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1

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ
CÂMPUS MARINGÁ
CURSO DE LICENCIATURA EM FILOSOFIA

MARILZA BARRIOS DOS SANTOS

A ANGÚSTIA E O DESESPERO COMO FUNDAMENTO ONTOLÓGICO DA
EXISTÊNCIA HUMANA NO PENSAMENTO DE SÖREN KIERKEGAARD

MARINGÁ
2010
2

MARILZA BARRIOS DOS SANTOS

A ANGÚSTIA E O DESESPERO COMO FUNDAMENTO ONTOLÓGICO DA
EXISTÊNCIA HUMANA NO PENSAMENTO DE SÖREN KIERKEGAARD

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao
Curso de Licenciatura em Filosofia, da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná,
como requisito parcial à obtenção do título de
Licenciatura.
Orientador: Prof. Dr. José Aparecido Pereira.

MARINGÁ
2010
3

MARILZA BARRIOS DOS SANTOS

A ANGÚSTIA E O DESESPERO COMO FUNDAMENTO ONTOLÓGICO DA
EXISTÊNCIA HUMANA NO PENSAMENTO DE SÖREN KIERKEGAARD

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de Licenciatura em Filosofia, da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de
Licenciatura.

COMISSÃO EXAMINADORA

____________________________________________
Prof. Dr. José Aparecido Pereira
Pontifícia Universidade Católica do Paraná

_____________________________________________
Prof. Ms. Leomar Antonio Montagna
Pontifícia Universidade Católica do Paraná

_____________________________________________
Pe. José Moreira Silveira
Pós-Graduação em História - UEM

Maringá, ______de ________________de 2010.
4

A todos os que buscam, através de suas vidas,
uma existência autêntica, mesmo àquelas que
se encontram no abismo da angústia e do
desespero. A estes, desejo o brilho da
existência guiados pela fé, pela esperança e
pela liberdade.
5

AGRADECIMENTOS

À Deus, sentido único da minha existência, pela sua presença e pelo seu amor e sabedoria
infinita.

À minha família religiosa das Apóstolas do Sagrado Coração de Jesus, nas pessoas dos meus
Superiores; de modo especial a cada co-irmã que estiveram sempre ao meu lado
proporcionando estímulo e apoio necessário nesta caminhada.

Ao professor José Aparecido Pereira, que com paciência, dedicação, e atenção me ajudou com
sua orientação a chegar até aqui.

À todos os professores do curso de Licenciatura em Filosofia da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná, em especial ao professor e diretor do curso Leomar Antonio Montagna,
que através de seus ensinamentos e dedicação em sala de aula me ajudaram a crescer no
conhecimento.

Aos meus caríssimos colegas e amigos de sala, que por três anos percorremos juntos o árduo
caminho do saber filosófico.

Por fim, a todos que de algum modo, contribuíram para a construção e conclusão deste
trabalho e do curso de filosofia.
6

"Algum dia até, não somente os meus escritos,
mas a minha vida e todo o complicado segredo
do seu mecanismo serão minuciosamente
estudados."

Kierkegaard
7

RESUMO

O presente trabalho propõe uma reflexão acerca do existencialismo de Kierkegaard, por meio
de pesquisa bibliográfica, sobre os conceitos de angústia e desespero humano como
fundamento ontológico da existência no pensamento do filósofo. Com o intuito de
compreender como a angústia e o desespero constituem elementos para a existência autentica
realizamos esta pesquisa que está estruturada em três capítulos: no primeiro capítulo
delinearemos brevemente o contexto histórico e filosófico; no segundo capítulo elucidaremos
a sua crítica a teoria absoluta na linha filosófica hegeliana, prosseguindo daremos enfoque ao
conceito de indivíduo e existência como possibilidade. Dada esta compreensão, refletiremos o
conceito de angústia e sua pedagogia, e o desespero humano como doença para morte; no
terceiro capítulo daremos ênfase à fé como salto e a existência humana na relação com o
Absoluto. Tanto a angústia quanto o desespero são problemas existenciais muito reais, e são,
portanto, aspectos inerentes à condição humana, que através das possibilidades de escolha se
dá o salto pela fé marcada pela relação com o Absoluto.

Palavras-chave: Indivíduo. Angústia. Desespero. Fé. Absoluto.
8

RESUMEN

El presente trabajo propone una reflexión acerca del existencialismo de Kierkegaard por
médio de investigación bibliográfica, sobre los conceptos de angustia y desesperación humana
como fundamento ontológico de la existencia en el pensamiento del filósofo. Con el objetivo
de compreender como la angustia y la desesperación constituyen elementos para la existencia
autentica realizamos esta investigación que está estructurada en tres capítulos: en el primer
capítulo delinearemos brevemente el contexto histórico y filosófico; en el segundo capítulo
dilucidaremos su crítica la teoría absoluta de la línea filosófica hegeliana, prosiguiendo
daremos enfoque al concepto de individuo y existencia como posibilidad. Dada esta
comprensión, reflectaremos el concepto de angustia y su pedagogía, y la desesperación
humana como enfermedad para muerte; en el tercer capítulo daremos énfasis a la fe como
salto y la existencia humana en la relación con El Absoluto. Tanto la angustia cuanto la
desesperación son problemas existenciales muy reales, y son, por lo tanto, aspectos inerentes
a la condición humana, que a través de las posibilidades de elección se da el salto por la fe
marcada por la relación con El Absoluto.

Palabras clave: Individuo. Angustia. Desesperación. Fe. Absoluto.
9

SUMÁRIO

1INTRODUÇÃO................................................................................................................

9

2 KIERKEGAARD: VIDA, CONTEXTO HISTÓRICO E FILOSÓFICO................

13

2.1 VIDA E OBRAS............................................................................................................ 13
2.2 CONTEXTO HISTÓRICO...........................................................................................

18

2.3 CONTEXTO FILOSÓFICO.......................................................................................... 20
3 ANGÚSTIA E DESESPERO COMO ELEMENTO ONTOLÓGICO DA
EXISTÊNCIA HUMANA.................................................................................................

24

3.1 PONTO DE PARTIDA DA FILOSOFIA DE KIERKEGAARD: CRÍTICA AO
PENSAMENTO DE HEGEL..............................................................................................

24

3.2 O INDIVÍDUO E A EXISTÊNCIA COMO POSSIBILIDADE..................................

27

3.3 O CONCEITO DE ANGÚSTIA...................................................................................

31

3.3.1 A pedagogia da angústia............................................................................................. 31
3.4 O DESESPERO HUMANO..........................................................................................

34

3.4.1 Doença para a morte...................................................................................................

36

4 A FÉ E A LIBERDADE.................................................................................................

39

4.1 A FÉ COMO REMÉDIO – O SALTO PARA LIBERDADE.......................................... 40
4.2 A EXISTÊNCIA HUMANA NA RELAÇÃO COM O ABSOLUTO............................. 42
5 CONCLUSÃO................................................................................................................. 46
REFERÊNCIAS................................................................................................................. 48
BIBLIOGRAFIAS CONSULTADAS............................................................................... 49
10

1 INTRODUÇÃO

A busca pelo sentido da vida sempre foi como também continua sendo um dos maiores
anseios da humanidade pelo fato de que o existir é algo grandioso demais para não dar valor.
Existir é um fator importantíssimo para o conhecimento de nós mesmos e de tudo que nos
cerca, pois nos impulsiona para uma maior compreensão da realidade em que vivemos. É,
sobretudo, a partir dessas afirmações que nos propusemos a discutir o existencialismo de
Kierkegaard.
O século XIX foi um dos momentos mais importante na história da filosofia. Neste
período vemos despontar vários filósofos, como Fichte, Schelling, Nietzsche, Karl Marx,
Hegel, os quais estes são alguns dos mais representativos desta época. E é neste contexto de
grandes pensadores que nasce Sören Aabye Kierkegaard (1813-1855), filósofo, teólogo,
crítico e poeta dinamarquês, considerado o pai do existencialismo. Suas inúmeras produções
contribuíram definitivamente para que ocupasse um lugar de destaque na história do
pensamento ocidental. Pelas suas obras podemos confrontar temas que contribuíram para a
constituição da filosofia da existência voltada para a realidade vivida buscando resgatar o
valor do indivíduo enquanto subjetividade.
O presente trabalho propõe uma reflexão acerca do existencialismo de Sören
Kierkegaard com base a pesquisa bibliográfica, sobre os conceitos de angústia e desespero
humano como fundamento ontológico da existência no pensamento do filósofo. Com o
objetivo de compreender como a angústia e o desespero constituem elementos para a
existência humana que realizamos esta pesquisa. A nossa reflexão acerca do tema proposto
buscaremos apresentar sucintamente o conteúdo, os objetivos, a importância e o método de
nossa pesquisa a fim de fornecer elementos para uma boa leitura e uma melhor compreensão
na abordagem significante da existência humana marcada intrinsecamente pela angústia e pelo
desespero, traçada pelo nosso filósofo existencialista.
O nosso trabalho está estruturado em três capítulos: no primeiro capítulo delinearemos
brevemente o contexto histórico e filosófico do nosso autor. No segundo capítulo
elucidaremos a sua crítica a teoria absoluta hegeliana. E prosseguindo daremos enfoque ao
conceito de indivíduo e existência como possibilidade. Dada esta compreensão, refletiremos o
conceito de angústia e sua pedagogia, e o desespero humano como doença para morte. No
11

terceiro capítulo daremos ênfase à fé como salto e a existência humana na relação com o
Absoluto. Veremos, portanto, que tanto a angústia quanto o desespero são problemas
existenciais muito reais, e são aspectos inerentes à condição humana, que através das
possibilidades de escolha se dá o salto pela fé marcada pela relação com o Absoluto.
No primeiro capítulo aprofundaremos pontos da vida, do contexto histórico e
filosófico de Kierkegaard. Sua filosofia tem como fonte de inspiração ele mesmo em sua
existência singular e concreta. Sua vida repleta de inquietações e angústias, que são expressas
em seus textos, exerceu profunda influencia no desenvolvimento de seu pensamento. Convêm
recordar sinteticamente os decisivos na formação da personalidade de pensador dinamarquês.
Sob as aparências de uma vida sem acontecimentos singulares, ocultou as inquietações e
angústia de uma das épocas mais perturbadas do mundo moderno nascente. Duas figuras
dominaram sua vida curta e agitada: a do pai Mikael Pederson Kierkegaard e a da jovem
Regina Olsen, a noiva a quem amava não conseguindo tomar por esposa em conseqüência do
sentimento de culpa e de melancolia de que se tornou vítima devido à educação que recebera
do pai. Além de herdar um temperamento tristonho recebeu uma formação cristã com
exageros escrúpulos quanto ao pecado. Desde a infância foi transmitida como herança a
religiosidade sombria, envolta a uma atmosfera de maldição que pesava sobre o pai. Mikael,
homem que quando jovem, era pastor de ovelhas nas planícies da Jutlandia, interior da
Dinamarca, sofrendo fome e frio amaldiçoou Deus no alto de uma colina, o qual com oitenta e
dois anos não foi capaz de esquecer este episódio. Kierkegaard sempre percebeu algo estranho
no ambiente familiar, o qual teve a surpresa da revelação do segredo de seu pai: o fato de ter
seduzido a mulher que ia ser sua mãe antes de casados. Foi um verdadeiro e terrível trauma.
De seu pai, portanto, ele recebeu as armas da melancolia, da dialética e da inquietação.
Kierkegaard foi educado dentro das concepções do cristianismo luterano onde se acentuava a
condição pecaminosa da natureza humana intrinsecamente corrompida. Sören Kierkegaard
sentiu todo o peso desses ensinamentos e refletiu-os em sua maneira de viver, pensar e
escrever.
Outro fato que deixou marcas inesquecíveis na vida e no pensamento de Kierkegaard
foi seu amor por Regina Olsen. Ele amou-a apaixonadamente, e apenas comprometido com
ela em noivado, arrependeu-se e procurou por todos os meios romper o compromisso.
Devolvendo-lhe a aliança com uma nota fria e obscura, não hesitou e rompeu definitivamente
com Regina. Pode-se dizer que as razões do rompimento seria uma timidez de sua formação
física defeituosa aliada a um complexo de culpabilidade herdada do pai que o impedia, no seu
12

