveres no campo da saúde.
A conjunção desses fatores econômicos, políticos, comunicacionais e sanitári-
os, criou ambiente muito desfavorável à implantação do Sistema Único de Saúde,
nos seus anos iniciais, e foi responsável por muitas dificuldades que estão na base
do denominado “caos da saúde”.
Esse caos, referido cotidianamente, não parece refletir-se, com a mesma in-
tensidade, em pesquisas de opinião pública. A Pesquisa de Condições de Vida,
23
realizada pela Fundação Seade, entre março a outubro de 1994, em aproximada-
mente 4.000 domicílios da Região Metropolitana de São Paulo – considerada uma
23
COSTA, O. V. & AUGUSTO, M.H.O. Uma escolha trágica: saúde ou assistência médica? São Paulo em
Perspectiva, 1995. 9:94-100.
59
Texto de apoio/Unidade 1
das mais caóticas do ponto de vista dos serviços de saúde – revelou que 28,2% dos
entrevistados procuraram atendimento nos trinta dias que antecederam a entrevis-
ta, o que significa que, mensalmente, de cada quatro habitantes dessa região me-
tropolitana, quase um terço é atendido pelos serviços de saúde. Destes, 45% possu-
em planos privados de saúde e 55% são atendidos pelo SUS. Uma comparação
entre os usuários do SUS e dos Planos de Saúde mostra diferença significativa de
tempo de espera mediano (60 minutos para o usuário SUS e 20 minutos para o
usuário dos Planos de Saúde) e para a forma de agendamento (3,8% de agendamento
telefônico para o usuário SUS e 59,8% para o usuário dos Planos de Saúde). O
mesmo não ocorre em relação à qualidade do atendimento em que, em intervalo
de 0 a 10, o atendimento SUS teve nota 8 e o atendimento Planos de Saúde teve
nota 9. Quanto à capacidade de resolução, na perspectiva do usuário, a resolução
total foi de 46,5% para o usuário SUS e 52,5% para o usuário dos Planos de Saúde;
no relativo à resolução parcial, ela foi de 39,3% para o usuário SUS e 38,5% para o
usuário dos Planos de Saúde. Esses dados estão longe de indicar uma percepção
caótica dos serviços de saúde ofertados pelo SUS, ante os oferecidos pelo Sistema
de Atenção Médica Supletiva. Os resultados mostram que os Planos de Saúde são
mais confortáveis mais que não há diferença significativa na percepção de indica-
dores de qualidade e de resolubilidade.
Os resultados favoráveis do SUS
Essa visão fenomênica da crise da saúde obscurece alguns resultados favoráveis
indiscutíveis no campo da saúde pública.
É preciso, portanto, realçar – além das virtudes já apontadas anteriormente
neste trabalho – alguns resultados positivos da saúde pública brasileira que foram
obtidos ou consolidados durante o período de vigência do SUS.
24
No campo das doenças imunopreveníveis, além da erradicação da poliomieli-
te, há outros resultados expressivos. O sarampo passou de uma taxa de incidência
de 42,8 por 100.000 habitantes em 1990 para 0,2 por 100.000 em 1993, uma
redução de 99,9%; os coeficientes de incidência de difteria por 100.000 habitantes,
apesar de ainda altos, apresentam tendência declinante, transitando de 0,50 em
1989 para 0,19 em 1993; o coeficiente de incidência de coqueluche por 100.000
habitantes declinou de 9,81 em 1989 para 2,42 em 1993; a taxa de incidência de
tétano acidental baixou de 1,22 por 100.000 habitantes em 1989 para 0,77 por
100.000 em 1993; finalmente, a mesma tendência de queda nos casos e nos óbitos
por tétano neonatal é observada no período de 1989 a 1993.
24
Os dados do Ministério da Saúde estão em: MINISTÉRIO DA SAÚDE/FNS/CENEPI/CDI. Relatórios de
grupos de trabalho. Brasília, 1994. mimeo. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Plano de ação 1995/99. Brasília,
mimeo, 1995; MINISTÉRIO DA SAÚDE/FNS/DO/CCDTV. Morbimortalidade por doenças transmiti-
das por vetores. Brasília, 1994. mimeo; ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Hanseníase
hoje. Bol. Eliminação da Hanseníase nas Américas, 1995. 1(3):2-3.
60
CADRHU
No que concerne às endemias, nada obstante a persistência de situações
graves como malária, alguns avanços têm sido notados. Mesmo na hanseníase,
em que o Brasil saiu atrasado em relação a outros países, a prevalência por 10.000
habitantes caiu de 18,5 em 1990 para 10,5 em 1994; no mesmo período, a cober-
tura da poliquimioterapia subiu de 20,08% para 64,0%. As atividades de controle
vetorial da doença de Chagas permitiram redução de mais de 70% nas áreas de
infestação, com eliminação do Triatoma infestans em extensas regiões do país.
Tem havido constante e continuado decréscimo da mortalidade por essa enfermi-
dade o que, por sua vez, é indicador indireto de redução da morbidade. Os casos
de internação hospitalar por doença de Chagas diminuíram de 2.177 em 1989
para 1.336 em 1993. Também é nítida a redução da freqüência de formas graves
de esquistossomose e da mortalidade causada por essa doença que diminuiu de
0,7/100.000 habitantes em 1980 para 0,3/100.000 em 1991. A raiva humana
teve seu coeficiente de incidência reduzido de 0,15/100.000 habitantes em1980
para 0,01/100.000 em 1994.
As ações no campo da saúde mental, realizadas pelo SUS, são significativas.
Até 1991 existiam, no País, 86.000 leitos psiquiátricos que consumiam 7,5% das
despesas com internação do SUS. O tempo médio de internação era de cerca de
cem dias e os hospitais psiquiátricos eram o único recurso terapêutico disponível.
Uma série de medidas tomadas pelo SUS permitiram, já em 1993, diminuição de
4.000 leitos psiquiátricos em hospitais e a abertura de 2.000 leitos de psiquiatria
em hospitais gerais. Foram criados vários centros de atenção psicossocial, os quais
oferecem atividades terapêuticas, de lazer e de recuperação. Além dos resultados
humanos e técnicos dessas mudanças, os gastos com internação passaram de 7,5%
sobre o gasto total de internações do SUS, em 1991, para 6,9% em 1993.
Também cabe mencionar o programa nacional de auto-suficiência em
imunobiológicos. Esse programa, que se iniciou em outubro de 1985, continuou
seu desenvolvimento normal durante o período do SUS. Por meio dele, nosso País
obteve auto-suficiência na produção nacional de vacina contra a febre amarela,
vacina BCG, vacina anti-rábica canina, vacinas contra meningites A e C, vacina
dupla adulto, vacina anti-rábica humana, febre tifóide, toxóide tetânico e soros
antipeçonhetos.
Uma incursão pela saúde materno-infantil, no Estado do Ceará, no período de
1987 a 1994,
25
portanto em tempo de SUS, permitiu constatar: a cobertura pré-
natal variou de 62% a 82%; a de partos hospitalares de 68% a 88%; a de parto
assistido por médico, de 36% para 56%; a desnutrição em crianças de 0 a 2 anos
medida por peso/idade, de 13% a 9%; o acompanhamento do crescimento de cri-
anças de 63% a 94%; o aleitamento materno exclusivo em crianças de 0 a 3 meses,
de 2% a 15%; a duração mediana do aleitamento materno, de 3,7 meses a 6,9
25
SECRETARIA DE SAÚDE DO CEARÁ/UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ. Terceira pesquisa de
saúde materno-infantil do Ceará. Fortaleza, 1995. mimeo.
61
Texto de apoio/Unidade 1
meses; a cobertura vacinal por BCG, de 58% a 96%; a cobertura vacinal por DPT,
de 50% a 88%; a cobertura vacinal de sarampo, de 65% a 88%; o uso do soro oral,
de 22% a 52%; a mortalidade infantil, de 75 por mil a 58 por mil.
Na visão processual de implantação do SUS, eventos muito promissores estão
ligados ao movimento de municipalização da saúde, cujos resultados, seja em
descentralização democratização, seja no aumento da eficácia e eficiência do siste-
ma, são incontestáveis. Demais, já é possível identificar alguns resultados da
municipalização, seja no aumento da produtividade, seja na melhoria dos níveis de
saúde. Pesquisa feita para a Organização Pan-Americana da Saúde, no Estado do
Ceará, mediante amostra de 83 municípios de diversos tipos e tamanhos, demons-
trou que a produtividade média das consultas médicas nos municípios
municipalizados foi 21% maior que nos não-municipalizados. Além disso, consta-
taram-se quedas nas taxas de mortalidade infantil nos municípios municipalizados,
em relação aos não-municipalizados, que variaram de 16% a 26%, conforme a
situação sócio-sanitária dos municípios.
26
Esses dados do Ceará, obtidos mediante pesquisas avaliativas, realizadas com
rigor científico, mostram tendência de nítida melhoria dos indicadores de saúde
que, nem de longe, poderiam expressar situação de caos da saúde, cotidianamente
reverberada na mídia daquele estado.
Outro cenário: e se não houvesse o SUS?
