2. Sempre que os fatos ganham
velocidade, costumo comprar um
bloco de notas. Anoto frases, idéias,
intuições e deixo que se decantem
com o tempo.
3. Volto a elas, depois, para rejeitá-las ou
desenvolvê-las. A primeira frase que
me veio à cabeça foi a da vendedora
de flores que encerra um filme.
4. O pequeno bloco também tem idéias.
Por exemplo: comparar a ditadura
com o governo Lula. Uma neutralizou
o Congresso pelo medo; o outro, pelo
pagamento de mesada.
5. Ditadura e governo Lula compartilham
o mesmo desprezo pela democracia,
ambos violentaram-na, reduzindo o
Parlamento a uma ruína moral.
6. Os militares prepararam sua saída de
forma organizada. Nem muito
devagar, para não parecer
provocação, nem muito rápido para
não parecer que estavam com medo.
7. Já o núcleo duro do governo Lula
parece perdido, batendo cabeça, ou
melhor, enfiando-a na areia, sem
perceber que a polícia está chegando
e, daqui a pouco, alguém vai gritar na
porta do Planalto:
"Se entrega, Corisco".
8. Quando era menino e vivia em Juiz de
Fora, fazíamos rodas de
capoeira, bastante rudimentares -
confesso. Mas cantávamos: "A polícia
vem, que vem brava / quem não tem
canoa, cai n'água".
9. Tudo isso jorra aos borbotões na
minha caderneta. Anotei: chamar
alguém do "Guinness", o livro dos
recordes, para saber se algum
tesoureiro de qualquer partido do
mundo se desloca com batedores de
motocicleta e carros clones para iludir
perseguidores;...
10. ...se algum tesoureiro partidário se
desloca com jatos particulares,
semanalmente; se introduz no palácio
associação de empreiteiros que
receberam R$ 1,1 bilhão de dívidas.
11. Os militares batiam, davam choques e
insultavam na sessão de tortura, mas
vi muitos dizendo que me respeitavam
porque deixei um bom emprego para
combatê-los com risco de vida.
13. O PT queria que eu abrisse mão
exatamente da minha alma, e me
tornasse um deputado obediente,
votando tudo o que o Professor
Luizinho nos mandava votar.
14. Os militares jamais pediriam isso.
Desde o princípio, disseram que eu
era irrecuperável e limitaram-se à
tortura de rotina.
15. Jamais imaginei que seria grato aos
torturadores por não me pedirem a
alma. Não sabia que dias tão
cinzentos ainda viriam pela frente.
16. Que seria liderado por um homem que
achava que Maurício de Nassau era
um deputado de Pernambuco. Logo
eu, que sou admirador de um
deputado pernambucano chamado
Joaquim Nabuco.
17. Foram os anos mais duros de minha
vida. No meu caderno anoto frases e
indicações da semelhanças da luta
contra a ditadura e da luta contra este
governo, desde que comecei a criticá-
lo, com a importação de pneus
usados.
18. As pessoas têm suas carreiras, seus
empregos, sua racionalizações. É
preciso respeitá-las, atravessar o
deserto sem ressentimentos.
19. Agora, sobretudo, é preciso respeitar
o sofrimento dos vencidos. Outro
dia, quando me referi a um núcleo na
Casa Civil como um bando de ladrões
que atentava contra a
democracia, uma jovem deputada do
PT estremeceu.
20. Senti que não estava ainda preparada
para essas palavras cruas. E fui
percebendo pelas anotações que
talvez estejam aí, para o escritor, o
mais rico manancial de toda essa
crise.
21. Como estão as pessoas do PT? Como
se ajustam a essa nova realidade?
Que destino tomaram na vida?
22. Procuro não confundir, entre os que
ainda defendem o governo, aqueles
que são cínicos, cúmplices e os
outros, que apenas obedeceram as
ordens sob a forma da aplicação do
centralismo democrático.
23. Alguns defendem porque ainda não
conseguiram negociar com sua
própria dor. Não podem suportá-la de
frente. Mas terão de fazer algum
dia, porque, por mais ingênuos que
sejam, já perceberam que a mãe está
no telhado.
24. Vamos ter de encarar juntos essa
realidade. A grande experiência
eleitoral da esquerda latino-
americana, admirada por uma Europa
desiludida com Cuba e Nicarágua, a
grande novidade que verteu tintas...
25. ...atraiu sábios, produziu livros e
seminários, vai acabar na delegacia
como um triste fato policial de roubo
do dinheiro público e suborno de
parlamentares.
26. Só os que se arriscarem a ir até o
fundo dessa abjeção, compreendê-la
em todos os seus detalhes mórbidos,
têm chances de submergir para
continuar o processo histórico.
27. Por incrível que pareça, o Brasil
continua, e a vontade de mudar é mais
urgente do que em 2002 e 2006... Por
isso, proponho agora um curto e
eficaz trabalho de luto.
28. Anotação final: começaram o
espetáculo da CPI, secretárias e suas
agendas, ex-mulheres e suas mágoas,
vampiros, sanguessugas,
mensaleiros, arapongas, tesoureiros e
seus charutos, Vossa Excelência para
cá, Vossa Excelência para lá, sigilos
bancários, telefônicos, emocionais.
29. Viu, Duda, que cenas finais
melancólicas quando um mercador
tenta aplicar à complexidade da
política a singeleza do vendedor de
sabonetes?
30. Texto veiculado no jornal Folha de S.
Paulo, disponível na página
http://www.gabeira.com.br.
Trilha:
“Os Cinco Companheiros”, de Pixinguinha, do disco
“Pixinguinha-100 anos”, do CCBB-RJ.
Formatação de Ren@to Fonseca,
31. FIM
MELANCÓLICO?
Não,
Lulla enganou o povo...
www.gabeira.com.br