modo de pensar, de ser feliz no matrimônio. Este fato de amor fracassado teve profundas
conseqüências em sua vida cultural e espiritual, onde Kierkegaard buscou vincular-se cada
vez mais com o Deus transcendente.
A polêmica com a Igreja oficial da Dinamarca foi outro fato marcante da vida e do
pensamente de Sören, pois lutou contra o mero formalismo de cristãos e a aparência
institucional na qual esta se encontrava dedicando-se somente aos interesses do estado. A
verdade em questão, para o nosso pensador, era a do cristianismo, do tornar-se cristão. Vale
salientar também como fato de importante relevância no contexto de seu pensamento a sua
oposição a Hegel. Kierkegaard se opôs a sua filosofia questionando seu universalismo e o seu
caráter abstrato, tentando valorizar o indivíduo numa época em que a filosofia e a teologia
estavam impregnadas do pensamento do filósofo alemão. Para Hegel, o indivíduo se explica
pelo sistema, ou seja, o indivíduo é um momento da totalidade sistemática que o ultrapassa e
na qual ele se realiza. Ele postulava que a história obedece a uma lógica absoluta, nesse
aspecto o homem perde a liberdade na medida em que se encontra preso nesse desfecho
lógico da história. Para Kierkegaard, o sistema esgota a existência do seu caráter concreto,
pois a existência é o devir concreto do homem enquanto singularidade. Opõe-se, portanto,
Kierkegaard, ao idealismo em seu caráter abstrato e especulativo. Esta aversão contra os
sistemas teóricos e abstratos o conduziu a enfatizar a existência individual.
Passando por este breve contexto marcante no pensamento do nosso autor, buscaremos
refletir no segundo capítulo sobre a angústia e o desespero como constitutivo ontológico da
existência humana, tendo em vista a fé e a liberdade como possibilidade para uma existência
autêntica. O caminho, portanto, que pretendemos trilhar neste trabalho é basicamente uma
reflexão e maior compreensão, como já apontamos, no que se refere ao conceito de angústia e
desespero inerente a existência humana na visão de Sören Kierkegaard. Ressaltamos ainda
neste capítulo a crítica ao pensamento de Hegel como ponto de partida da sua filosofia e a
valorização do indivíduo e a existência como possibilidade. Deteremos-nos em compreender
o sentido e a prioridade do indivíduo e a sua existência caracterizada pelas possibilidades,
possibilidades de escolher, pois existir é escolher.
No terceiro capítulo pretendemos identificar a fé e a liberdade como salto para a
verdadeira existência caracterizando a sua relação com o Absoluto. Experiência vivida no
sentido verdadeiro de cristãos, um cristianismo autêntico.
O nosso referencial de pesquisa fundamenta-se no Conceito de angústia (1844) e o
Desespero Humano (1849) como doença para a morte. Kierkegaard sentiu necessidade de
ampliar suas idéias, evidenciadas pelas suas próprias experiências de vida, a respeito da fé e
13

da liberdade. Em o Conceito de angústia, ele fala do pecado enquanto supõe o livre-arbítrio,
ou seja, uma angústia diante da livre escolha entre as possibilidades em constante relação com
o mundo. Para ele a liberdade gera no homem profunda insegurança, medo e angústia.
Kierkegaard apresenta a angústia como “vertigem da liberdade, que nasce quando, ao querer o
espírito institui a síntese, a liberdade mergulha o olhar no abismo das suas possibilidades e se
agarra à finitude para não cair”. No que diz respeito ao Desespero Humano, buscaremos,
fundamentalmente, descrevê-lo como questão essencial quanto à angústia. Essencial pelo fato
de o indivíduo, no decorrer de sua existência, não poder desfazer-se destes sentimentos.
Nortearemos o desespero com a seguinte questão: em que sentido o desespero é uma doença
mortal? E como ela se caracteriza na existência humana? Esse desespero é, para Kierkegaard,
um fenômeno universal. Segundo o autor, “assim como o médico poderia dizer que
provavelmente não há uma única pessoa em vida que seja completamente sadia, assim
também aquele que conhece o ser humano pode dizer que não vive uma única pessoa na qual
não haja um pouco de desespero”. Todo ser humano vive de alguma forma, em maior ou
menor grau, em desespero. Embora esteja presente em todas as pessoas cada indivíduo
desespera por si mesmo.
A importância e a mensagem filosófica existencial kierkegaardiana nos traz a
identificação do indivíduo que se coloca em um contínuo devir diante das possibilidades da
existência, onde a angústia, a liberdade, o desespero e a fé encontram-se em primeiro plano.
Kierkegaard prioriza o caráter existencial da vida humana, rejeita as pretensões da razão
absoluta e lança bases para a filosofia existencial contemporânea. Ele aborda questões
ontológicas profundas da existência humana, como veremos na angústia e no desespero,
refletidas no homem enquanto singular, indivíduo e existente. Vemos, assim, que a luta e a
busca da interioridade existencial de Kierkegaard é presente e atual em nosso existir. Pois
vivemos em uma época de angustiante desespero pela falta de sentido de viver. Uma angústia
e desespero em conseqüência das escolhas somente materialistas em meio a uma cultura
exageradamente consumista. Pois, para estes, o que importa é aquilo que traz a felicidade
momentânea, prazerosa e individualista. E ai o homem se encontra em meio a uma liberdade
que não traz a verdadeira felicidade, a uma descrença de valores religiosos, onde tudo parece
não haver sentido, descartando até a própria vida. Portanto falar do pensamento de
Kierkegaard é falar dele mesmo, como também falar da existência do homem atual.
14

2 SÖREN KIERKEGAARD: VIDA, CONTEXTO HISTÓRICO E FILOSÓFICO

No presente capítulo faremos uma abordagem geral da trajetória que envolveu o
pensamento de Sören Kierkegaard; tal abordagem elucidará seu perfil bibliográfico, seu
contexto histórico e filosófico. Teremos uma visão de como este filósofo dinamarquês e
precursor do existencialismo colocou a existência no centro de sua reflexão e por assim dizer,
foi um dos pensadores mais influentes do século XIX. Neste cenário, perceberemos que, a
biografia de Kierkegaard é parte integrante de sua filosofia. Veremos um pensador
apaixonado marcado pelo seu relacionamento com Regina Olsen, e ao mesmo tempo um
revoltado que se opõe claramente ao sistema de totalidade de Hegel, filosofia marcante de sua
época, como também aos rígidos princípios do protestantismo dinamarquês, religião do
Estado.

2.1 VIDA E OBRAS

O pensador Sören Aabye Kierkegaard nasceu em Copenhague, capital da Dinamarca,
a 5 de maio de 1813. Filósofo, teólogo, poeta e crítico impiedoso da religiosidade
institucional, além do mais, considerado o pensador de maior destaque da corrente
existencialista contemporânea pela sua opção radical e pela defesa do valor da existência
humana enquanto indivíduo. As suas idéias são expressões de sua existência. Foi o último dos
sete filhos do segundo casamento de Mikael Pederson Kierkegaard com a sua própria
doméstica Anne Srensdatter, uma vez que já era viúvo sem filhos. Sören nasceu quando o pai
já tinha cinqüenta e seis anos e a mãe quarenta e quatro, pelo qual ele se considerou o “filho
da velhice”. Cinco irmãos de Kierkegaard morreram antes dele. Sobreviveu somente Pedro,
que depois se tornou bispo luterano.
Kierkegaard passou toda sua primeira infância na companhia do pai, que insistiu muito
num aprendizado rigoroso seja do latim como do grego, inculcou no filho uma devoção
pietista1 fortemente vivenciada pela família. A profundidade do sentimento religioso sempre o

1

Pietismo – corrente religiosa proveniente do luteranismo na Alemanha no século XVII – tal corrente
reivindicava um cristianismo mais fervoroso, fundamentado em uma prática religiosa e em uma moral pessoal
mais austera.
15

acompanhou desde a infância. Ele mesmo descreve o cristianismo que lhe fora transmitido;
um cristianismo na qual a imagem central era do Cristo ensangüentado morrendo na cruz e
não a do Cristo Redentor e Ressuscitado. Tal prática consentia a visão de uma humanidade
que só poderia ser pecadora, sabendo apenas repetir pelos seus atos o escândalo da
condenação de Cristo à morte. Este era o cristianismo do pai de Kierkegaard e que recebera de
educação:

Criança, recebi uma educação cristã rigorosa e austera que foi, para
perspectivas humanas uma loucura. [...] a minha confiança na vida quebrouse pelas impressões a que sucumbira o próprio velho melancólico que me
tinha imposto [...] Que há de espantoso se [...] o cristianismo me tenha
parecido a mais inumana crueldade, se bem que nunca, mesmo quando dele
mais afastado estive, o tenha deixado de respeitar [...].2

A juventude do filósofo também foi profundamente marcada pela influência do pai
Mikael Pederson, de personalidade depressiva, melancólica e inquieta. Ele que era um
pequeno pastor de ovelhas nas planícies de Jutlândia, interior da Dinamarca, revoltou-se
contra natureza da sua condição, e assim teria blasfemado contra o Deus insensível que
permitia a miséria. E depois de tê-lo amaldiçoado, cumulava então, vantagens e fortuna como
fanqueiro na capital. Mikael, tendo engravidado a mãe de seus filhos ainda durante o período
do luto de um ano da morte da primeira esposa, vivia atormentado pelos remorsos da cena da
maldição e buscava a verdade religiosa pelas mais diversas vias. Desenvolveu uma fé
dominada pelo medo de ser punido por Deus através dos filhos, o que de fato, perdeu quase
todos. Kierkegaard carregava as conseqüências de ser o filho de um pai velho, que transmitia
a sua melancolia para o menino. Ele mesmo afirmava de nunca ter vivido a felicidade de ser
criança.
Em 1830, seguindo o desejo do pai, estuda teologia na Universidade de Copenhague,
mas não se interessa tanto pela teologia clássica quanto pelos assuntos filosóficos e literários.
Todavia, o talento desenvolveu em Sören a imaginação e o senso de discussão. Neste
ambiente universitário, lê e conhece de Schleiermacher e Hegel, descobre o romantismo
alemão, apaixona-se pelo teatro e pela música, escreve peças e participa do circulo literário e
político. Rompe com o estilo de vida de seu pai e leva uma vida de boêmio. Vivencia uma
fase onde nada é levado a sério, e tudo é apenas uma brincadeira. Kierkegaard descreve esta

2

KIERKEGAARD, Sören. Diário de um sedutor; Temor e tremor; O desespero humano. Tradução de Carlos
Grifo, Maria J. Marinho, Adolfo Casais Monteiro São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os pensadores) p. 72/3.
16

forma de atitude como o estádio estético, uma existência que afasta a vida, e na qual tudo é
brincadeira sem compromisso nem responsabilidade.
Em 1835, Sören torna-se melancólico e temendo a loucura, foge do pai e faz uma
viagem mais longa, para o norte de Selândia, para afastar-se um pouco da vida que estava
levando em Copenhague. Durante este tempo sofre uma espécie de despertar espiritual.
Kierkegaard indica este acontecimento como o “grande terremoto”, e que foi talvez a
revelação de uma culpa paterna de ter violentado a criada – a mãe de Kierkegaard - quando
sua primeira esposa ainda estava viva. Surpreendido pela revelação do segredo de seu pai, na
angústia sem recurso, Kierkegaard chegou à maturidade. Tal experiência, podendo dizer
também “crise”, o levou a uma reaproximação ao cristianismo e uma reconciliação com o pai.
Ainda muito envolvido por esta fase de sua existência, em 1838, o pai veio a falecer. Afetado
pela perda, porém foi o momento que Kierkegaard despertou realmente e superou a crise. E
prosseguindo sua formação acadêmica, em 1840, prestou os exames de teologia para tornar-se
pastor. Já em 1841, terminando a tese Sobre o Conceito de Ironia pregou seu primeiro
sermão. Por fim, percebe-se incapaz, e compreende que sua timidez e sua fraca voz o
impedem de ser um pregador.
Outra grande crise que marcou a vida de Kierkegaard e revelada em sua obra Diário
do Sedutor (1843) foi a paixão e o noivado rompido com Regina Olsen. Em 1837,
Kierkegaard conheceu Regina, uma moça de 16 anos e de uma família burguesa de
Copenhague. Os dois viveram uma forte paixão que os levaram ao noivado em 1840. No
entanto, ele não conseguiu concluir o noivado e meses depois rompeu com Regina. As
páginas do Diário atestam que ele se sentiu inseguro, lutou consigo mesmo, depois julgou
impossível casar; e ao que parece, o obstáculo foi a melancolia. Mais tarde, Regina casou-se
com Johan Frederik Schlegel (1817-1896), seu professor. Kierkegaard certamente amava
Regina, pois toda sua obra respira a sua presença. A lembrança e a imagem de Regina o
acompanharam na provação do luto da morte de seu pai e durante seus estudos. Os motivos do
rompimento não são muito claros, supõe-se que tenha sido o seu desejo de não revelar a
Regina os delitos do pai, a preocupação de não expô-la, juntamente com os eventuais filhos à
ira de Deus que pesava sobre a família dos Kierkegaards.
De certa forma, a relação com Regina constituiu a chave para toda a obra de
Kierkegaard, tanto para a obra literária, onde em romances filosóficos ele elabora a sua
história, como para a obra filosófica, que trata da relação entre existência e realidade, e como
também para a obra religiosa. Catorze dias depois do rompimento com Regina, Kierkegaard
viaja para Berlim, que naquela época era o centro cultural da Europa. Ele buscava escapar do
17