As críticas ao SUS resultam, como mencionado, de sua identificação com o “caos da
saúde”. Uma análise mais neutra exigiria, além das considerações já realizadas, a
consideração de um cenário alternativo em que o SUS não tivesse existido.
Esse cenário apresentaria situação pretérita em que o sistema público perma-
neceria clivado em dois subsistemas: um para os integrados economicamente, aten-
didos em suas necessidades médicas, por um subsistema previdenciário, por meio
do INAMPS; outro, para os não-integrados, que receberiam serviços de organismos
estatais, federais, estaduais e municipais.
Por si só, esse sistema público dual constituiria grave infração às normas de-
mocráticas da saúde como direito de cidadania. O princípio da eqüidade, pilar de
uma sociedade democrática, estaria rompido, com o privilegiamento de recursos
públicos para os integrados economicamente e a oferta da medicina simplificada
ou da filantropia para os pobres. Para se ter idéia dessa situação, no ano de 1987,
enquanto as internações por 100 brasileiros não-integrados era de 7,56, para a
população previdenciária alcançavam 36,16.
27
26
SOARES, S.M.S. et al. Mortalidade infantil e municipalização da saúde no Estado do Ceará. Fortaleza,
1994. mimeo.
27
MINISTÉRIO DA SAÚDE. SUS não faz crescer as internações. Boletim da SAS, 1994. 1:10.
62
CADRHU
Se não bastasse essa transgressão democrática, a grave crise do Estado brasi-
leiro, que deteriorou as estruturas estatais, teria desorganizado os dois subsistemas.
A crise da Previdência Social fez com que, em anos recentes, todos os recursos
arrecadados mediante a contribuição sobre folha de salário fossem destinados, ex-
clusivamente, ao pagamento de benefícios, não sobrando recursos para a saúde.
Mantida a atenção médica previdenciária de onde sairiam os recursos para custeá-
la? Isso sem discutir a brutal ineficiência alocativa dos recursos gastos em atenção
médica, objetivo único da medicina previdenciária.
De outro lado, esse cenário significaria um sistema estatal para os pobres
exercitado, com alto grau de centralização, pelos governos federal e estaduais, com
participação residual dos municípios. Esse desenho institucional, se tivesse perma-
necido, seria desastroso, tendo em vista a extrema desorganização, para a presta-
ção de serviços públicos, dos organismos federais e estaduais. Além de deteriora-
dos em sua capacidade de ofertar serviços, tais instâncias reduziram, no período de
existência do SUS, os recursos que investiam em saúde. Basta mencionar, como
exemplo paradigmático, a profunda crise de identidade vivida pelas Secretarias
Estaduais de Saúde que, mesmo desvencilhando-se da prestação dos serviços bási-
cos de saúde, repassados aos municípios, não encontram sua governança.
Como conseqüência, os sistemas locais de saúde que explodiram no país, como
fruto do processo de municipalização, não teriam existido, nem os municípios teriam
incrementado, como fizeram, seus gastos em saúde.
Esse colchão social criado pelo SUS, nas municipalidades, constituiu, indiscuti-
velmente, mecanismo atenuador da grave crise sanitária no Brasil. Ele não teria exis-
tido no cenário de inexistência do SUS.
Quem ganhou com o SUS?
O Sistema Único de Saúde instituiu-se com base no princípio da universalidade. Por
meio dele, incorporaram-se como cidadãos da saúde, possuidores de direitos a serem
garantidos pelo Estado, a partir da criação do SUS, 60 milhões de brasileiros, até
então submetidos a uma atenção estatal de medicina simplificada ou à filantropia.
Ainda que se deva reconhecer o caráter peculiar da universalização da saúde
no Brasil – a “universalização excludente” – que se fez junto com a queda na quali-
dade média da atenção médico-hospitalar, é inegável que para os milhões de
despossuídos que adquiriram direitos e livraram-se da indigência, os ganhos, tanto
do ponto de vista dos serviços, quanto da perspectiva psicossocial, são inegáveis.
Bastaria perguntar a um cidadão, integrado pelo SUS, se gostaria de voltar à condi-
ção de recorrer, como indigente, aos serviços dos hospitais filantrópicos.
A contradição está em que esses brasileiros que ganharam com o SUS não
estão socialmente organizados e são destituídos de voz política. Em outros termos,
os ganhadores do SUS são maioria silenciosa que conta pouco no jogo político e na
63
Texto de apoio/Unidade 1
formação de opinião. Alcançaram, com o SUS, cidadania na saúde, mas permane-
cem subcidadãos políticos.
Enfim, os ganhadores não contam porque ninguém lhes ausculta, ninguém
lhes dá ouvido.
Conclusões
De tanto repetir-se, é já truísmo dizer-se que o SUS é uma idéia generosa, mas que
não se materializou na prática social. Daí, ser comum a expressão “o SUS não
aconteceu”, encontrada mesmo entre os defensores da Reforma Sanitária.
Pior, ainda, é constatar que, com muita freqüência, a proposta do SUS é
identificada, neste momento, como causa principal da crise da saúde no Brasil.
Boa parte dessa crítica está sustentada por grupos de interesses que pretendem
pluralizar o sistema único mediante eliminação da universalidade, restringindo-o a
populações não-integradas economicamente, um medicaid à brasileira, ou mesmo
substituí-lo por um sistema alternativo baseado na racionalidade do mercado.
Contudo, é forçoso reconhecer que há, também, uma percepção fenomênica
do denominado “caos da saúde”, por grandes contingentes populacionais, seja por
experiências vivenciadas, seja pelas reverberações dos problemas da assistência
médico-hospitalar na mídia, que levam a um crescente questionamento do SUS.
Está, assim, preparado o terreno para a condenação definitiva do SUS e para
propostas miraculosas, bem ao gosto nacional, que levem a mudanças jurídico-
legais, que deveriam criar outro modelo sanitário.
Simploriamente, pretende-se superar a questão da crise da saúde – que envol-
ve graves problemas estruturais e conjunturais – por meio de mudanças na legisla-
ção constitucional e infraconstitucional.
Esse perigoso senso comum que se vai conformando é falacioso e assenta-se no
desconhecimento de que a crise da saúde tem caráter universal que deriva do esgota-
mento do paradigma de atenção médica, e que se manifesta, também, no Brasil.
Dessa forma, as aparentes soluções apresentadas – todas referenciadas pelo
modelo médico esgotado – ao desconhecerem esse componente estrutural da crise,
mais aprofundarão que resolverão o problema.
Demais, toma-se o SUS como evento discreto, criado pela Constituição de
1988, negando-lhe a característica de um processo social que, apenas, tem, no
tempo constituinte, um momento de consolidação jurídica, mas que continua sen-
do construído no cotidiano da prática social.
Conjunturalmente, mascara-se o fato mais relevante, o da coetaneidade do SUS
com a mais grave crise do Estado brasileiro – uma crise orgânica do Estado – que
desarticulou o aparato estatal e se manifestou, mais visivelmente, numa crise fiscal
que repercutiu, catastroficamente, no financiamento do SUS, no período crítico de
64
CADRHU
implantação. Ao mesmo tempo, desconhecem-se os êxitos incontestáveis do novo
sistema e se lhe transforma em espaço social privilegiado de constituição das notíci-
as-espetáculo.
Por tudo isso, há de se analisar o SUS com maior objetividade, entendendo-o
como processo em construção permanente que visa, a médio e longo prazos a uma
mudança do paradigma de atenção à saúde e a uma busca de um sistema de saúde
eficaz, eficiente, de qualidade e eqüitativo.
Para tal, é fundamental reconhecer que o desenho constitucional de 1988 é
correto e moderno, mas que carece de condições e tempo para afirmar-se social-
mente. E entender que seu desenvolvimento conseqüente vai depender da formu-
lação estratégica de uma agenda para a saúde a ser perseguida, tenazmente, com
muito esforço e por muitos anos.
O Brasil já não suporta milagres e milagreiros, articuladores de soluções as-
sentadas em diagnósticos ideológicos ou interessados.

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Artigo sobre o sus debate (1)

  • 1. O sistema único de saúde um processo social em construção* Eugênio Vilaça Mendes** O SUS está desenganado. Francisco de Oliveira, economista do IPEA, na Folha de São Paulo , 1996. O SUS é uma revolução sem precedentes. Renato Fairbanks Barbosa, médico aposentado, na Folha de São Paulo, 1994. O SUS como processo “Plantar carvalhos? Como se já se decidiu que somente eucaliptos sobreviverão? Plantar tâmaras, para colher frutos daqui a cem anos? Como, se já se decidiu que todos teremos de plantar abóboras, a serem colhidas daqui a seis meses?”. 1 A fala do filósoso-educador deve ser ouvida quando se trata de discutir pro- cessos sociais, de longa maturação, incompatíveis com a ocorrência de eventos discretos, bruscos, determinados, seja por manifestações de grupos de interesse, seja por construções ideológicas, de curto prazo. O SUS, entendido como processo social em marcha, não se iniciou em 1988, com a consagração constitucional de seus princípios, nem deve ter um momento definido para seu término, especialmente se esse tempo está dado por avaliações equivocadas que apontam para o fracasso dessa proposta. Assim, o SUS nem come- çou ontem e nem termina hoje. Reformas sociais, em ambiente democrático são, por natureza, lentas e politi- camente custosas. Mudanças rápidas são típicas de regimes autoritários. Falar de processo social implica reconhecer a complexidade de uma constru- ção que se dará em ambiente habitado pela diversidade das representações de interesses e em campos sociais de diferentes hierarquias, quais sejam, o político, o cultural e o tecnológico. O SUS, como processo social, tem dimensão política dado que vai sendo construído em ambiente democrático, em que se apresentam, na arena sanitária, diferentes atores sociais portadores de projetos diversificados. * Texto parcialmente publicado, com autorização da editora, de: MENDES, E.V. Uma Agenda para a Saúde. Hucitec, São Paulo, 1996. 300p. Para atender melhor a esta publicação fizemos uma nova normalização e uma nova diagramação. **Foi durante onze anos consultor em Sistemas e Serviços de Sáude da OPAS – Representação do Brasil. 1 ALVES, R. Conversas com quem gosta de ensinar, São Paulo: Cortez, 1981. p. 15.
