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Texto 4 | O observador imparcial…, in “Da República”, de Fernando Pessoa
O observador imparcial chega a uma conclusão inevitável: o país
estaria preparado para a anarquia; para a República é que não estava.
(…)
Bandidos da pior espécie (muitas vezes, pessoalmente, bons
rapazes e bons amigos – porque estas contradições, que aliás o não
são, existem na vida), gatunos com seu quanto de ideal verdadeiro,
anarquistas-natos com grandes patriotismos íntimos, de tudo isto
vimos na açorda falsa que se seguiu à implantação do regime a que,
por contraste com a Monarquia que o precedera, se decidiu chamar
República.
A Monarquia havia abusado das ditaduras; os republicanos
passaram a legislar em ditadura, fazendo em ditadura as suas leis
mais importantes, e nunca as submetendo a cortes constituintes, ou a
qualquer espécie de cortes. A lei do divórcio, as leis de família, a lei
de separação da Igreja do Estado — todas foram decretos ditatoriais,
todas permanecem hoje, e ainda, decretos ditatoriais.
A Monarquia havia desperdiçado, estúpida e imoralmente, os
dinheiros públicos. O país, disse Dias Ferreira, era governado por
quadrilhas de ladrões. E a República que veio multiplicou por
qualquer coisa - concedamos generosamente que foi só por dois (e
basta) - os escândalos financeiros da Monarquia.
(…)
E o regime está, na verdade, expresso naquele ignóbil trapo que,
imposto por uma reduzidíssima minoria de esfarrapados morais, nos
serve de bandeira nacional – trapo contrário à heráldica e à estética
porque duas cores se justapõem sem intervenção de um metal e
porque é a mais feia coisa que se pode inventar em cor. Está ali
contudo a alma do republicanismo português – o encarnado do
sangue que derramaram e fizeram derramar, o verde da erva de que
por direito mental devem alimentar-se.
Este regime é uma conspurcação espiritual. A Monarquia, ainda
que má, tem ao menos de seu o ser decorativa. Será pouco
socialmente, será nada nacionalmente. Mas é alguma coisa em
comparação com o nada absoluto que a República veio (a) ser.

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