escândalo provocado pelo rompimento do seu noivado. Em Berlim, freqüentou as aulas do
alemão Schelling, o filósofo de maior renome nesse período pós-hegeliano. Todavia,
Kierkegaard, decepcionado com o contato com Schelling, volta a Copenhague aos 6 de março
de 1842. Antes de partir, Kierkegaard escreveu uma tese de doutorado sobre a ironia
socrática.
A polêmica com a Igreja oficial da Dinamarca é outro episódio marcante na vida de
Sören. Foi um ataque que atravessou todas as barreiras e não poupou nem os ministros e nem
seus famíliares. Kierkegaard acusou os luteranos de haverem subordinado as coisas sagradas
aos interesses seculares, colocando a vida religiosa dentro da ordem burguesa. Acusou o
cristianismo oficial de eximir os homens da necessidade de uma vida ascética e das boas
obras. A intensidade desses debates de caráter religioso perturbou a saúde de Kierkegaard que
veio a falecer aos quarenta e dois anos de idade no dia 11 de novembro de 1855, em
Copenhague.
Suas obras. Como primeira obra é uma tese de doutorado em Teologia defendida em
setembro de 1841, onde escreve o Conceito de ironia profundamente relacionada a Sócrates.
Para o autor, o conceito de ironia é como um negativo, o caminho. Não a verdade, mas o
caminho. Assim, podemos pensar que a ironia não passa de uma interpretação da realidade e,
como tal, necessita do movimento, da ação para ter validade. Em Sócrates a realidade já tinha
perdido sua validade, mas ele deixava a ordem existente subsistir quando dizia não saber e
pedia esclarecimento ao outro. Com esse esclarecimento acabava por desconstruir tal ordem.
Sócrates se alimenta do negativo, uma negatividade infinita que destrói tudo o que é poder
objetivo, tudo perde seu valor absoluto, tanto a vida como a morte. Ele se move no negativo e
o que observamos nele é a liberdade, infinitamente transbordante, da subjetividade, mas isso é
justamente a ironia. Segundo Kierkegaard, o ponto de partida de Sócrates é a ocasião: nela o
mestre nem ensina, nem recebe, apenas ajuda no nascimento (maiêutica), pois o ser humano já
está de posse da verdade. Em Sócrates, o instante não possui importância fundamental, perdese no tempo, é um nada, pois a verdade está lá, só precisa ser lembrada. Para Kierkegaard, sob
o ponto de vista cristão, o instante é plenitude dos tempos; decisivo e composto pela
eternidade plena. Nesse sentido o instante implica uma escolha, já que o ser humano vê o
temporal sob o aspecto do eterno.
A personalidade de Sören revela-se no uso freqüente de pseudônimos, tais como
Victor Eremita em A alternativa, Ou... ou..., em 1843; Iohannes de Silentio em Temor e
Tremor, A repetição, em 1843; Iohannes Climacus em Migalhas filosóficas, O conceito de
angústia, em 1844. Foram vários os motivos que levaram Kierkegaard a usar de pseudônimos,
18

pelo simples prazer de parecer enigmático e às vezes para enviar mensagem à sua ex-noiva,
ou também, para expor diversas idéias e concepções dando aos leitores a possibilidade de que
por si mesmos encontrassem sua própria solução. Como os personagens pseudônimos podem
discutir seus problemas de um modo dramático e interessante, impelem o leitor a seguir
adiante, ou ir além das possibilidades que eles representam. Enumerando algumas das
principais obras de Sören Kierkegaard, trazemos em primeiro lugar seus Diários que nos
introduzem ao clima intelectual daquele momento, uma combinação da filosofia hegeliana,
das idéias estéticas românticas e da igreja luterana dinamarquesa.“Ou um ou outro”, Temor e
tremor”, “A repetição”, Migalhas filosóficas e “Etapas no caminho da vida” (1845) obras
que foram meios que Kierkegaard usou para transmitir de modo romântico mensagens a
Regina. Seu tema é o enriquecimento da personalidade humana em seus três níveis, o estético,
o ético e o da consciência religiosa. “O conceito da angústia”, Kierkegaard aprofundou o
estado da angústia, a qual teremos a oportunidade de nos determos mais neste trabalho. Já a
obra “Último pós-escrito não cientifico” (1846), ele assinala a passagem da produção estética
para as obras religiosas, considerada a mais filosóficas de suas obras. Na obra “O ponto de
vista sobre minha obra como autor” (1848), Kierkegaard faz um ensaio autobiográfico e
chama a atenção sobre três acontecimentos culminantes de sua vida.
Em 1846, Kierkegaard travou uma intensa polêmica com um jornal humorístico de
Copenhague, “O Corsário”, que foi motivo de grande sofrimento para ele:

Um jornal satírico chamado O Corsário, que encontrava um terreno fértil na
efervescência das idéias liberais de 1848, [...] ridicularizando [...] homens
respeitáveis e pacíficos que servem o Estado [...]. Como esse jornal elogiou
Kierkegaard, ele temeu parecer cúmplice desse empreendimento [...] Nele se
elogiavam os dons extraordinários do autor de Ou... ou... e da parte estética
dos Estádios no caminho da vida. Todavia deploravam-se as digressões éticas
e religiosas que, para Kierkegaard, representavam o essencial. Exigiu [...],
como homem de bem, ser ridicularizado por O Corsário. 3

E assim foi feito, o jornal atacou Kierkegaard com aspereza, zombou de sua aparência.
Em uma sociedade que estava nascendo a idéia de que a imprensa era a garantia da liberdade
de expressão, pode-se imaginar a repercussão e a reprovação que caiu sobre ele. Com este
episódio, Kierkegaard colocou-se como defensor da moral cristã em seus próprios ataques
contra o jornal. A Igreja ficou no silêncio e Sören sentiu-se abandonado. “Daí convencer-se
de que o luteranismo oficial tal qual existia na Dinamarca não era aquela religião da exigência
que seu pai lhe pregara, mas um vasto compromisso com o mundo em detrimento da verdade
3

BLANC, Charles Le. Kierkegaard. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. p.40/1.
19

do cristianismo” (BLANC, 2003; p. 42). Seu próprio papel foi de um reformador, não o que
transformou e renovou as instituições, mas sim foi aquele que despertou a consciência,
ensinou o trágico da existência, restaura a honra do ideal e de todas as exigências morais ou
religiosas.

Kierkegaard não se oferecia como modelo, mas agia pela certeza de que seu

combate e seu sacrifício eram indispensáveis à reforma do cristianismo, tal como o
compreendia.
Outra obra que teremos a oportunidade de aprofundar neste trabalho é “Doença até a
morte” 4 (1849), onde Kierkegaard faz um tratado sobre o desespero humano. Enfim, durante
a vida Kierkegaard não foi muito conhecido e também depois da morte permaneceu ignorado
por muito tempo. Somente depois da primeira Guerra Mundial é que ele foi descoberto, suas
obras lidas avidamente e traduzidas em várias línguas. O seu pensamento, prematuro para
seus contemporâneos, tornou-se da máxima atualidade em nosso século.

2.2 CONTEXTO HISTÓRICO

A época em que viveu o filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard foi, inicialmente, um
período de grande crise política e militar em seu país devido a conseqüentes guerras
napoleônicas. Somente na idade madura do filósofo, a Dinamarca veio a sair do atraso
econômico causado pelos conflitos. Graças a uma política liberal que aboliu o trabalho
obrigatório do camponês para os nobres “seus senhores”, regime medieval de servidão, e
aboliu a monarquia absolutista, o país aos poucos, foi se transformando em um país
industrializado e não apenas agrícola. Em um contexto mais amplo, foi um momento de
grandes transformações, rompimento e revoluções. Marx foi um dos contemporâneos de
Kierkegaard, e no ano seguinte da publicação do Manifesto comunista em 1848, Kierkegaard
assistiu a transição do absolutismo para a democracia na Dinamarca.
Kierkegaard viveu a maior parte de sua vida no reinado de Frederico VI (foi rei da
Dinamarca a partir de 1808 até sua morte em 1839 e da Noruega de 1808 a 1814), porém o
período mais produtivo de sua maturidade transcorreu sob os reinados sucessivos de Christian
VIII (foi rei da Dinamarca de 1839 a 1848, e da Noruega em 1814, como Cristiano Frederico)
4

“A dialética do desespero – doença que marcaria o fundo da consciência do cristão até à morte – é analisado
por Kierkegaard, em suas múltiplas facetas: o desespero inconsciente de ter um eu; o desespero que não quer, e o
desespero que quer ser ele próprio; a relação entre desespero e pecado” (KIERKEGAARD, op. cit.,1979, p.
Introdução).
20

e Frederico VII (rei da Dinamarca de 1848 a 1863). Política e economicamente, foi uma época
pobre e de recessão para Dinamarca. Porém foi uma época da culminação da vida cultural e
espiritual do país conhecida como época de ouro. A filosofia relaciona a Idade de Ouro5
dinamarquesa com o pensamento alemão a partir de um panorama da introdução dos grandes
alemães na Dinamarca: Kant, Fichte, Schelling e Hegel. Kierkegaard é devedor, em muitos
aspectos do pensamento kantiano, embora mantenha sua independência em relação ao
filósofo. A influência de Fichte na Dinamarca pode ser notada a partir de 1807, ano em que o
filósofo esteve no país dinamarquês ministrando cursos. Fichte influenciou também Frederik
Christian Sibbern (1785-1872) e o norueguês-dinamarquês Henrich Steffens (1773-1845),
além do próprio Kierkegaard.
Schelling foi importante em dois períodos da vida intelectual dinamarquesa. A partir
de 1830, o hegelianismo começou a se destacar na vida cultural dinamarquesa (arte, literatura,
religião, filosofia, história). O pensamento de Hegel surgiu em solo dinamarquês nos anos 20,
mas ficou mais influente a partir das aulas de Hans L. Martensen (1808-1884), ocorridas em
1837-1838, na Universidade de Copenhague. Sibbern era o mais conhecido dos filósofos
dinamarqueses e teve contato pessoal com Fichte, Schleiermacher, Goethe e Schelling.
Mestre e amigo de Kierkegaard, merecendo a dedicatória do Conceito de Angústia, Moller
tornou-se professor da Universidade de Copenhague em 1830. Em 1837, escreveu o artigo
Pensamentos sobre a possibilidade da prova da imortalidade humana. Apesar da influência
hegeliana, Moller foi um crítico do pensador alemão. Confrontou a posição cristã ao
pensamento de Hegel. Moller ministrou cursos em 1834-1835 sobre filosofia antiga,
enfatizando a filosofia de Sócrates, e Kierkegaard foi levado a aprofundar seus estudos sobre
o ateniense. Daí nasceu seu interesse em estudar o conceito de ironia em Sócrates, tema de
sua dissertação. O conceito dos pensamentos de Moller é muito caro ao pensamento
kierkegaardiano. Sua concepção acerca de aforismos e seu niilismo influenciaram a psicologia
de Kierkegaard. A ironia em Kierkegaard é vista através de sua leitura sobre Sócrates e acerca
da mesma temática no romantismo.
A seção dedicada à teologia mostra que a primeira metade do século XIX foi um
período de ouro também para a teologia dinamarquesa. A Faculdade de Teologia da
Universidade de Copenhague possuía grande influência na vida intelectual dinamarquesa.

5

A idade de Ouro dinamarquesa foi marcada pelos debates políticos, intelectuais e literários. A cultura parece
receber a maior atenção de todos os interessados. E é nesse clima que podemos situar a obra kierkegaardiana.
21

Ocorreram mudanças no pensamento eclesiástico e na instituição religiosa. “Movimentos de
caráter pietista”6 foram intensificados. A Igreja foi presença marcante na Dinamarca do século
XIX. A Igreja era como uma instituição estatal e a religião luterana a religião oficial do
Estado. Bastava nascer no país para ser automaticamente cristão. Kierkegaard alegava que
isto reduzia a nada a possibilidade de uma verdadeira conversão radical a Cristo. Assim o
autor Charles Le Blanc comenta:

Quando Kierkegaard fala de cristianismo [...] se refere: um cristianismo sem
mediações, sem figuras femininas, quase sem Igreja. É também deste
cristianismo que procedem vários de seus temas, é dele que herda o
radicalismo da fé, é por ele que luta e é em seu nome que quis empreender
uma reforma religiosa.7

O pastor local era um verdadeiro funcionário público, representava a Coroa e por isso,
além da prática de suas funções especificamente religiosas também era quem coletava
impostos, realizava os recenseamentos, fazia o recrutamento militar, mantinha os registros
civis nos livros da Igreja, supervisionava as escolas, cuidava da assistência aos pobres e era o
presidente do Conselho Municipal, além de cuidar de seus próprios interesses, muitas vezes a
maior fazenda das vizinhanças. As questões políticas e os rancores misturavam-se facilmente
com os assuntos religiosos. Mesmo com influência indireta dos acontecimentos sociais no seu
pensamento, Kierkegaard foi o filósofo que abandonou o mundo grande com seus problemas
para se dedicar ao mundo pessoal com suas inquietações e questões existenciais.