  • 2. 46 CADRHU O SUS tem, também, dimensão ideológica, uma vez que parte de uma concep- ção ampliada de processo saúde-doença e de um novo paradigma sanitário, dela derivado, cuja implantação tem nítido caráter de mudança cultural. Essa dimensão cultural, necessariamente, introduz, por sua natureza intrínseca, um elemento de temporalidade longa ao processo de implantação. Por fim, apresenta uma dimensão tecnológica que vai exigir a produção e a utilização de conhecimentos e técnicas para sua implementação, coerentes com os pressupostos políticos e ideológicos do projeto que o referencia. O SUS está sendo construído no embate político, ideológico e tecnológico entre diversos atores sociais em situação e resulta de propostas que, ao longo de muitos anos, vêm sendo impulsionadas por um movimento social que se denomina de reforma sanitária brasileira. Por isso, impõe-se percorrer a trajetória do sistema de saúde brasileiro para entender-se a natureza processual do SUS. 2 Neste século, o sistema de saúde transitou do sanitarismo campanhista (início do século até 1965) para o modelo médico-assistencial privatista, até chegar, no final dos anos 80, ao modelo plural, hoje vigente, que inclui, como sistema público, o SUS. Isso tem, de um lado, uma determinação econômica e, de outro, a concepção de saúde que vige, na sociedade, num determinado momento. Enquanto a economia brasileira esteve dominada por um modelo agroexportador, assentado na monocultura cafeeira, o que se exigia do sistema de saúde era, sobretudo, uma política de saneamento dos espaços de circulação das mercadorias exportáveis e a erradicação ou controle das doenças que poderiam prejudicar a exportação. O sanitarismo campanhista 3 tem, por detrás de si, uma concepção de saúde, fundamentada na teoria dos germes, que leva ao modelo explicativo monocausal, segundo o qual os problemas de saúde se explicam por uma relação linear entre agente e hospedeiro. Por isso, o sanitarismo campanhista pretendeu resolver os problemas de saúde – ou melhor, das doenças – mediante a interposição de barreiras que quebrem esta rela- ção agente/hospedeiro para o que estrutura ações, de inspiração militarista, de comba- te a doenças de massa, por meio da criação de estruturas ad hoc, com forte concentra- ção de decisões e com estilo repressivo de intervenções nos corpos individual e social. O processo de industrialização acelerada que o Brasil vivenciou, especialmen- te a partir do Governo Juscelino, determinou o deslocamento do pólo dinâmico da economia para os centros urbanos e gerou uma massa operária que deveria ser atendida, com outros objetivos, pelo sistema de saúde. 2 Para um entendimento mais completo da trajetória do sistema de saúde no Brasil, ver: MENDES, E.V. As políticas de saúde no Brasil nos anos 80: a conformação da reforma sanitária e a construção da hegemonia do projeto neoliberal. In: MENDES, E.V. (org.). Distrito sanitário: o processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. São Paulo: Hucitec, 3.ed. 1995. 3 Sobre sanitarismo campanhista, consultar: LUZ, M.T. As instituições médicas no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
  • 3. 47 Texto de apoio/Unidade 1 O importante já não era sanear os espaços de circulação das mercadorias mas atuar sobre o corpo do trabalhador, mantendo e restaurando sua capacidade produtiva. Observou-se, então, um movimento simultâneo de crescimento da atenção médica da Previdência Social e de esvaziamento progressivo das ações campanhistas que acabou por levar à conformação e hegemonização, na metade da década de 60, do modelo médico-assistencial privatista. 4 O modelo médico-assistencial privatista foi gestando-se, paralelamente, a um movimento de crescente integração e universalização da Previdência social: das Caixas de Aposentadorias e Pensões da década de 20, aos Institutos de Aposentado- ria e Pensões dos anos 30 a 60, até o Instituto Nacional da Previdência Social. A criação do INPS, em 1966, foi o momento institucional de consolidação do modelo médico-assistencial privatista, cujas principais características foram: 5 •A extensão da cobertura previdenciária de forma a abranger a quase totali- dade da população urbana e rural; •O privilegiamento da prática médica curativa, individual, assistencialista e especializada, em detrimento da saúde pública; •A criação, por meio da intervenção estatal, de um complexo médico-industrial; •O desenvolvimento de um padrão de organização da prática médica orienta- da para a lucratividade do setor saúde propiciando a capitalização da medi- cina e o privilegiamento do produtor privado destes serviços. Em 1975, com base nas diretrizes do II Plano Nacional de Desenvolvimento, surgiu a Lei 6.229, que institucionalizou o modelo médico-assistencial privatista, ao separar as ações de saúde pública das ditas de atenção à saúde das pessoas e, em 1977, criou-se o Sistema Nacional da Previdência Social e, com ele, a organização- símbolo do modelo médico, o INAMPS. O modelo médico-assistencial privatista compunha-se de três subsistemas. Na base, um subsistema estatal, representado pelo complexo Ministério da Saúde/Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, em que se exercitava a medi- cina simplificada destinada à cobertura nominal de populações não-integradas eco- nomicamente e ao desenvolvimento de ações remanescentes do sanitarismo. O subsistema hegemônico era o subsistema privado contratado e conveniado com a Previdência Social que cobria os beneficiários daquela instituição. Este subsistema cresceu induzido por políticas públicas de terceirização da atenção médica que criaram um mercado cativo na área da Previdência Social e, muito secundariamente, pelo fi- nanciamento subsidiado de capital físico por meio do FAZ. De tal forma que, no perío- do 1969/1984, os leitos privados subiram de 74.543 para 348.255, um crescimento próximo a 500%. 4 Sobre o modelo médico-assistencial privatista, consultar: SILVA, P.L.B. O perfil médico-assistencial privatista e suas contradições: a análise política da intervenção estatal em atenção à saúde na déca- da de 70. Cadernos FUNDAP, 1983. 3:27-50. 5 OLIVEIRA, J.A. & TEIXEIRA, S.M.F. Previdência social. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 342.
  • 4. 48 CADRHU Um terceiro subsistema – que começava a delinear-se e a implantar-se, aprovei- tando os incentivos do convênio empresa – é o subsistema de atenção médica supletiva que buscava atrair a mão-de-obra qualificada das grandes empresas. Contudo, na déca- da de 70, este subsistema não chegou a atingir uma massa significativa de beneficiários. As mudanças econômicas e políticas que se deram, especialmente a partir do início dos anos 80, determinaram o esgotamento do modelo médico-assistencial privatista e sua substituição por um outro modelo de atenção à saúde. Por trás de tudo isso está uma profunda crise do Estado expressa, no âmbito interno, pela crise fiscal, das relações econômicas e sociais e do aparelho do Estado e, externamente, pelo esgotamento da liquidez internacional, pela dívida externa e pelo realinhamento dos blocos geopolíticos. Politicamente, deu-se a distensão lenta e gradual que culminou no processo de transição democrática do regime autoritário para um pacto estruturado na definição de um novo padrão de desenvolvimento. Este pacto deveria combinar crescimento com distribuição, e implicava a elaboração de novo arcabouço jurídico – uma nova Constituição – e a explicitação de um outro padrão de política social expresso no discurso da superação da dívida social acumulada nos governos autoritários. Esse pano de fundo econômico e político determinou os rumos das políticas de saúde e fez emergir na arena sanitária novos sujeitos sociais portadores de inte- resses e visões de mundo que foram conformando o projeto sanitário brasileiro. Nos anos 70, coincidindo com a emergência na cena internacional da proposta da atenção primária em saúde, decodificada, em nossa prática social, como atenção primária seletiva, surgiram os primeiros projetos-piloto de medicina comunitária. Essas experiências desaguaram num programa de medicina simplificada, o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento no Nordeste, PIASS, que, iniciando-se pelo Nordeste, alcançou abrangência nacional em 1979. O processo de democratização, ao colocar na arena política projetos diferen- ciados com seus respectivos grupos de interesse, fez com que a discussão penetras- se no poder legislativo. Nesse sentido, constituiu marco importante a realização do I Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, em Brasília. Paralelamente, resgataram-se, em outra dimensão qualitativa, as proposições do movimento municipalista, expressas na III Conferência Nacional de Saúde, rea- lizada em 1963. Com base em algumas experiências de municipalização começa- ram a suceder-se os encontros nacionais de Secretários Municipais de Saúde. Os primeiros anos da década de 80 foram marcados pela eclosão da crise da Previdência Social, que se refletiu em três vertentes principais:6 a crise ideológica, o PREV-SAÚDE; a crise financeira; e a crise político-institucional, o CONASP. O Plano do CONASP colocou como alvo a integração das ações de saúde mas desdobrou-se, na prática, em vários projetos racionalizadores, sendo que um deles, o Plano de Racionalização Ambulatorial, levou à proposição das Ações Integradas de Saúde, AIS. 6 OLIVEIRA, J.A. & TEIXEIRA, S.M.F. Op. Cit. (5), p. 269-301.
  • 5. 49 Texto de apoio/Unidade 1 As AIS, implantadas em 1983 como um programa de atenção médica, adqui- riram, a partir do fim do regime autoritário, na Nova República, um desenho estra- tégico de co-gestão, de desconcentração e de universalização da atenção à saúde. Importa salientar que as AIS modificaram-se, qualitativamente, a partir de ações intestinais dentro da instituições propositadamente preparada para susten- tar o modelo médico-assistencial privatista, o INAMPS. Em março de 1986, ocorreu o evento político-sanitário mais importante da década, a VIII Conferência Nacional de Saúde, para o qual confluiu todo o movi- mento encetado desde o início dos anos 70. Essa conferência difere das demais, até então realizadas, por duas caracterís- ticas principais. Uma, o seu caráter democrático, pela significativa presença de milhares de delegados, representantivos de quase todas as forças sociais interessa- das na questão saúde. Outra, sua dinâmica processual, que se iniciou por conferên- cias municipais, depois estaduais, até chegar ao âmbito nacional. A VIII Conferência Nacional de Saúde, que teve desdobramento imediato num conjunto de trabalhos técnicos, desenvolvidos pela Comissão Nacional da Reforma Sanitária, passou, com sua doutrina, expressa em seu relatório final, a constituir-se no instrumento que viria a influir de forma determinante em dois processos que se iniciaram, concomitantemente, em 1987: um, no Executivo, a implantação do Sis- tema Unificado e Descentralizado de Saúde, o SUDS; outro, no Congresso Nacio- nal, a elaboração da nova Constituição Federal. O SUDS avançou para a desconcentração estadualizada da saúde e da municipalização dos serviços. Ao mesmo tempo, no Congresso Nacional, construía-se, pelo consenso possível das forças sociais aí representadas, o desenho constitucional da saúde. De fato, a Constituição de 1988 incorporou um conjunto de conceitos, princí- pios e diretivas extraídos da prática corrente e hegemônica, mas reorganizando-os na nova lógica referida pelos princípios da reforma sanitária. A saúde na Constituição é definida como resultante de políticas sociais e econômicas, como direito de cidadania e dever do Estado, como parte da seguridade social e cujas ações e serviços devem ser providos por um Sistema Único de Saúde, organizado segundo as seguintes diretrizes: descentralização, mando único em cada esfera de governo, atendimento integral e participação comunitária. Ao mesmo tempo, o Art. 199 consagra a liberdade da iniciativa privada. Estava criado, constitucionalmente, o Sistema Único de Saúde, que veio a ser regulamentado pelas Leis 8.080, de 19 de setembro de 1990 e 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Essas leis expressaram as conquistas contidas na Constituição, mantendo e aprofundando as suas ambigüidades mas, também, reiterando, mais operativamente, os princípios da reforma sanitária incorporados na Carta Magna. Este desenho constitucional e infraconstitucional moderno, no campo da saú- de, ocorria coetaneamente com o avanço inexorável de uma crise fiscal e política
  • 6. 50 CADRHU do Estado, que sinalizava o esgotamento da estratégia nacional-desenvolvimentista e da coalização sociopolítica que a sustentou durante os anos de esforço industrializante e de fracassos sociais. Desse modo, tratou-se de impor novas res- ponsabilidades a um Estado alquebrado e incapaz de reverter o quadro social gera- do anteriormente e exponenciado pela crise. 7 Esse quadro de crise do Estado é determinante do que se convencionou deno- minar de “universalização excludente”, 8 em que a expansão da universalização do sistema de saúde veio sempre acompanhada da exclusão de segmentos sociais de camadas médias e de operariado qualificado. O sistema, finalmente, acomodou-se: a expulsão provocada pelo racionamen- to no sistema público foi compensada pela absorção desses segmentos num sistema privado, o sistema de atenção médica supletiva. Assim, no final dos anos 80, fir- mou-se, com a criação do SUS, um sistema plural de saúde, composto por três subsistemas: o subsistema público – SUS, o subsistema de atenção médica supleti- va e o subsistema de desembolso direto. O subsistema de desembolso direto, em que indivíduos e famílias pagam direta- mente de seus bolsos os serviços, portanto campo da medicina liberal, chegou a cobrir, no ano de 1986, 34% dos brasileiros com volume de faturamento de US$2,07 bilhões. O subsistema de atenção médica supletiva é um sistema privado, composto por cinco modalidades assistenciais. Ele cresceu vertiginosamente a partir da se- gunda metade da década de 80, chegando a cobrir aproximadamente 35 milhões de brasileiros. Finalmente, na base, o subsistema público, SUS, ao qual compete atender a grande maioria da população brasileira, em torno de 120 milhões de brasileiros e que se compõe dos serviços estatais diretamente prestados por União, estados e municípios e dos privados que, de alguma forma, estão pactuados com o Estado, seja por convênios, seja por contratos, recebendo recursos estatais pela prestação de serviços. Assim, o SUS inclui serviços estatais e serviços privados pactuados com o Estado. Na realidade, quando se fala em SUS, se quer referir, de fato, não a um siste- ma único, mas ao subsistema público único, parte de um sistema plural. Tentei deixar claro, então, nessa trajetória brevemente reconstruída, o caráter processual do SUS. Sua legalização se deu quando se institucionalizou na norma constitucional e infraconstitucional. Mais ainda, sua construção processual, impri- miu-lhe, também, legitimidade porque não se tratou de uma proposta tópica, estabelecida por um plano miraculoso desenhado por iluminados no recôndito dos gabinetes, mas, ao contrário, em algo que vinha sendo discutido amplamente na sociedade há longo tempo e que, em determinado momento, no Congresso Nacio- nal, adquiriu institucionalidade. 7 FIORI, J.L. Democracia e reformas: equívocos, obstáculos e disfunções. Brasília: OPS/OMS, 1991. mimeo, p. 7. 8 FAVERET FILHO, P. & OLIVEIRA, P.J. de A. A universalização excludente: reflexões sobre a tendência do sistema de saúde. Rio de Janeiro: UERJ/IEI, 1989.
  • 7. 51 Texto de apoio/Unidade 1 Muito diferente das propostas alternativas que vêm sendo apresentadas, qua- se todas, resultado de elaborações tecnocráticas e acolhidas por grupos de interes- se e apresentadas dentro da cultura nacional de planos mágicos. Nesse sentido, o SUS segue a melhor tradição de reformas democráticas, negociadas na sociedade. Portanto, o SUS é, a um tempo, um processo legal e legítimo e, também, um processo em marcha, portanto inacabado. O SUS muito além do SUS: a reforma do aparelho do estado Há um consenso na sociedade brasileira de que, sem profunda reforma do Estado não é possível superar a crise nacional. As divergências estão em como fazê-la e sobre que grupos vão cair os ônus dessa imprescindível reforma. Depois de crescer durante toda uma era de desenvolvimento, a uma média aproximada de 7% ao ano, a economia brasileira, nos anos 80, permaneceu, à exceção de breve período do Plano Cruzado, em permanente crise. Nessa década, a instabilidade e a crise estrutural expressaram-se por meio da deterioração da situação cambial, da aceleração inflacionária, da recessão e, prin- cipalmente, da ruptura de um padrão de crescimento apoiado na articulação soli- dária entre Estado, empresas multinacionais e empresas privadas nacionais. 9 Essa crise econômica rompeu, definitivamente, com o Estado nacional desenvolvimentista tal como concebido desde os anos 30 e sustentado, até então, por uma aliança liberal-desenvolvimentista de corte conservador. A crise do Estado brasileiro que começou a manifestar-se nos anos 70, agudizou- se na segunda metade dos anos 80 e materializou-se na crise fiscal, no esgotamento da estratégia econômica de substituição de importações e na deterioração do apa- relho do Estado. É, por isso, que se impõe uma reforma do Estado brasileiro. Uma reforma do Estado admite, pelo menos, dois modelos alternativos. Um, que propõe um Estado mínimo com privatização acelerada e incentivo a mecanismos de regulação mercadológica, o modelo neoliberal; outro, o modelo de reconstrução do Estado, que enfrenta o desafio do déficit público, implementa re- formas econômicas orientadas para o mercado, muda as políticas sociais para me- lhorar sua qualidade e moderniza o aparelho de Estado para aumentar sua capaci- dade de implementar as políticas públicas. Enquanto o primeiro modelo dá prioridade a uma redução do tamanho do Estado, o segundo, sem questionar tal necessidade, vai exigir um Estado mais forte na sua capacidade de regulação e na condução da política. É, nessa segunda perspectiva que, aqui, vou discutir a reforma do Estado brasileiro. 9 BRAGA, J.C. A instabilidade estrutural do capitalismo brasileiro: uma visão dos anos 50 aos 80. São Paulo: IESP/FUNDAP, 1989.