2.3 CONTEXTO FILOSÓFICO

Sören Kierkegaard foi certamente um dos pensadores mais importantes e fecundos do
cristianismo contemporâneo. O pensamento do nosso autor nasce em meio a um contexto
marcado pelo confronto e pelo diálogo do racionalismo das luzes com o idealismo da cultura
romântica:

6

“No século XVIII, a reconstrução de um país destruído e profundamente ferido pelas guerras contra a Suécia, a
rejeição da antiga ordem social, como comprova a supressão parcial da servidão por Frederico IV (1699-1730),
favoreceram a difusão do pietismo na Dinamarca” (BLANC, op, cit., 2003, p. 20)
7
Ibid., 2003, p. 21.
22

As luzes haviam constituído o principal movimento filosófico do século
XVIII, tomando formas especificas segundo os países. A principal
característica comum: uma confiança quase ilimitada na razão, que é exercida
de um ponto de vista crítico contra o obscurantismo das concepções antigas, e
de um ponto de vista positivo, pois cabe à razão, pelo exercício do
pensamento autônomo, prescrever leis e normas nos assuntos científicos,
políticos, morais e religiosos.8

Foi uma época onde tinha a razão como uma força finita capaz de afrontar o mundo e
transformá-lo. No final do século XVIII, surgem movimentos propondo outros caminhos além
da razão como os do sentimento e da fé. E quem avançou nesta direção contribuindo para
passagem da razão como uma força infinita e não mais a razão como força finita foi o
pensador Fichte (1762-1814); este fez do eu uma autoconsciência absoluta cujo produto é o
mundo, caracterizado de idealismo romântico. Fichte, Schelling (1775-1854) e Hegel (17701831) são os principais representantes desse sistema de idealismo:

[...] a apologia intransigente da consciência e da interioridade no confronto
com a Igreja reformada estatal e institucional da Dinamarca, com o
convencionalismo burguês artificioso e estéril da sociedade e da cultura
européia de seu tempo, assim como contra toda coletivização que se faça em
detrimento da autentica singularidade de toda vida individua, corresponde a
uma das fontes de hostilidade mais implacáveis contra Kierkegaard
provenientes dos mais bens defendidos bastiões da hipocrisia cultural de sua
época.9

Uma outra forma de compreensão do infinito é dado como sentimento expressada
pelas atividades humanas: a arte e a religião. Este infinito romântico do sentimento religioso
foi muito defendido por Novalis (1772-1801), Friedrich Schlegel (1772-1829) e
Schleiermacher (1768-1834). E Kierkegaard é herdeiro desse romantismo religioso: “O eu é a
síntese consciente de infinito e de finito em relação com ela própria, o que não se pode fazer
senão contando com Deus.” (KIERKEGAARD, 1979, p. 208).
Outra característica do romantismo é a ironia que tem um papel importante na obra de
Kierkegaard:

[...] A ironia é negatividade e como tal ela destaca o homem do mundo, no
qual o esteta está imerso. Não é possível por isso existir „existir‟ sem sentir
ironia, que é uma dimensão fundamental da pessoa humana. A ironia, assim,
liberta o homem do ponto de vista estético e o leva à exigência ética. Ela não
é a verdade, mas a pólvora que faz saltar as pontes, dispersar as coisas e cava
8

BLANC, op., cit.,2003, p. 23-24.
PAULA, Marcio Gimenes de. Indivíduo e comunidade na filosofia de Kierkegaard. São Paulo: Paulus, 2009.
p.15.
9
23

o abismo entre o viver no mundo, „na periferia‟, „na superfície‟, e o viver
acima do mundo, no recôndito. A ironia não constitui uma passagem, mas
alimenta a coragem de „escolher‟ desesperando.10

O romantismo não foi apenas uma questão de literatura e filosofia. Exerceu sua
principal influência tornando-se uma espécie de atmosfera cultural, exprimindo-se
concretamente por meio da pintura, da arquitetura, da moda, das expressões da linguagem
corrente, vinculando a vários locais. Vemos, portanto, que com o tempo, o romantismo, como
a filosofia e a tendência cultural avançou e influenciou na Dinamarca. Kierkegaard era um
profundo conhecedor de obras clássicas. Entre as fontes que o influenciava estava: as belas
artes, a filosofia clássica e moderna, a teologia, etc. Percebe-se em sua obra um pensamento
reflexivo bastante abrangente, fruto desta sua diversidade de fontes. Toda esta abrangência
tem o objetivo de confrontar as idéias, os fatos, as experiências à luz do cristianismo que, para
ele, é uma consciência moderna.

Estamos perto dos anos 1830. A questão das relações entre a teologia e a
filosofia é ainda mais bem sentida porque o romantismo se baseara [...], no
sentimento religioso. Novalis e Friedrich Schlegel, por exemplo, queriam
fundar uma nova religião e escrever sua Bíblia. A fortuna da filosofia de
Hegel marcara, ademais, a vitória do idealismo e o desenvolvimento da
especulação teológica.11

Sob influência de seu mestre e amigo Poul Moller (1794-1838), Kierkegaard protestou
muito cedo contra a redução do cristianismo a um sistema dominado pela necessidade lógica.
Ele se opõe à especulação dialética da mediação a separação absoluta entre Deus e a natureza,
entre o eterno e o temporal, entre o finito e o infinito, oposições absolutas a não ser no
momento íntimo da fé, que é revelação de Deus no tempo: “[...] o mistério e a revelação, a
verdade e o absurdo, a certeza e a incerteza, a beatitude e o sofrimento estão
inextricavelmente ligados [...], essas realidade se reconhecem uma na outra” (GILES, 1989;
p.8). Ele ainda recusa admitir que o mistério da Trindade perca sua opacidade e que encontre
uma explicação objetiva no desenvolvimento dialético hegeliano. Seu questionamento é se tal
sistema não acaba fazendo desaparecer a própria realidade, pois a dialética não pode ser real a
não ser que encontre o real de novo sob os aspectos finitos e o tempo constituído pela
plenitude da história onde a existência se desenrola. Para Kierkegaard, a revelação de Deus no

10

SCIACCA, Michele Federico. História da Filosofia. Tradução de Luis Washington Vita. São Paulo: Mestre
Jou, 1968, p.87.
11
BLANC,op. cit., 2003, p. 27.
24

tempo é um paradoxo que a razão não consegue penetrar, e na sua linguagem, o paradoxo
exprime a relação entre um espírito finito e uma verdade infinita:

O eu é a síntese consciente de infinito e de finito em relação com ela própria,
o que não se pode fazer senão contatando com Deus. Mas tornar-se si
próprio, é tornar-se concreto, coisa irrealizável no finito ou no infinito, visto
o concreto em questão ser uma síntese. A evolução consiste pois em afastarse indefinidamente de si próprio, numa „infinitização‟. Pelo contrário, o eu
que não se torna ele próprio permanece, saiba-o ou não, desesperado.
Contudo, o eu está em evolução a cada instante da sua existência (visto que o
eu Katà dýnamin – em potência – não tem existência real), e não é senão o
que será. Enquanto não consegue tornar-se ele próprio, o eu não é ele próprio;
mas não ser ele é o desespero.12

Seu pensamento baseia-se em sua cultura romântica, religiosa e influenciada pela
filosofia alemã e nos complexos sentimentais profundos. Vemos a filosofia alemã como fonte
importante de seu pensamento. Portanto, a partir de 1837, Kierkegaard aprofundou no estudo
dos filósofos alemães, tomando assim em particular, conhecimento de tudo o que se escrevera
pró e contra Hegel, o qual teremos, no próximo capítulo, a oportunidade de refletir e detalhar
melhor. Outra influência que atuou profundamente sobre o pensamento de Kierkegaard foi o
cristianismo impregnado de luteranismo, o qual tinha se reduzido a pura exterioridade e mero
formalismo. Além de Hegel, ele criticou severamente também esse mundo religioso de seu
tempo, de um cristianismo vazio do mundo, inumano, negador da singularidade que
Kierkegaard defendeu a todo custo. Através de si e de seus problemas, o nosso autor, buscou
encontrar uma explicação para a sua existência. Varias vezes Kierkegaard declarou que toda
sua obra nada mais era que a expressão de sua própria vida. A influência do pensamento
kierkegaardiano imersa no contexto contemporâneo alcançou sucesso na Alemanha logo
depois do fim da Primeira Guerra Mundial e estendeu-se a toda Europa Ocidental,
considerado precursor do pensamento existencialista. Ressaltamos, portanto, a inspiração
kierkegaardiana nas obras de Heidegger, Jaspers, Sartre e Gabriel Marcel, sendo o
representante do existencialismo que mais se aproxima de Kierkegaard.

12

KIERKEGAARD, op. cit., 1979, p. 208.
25

3 ANGÚSTIA E DESESPERO NO PENSAMENTO DE KIERKEGAARD

Como o objetivo do nosso trabalho é a reflexão acerca da angústia e o desespero como
elementos constitutivos da existência humana no pensamento de Kierkegaard, portanto,
trataremos neste capítulo sobre esses elementos que caracterizam o pensamento do nosso
autor. Porém antes, refletiremos a crítica que Kierkegaard dirige ao sistema hegeliano por
partir do conceito da existência do indivíduo como idéia universal. Com esta reflexão,
veremos que o que interessa a Kierkegaard é o sujeito concreto em sua singularidade.
Trataremos ainda neste capítulo, o homem enquanto indivíduo, e que o modo de ser desse
indivíduo é existência; uma existência que não é a realidade e nem a necessidade, e sim a
possibilidade; “a possibilidade como a mais importante das categorias” como define
Kierkegaard em O conceito de angústia. Para ele, a existência é possibilidade como ameaça
do nada, portanto, possibilidade como angústia. Finalmente, faremos a reflexão sobre O
conceito de angústia caracterizada como condição humana: puro sentimento do possível, e O
desespero humano como a doença mortal.

3.1 PONTO DE PARTIDA DA FILOSOFIA DE KIERKEGAARD: CRÍTICA AO
PENSAMENTO DE HEGEL

Para uma melhor compreensão do pensamento filosófico de Sören Kierkegaard acerca da
existência e sua ferrenha crítica a dialética hegeliana, delinearemos brevemente, o idealismo
lógico do alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel

13

, o grande sistematizador do idealismo

pós-kantiano e uma das mentes filosóficas mais vastas e profundas.
Na Alemanha, Friedrich Hegel acompanhou apaixonadamente os acontecimentos que
marcaram um ponto de ruptura da história: a derrocada do mundo feudal e o nascimento da
ordem burguesa. É esta a contradição dialética cuja resolução Hegel aponta como sendo a
13

Friedrich Hegel, nasceu em Stutgart, na Alemanha, em 1770. Estudou teologia e filosofia. Interessou-se pelos
problemas religiosos e políticos, simpatizando-se pelo criticismo e pelo iluminismo; em seguida se dedicou ao
historicismo romântico. Aproximou-se dos sistemas de Fichte e de Schelling, afastando-se deles em seguida até
combatê-los quando professor nas Universidades de Iena, Heidelberg e Berlim. Nessa última universidade
lecionou até há morte, adquirindo grande renome e exercendo vasta influência. Faleceu em 1831, em Berlim,
vítima de cólera. Renunciara aos ideais revolucionários e críticos, para favorecer as tendências absolutistas e
intransigentes do estado prussiano.
26

tarefa da Razão. Daí, portanto, o seu idealismo. Sendo alemão, Hegel continuará essa
contradição, na medida em que a Alemanha se ainda achava mergulhada numa ordem feudal,
estando politicamente dividida em diversos Estados não unificados.
Hegel é filósofo da razão absoluta que concretamente se identifica com a história. Para
ele, somente o Infinito é e torna-se a substância de toda coisa: nele, o único afirmativo, o
finito é anulado, superado. Essa unidade se realiza na filosofia, que não é sentimento ou
intuição mística, mas pensamento lógico, ciência do Absoluto. O seu pensamento se apresenta
como um grande sistema que permite pensar tanto a natureza, a realidade física, quanto ao
Espírito. O fio condutor dessa reflexão totalizante é a relação entre finito e infinito. Para
Hegel, o trabalho da filosofia é da superação do entendimento finito e limitado das coisas
finitas e limitadas para alcançar o saber absoluto. Portanto, nesse caminhar da consciência
rumo ao saber absoluto, temos a busca da infinitude a partir da consciência finita.
Sua filosofia é uma filosofia do devir, do movimento, do vir-a-ser. Para explicar a
realidade em constante processo, Hegel não se utiliza da lógica tradicional, ele estabelece os
princípios de uma nova lógica: a dialética14. A dialética ensina que todas as coisas e idéias
morrem; e essa força destruidora é também a força motriz do processo histórico. A idéia
central é de que a morte é criadora, é geradora. Todo o ser contém em si mesmo o germe da
sua ruína, portanto, sua superação. Assim, o velho princípio de identidade da lógica clássica é
substituído pelo da contradição criadora. O movimento da dialética se faz em três etapas: tese,
antítese e síntese, ou seja, afirmação, negação e negação da negação.15 O sistema hegeliano é
a apresentação de todo o real e de todo o cognoscível como expressão da automanifestação do
absoluto através das fases triádicas da dialética:

O absoluto se desenvolve antes de tudo numa tríade dialética fundamental: a
idéia em si, isto é, a estrutura ideal do absoluto considerada em seu pôr-se na
existência efetiva; a idéia fora de si, o absoluto pondo-se na natureza como
fato, como idéia que se alheia e se esquece; e a idéia em si e para si, isto é, o
absoluto que retorna a se depois de ter reconhecido a natureza como o seu
momento próprio.16
14

Hegel aceita de Fichte, a noção de dialética como processo de afirmação, negação e negação da negação, na
síntese; e de Schelling, a noção do idealismo objetivo e da identidade do sujeito e do objeto, na consciência do
absoluto.
15
O método dialético: a tese é o momento do ser em si; ela põe, afirma uma parte da realidade, negando
implicitamente uma outra parte da realidade, porque toda afirmação inclui uma negação. A antítese é o momento
do ser extra se, fora de si; ela contrapõe, afirmando-a, a parte da realidade implicitamente negada pela tese.
Pertence, de fato, à negação manifestar o que foi obscurecido pela tese, libertar a realidade dos limites da
estaticidade e mostrar a sua riqueza interior. A síntese é o momento da união das partes postas pela tese e pela
antítese num todo único, o qual anula as imperfeições dos momentos anteriores, mas conserva a positividade
deles, ser em si e para si. (Cf. MONDIN, 1985, p. 41)
16
MONDIN, op. cit., 1985, p. 41.
27

Da teoria dialética resulta um novo conceito de história. O presente é retomado como
resultado de um longo e dramático processo. A história não é uma simples acumulação de
fatos acontecidos no tempo, mas é um verdadeiro gerador, um processo onde o motor interno
é a contradição. Hegel chama de conhecimento abstrato o conhecimento determinado a partir
de uma realidade dada, imediata, de simples aparência. Este conhecimento abstrato opõe ao
conhecimento do ser real, concreto que consiste em descrever como uma realidade é
produzida. Portanto, concebe-se assim que, conhecer o processo de constituição pelas
mediações contraditórias, é conhecer o real.17 O sistema hegeliano é o último dos grandes
sistemas filosóficos do Ocidente. Ele exerceu decisiva influência na formação da teoria da
práxis e do existencialismo. Vários filósofos contestaram a filosofia de Hegel, de uma forma
parcial ou em seu conjunto. E para o nosso pensador, a filosofia hegeliana não consegue
compreender a existência do ser humano, a sua angústia e o seu desespero. Portanto,
tentaremos agora delinear a crítica kierkegaardiana à supremacia da razão como único
instrumento capaz de estabelecer a verdade como Hegel propunha.
Como pensador cristão, Kiekegaard defendeu o conhecimento da fé contra a
supremacia da razão. Para ele a existência humana possui três dimensões: a dimensão estética,
na qual se procura o prazer; a dimensão ética, na qual se vivencia o problema da liberdade e
da contradição entre o prazer e o dever; e a dimensão religiosa, marcada pela fé18. O homem
não pode formular um sistema completo da realidade porque ele tem como seu modo de ser a
existência e a existência significa o processo do devir, a contingência. Sendo assim, a
existência, contingente e mutável não pode ser incluída no sistema no qual tudo é regulado
porque está sujeito a leis universais e necessárias. A existência, para Kierkegaard, é
17

Compreender a dialética da realidade, no pensamento de Hegel, exige um trabalho árduo da razão, que deve se
afastar do entendimento comum e se colocar do ponto de vista do absoluto. Esse caminho da consciência que se
afasta do conhecimento comum e se leva ao saber absoluto é o objeto de reflexão do autor em sua obra
Fenomenologia do Espírito (1806). Nela, Hegel, afirma que a consciência que alcança o saber absoluto atinge a
Razão, supera o entendimento finito e adquire a certeza de ser toda a realidade. Assim, a Razão alcançaria a
consciência da unidade entre ser e pensar, harmonizando a subjetividade e a objetividade.
18
“Para Kierkegaard, o homem tem como seu modo de ser a existência, [...] em contínuo devir [...] No devir do
homem distinguem-se três estádios: estético, ético e religioso. Estádio estético [...] o indivíduo não tem
compromissos nem finalidades: é artista despreocupado no qual a fantasia predomina sobre a razão e a vontade.
Guiado pela fantasia ele abraça a realidade exterior [...] riquezas, honras e prazeres; esquiva-se da consciência,
não se encontra em si mesmo [...] é incapaz, por isso, de dominar-se [...]. Exemplo típico deste estádio é Dom
Juan. Estádio ético o indivíduo é o que vive com compromissos, com seriedade e honestidade [...] A forma
característica do estádio ético, segundo Kiekegaard, é o matrimônio com sua seriedade e estabilidade, com seus
deveres e esperanças. Típico representante deste estádio é o assessor Guilherme, do qual fala a segunda parte de
Aut-aut, empregado fiel e todo dedicado à esposa e aos filhos. Estádio religioso é o momento no qual a
honestidade natural não é mais suficiente, porque a fé impõe obrigações que podem entrar em conflito com a lei;
por exemplo, o sacrifício de Isaac, ordenado por Deus, entra em conflito com a lei de não matar (obra Tremor e
Temor). Quando o indivíduo percebe a insuficiência da moralidade, perde o sentido da segurança, da estabilidade
e da suficiência que advinham da observância da lei. O estádio religioso é o da fé como risco e incerteza.
Exemplo típico dele é Abraão, pai da fé.” (MONDIN, op. cit., 1985, p. 70)
28

irredutível à lógica, pois as leis da existência são totalmente diversas das leis do pensamento.
Contra todo esforço em colocar a realidade num sistema, Kierkegaard aponta oposições no
que se refere ao princípio de que a existência é uma tensão em direção não a uma totalidade
pensada, que para ele, seria em direção ao indivíduo, cuja é a categoria essencial da
existência: “Contra as teorias objetivas de Hegel, Kierkegaard insiste na necessidade da
apropriação subjetiva da verdade, pois se trata de fundamentar o desenrolar do pensar em algo
que seja ligado à raiz mais profunda da existência, que é o Indivíduo”19. Hegel procurou
resolver no Espírito Absoluto todas as diferenças entre indivíduos, já Kierkegaard tentou
elevar o indivíduo concreto ao nível de elemento central do pensamento filosófico,
ressaltando as diferenças que são características da subjetividade. Eis o ponto da contestação à
filosofia hegeliana, a qual não leva em consideração a subjetividade humana.
É neste sentido que Kierkegaard influenciou as chamadas correntes irracionalistas e
existencialistas, que colocaram a questão da verdade a partir do processo da existência.
Opondo-se a idéia sistemática de Hegel e a seu caráter abstrato, Kierkegaard procurou
destacar as condições específicas da existência humana e incorporá-las às reflexões
filosóficas. Por ser defensor desta idéia, é considerado o “pai do existencialismo”. Em suas
obras, Kierkegaard procurou analisar os problemas da relação existencial do homem com o
mundo, consigo mesmo e com Deus.

3.2 O INDIVÍDUO E A EXISTÊNCIA COMO POSSIBILIDADE

Seguindo o itinerário filosófico de Kierkegaard, queremos agora enfatizar os traços
característicos de seu pensamento ressaltando o indivíduo e sua existência como uma
existência de possibilidade. A pessoa é o problema central para Kierkegaard. Para ele a
filosofia não pode resolver esta problemática, e sim a religião, e esta enquanto fé. Sendo
assim, o duelo filosofia e religião, ou razão e fé, em nome do indivíduo é o traço do seu
pensamento. Somente a religião pode justificar e garantir a sua existencialidade, pois o
indivíduo e o cristão se identificam. Portanto, defender o indivíduo é também defender o
Cristianismo. Percebemos assim, que seu pensamento é essencialmente religioso: é a defesa
da existência do indivíduo, existência que só se torna autêntica diante da transcendência de
19

GILES, Thomas Ransom. História do existencialismo e da fenomenologia. V. I e II. São Paulo: Editora
Pedagógica e Universitária, 1975, p. 9.
29

Deus. Chegar a ser um indivíduo, para Kierkegaard, é o mesmo que chegar a ser cristão em
espírito e em verdade. Ser cristão é defrontar-se sozinho com Deus e realizar, assim, a
plenitude individual.

Os grandes conceitos kierkegaardianos ligados à existência são dialéticos
porque determinam, cada qual à sua maneira, situações, um movimento em
direção a outra coisa: a dúvida, a angústia, a morte, o instante, o desespero, a
incerteza, a ironia, o humor, o ambíguo, o único, o salto, etc. Todos esses
movimentos todavia parecem encontrar seu objetivo no cristianismo que
assinala o fim das oposições dialéticas. Nele, ser e devir estão unidos: não
basta ser cristão, mas também é preciso tornar-se cristão.20

A defesa da categoria do indivíduo é motivo de ataque à filosofia especulativa do
sistema hegeliano, pois para Kierkegaard o homem singular não tem existência conceitual; é,
portanto, uma existência que corresponde à realidade singular, corresponde ao indivíduo,
podemos assim dizer: uma filosofia existencial do indivíduo21. O que importa, para
Kierkegaard, não é encontrar a verdade objetiva, mas a verdade subjetiva, exclusivamente do
indivíduo.

“Para

Kierkegaard

todo

o

conhecimento

autêntico

deveria

referir-se

necessariamente à existência e, portanto, ser subjetivo. O conhecimento racional, abstrato,
geral é incapaz de descobrir o sentido profundo da verdade. Esta é subjetiva”.22 Assim afirma
o nosso pensador dinamarquês, “a subjetividade é a verdade”; e podemos ir mais além ao seu
pensamento: aprender a verdade é como apropriar-se dela, é ter um interesse infinito por ela.
A verdade deve tornar-se existencial no ato de o indivíduo viver aquilo em que acredita, na
realização dos seus objetivos mais profundos. Qualitativamente23, a dialética existencial de
20

BLANC, op. cit., 2003, p. 100.
“Mediante a categoria do indivíduo, Kierkegaard ataca o sistema hegeliano; descartando o hegelianismo e o
panteísmo, ele consegue pôr a salvo a causa do cristianismo; e dentro do cristianismo o filósofo readquire um
valor absoluto. „O indivíduo é a categoria pela qual devem passar – do ponto de vista religioso – o tempo, a
história, a humanidade [...]. Com esta categoria o „indivíduo‟ quando aqui tudo era sistema sobre sistema. E
agora não se fala mais de sistema [...]. O indivíduo: com esta categoria subsiste ou cai a causa do cristianismo.‟
A existência [...] corresponde à realidade singular, ao indivíduo: „um homem singular não tem certamente uma
existência conceitual‟. A filosofia se interessa pelos conceitos, ela não se preocupa com o existente concreto que
somos eu, ele, tu, em nossa irrepetível singularidade; a filosofia ocupa-se do conceito de homem, do homem em
geral, mas a minha ou a tua existência não é um conceito. E se no mundo animal a espécie é superior ao
indivíduo, no mundo humano – justamente pó causa do cristianismo – o indivíduo é superior à espécie. „A lei da
existência (que por sua vez é graça) que Cristo instituiu para ser homem é: relaciona-te como indivíduo com
Deus‟. A esta categoria Kierkegaard ligava sua importância de pensamento: „o indivíduo é e permanece a âncora
que deve frear a confusão panteísta; é e permanece o peso com o qual podemos reprimi-la‟.” REALE, Giovanni;
Antiseri, Dario. História da filosofia: do romantismo ao empiriocritismo, vol. 5. Tradução de Ivo Storniolo. São
Paulo: Paulus, 2005. p. 229.
22
GIORDANI, Mário Curtis. Iniciação ao existencialismo. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 39.
23
“A dialética em direção ao existencial exige que o indivíduo se aprofunde no autoconhecimento da existência;
é cheia de decisões, de disjuntivos qualitativos. É feita de momentos heterogêneos e de saltos qualitativos, de
conversões. Não há mais mediações e, sim, instantes de ruptura. O existente vai de instante em instante”
(GILES, op. cit., 1989, p.8).
21
30

Kierkegaard não visa qualquer resultado objetivo, ela só pode ser subjetiva e se referir ao
Indivíduo concreto lançado na existência.