  • 8. 52 CADRHU A crise econômico-social requer medidas drásticas e o reconhecimento de que há, no país, um Estado demasiado grande e extremamente débil. E que, uma vez alcançada a estabilização macroeconômica, o papel do Estado é fundamental para garantir a retomada do desenvolvimento, pelas seguintes razões: 10 primeiro, por- que o aumento da inversão estatal é essencial para alavancar investimentos priva- dos; segundo, porque o setor estatal deve converter-se em melhor regulador; por fim, porque há necessidade premente de incremento dos gastos sociais em progra- mas para os grupos sociais postergados. É aí, nesse espaço da reforma do aparelho do Estado, que o SUS vai muito além do SUS. Porque é no espaço da saúde que o Estado Brasileiro tem realizado as reformas mais conseqüentes, todas ao abrigo do processo do SUS. Em uma ação reformista corajosa extinguiu-se o INAMPS, mega-instituição de 162.000 funcionários, com folha de pagamento anual superior a 1 bilhão de dólares, após um processo gradativo de transferência de recursos humanos, mate- riais e financeiros para estados e municípios. Essa instituição, ao longo do tempo, foi sendo formatada para constituir-se em locus privilegiado de relações incestuosas entre Estado e produtores privados. Essa catedral centralista, ademais, transformou-se em nicho de intermediações clientelistas e de manifestações de interesses corporativos, além de organização- símbolo de um modelo médico inviável. Portanto, o fim do INAMPS é caso emblemático de reforma do aparelho do Estado, em que se põe termo a um lugar privilegiado da administração pública burocrática. As resistências ao término do INAMPS inscreveram-se nas ordens dos interesses clientelistas e corporativos. A população brasileira não se deu conta da extinção, atestado eloqüente de sua pouca utilidade para os objetivos de saúde. Fruto do SUS, a extinção do INAMPS pode sinalizar o início de um processo de desarticulação desses interesses que se apresentam, com as mesmas distorções e vícios, em inúmeras instituições federais, centralizadoras e de utilidade contestável. Mais que isso, o processo do SUS transferiu da União para estados e municípios e, dos estados para os municípios, atribuições, pessoal, equipamentos e prédios, num esforço inaudito de descentralização. Mais recentemente, vem iniciando-se , ainda que timidamente, um processo de transferência da gestão semiplena a estados e municípios, o que permitiria chegar, mais adiante, a novo pacto federativo, com gestão plena de estados e municípios. Certamente que a reforma do aparelho do Estado é muito mais ampla do que o que está ocorrendo no setor saúde. Ademais, como discutirei no terceiro capítulo, esse processo tem muito que avançar e aprofundar, a fim de que o Estado brasileiro possa adquirir governança sobre as políticas de saúde. Mas o que já se fez é um bom começo. 10 FISHLOW, A. The Latin American State. J. Econ. Perspectives, 1990. 4:61-74.
  • 9. 53 Texto de apoio/Unidade 1 Daí que o SUS transcenda, em muito, a si mesmo, uma vez que demarca as possibilidades e os caminhos de uma imprescindível reforma do aparelho do Estado brasileiro, porque explicita os papéis federativos, redistribui as compe- tências, descentraliza os recursos, democratiza as decisões e procura romper com as clássicas relações de intermediação clientelistas ou corporativas que estão na medula do nosso Estado. Eis, aqui também, um processo em marcha. Algo muito distinto das inúmeras e inúteis reformas administrativas que se fazem no país. O SUS e os paradigmas de atenção à saúde Cresce a consciência de que a crise da saúde nada mais é que expressão fenomênica de causas mais profundas que têm raiz no modelo de atenção médica vigente, estruturado pelo paradigma flexneriano. Sair da crise implica, pois, necessariamente, transitar de um modelo de atenção médica, fruto do paradigma flexneriano, para um modelo de atenção à saúde, expressão do paradigma da produção social da saúde. É nesse sentido, que os reformistas ingleses falam, hoje de uma imprescindível “revolução silenciosa” no sistema de saúde que derive as preocupações da atenção médica para resultados medidos em melhoria da qualidade de vida da população. 11 Tais considerações permitem, mais uma vez, sustentar a pertinência do SUS como processo social de construção da saúde. Os constituintes de 1988 tiveram a sabedoria de captar a modernidade sanitá- ria e inscrevê-la no Art. 196 da Constituição Federal, que estabelece que a saúde é garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos. Demais, e reforçados pela legislação infraconstitucional, explicitaram, na lei, os princípios fundamentais do SUS, garantidores de um processo de produção social da saúde. Muito diferente das alternativas liberais propostas para a superação da crise da saúde no Brasil que, na contramão da história, estão limitadas a mera racionali- zação da atenção médica. Por conseqüência, essas propostas alternativas ao SUS, mais que aliviar a cri- se, constituirão, se implantadas, forte combustível que a alimentará, pelo reforço que dão ao paradigma flexneriano. Mais uma vez, impõe-se reiterar o caráter processual do SUS e a necessidade de dar tempo e condições a esse processo social que, por envolver mudança paradigmática, transformação cultural portanto, será, por natureza, de maturação lenta. 11 NICHOL, D. Oppening Adress. In: BENGOA, R. & HUNTER, D.J. New Directions in Managing Health Care. Leeds: Edwin Harmer, 1991. p. 9-11.
  • 10. 54 CADRHU O SUS como espaço social de construção de cidadania Há várias interpretações do conceito de cidadania. Numa visão mais jurídica, ex- pressa na definição aristotélica, cidadão “é aquele que tem uma parte legal na autoridade deliberativa e na autoridade judiciária da cidade”, isto é, cidadão é quem participa das decisões que regem a vida social, seja conformando-a, fazendo suas leis, seja materializando-a, executando suas leis. 12 Numa perspectiva mais sociológica, o conceito de cidadania faz apelo a desti- nos e projetos, historicamente compartilhados, a processos de conquistas coletivas e à igualdade, mas também ao princípio de alteridade, baseado na concepção da universidade cujo fundamento é o direito a ter direito. 13 A cidadania não é dada, como também nunca está acabada, pois constitui processo em permanente construção no cotidiano social. Historicamente, o concei- to de cidadania vem sofrendo alterações no curso da história. No século XVIII, significava pertença à sociedade nacional; no século XIX, referia-se ao direito de associação; e, no século XX, implica a reivindicação e a defesa dos direitos sociais. No Brasil, o direito de cidadania é visto como privilégio de poucos e concessão do Estado. Trazido para o campo das políticas sociais, as relações entre Estado e segmentos populares instituem um padrão de “cidadania regulada”, 14 em que os direitos dos cidadãos aparecem como benesse, sujeitos ao controle de uma buro- cracia que, por meio de normas, estabelece quem tem ou não direitos. Não obstante, no final dos anos 80, especialmente por meio do processo cons- tituinte, propõe-se o aprofundamento das condições estruturais democráticas, o fundamento da cidadania, com o resgate da dívida social. É preciso relevar que a cidadania só tem espaço para construir-se socialmente em ambiente democrático, o qual propicia a formação de atores sociais, 15 sujeitos em situação, portadores de demandas e reivindicações; portanto, muito mais que meros participantes sociais ou titulares de poder político. Daí que a questão cen- tral, para aperfeiçoamento das instituições democráticas, passa a ser como sujeitar o Estado ao controle de uma cidadania emergente. É, aí, que “o processo das polí- ticas sociais é também um processo de constituição de cidadania, em que os bene- fícios e os impactos, além do lado assistencial, só podem ser concebidos como pro- cesso fundamental de uma dialética de construção de cidadania”. 16 A democratização das políticas sociais exige ruptura com processos de inter- venção social centralizados. Nesse sentido, a descentralização emerge como ques- tão estratégica básica na construção de uma cidadania. 12 DALLARI, S.G. Brasil: o doente mental rumo à cidadania. São Paulo: CEPEDISA, mimeo, s.d. 13 ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. 14 SANTOS, W.G. Cidadania e justiça. Rio de Janeiro: Campus, 1979. 15 TOURAINE, A. As possibilidades da democracia na América Latina. Rev. Bras. Ciências Sociais, 1986. 1:5-15. 16 O’DONNEL, G. & OZLAK, O. Transição democrática e políticas sociais. Rev. Adm. Publ., 1987. 4:8-14.
  • 11. 55 Texto de apoio/Unidade 1 O cerne da questão é, de novo, como transformar as políticas sociais e de saúde, não em manipulação clientelista ou corporativista, mas num espaço ético e legítimo de garantia aos direitos da cidadania, ou de resposta eficaz do Estado às pressões democráticas. 17 Com base nessas reflexões, a legislação constitucional e infraconstitucional da saúde postula a saúde como direito de saúde sob princípios da descentralização e da participação da comunidade. Saúde é, por conseqüência, direito dos cidadãos e seus serviços, e suas ações devem ser providos de forma descentralizada e submetidas ao controle social. Des- sa forma, a proposta do SUS encontra-se como a melhor doutrina da construção da cidadania. Na prática social, esse exercício de cidadania tem sido realizado por meio da instituição dos Conselhos de Saúde, em que a sociedade vive a relação Estado/ População e constrói seu conceito de direito à saúde. Uma questão, então, se coloca: esta relação legítima entre Estado e sociedade civil deve ser legalizada e institucionalizada? A resposta está dada por Donato & Lobo 18 quando dizem que essa questão se refere à relação instituído/instituinte. “O movimento social não deve se transformar em uma personalidade jurídica, sob pena de reduzir sua particularidade e capacidade de interlocução a mais uma das entidades ou organizações sociais. É própria do movimento, sua capacidade instituinte. Todavia, o Conselho de Saúde, que não é nem pode ser o movimento, ainda que deva com ele manter uma relação orgânica, necessita ser institucionalizado, a fim de cons- tituir uma regularidade no fluxo decisório da instituição. Em outras palavras, necessi- ta constituir um sujeito coletivo regular ou contínuo com delegação de autoridade para poder influir na gestão e produção de políticas de saúde”. Na sua curta existência, o SUS tem estimulado o controle social dos serviços de saúde mediante a criação e o desenvolvimento de Conselhos Estaduais, Munici- pais, Distritais e Locais de Saúde. Dessa forma, têm surgido, em inúmeros municí- pios brasileiros, esses conselhos que, de modo mais ou menos consciente, começam a controlar o sistema de saúde. Há quem estime que, hoje, há mais conselheiros municipais de saúde que vereadores em nosso país. Ainda que, em muitos lugares, esses conselhos sejam motivo de distorções partidárias, clientelistas ou corporativas, o resultado global é positivo e aponta para um movimento democratizador na saúde, sem precedentes em nenhum outro espaço social da vida nacional. Algumas experiências municipais avançam para propiciar a capacitação dos conselheiros mediante cursos regulares e de prover, de forma sistemática, as infor- mações necessárias para o exercício do controle social da saúde. 17 BOLDSTEIN, R.C. de A. Assistência médica na agenda pública. In: BODSTEIN, R.C. de A. (org). Serviços locais de saúde: construção de atores e políticas. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1983. p. 34. 18 DONATO, A. F. & LOBO, E. Conselhos Municipais de Saúde. São Paulo. Trabalho preparado para a OPS/OMS, Representação do Brasil, 1994, mimeo. p. 8.
  • 12. 56 CADRHU Este é, também, um processo de lenta maturação mas que acompanha uma das tendências universais das reformas sanitárias – a de estabelecer o controle da cidada- nia sobre os sistemas de saúde. É preciso avançar muito mais: na melhoria da quali- dade dos conselhos de saúde e de sua representatividade; no aperfeiçoamento da ação do Ministério Público para garantir o preceito constitucional da relevância pú- blica das ações e serviços de saúde; na presença de representantes da população nos conselhos administrativos das unidades de saúde, estatais ou de utilidade pública; na introdução dos cidadãos como co-decisores nos conselhos corporativos (Conselhos de Medicina, Odontologia, Farmácia, Enfermagem, etc.); na criação de ouvidorias independentes em todas as instituições pactadas com o SUS, etc. Mas é inegável que o SUS vem constituindo-se num espaço privilegiado de construção de cidadania. O SUS na prática O caos da saúde Sem pretender negá-las, as críticas que fazem ao SUS decorrem de uma análise superficial das causas do que vem sendo denominado de “caos da saúde”. Em realidade, trata-se de uma crise dos serviços de atenção médica, mais agudamente manifestada na desorganização dos hospitais e dos ambulatórios, em que se mis- turam ingredientes perversos: filas, atendimento desumanizado, pacientes nos corredores, mortes desnecessárias, grevismo crônico etc. São problemas indiscutíveis mas que não surgiram como conseqüência do SUS; ao contrário, constituem problemas históricos em nosso país e, como já mencionei, são, de um lado, reflexos da crise do Estado brasileiro e, de outro, expressão localiza- da de crise universal do paradigma flexneriano da atenção médica. Certamente que esses problemas agravaram-se em virtude da contempo- raneidade do SUS com brutal e rápida diminuição de seu financiamento, no início de sua implantação. No primeiro ano de existência do SUS, 1989, o gasto público federal em saúde foi da ordem de US$ 11,3 bilhões, o que representou gasto per capita/ano de US$ 80,32. A partir daí, esses gastos caíram para US$ 9,4 bilhões em 1990, para US$ 7,8 bilhões em 1992, até atingirem, em 1993, US$ 7,5 bilhões. Isso significa que, no período crítico de implantação do SUS, os gastos federais, res- ponsáveis por mais de 70% dos gastos públicos totais em saúde reduziram-se em 4,8 bilhões de dólares. No tocante ao gasto público total per capita/ano (soma de gastos federais, estaduais e municipais) a queda foi de US$ 99,26 em 1989 para US 65,11 em 1993. 19 Cabe acrescentar que essa brutal queda veio acompanhada 19 MÉDICI, A. C. & MARQUES, R. M. Saúde: entre gastos e resultados. São Paulo: IESP/FUNDAP, 1994. mimeo.
  • 13. 57 Texto de apoio/Unidade 1 da instabilidade de fontes e fluxos de financiamento, o que agravou, extrema- mente, um quadro, em si, já dramático. Tudo isso, junto com a incorporação ao SUS de milhões de brasileiros, resultado da universalização do sistema. Por uma série de razões jurídicas e políticas, a saúde ficou sem fontes estáveis de financiamento e passou a depender, cada vez mais, do combalido caixa do Te- souro Federal, num momento de estabilização econômica, em que a eliminação do déficit público constituía a prioridade de governo. Como conseqüência, o fluxo financeiro do Tesouro para o Ministério da Saúde e, deste, para os prestadores públicos e privados, tornou-se completamente irregu- lar, num momento de altíssima inflação. Isso determinou uma diferença entre re- cursos devidos e pagos, da ordem de 35,2% a menos, uma perda de US$ 2,3 bilhões somente em recursos de AIH e UCA, no ano de 1993. 20 Cabe revelar que enquanto os recursos diminuíam violentamente, a produção de serviços aumentava quase na mesma proporção. Como exemplo, as internações hospitalares do SUS cresceram de 11,5 milhões em 1989 para 14,7 milhões em 1994. 21 Os problemas de financiamento do SUS e a dificuldade de governança causa- da pelas incertezas dos fluxos financeiros constituíram fator perturbador para implementação de um processo de mudança do sistema de saúde no País. A esse fator econômico devem somar-se as turbulências política e moral vividas no Gover- no Collor. A crise da saúde brasileira carrega as dimensões de uma crise universal e da singularidade nacional, apresentando, contudo, ingrediente próprio: carga de emo- ção muito forte, contida numa visão fenomênica da crise e normalmente referida como o “caos da saúde”. Não há de se negar o óbvio: existe grave crise na atenção médica, constatável especialmente nos hospitais e nos ambulatórios que atendem urgências e emergên- cias, nas grandes e médias cidades brasileiras. Mas, também, há de se concordar que a mídia nacional cria um “aqui, agora” sanitário por onde se vem construindo, no imaginário social, a idéia do caos da saúde. A área da saúde é campo privilegia- do para produção de “fatóides”, expressão cunhada para expressar pseudo-aconte- cimentos, polêmicas ridículas, escândalos sem importância ou eventos espetaculosos que sustentam o cotidiano da mídia. Esse gosto pelos fatóides parece integrar os costumes do jornalismo brasileiro contemporâneo. Isso é dito por Clóvis Rossi: 22 “Quem cobriu o Brasil de 1984 para cá [...] tomou doses maciças de emoções fortes diretamente na veia... agora que a democracia vai se tornando uma rotina [...] os viciados em emoções fortes estamos 20 MINISTÉRIO DA SAÚDE/SAS. Diferença entre recursos devidos e pagos por serviços de saúde prestados dentro do SUS. Brasília, 1994. mimeo. 21 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Definição de recursos adicionais necessários às atividades a serem desenvolvi- das até dezembro de 1995 pelo Ministério da Saúde. Brasília, 1995. mimeo. 22 ROSSI, C. Autocrítica. Folha de São Paulo, p. 1.2, 12 de novembro de 1994.