Desde que se encontre realizada a perfeita coincidência do pensamento com a
vida, já não há motivo para falar, escrever ou raciocinar. [...] Não há mais
nada senão existir: a verdade é a própria existência, na sua realidade singular
e incomunicável [...] Ou, mais exactamente, é a consciência da existência
coincidindo com essa mesma existência.24

No pensamento de Kierkegaard, o indivíduo é energia viva, ativa, autodeterminante,
que surge a partir de situações concretas de opção, situações enraizadas nos momentos em que
o homem focaliza todas as suas potencialidades numa opção que ressoará por toda sua vida.
Essa opção que torna o simples indivíduo em um indivíduo existencial constitui a tarefa
suprema do ser humano, pois trata de uma missão dirigida a cada homem e é a possibilidade
de todos.
Outra categoria de grande relevância para Kierkegaard é a existência em termo de
possibilidade25. O existir do homem é possibilidade, ou seja, o que o homem pode fazer e
realizar na experiência concreta e vivida. O possível de Kierkegaard caracteriza o existir do
homem. Assim sendo, a vida do homem é existência, é relação com o mundo e com os outros.
O existir como contingência absoluta, pois o existir não conhece outra necessidade a não ser a
das escolhas exigidas por um existir livre sem determinação. Entendemos, portanto que, para
o homem, existir é encontrar-se sempre confrontando com as possibilidades, como é para
Kierkegaard: “[...] O eu katà dýnamin contém tanto de possível como de necessidade, porque
é ele próprio, mas deve realizá-lo. O eu é necessidade, porque é ele próprio, e possível,
porque deve realizar-se”.26 O indivíduo, para Kierkegaard, não está somente dentro e diante
24

JOLIVET, Régis. As doutrinas existencialistas: de Kierkegaard a Sartre. Porto: Livraria Tavares Martins,
1961. p. 36. v.8.
25
“Com o conceito de indivíduo, o de possibilidade é fundamental no pensamento de Kierkegaard. [...] O
homem é aquilo que escolhe ser, a existência é possibilidade, obriga a escolher, implica risco, gera angústia. „A
possibilidade – lemos no Diário – é a mais importante de todas as categorias. Freqüentemente se ouve dizer na
verdade o contrário, que a possibilidade é tão leve e a realidade, ao contrário, tão pesada. Mas de quem
ouvimos tais discursos? De alguns homens miseráveis, que jamais souberam o que seja a possibilidade. Em
geral a possibilidade da qual se diz que é tão leve compreende-se como possibilidade de felicidade, de fortuna
etc. Mas não é, de fato, a possibilidade; esta é uma invenção falaz que os homens, em sua corrupção,
embelezam, para ter ao menos um pretexto para se lamentar da vida e da Providência, e para ter uma ocasião
de se tornarem importantes aos próprios olhos. Não, na possibilidade tudo é igualmente possível, e quem
realmente foi educado mediante a possibilidade, compreendeu tanto o lado terrível quanto o agradável.‟ Para
Kierkegaard, se alguém sai da escola da possibilidade „não pode pretender absolutamente nada‟ e sabe que o
lado terrível, a perdição, a aniquilação, habita com todo homem de porta em porta; e se tirou proveito da angústia
que daí segue, „dará à realidade outra explicação; exaltará a realidade e também quando esta pesa gravemente
sobre ele, se recordará que ela é muito mais leve do que a possibilidade poderia ser‟.” (REALE, op. cit., 2005,
p. 233)
26
KIERKEGAARD, op, cit., 1979, p. 212.
31

da existência, está em relação consigo mesmo, como possibilidade de se realizar enquanto tal
na existência. E nessa relação consigo mesmo, ele sente o peso das possibilidades da
existência, percebendo-se assim, diante da infinitude das possibilidades e dos seus próprios
limites.
É peculiar do indivíduo a existência cujo modo de ser é a possibilidade. E na
possibilidade tudo é possível, ela é ameaça do nada, e disso brota a condição fundamental da
existência humana: a angústia, como puro sentimento do possível, isto é, do futuro, daquilo
que pode acontecer e que pode ser muito mais terrível do que a realidade. Pela angústia, o
homem pode chegar ao desespero: a doença mortal – um eterno morrer sem porém morrer, ou
seja, não querer aceitar-se das mãos de Deus. “O desespero e a angústia caracterizam [...] a
existência, pois existir significa sofrer necessariamente desespero e angústia. Aquele resulta
no fracasso, esta vem ligada à possibilidade e à liberdade”.27
Nos temas a seguir, o ápice do nosso trabalho, constataremos que o desespero e a angústia
são questões relevantes que Kierkegaard trata em sua filosofia, justamente por serem
problemas reais do ser humano. Fazem parte da condição do indivíduo e da sua relação com a
própria existência. A analise kierkegaardiana do desespero e da angústia, por meio dos
pseudônimos: Anti-Climaus e Vigilius Haufniensis, talvez possa representar o momento de
maior maturidade filosófica do autor, voltada a categoria do indivíduo. E é a partir deste
direcionamento existencial maduro de Kierkegaard que podemos dizer que a angústia e o
desespero, na qualidade de problemas existenciais, guardam entre si uma relação muito
estreita, em virtude de o desespero ter o espírito como instância única assim como a angústia.
Os dois estão intimamente ligados, na medida em que ambos estão embasados na própria
complexidade da trama da existência pessoal de cada indivíduo.
Analisemos, portanto, no pensamento kierkegaardiano, como o desespero e a angústia
caracterizam finalmente o existente.

27

GIORDANI, op. cit., 1997, p. 39.
32

3.3 O CONCEITO DE ANGÚSTIA28

Kierkegaard, no seu conceito de angústia, descreve, em sentido amplo, a atitude do
homem que compreende a sua situação no mundo. “Eis o mistério profundo da inocência: ao
mesmo tempo é angústia. Sonhador, o espírito projeta a sua própria realidade que é um nada,
e a inocência vê continuamente diante de si este nada”. O autor do Conceito de angústia,
publicado pela primeira vez em 1844 e dedicada ao professor Paul Martin Moller,29 sob o
pseudônimo de Vigilius Haufniensis30 (O vigilante de Copenhague), apresentou sua obra
como um “simples esclarecimento psicológico preliminar ao problema dogmático do pecado
original”.31 Esclarecimento psicológico e não filosófico; esclarecimento este que
aprofundaremos, buscando uma maior compreensão deste estado na existência humana.

3.3.1 A pedagogia da angústia

Para Kierkegaard, a angústia é um estado que manifesta a relação do indivíduo com o
mundo, uma relação determinada pela liberdade. E sendo uma obra com o simples
esclarecimento psicológico, se tratará quase que brevemente do pecado, pois a angústia está
no fundamento do pecado original como a queda do homem em Genesis dá um exemplo dela.

Com o primeiro pecado, o pecado entrou no mundo. O mesmo é dizer que,
com o primeiro pecado de qualquer homem posterior a Adão, o pecado entra
no mundo. Porém, dizer que não havia pecado antes da queda de Adão, é uma
afirmação não só completamente fortuita e irrelevante no que toca ao pecado
em si, como desprovida de sentido e de direito de tornar maior o pecado de
Adão e menor o primeiro pecado de qualquer outro homem. 32

A angústia em Kierkegaard precede o pecado e está ligada à possibilidade e à
liberdade. Ela caracteriza a existência e serve para revelar ao existente o seu ser. Desde que o
que é dado não é o eu, mas somente a possibilidade do eu, colocando-se diante do nada e
28

A angústia – do latim angere, apertar, estrangular – é um sentimento que ao contrário do medo não tem objeto
preciso.
29
Poeta, teólogo e filósofo diamarques (1794-1838), considerado como precursor de Kierkegaard.
30
Um dos habituais pseudônimos latinos de Kierkegaard.
31
KIERKEGAARD, Sören. O conceito de angústia. Tradução de João Lopes Alves. 2. ed. Editorial Presença,
[s.d.]. p. 7.
32
Ibid, [s.d.], p. 47
33

como que debruçado sobre o vácuo. É vertigem diante do que não é, mas poderá ser pelo uso
de uma liberdade que não se experimentou e que não se conhece. Como uma espécie de
antipatia simpática ou de simpatia antipática33, a angústia é desejo do que se teme, temor do
que se deseja. E é nesta mistura de coisas opostas, podendo dizer também uma fascinação que
tem lugar o primeiro pecado – conforme o relato do encantamento da serpente do livro do
Genesis. A angústia foi responsável pela queda do primeiro homem, Adão. No Éden ele vivia
num estado de inocência mesclado com ignorância. Essa ignorância determinou sua queda. A
angústia, portanto foi responsável por sua queda por estabelecer uma relação entre a inocência
de Adão, a coisa proibida e o castigo. Para Kierkegaard, a queda é um ato de liberdade.
Comer o fruto, a escolha provocada pela própria angústia. O ato de pecar é, então, visto como
natural por ser conseqüência da própria angústia, que representa o mais alto grau de egoísmo,
pois nesse estado o indivíduo não desvia o olhar dele próprio e, assim, perde de vista Deus. O
pecado, aqui, é considerado como estar apartado de Deus. O pecado é uma decisão que,
mesmo tomada em liberdade, acabou por amarrá-la e, para ele, é nesse local da liberdade que
o indivíduo pode reencontrar a si mesmo. O ser humano transformou sua liberdade em
escravidão.
A angústia é a vertigem da liberdade e dessa vertigem vem a queda; ela é definida a
partir de então como a experiência vivida da possibilidade. A angústia não faz sinal a uma
liberdade abstrata que se identifica ao livre-arbítrio, e sim a uma liberdade concreta e finita:

Pode comparar-se a angústia à vertigem. Quando o olhar mergulha num
abismo, há uma vertigem, que tanto nos vem do olhar como do abismo, pois
que nos seria impossível deixar de o encarar. Tal é a angústia, vertigem da
liberdade, que nasce quando, ao querer o espírito instituir a síntese, a
liberdade mergulha o olhar no abismo das suas possibilidades e se agarra à
finitude para não cair. Nesta vertigem a liberdade soçobra. Eis até onde chega
a Psicologia, recusando-se a ir mais além. No mesmo instante, porém tudo
mudou, e quando a liberdade se soergue, descobre-se culpada. É entre estes
dois instantes que dá o salto, inexplicado e inexplicável por qualquer das
ciências. Para o homem que devém culpado na angústia, a culpabilidade é o
mais ambígua possível. A angústia corresponde a um delíquio feminil em que
a liberdade desmaia e, psicologicamente, não houve queda senão em estado
de inconsciência; mas, ao mesmo tempo, a angústia é a coisa mais
crispadamente pessoal e nenhuma manifestação concreta da liberdade se
revela tão ciumenta do Eu como é possibilidade de qualquer concreção.
Reencontramos ainda aqui aquele acabrunhamento que determina a
ambigüidade do indivíduo, o seu estado se simpatia e antipatia. Não que, na
angústia, a infinitude egoísta do possível nos tente como quando somos
postos perante uma escolha; no entanto, enfeitiça-nos, inquieta-nos com a sua
doce ansiedade.34

33
34

Cf. KIERKEGAARD, op. cit.,[s.d], p. 64.
KIERKEGAARD, op. cit., [s.d.], p. 93/4.
34

Para Kierkegaard, a liberdade vertiginosa não pode ser estabelecida como especulativa
porque o discurso filosófico produz conceitos; portanto, para falar de liberdade devemos
abandonar o terreno da lógica e partir para a psicologia, pois a esta não cabe dar definições e
sim descrever estados. É por isso que Kierkegaard escreveu no início de seu tratado que era
simples esclarecimento psicológico e não filosófico; a angústia como um estado que pode
explicar a liberdade como vertigem. A angústia tem por origem a liberdade, entrave pela
própria liberdade, a liberdade cativa de si própria. Segue então que angústia é essencialmente
dialética, pois é possibilidade de algo que é e não é, que atrai e que repugna. Analisando a
forma dialética da angústia em Kierkegaard, perceberemos a ambigüidade psicológica como
elemento predominente.
Em sua obra, Kierkegaard também identifica dois tipos de angústia: a angústia
objetiva e a angústia subjetiva. Por angústia objetiva ele compreende o reflexo da
pecabilidade da geração no mundo inteiro, ou seja, é a angústia pela qual o pecado entrou no
mundo; é a angústia onde o homem, pelo fato da própria existência, é colocado diante de sua
liberdade, da possibilidade de poder. Neste sentido, para o nosso filósofo, Adão estabeleceu o
pecado não apenas em si mesmo, mas como para toda a humanidade. Portanto, a entrada do
pecado no mundo teve importância para toda a criação: “Temos todo o direito de chamar a
esta angústia da criação, angústia objectiva. É um produto, não das criaturas, mas daquela
mudança de iluminação que estas sofreram quando o pecado de Adão degradou a
sensualidade em pecabilidade [...]”35. E a angústia subjetiva, é para Kierkegaard, a do homem
que experimenta pessoalmente a vertigem da liberdade por meio de seus atos e de seus
pecados; seria no indivíduo como conseqüência de seu pecado.

O emprego da expressão angústia objectiva induzirá [...] a pensar nessa
angústia da inocência que é mero reflexo interior da liberdade como possível.
[...] Mais pertinente seria lembrar que, ao falar de angústia objectiva para
distinguir da angústia subjectiva, se pratica uma diferenciação inadmissível
no que concerne ao estado de inocência de Adão. [...] A angústia subjectiva
[...] seria a que instaura no indivíduo em conseqüência do pecado. [...]
equivale aqui à angústia que existe na inocência do indivíduo, correspondente
à de Adão, mas que devido à determinação quantitativa de cada geração,
difere dessa em quantidade; por angústia objectiva, entendemos, pelo
contrário, o reflexo da pecabilidade da geração no mundo inteiro.36

E nesta experiência da angústia subjetiva, o indivíduo pode superá-la quando a
Salvação é tida como uma realidade, e isto será possível pela fé no Deus que tudo é possível:
35
36

Cf. KIERKEGAARD, op. cit.,[s.d.], p. 89.
KIERKEGAARD, op. cit.,[s.d.], p. 86/7.
35

“A angústia é o possível da liberdade e só essa angústia forma, pela fé, o homem, no sentido
absoluto da palavra, devorando todas as finitudes, pondo a descoberto todas as ilusões”37. O
homem vê entre ele e o mundo um vácuo que o faz perder todo sentimento de segurança. Só
na mediada em que for capaz de sofrer a prova desse abandono e dar o salto pela fé será
existencialmente livre. A angústia é o lugar onde o si mesmo começa a advir, experiência cuja
tonalidade afetiva é absolutamente única, pois ela não tem objeto e não é de forma alguma
intencional. Nela o espírito sempre é tentado, o pecado o fascina.
Podemos entender que, a angústia kierkegaardiana, é a expressão de uma perfeição da
natureza humana, pois é só através dela que o homem poderá elevar-se à existência autêntica.
Ela aniquila no homem todas as seguranças habituais para o entregar ao abandono de onde
unicamente pode surgir a autêntica existência. Assim, percebemos mais claramente que, a
angústia é a vertigem da própria liberdade. “O homem formado pela angústia é formado pela
possibilidade e só aquele que a possibilidade forma está formado na sua infinitude. Por isso, a
possibilidade é a mais árdua das categorias”38. Com a originalidade do pensamento de
Kierkegaard sobre o Conceito de angústia podemos dizer que a angústia é a condição
fundamental do homem diante do mundo, do possível que é fruto de sua liberdade.
O homem experimenta angústia diante da liberdade carregada com o peso esmagador
que é sua tarefa autêntica, a de ser humano, a saber, sintetizar as diferentes formas do seu ser
próprio. Ela é a possibilidade da liberdade, e é preciso ser educado por ela para ser livre
mediante a infinitude que lhe é própria. A angústia se vence somente com a fé. Ela é uma
aventura que todo homem deve correr se não quer perder-se. Somente em virtude da fé ela
possui um valor educativo. A angústia vem do fato de que Deus deixa o homem livre, à sua
imagem, para operar, por seus atos concretos, as escolhas em que se projeta a fim de
construir-se, de edificar-se.

3.4 O DESESPERO HUMANO39

Como vimos, anteriormente, que a angústia é a condição na qual o homem é colocado
pelo possível no que se refere de sua relação com o mundo, agora veremos, portanto, que o
37

KIERKEGAARD, op. cit.,[s.d.], p. 232.
Id.
39
O Desespero Humano é uma das obras de Soren Kierkegaard considerada mais importante. Ela foi escrita pelo
filósofo em 1849 sob o pseudônimo Anti-Climacus.
38
36

desespero é inerente à relação do eu40 consigo mesmo e à possibilidade dessa relação.
“Doença do espírito, do eu, o desespero pode como tal tomar três figuras: o desespero
inconsciente de ter um eu (o que é verdadeiro desespero); o desespero que não quer, e o
desespero que quer ser ele próprio”.41 O eu é formado da síntese do finito e do infinito, mas
essa síntese é uma relação que, apesar de derivada, se relaciona consigo própria, o que
fundamenta a liberdade.

O homem é espírito. Mas o que é espírito? É o eu. Mas, nesse caso, o eu? O
eu é uma relação, que não se estabelece com qualquer coisa de alheio a si,
mas consigo própria. Mais e melhor do que na relação propriamente dita, ele
consiste no orientar-se dessa relação para a própria interioridade. O eu não é
a relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento que
ela tem de si própria depois de estabelecida. O homem é uma síntese de
infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, é,
em suma, uma síntese. Uma síntese é a relação de dois termos.42

O desespero pertence ao eu, consiste no viver da morte pelo eu. É inerente à
personalidade do homem, à relação consigo próprio e à possibilidade desta relação. O
indivíduo pode saber que está no desespero sem saber a causa de tal situação. Mas se houver
uma clareza completa, isto é, se o indivíduo tiver plena consciência da motivação total, então
o desespero desaparecerá na medida em que se torna consciente de tal realidade. Eis a questão
que iremos refletir acerca do desespero humano, a doença mortal.

40

Para compreendermos melhor a idéia do desespero devemos levar em consideração a teoria kierkegaardiana do
eu; “O conceito do „eu‟ é o conceito fundamental do romantismo. Tem um papel de primeiro plano nas filosofias
de Fichte e de Schelling, e ocupa, ao mesmo tempo, um lugar especial dentro do pensamento hegeliano. [...] Em
Kant o eu não é apenas objeto de percepção, mas também sujeito do pensamento. [...] o eu ou o „Eu penso‟ é o
que confere a unidade à diversidade do pensamento, o que acompanha todas as representações (Crítica da razão
pura). O eu é [...] consciência de si, ou seja, consciência de seu papel de acompanhante de todas as suas
representações. [...] Fichte desenvolveu uma teoria do eu absoluto, isto é, de uma eu que utiliza tanto seu poder
de união [...] que se torna o criador de toda a realidade (Doutrina da ciência, 1794). O eu torna-se entre os
românticos uma consciência de si infinita e absoluta, um „algo‟ que encontra em si mesmo, uma subjetividade
desenfreada – em Kierkegaard também a subjetividade ocupa o primeiro lugar, mas possui um limite: Deus [...]
Hegel, ao contrário, em seu sistema minimiza o eu e dele faz a simples certeza de si (Ciência da lógica). O que
procura é um saber para o qual a distinção entre o eu e o não-eu, entre a subjetividade e a objetividade,
desapareça sob a união, um saber absoluto. [...] é precisamente a essa unidade da consciência que Kierkegaard se
opõe. Ao eu como unidade, opõe o eu como relação. O que é unido é estável, o que está em relação, ao
contrário, é estável, variável, frágil. Assim, o eu como relação reconhece que é, antes de mais nada, uma
formação instável, sujeita à angústia, à indecisão, à doença, à morte [...] A volta sobre essa relação, a ligação da
relação consigo mesmo, constitui o eu” (BLANC, op. cit.,2003, p. 84/5).
41
KIERKEGAARD, op, cit., 1979, p. 195.
42
Ibid., p. 195.
37

3.4.1 Doença para a morte

Kierkegaard diz que o desespero é a “doença até a morte”; no entanto, podemos
perguntar: mas qual o sentido desta expressão doença para a morte? Assim ele define:

Esta idéia de „doença mortal‟ deve ser tomada num sentido particular. A letra
significa um mal cujo termo é a morte, e serve então de sinônimo duma
doença da qual se morre. Mas não é nesse sentido que se pode designar assim
o desespero; porque, para o cristão, a própria morte é uma passagem para a
vida. Desse modo, a nenhum mal físico ele considera „doença mortal‟. A
morte põe termo às doenças, mas só por si não constitui um termo. Mas uma
„doença mortal‟ no sentido estrito que dizer uma mal que termina pela morte,
sem que após subsista qualquer coisa. E é isso o desespero.43

Ele não entende como um mal cuja saída é a morte. Para ele, portanto, o desesperado é
um enfermo que sofre de uma doença até a morte, mas de uma doença da qual não pode
morrer, o mal não morre. O desespero é uma doença até a morte porque o desesperado deseja
a morte do eu, uma modificação, transformação da relação do eu com ele mesmo; é o viver a
morte do eu. Do ponto de vista cristão, a vida não é fim, mas passagem à vida eterna, e assim
sendo não pode haver doença mortal para o cristão. Para Kierkegaard, o desespero é a culpa
do homem que não sabe aceitar a si mesmo em sua profundidade: é um eterno morrer sem, no
entanto morrer, uma autodestruição impotente. Essa destruição de si próprio, o desespero, é
impotente e não consegue os seus fins. A sua vontade é destruir-se, porém é exatamente isso
que ela não consegue fazer. A própria impotência é uma segunda forma de destruição, na qual
o desespero erra o seu alvo, que seria a destruição do eu. É a tentativa impossível para negar a
possibilidade do eu ou de tornar o eu auto-suficiente. Essa doença manifesta dois sintomas
particulares: o desespero em si, querer ser o eu que não se é na verdade ou desfazer de si; e o
querer ser si mesmo a qualquer preço, o que significa ainda querer ser o que não se é
verdadeiramente.

Daí provém que haja duas formas do verdadeiro desespero. Se o nosso eu
tivesse sido estabelecido por ele próprio, uma só existiria: não querermos ser
nós próprios, querermo-nos desembaraçar do nosso eu, e não poderia existir
outra: a vontade desesperada de sermos nós próprios.44

43
44

KIERKEGAARD, op, cit., 1979, p. 199.
Ibid., p. 195.
38

Em Kierkegaard “o homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de
eterno, de liberdade e de necessidade, uma síntese, relação de dois termos”. A partir desta
relação temos, então, dois tipos de desespero: um é a recusa de reconhecer o infinito em si,
recusa de assumir a responsabilidade pela sua vida interior por causa das exigências que ela
coloca; o outro advém da síntese de necessidade e de liberdade, pois esta provém de uma
carência de liberdade ou de necessidade, e a falta de uma destas é a fuga do eu para uma
infinidade de possibilidades que jamais esgotam. Uma vez que o indivíduo é a síntese entre a
finitude e a infinitude, o desespero surge quando um desses fatores assume o predomínio
sobre o outro.
O homem em desespero tem o costume de se considerar vítima de circunstâncias
externas, mas quando reconhece que o problema é interior a reação é de curar-se de si mesmo.
Eis o ponto de sua grandeza e de sua miséria, pois o desespero tem como raiz, no homem, o
eterno. Bem longe de não serem desesperados todos aqueles que não sentem o desespero, ou
que supõem só o serem aqueles que o confessam, muito ao contrário, o homem que afirma
com coragem o seu desespero não está tão longe da cura, está mais próximo do que todos
aqueles que não são considerados ou não se julgam desesperados. Desesperar de uma coisa
não é ainda o verdadeiro desespero, é apenas o início dele. Declara-se o desespero real quando
o indivíduo desespera de si próprio. Desesperar de si próprio, ou querer desesperadamente
libertar-se de si próprio é a fórmula de todo o desespero. Para Kierkegaard, quem desespera
quer no seu desespero ser ele próprio45. Entretanto, o homem deseja sempre libertar-se do seu
eu, do eu que é para se tornar um eu da sua própria invenção. O eu é formado da síntese do
infinito e do finito, mas essa síntese é uma relação que se relaciona consigo próprio, o que
fundamenta a liberdade. Nesse sentido o eu é liberdade, porém a liberdade que é a dialética
das duas categorias do possível e do necessário. É neste sentido que Kierkegaard fala da
doença personificada do desespero.