  • 14. 58 CADRHU passando pela típica crise de abstinência...” A maneira de atuar da mídia faz com que a notícia se transforme em espetáculo e que, por conseqüência, vá afastando-se da ordem do jornalismo para aproximar-se da dramaturgia. Comparo, para ilustrar, as repercussões, na mídia, de dois eventos contempo- râneos: a entrega, pelo diretor da OPS, ao presidente da República, em 12 de outu- bro de 1994, da certificação de erradicação da poliomielite e, algumas horas de- pois, o parto espetacular acontecido na pia do Hospital Souza Aguiar, no Rio de Janeiro. O primeiro – coroamento de esforço de anos a fio de trabalho solidário de instituições internacionais, governo e sociedade civil – recebeu, apenas, discreta referência nos jornais; o segundo, ampla e indignada cobertura em todos os meios de comunicação. E, veja, a cada ano, o SUS propicia três milhões de partos hospita- lares, uma cobertura fantástica que, contudo, nada tem de espetacular. Além disso, a mídia não noticia as excelentes experiências desenvolvidas em vários municípios brasileiros, em que a crise da saúde foi substituída por atenção integral à família, humanizada, contínua, feita nas casas, resolutiva, com satisfação de usuários e profissionais de saúde e que impacta favoravelmente os níveis de saúde, especialmente os de mortalidade infantil e materna. Itapiúna, Quixadá e Iguatu, no Ceará; Campina Grande, na Paraíba; Camarajibe e Olinda, em Pernambuco; Niterói, no Rio de Janeiro; Curitiba, no Paraná; Joinville, em Santa Catarina; o programa de saúde comunitária do Grupo Hospitalar Conceição, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, e muitas outras. São alguns exemplos dessa nova forma de prestar serviços de saúde que se vai espalhando pelo país. Só que como disse uma repórter da Televisão Globo, ao visitar o programa de médico de família de Niterói, “isso não tem interesse jornalístico”. E foi atrás de emoções fortes no hospital de emergência da cidade. Assim, a percepção fenomênica da crise da saúde brasileira e sua vinculação ao SUS é, em parte, construída pela forma como a mídia seleciona e difunde os fatos relativos ao sistema de saúde. Nesse sentido, é fundamental que se elabore e implemente, agressivamente, uma política de comunicação social do SUS que visa- rá a comunicar, a diferentes públicos, com absoluta transparência e sem triunfalismos, as dificuldades, os erros e os êxitos do Sistema Único de Saúde, bem como a infor- mar os cidadãos sobre seus direitos e deveres no campo da saúde. A conjunção desses fatores econômicos, políticos, comunicacionais e sanitári- os, criou ambiente muito desfavorável à implantação do Sistema Único de Saúde, nos seus anos iniciais, e foi responsável por muitas dificuldades que estão na base do denominado “caos da saúde”. Esse caos, referido cotidianamente, não parece refletir-se, com a mesma in- tensidade, em pesquisas de opinião pública. A Pesquisa de Condições de Vida, 23 realizada pela Fundação Seade, entre março a outubro de 1994, em aproximada- mente 4.000 domicílios da Região Metropolitana de São Paulo – considerada uma 23 COSTA, O. V. & AUGUSTO, M.H.O. Uma escolha trágica: saúde ou assistência médica? São Paulo em Perspectiva, 1995. 9:94-100.
  • 15. 59 Texto de apoio/Unidade 1 das mais caóticas do ponto de vista dos serviços de saúde – revelou que 28,2% dos entrevistados procuraram atendimento nos trinta dias que antecederam a entrevis- ta, o que significa que, mensalmente, de cada quatro habitantes dessa região me- tropolitana, quase um terço é atendido pelos serviços de saúde. Destes, 45% possu- em planos privados de saúde e 55% são atendidos pelo SUS. Uma comparação entre os usuários do SUS e dos Planos de Saúde mostra diferença significativa de tempo de espera mediano (60 minutos para o usuário SUS e 20 minutos para o usuário dos Planos de Saúde) e para a forma de agendamento (3,8% de agendamento telefônico para o usuário SUS e 59,8% para o usuário dos Planos de Saúde). O mesmo não ocorre em relação à qualidade do atendimento em que, em intervalo de 0 a 10, o atendimento SUS teve nota 8 e o atendimento Planos de Saúde teve nota 9. Quanto à capacidade de resolução, na perspectiva do usuário, a resolução total foi de 46,5% para o usuário SUS e 52,5% para o usuário dos Planos de Saúde; no relativo à resolução parcial, ela foi de 39,3% para o usuário SUS e 38,5% para o usuário dos Planos de Saúde. Esses dados estão longe de indicar uma percepção caótica dos serviços de saúde ofertados pelo SUS, ante os oferecidos pelo Sistema de Atenção Médica Supletiva. Os resultados mostram que os Planos de Saúde são mais confortáveis mais que não há diferença significativa na percepção de indica- dores de qualidade e de resolubilidade. Os resultados favoráveis do SUS Essa visão fenomênica da crise da saúde obscurece alguns resultados favoráveis indiscutíveis no campo da saúde pública. É preciso, portanto, realçar – além das virtudes já apontadas anteriormente neste trabalho – alguns resultados positivos da saúde pública brasileira que foram obtidos ou consolidados durante o período de vigência do SUS. 24 No campo das doenças imunopreveníveis, além da erradicação da poliomieli- te, há outros resultados expressivos. O sarampo passou de uma taxa de incidência de 42,8 por 100.000 habitantes em 1990 para 0,2 por 100.000 em 1993, uma redução de 99,9%; os coeficientes de incidência de difteria por 100.000 habitantes, apesar de ainda altos, apresentam tendência declinante, transitando de 0,50 em 1989 para 0,19 em 1993; o coeficiente de incidência de coqueluche por 100.000 habitantes declinou de 9,81 em 1989 para 2,42 em 1993; a taxa de incidência de tétano acidental baixou de 1,22 por 100.000 habitantes em 1989 para 0,77 por 100.000 em 1993; finalmente, a mesma tendência de queda nos casos e nos óbitos por tétano neonatal é observada no período de 1989 a 1993. 24 Os dados do Ministério da Saúde estão em: MINISTÉRIO DA SAÚDE/FNS/CENEPI/CDI. Relatórios de grupos de trabalho. Brasília, 1994. mimeo. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Plano de ação 1995/99. Brasília, mimeo, 1995; MINISTÉRIO DA SAÚDE/FNS/DO/CCDTV. Morbimortalidade por doenças transmiti- das por vetores. Brasília, 1994. mimeo; ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Hanseníase hoje. Bol. Eliminação da Hanseníase nas Américas, 1995. 1(3):2-3.
  • 16. 60 CADRHU No que concerne às endemias, nada obstante a persistência de situações graves como malária, alguns avanços têm sido notados. Mesmo na hanseníase, em que o Brasil saiu atrasado em relação a outros países, a prevalência por 10.000 habitantes caiu de 18,5 em 1990 para 10,5 em 1994; no mesmo período, a cober- tura da poliquimioterapia subiu de 20,08% para 64,0%. As atividades de controle vetorial da doença de Chagas permitiram redução de mais de 70% nas áreas de infestação, com eliminação do Triatoma infestans em extensas regiões do país. Tem havido constante e continuado decréscimo da mortalidade por essa enfermi- dade o que, por sua vez, é indicador indireto de redução da morbidade. Os casos de internação hospitalar por doença de Chagas diminuíram de 2.177 em 1989 para 1.336 em 1993. Também é nítida a redução da freqüência de formas graves de esquistossomose e da mortalidade causada por essa doença que diminuiu de 0,7/100.000 habitantes em 1980 para 0,3/100.000 em 1991. A raiva humana teve seu coeficiente de incidência reduzido de 0,15/100.000 habitantes em1980 para 0,01/100.000 em 1994. As ações no campo da saúde mental, realizadas pelo SUS, são significativas. Até 1991 existiam, no País, 86.000 leitos psiquiátricos que consumiam 7,5% das despesas com internação do SUS. O tempo médio de internação era de cerca de cem dias e os hospitais psiquiátricos eram o único recurso terapêutico disponível. Uma série de medidas tomadas pelo SUS permitiram, já em 1993, diminuição de 4.000 leitos psiquiátricos em hospitais e a abertura de 2.000 leitos de psiquiatria em hospitais gerais. Foram criados vários centros de atenção psicossocial, os quais oferecem atividades terapêuticas, de lazer e de recuperação. Além dos resultados humanos e técnicos dessas mudanças, os gastos com internação passaram de 7,5% sobre o gasto total de internações do SUS, em 1991, para 6,9% em 1993. Também cabe mencionar o programa nacional de auto-suficiência em imunobiológicos. Esse programa, que se iniciou em outubro de 1985, continuou seu desenvolvimento normal durante o período do SUS. Por meio dele, nosso País obteve auto-suficiência na produção nacional de vacina contra a febre amarela, vacina BCG, vacina anti-rábica canina, vacinas contra meningites A e C, vacina dupla adulto, vacina anti-rábica humana, febre tifóide, toxóide tetânico e soros antipeçonhetos. Uma incursão pela saúde materno-infantil, no Estado do Ceará, no período de 1987 a 1994, 25 portanto em tempo de SUS, permitiu constatar: a cobertura pré- natal variou de 62% a 82%; a de partos hospitalares de 68% a 88%; a de parto assistido por médico, de 36% para 56%; a desnutrição em crianças de 0 a 2 anos medida por peso/idade, de 13% a 9%; o acompanhamento do crescimento de cri- anças de 63% a 94%; o aleitamento materno exclusivo em crianças de 0 a 3 meses, de 2% a 15%; a duração mediana do aleitamento materno, de 3,7 meses a 6,9 25 SECRETARIA DE SAÚDE DO CEARÁ/UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ. Terceira pesquisa de saúde materno-infantil do Ceará. Fortaleza, 1995. mimeo.
  • 17. 61 Texto de apoio/Unidade 1 meses; a cobertura vacinal por BCG, de 58% a 96%; a cobertura vacinal por DPT, de 50% a 88%; a cobertura vacinal de sarampo, de 65% a 88%; o uso do soro oral, de 22% a 52%; a mortalidade infantil, de 75 por mil a 58 por mil. Na visão processual de implantação do SUS, eventos muito promissores estão ligados ao movimento de municipalização da saúde, cujos resultados, seja em descentralização democratização, seja no aumento da eficácia e eficiência do siste- ma, são incontestáveis. Demais, já é possível identificar alguns resultados da municipalização, seja no aumento da produtividade, seja na melhoria dos níveis de saúde. Pesquisa feita para a Organização Pan-Americana da Saúde, no Estado do Ceará, mediante amostra de 83 municípios de diversos tipos e tamanhos, demons- trou que a produtividade média das consultas médicas nos municípios municipalizados foi 21% maior que nos não-municipalizados. Além disso, consta- taram-se quedas nas taxas de mortalidade infantil nos municípios municipalizados, em relação aos não-municipalizados, que variaram de 16% a 26%, conforme a situação sócio-sanitária dos municípios. 26 Esses dados do Ceará, obtidos mediante pesquisas avaliativas, realizadas com rigor científico, mostram tendência de nítida melhoria dos indicadores de saúde que, nem de longe, poderiam expressar situação de caos da saúde, cotidianamente reverberada na mídia daquele estado. Outro cenário: e se não houvesse o SUS? As críticas ao SUS resultam, como mencionado, de sua identificação com o “caos da saúde”. Uma análise mais neutra exigiria, além das considerações já realizadas, a consideração de um cenário alternativo em que o SUS não tivesse existido. Esse cenário apresentaria situação pretérita em que o sistema público perma- neceria clivado em dois subsistemas: um para os integrados economicamente, aten- didos em suas necessidades médicas, por um subsistema previdenciário, por meio do INAMPS; outro, para os não-integrados, que receberiam serviços de organismos estatais, federais, estaduais e municipais. Por si só, esse sistema público dual constituiria grave infração às normas de- mocráticas da saúde como direito de cidadania. O princípio da eqüidade, pilar de uma sociedade democrática, estaria rompido, com o privilegiamento de recursos públicos para os integrados economicamente e a oferta da medicina simplificada ou da filantropia para os pobres. Para se ter idéia dessa situação, no ano de 1987, enquanto as internações por 100 brasileiros não-integrados era de 7,56, para a população previdenciária alcançavam 36,16. 27 26 SOARES, S.M.S. et al. Mortalidade infantil e municipalização da saúde no Estado do Ceará. Fortaleza, 1994. mimeo. 27 MINISTÉRIO DA SAÚDE. SUS não faz crescer as internações. Boletim da SAS, 1994. 1:10.
  • 18. 62 CADRHU Se não bastasse essa transgressão democrática, a grave crise do Estado brasi- leiro, que deteriorou as estruturas estatais, teria desorganizado os dois subsistemas. A crise da Previdência Social fez com que, em anos recentes, todos os recursos arrecadados mediante a contribuição sobre folha de salário fossem destinados, ex- clusivamente, ao pagamento de benefícios, não sobrando recursos para a saúde. Mantida a atenção médica previdenciária de onde sairiam os recursos para custeá- la? Isso sem discutir a brutal ineficiência alocativa dos recursos gastos em atenção médica, objetivo único da medicina previdenciária. De outro lado, esse cenário significaria um sistema estatal para os pobres exercitado, com alto grau de centralização, pelos governos federal e estaduais, com participação residual dos municípios. Esse desenho institucional, se tivesse perma- necido, seria desastroso, tendo em vista a extrema desorganização, para a presta- ção de serviços públicos, dos organismos federais e estaduais. Além de deteriora- dos em sua capacidade de ofertar serviços, tais instâncias reduziram, no período de existência do SUS, os recursos que investiam em saúde. Basta mencionar, como exemplo paradigmático, a profunda crise de identidade vivida pelas Secretarias Estaduais de Saúde que, mesmo desvencilhando-se da prestação dos serviços bási- cos de saúde, repassados aos municípios, não encontram sua governança. Como conseqüência, os sistemas locais de saúde que explodiram no país, como fruto do processo de municipalização, não teriam existido, nem os municípios teriam incrementado, como fizeram, seus gastos em saúde. Esse colchão social criado pelo SUS, nas municipalidades, constituiu, indiscuti- velmente, mecanismo atenuador da grave crise sanitária no Brasil. Ele não teria exis- tido no cenário de inexistência do SUS. Quem ganhou com o SUS? O Sistema Único de Saúde instituiu-se com base no princípio da universalidade. Por meio dele, incorporaram-se como cidadãos da saúde, possuidores de direitos a serem garantidos pelo Estado, a partir da criação do SUS, 60 milhões de brasileiros, até então submetidos a uma atenção estatal de medicina simplificada ou à filantropia. Ainda que se deva reconhecer o caráter peculiar da universalização da saúde no Brasil – a “universalização excludente” – que se fez junto com a queda na quali- dade média da atenção médico-hospitalar, é inegável que para os milhões de despossuídos que adquiriram direitos e livraram-se da indigência, os ganhos, tanto do ponto de vista dos serviços, quanto da perspectiva psicossocial, são inegáveis. Bastaria perguntar a um cidadão, integrado pelo SUS, se gostaria de voltar à condi- ção de recorrer, como indigente, aos serviços dos hospitais filantrópicos. A contradição está em que esses brasileiros que ganharam com o SUS não estão socialmente organizados e são destituídos de voz política. Em outros termos, os ganhadores do SUS são maioria silenciosa que conta pouco no jogo político e na
  • 19. 63 Texto de apoio/Unidade 1 formação de opinião. Alcançaram, com o SUS, cidadania na saúde, mas permane- cem subcidadãos políticos. Enfim, os ganhadores não contam porque ninguém lhes ausculta, ninguém lhes dá ouvido. Conclusões De tanto repetir-se, é já truísmo dizer-se que o SUS é uma idéia generosa, mas que não se materializou na prática social. Daí, ser comum a expressão “o SUS não aconteceu”, encontrada mesmo entre os defensores da Reforma Sanitária. Pior, ainda, é constatar que, com muita freqüência, a proposta do SUS é identificada, neste momento, como causa principal da crise da saúde no Brasil. Boa parte dessa crítica está sustentada por grupos de interesses que pretendem pluralizar o sistema único mediante eliminação da universalidade, restringindo-o a populações não-integradas economicamente, um medicaid à brasileira, ou mesmo substituí-lo por um sistema alternativo baseado na racionalidade do mercado. Contudo, é forçoso reconhecer que há, também, uma percepção fenomênica do denominado “caos da saúde”, por grandes contingentes populacionais, seja por experiências vivenciadas, seja pelas reverberações dos problemas da assistência médico-hospitalar na mídia, que levam a um crescente questionamento do SUS. Está, assim, preparado o terreno para a condenação definitiva do SUS e para propostas miraculosas, bem ao gosto nacional, que levem a mudanças jurídico- legais, que deveriam criar outro modelo sanitário. Simploriamente, pretende-se superar a questão da crise da saúde – que envol- ve graves problemas estruturais e conjunturais – por meio de mudanças na legisla- ção constitucional e infraconstitucional. Esse perigoso senso comum que se vai conformando é falacioso e assenta-se no desconhecimento de que a crise da saúde tem caráter universal que deriva do esgota- mento do paradigma de atenção médica, e que se manifesta, também, no Brasil. Dessa forma, as aparentes soluções apresentadas – todas referenciadas pelo modelo médico esgotado – ao desconhecerem esse componente estrutural da crise, mais aprofundarão que resolverão o problema. Demais, toma-se o SUS como evento discreto, criado pela Constituição de 1988, negando-lhe a característica de um processo social que, apenas, tem, no tempo constituinte, um momento de consolidação jurídica, mas que continua sen- do construído no cotidiano da prática social. Conjunturalmente, mascara-se o fato mais relevante, o da coetaneidade do SUS com a mais grave crise do Estado brasileiro – uma crise orgânica do Estado – que desarticulou o aparato estatal e se manifestou, mais visivelmente, numa crise fiscal que repercutiu, catastroficamente, no financiamento do SUS, no período crítico de
  • 20. 64 CADRHU implantação. Ao mesmo tempo, desconhecem-se os êxitos incontestáveis do novo sistema e se lhe transforma em espaço social privilegiado de constituição das notíci- as-espetáculo. Por tudo isso, há de se analisar o SUS com maior objetividade, entendendo-o como processo em construção permanente que visa, a médio e longo prazos a uma mudança do paradigma de atenção à saúde e a uma busca de um sistema de saúde eficaz, eficiente, de qualidade e eqüitativo. Para tal, é fundamental reconhecer que o desenho constitucional de 1988 é correto e moderno, mas que carece de condições e tempo para afirmar-se social- mente. E entender que seu desenvolvimento conseqüente vai depender da formu- lação estratégica de uma agenda para a saúde a ser perseguida, tenazmente, com muito esforço e por muitos anos. O Brasil já não suporta milagres e milagreiros, articuladores de soluções as- sentadas em diagnósticos ideológicos ou interessados.