[...] Quem desespera quer, no seu desespero, ser ele próprio. Mas então, é
porque não pretende desembaraçar-se do seu eu? Aparentemente, não; mas se
virmos as coisas mais de perto, encontramos sempre a mesma contradição.
Este eu, que o desesperado quer ver, é um eu que ele não é (pois querer ser o
eu que se é verdadeiramente é o contrario do desesperado), o que ele quer,
com efeito, é separar o seu eu do seu Autor. [...] Entretanto o homem deseja
sempre libertar-se do seu eu, do eu que é, para se tornar um eu da sua própria
invenção. Ser este „eu‟ que ele quer faria a sua delícia [...] mas o
constrangimento de ser este eu que não quer ser, é o seu suplício: não pode
libertar-se de si próprio.46
45
46

Cf. KIERKEGAARD, op. cit., 1979, p. 200.
Ibid., p. 201.
39

O eu que não se torna ele próprio permanece desesperado; enquanto não consegue
tornar-se ele próprio, o eu não é ele próprio, portanto não ser ele próprio é o próprio
desespero. Podemos nos perguntar, diante destas considerações de desespero: o que o
desespero nos ensina? Podemos, então, chegar a conclusão que, o eu que quer se tornar ele
mesmo não consegue – por causa de sua natureza finita – e que aquele que não quer ser ele
mesmo sofre um fracasso. O desespero ensina que é impossível vencer o desespero, que ele é
de fato a doença até a morte do eu. Mas a impossibilidade de vencer o desespero só é uma
impossibilidade para aquele que não acredita em Deus, para aquele que não tem fé – se a
Salvação é impossível para o homem, a Deus tudo continua sendo possível. Assim o único
remédio para o desespero é a fé, porque ter fé é acreditar que para Deus tudo é possível.
Porém, antes de Kierkegaard falar da fé, a qual aprofundaremos mais adiante, como
antídoto da doença até a morte, ele fala do pecado. A essência do pecado para o nosso autor é
o desespero, ou seja, o pecado consiste no desespero pelo fato de se desesperar por não se ter
fé. O pecado é a fraqueza elevada à suprema potência. O indivíduo peca quando perante Deus,
desesperado não quer ou quer ser si próprio.

Pecamos quando, perante Deus ou com a idéia de Deus, desesperados, não
queremos, ou queremos ser nós próprios. O pecado é deste modo fraqueza ou
desafio elevados à suprema potência; é portanto, condensação do desespero.
O acento recai aqui sobre estar perante Deus ou ter a idéia de Deus; o que faz
do pecado aquilo que os juristas chamam „desespero qualificado‟; a sua
natureza dialética, ética, religiosa, é a idéia de Deus.47

O pecado é ignorância no sentido da própria natureza, portanto, o pecado consiste
perante Deus, no desespero por não querermos ser nós mesmos ou no desespero por o
querermos. Ora, tendo em vista a dependência ontológica que caracteriza o eu humano, o eu
não pode por si mesmo alcançar o equilíbrio e o repouso e ai permanecer, mas pode
unicamente relacionando-se consigo mesmo, relacionar-se com o que aquele que estabeleceu
toda relação, que é Deus. Acrescenta-se ainda que, seja qual for a escolha feita, o homem não
escapa a uma fase de desespero. Kierkegaard qualifica como desespero até as vidas mais
tranqüilas, inconscientes de suas próprias misérias, o que ele chama de “não-vida”. A solução
acessível a este ser, que por essência o homem, é a fé paradoxal. É o relacionamento de toda a
relação com a força que a formou: Deus, pois é nesta relação que se faz a junção do
incondicional e da condição.

47

KIERKEGAARD, op. cit.,1979, p. 239.
40

4 A FÉ E A LIBERDADE

Como já observamos, a existência é o modo de ser do indivíduo, como é também o
reino da liberdade: o homem é o que escolhe ser, é aquilo que se torna. Segundo Kierkegaard,
é exatamente a vida de fé que constitui a forma verdadeiramente autêntica da existência finita,
vista como o encontro do indivíduo com a singularidade de Deus. “A angústia é o possível da
liberdade e só essa angústia forma, pela fé, o homem, no sentido absoluto da palavra”. O
coração do drama humano está na relação da existência com uma transcendência que constitui
sua abertura a um além de si mesmo; a existência, portanto, significa poder de decisão,
possibilidade de ser e de nada, como dúvida e como fé, uma ação interior da liberdade que
leva a fazer opções decisivas. A fé é um dos temas preferidos de Kierkegaard. Contra o
pensamento e a praxe da Igreja oficial pela sua conveniência e dependência em relação ao
Estado dinamarquês sem implicações pessoais, ele sustenta com extraordinário vigor e
convicção a tese da subjetividade da fé.

Com estes meus olhos vi coisas terríveis e nunca recuei apavorado, mas sei
muito bem que, embora as afrontasse sem medo, não se segue daí que a
minha coragem me não venha da fé, nem com ela se pareça em nada. Não
posso realizar o movimento da fé, não posso cerrar os olhos e lançar-me de
cabeça, pleno de confiança, no absurdo [...] Não importuno Deus com
mesquinhas inquietações; não me preocupa o detalhe, fixo os olhos
unicamente no meu amor, cuja chama, clara e virginal, guardo dentro de
mim; confia a fé em que Deus cuida das mínimas coisas. Sinto-me contente
de estar casado nesta vida pela mão esquerda; a fé é demasiado humilde para
solicitar a direita; que o faça em plena humildade, não o nego, jamais o
negarei.48

A experiência religiosa não pode ser autêntica e verdadeira se for objetiva e desligada.
Para ser verdadeira, ela deve empenhar o sujeito, isto é, tornar-se subjetiva. A subjetividade
não significa somente adesão pessoal a uma verdade, mas também ausência de elementos
objetivos de controle para estabelecer a verdade. E por causa destas duas características o
conhecimento subjetivo é um risco. O risco é um elemento inseparável da verdadeira
experiência religiosa, da fé. A fé é um risco porque requer a adesão pessoal a afirmações que
não apresentam nenhuma garantia. A fé é um risco porque o seu objeto é o paradoxo, uma
verdade que ultrapassa os esquemas da razão humana. “Verdade, compromisso e risco estão,

48

KIERKEGAARD, op. cit., 1979, p. 127/8.
41

de fato, necessariamente ligados. Não pode haver verdade para mim desde que eu não me
disponha a tomar um compromisso e a arriscar tudo. Recusar o risco é recusar a verdade”.49

4.1 A FÉ COMO REMÉDIO – O SALTO PARA LIBERDADE

O salto opõe-se ao conceito hegeliano de passagem A passagem de uma esfera da
existência à outra não se faz por evolução, mas por salto. No salto para a fé, a angústia
desempenha papel importante. Esta não possui somente o aspecto negativo de colocar a
totalidade do ser, a própria existência diante do nada, mas injeta positivamente levando o
homem ao salto desesperado para a fé.

[...] A dialética da fé é a mais sutil e notável de todas; tem uma sublimidade
de que posso ter uma idéia, mas não mais que isso. Posso muito bem executar
o salto de trampolim no infinito; tal como o dançarino de corda, a espinha
torceu-se-me na infância; também saltar me é fácil: um, dois e três! Lançome de cabeça na vida, mas já para o salto seguinte estou incapacitado;
permaneço interdito em face do prodígio, não o consigo realizar [...] 50

Para Kierkegaard, o caminho que leva o cristão defrontar-se sozinho com Deus e
realizar, assim a plenitude individual está nas etapas da existência. Por estas etapas ele
entende: os estádios51 estético, ético e religioso. No estádio estético, o homem vive fora de si;
no estádio ético começa a entrar em si; e no estádio religioso, volta-se completamente para si
encontrando-se nas mãos de Deus. E é neste estádio, ao aprofundar em si mesmo que o
homem faz experiência com o Absoluto. A categoria central da esfera religiosa é estar diante
de Deus. Ele domina a existência humana. Surge assim, um diálogo misterioso entre Deus e o
homem. A chamada de Deus se realiza em cada instante e é uma expressão fundamental pela
qual Ele chama continuamente o homem à existência na criação. O homem deve corresponder
continuamente a essa chamada, pois só assim existe autenticamente vivendo com sua
individualidade sozinho com Deus. Pela fé o homem se abre totalmente a Deus e se coloca
integralmente em suas mãos. A angústia de fundir-se no nada sucede a segurança de estar
49

JOLIVET, op. cit.,1961, p. 47.
KIERKEGAARD, op. cit.,1979, p. 129.
51
As palavras estádio ou etapas da existência não devem sugerir uma sucessão cronológica no sentido em que
cada indivíduo deva passar sucessivamente pelas etapas abandonando um, após a outra, como se abandonam os
degraus de uma escada. Esses três estádios coexistem e podemos refletir ao mesmo tempo sobre os mesmos,
porém não podemos é vive-los simultaneamente, pois que esses diferentes modos de existir se excluem entre si.
(Cf. GIORDANI, op. cit.,1997, p. 41)
50
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A angústia e o desespero humano

  • 1. 1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CÂMPUS MARINGÁ CURSO DE LICENCIATURA EM FILOSOFIA MARILZA BARRIOS DOS SANTOS A ANGÚSTIA E O DESESPERO COMO FUNDAMENTO ONTOLÓGICO DA EXISTÊNCIA HUMANA NO PENSAMENTO DE SÖREN KIERKEGAARD MARINGÁ 2010
  • 2. 2 MARILZA BARRIOS DOS SANTOS A ANGÚSTIA E O DESESPERO COMO FUNDAMENTO ONTOLÓGICO DA EXISTÊNCIA HUMANA NO PENSAMENTO DE SÖREN KIERKEGAARD Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de Licenciatura em Filosofia, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Licenciatura. Orientador: Prof. Dr. José Aparecido Pereira. MARINGÁ 2010
  • 3. 3 MARILZA BARRIOS DOS SANTOS A ANGÚSTIA E O DESESPERO COMO FUNDAMENTO ONTOLÓGICO DA EXISTÊNCIA HUMANA NO PENSAMENTO DE SÖREN KIERKEGAARD Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de Licenciatura em Filosofia, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Licenciatura. COMISSÃO EXAMINADORA ____________________________________________ Prof. Dr. José Aparecido Pereira Pontifícia Universidade Católica do Paraná _____________________________________________ Prof. Ms. Leomar Antonio Montagna Pontifícia Universidade Católica do Paraná _____________________________________________ Pe. José Moreira Silveira Pós-Graduação em História - UEM Maringá, ______de ________________de 2010.
  • 4. 4 A todos os que buscam, através de suas vidas, uma existência autêntica, mesmo àquelas que se encontram no abismo da angústia e do desespero. A estes, desejo o brilho da existência guiados pela fé, pela esperança e pela liberdade.
  • 5. 5 AGRADECIMENTOS À Deus, sentido único da minha existência, pela sua presença e pelo seu amor e sabedoria infinita. À minha família religiosa das Apóstolas do Sagrado Coração de Jesus, nas pessoas dos meus Superiores; de modo especial a cada co-irmã que estiveram sempre ao meu lado proporcionando estímulo e apoio necessário nesta caminhada. Ao professor José Aparecido Pereira, que com paciência, dedicação, e atenção me ajudou com sua orientação a chegar até aqui. À todos os professores do curso de Licenciatura em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em especial ao professor e diretor do curso Leomar Antonio Montagna, que através de seus ensinamentos e dedicação em sala de aula me ajudaram a crescer no conhecimento. Aos meus caríssimos colegas e amigos de sala, que por três anos percorremos juntos o árduo caminho do saber filosófico. Por fim, a todos que de algum modo, contribuíram para a construção e conclusão deste trabalho e do curso de filosofia.
  • 6. 6 "Algum dia até, não somente os meus escritos, mas a minha vida e todo o complicado segredo do seu mecanismo serão minuciosamente estudados." Kierkegaard
  • 7. 7 RESUMO O presente trabalho propõe uma reflexão acerca do existencialismo de Kierkegaard, por meio de pesquisa bibliográfica, sobre os conceitos de angústia e desespero humano como fundamento ontológico da existência no pensamento do filósofo. Com o intuito de compreender como a angústia e o desespero constituem elementos para a existência autentica realizamos esta pesquisa que está estruturada em três capítulos: no primeiro capítulo delinearemos brevemente o contexto histórico e filosófico; no segundo capítulo elucidaremos a sua crítica a teoria absoluta na linha filosófica hegeliana, prosseguindo daremos enfoque ao conceito de indivíduo e existência como possibilidade. Dada esta compreensão, refletiremos o conceito de angústia e sua pedagogia, e o desespero humano como doença para morte; no terceiro capítulo daremos ênfase à fé como salto e a existência humana na relação com o Absoluto. Tanto a angústia quanto o desespero são problemas existenciais muito reais, e são, portanto, aspectos inerentes à condição humana, que através das possibilidades de escolha se dá o salto pela fé marcada pela relação com o Absoluto. Palavras-chave: Indivíduo. Angústia. Desespero. Fé. Absoluto.
  • 8. 8 RESUMEN El presente trabajo propone una reflexión acerca del existencialismo de Kierkegaard por médio de investigación bibliográfica, sobre los conceptos de angustia y desesperación humana como fundamento ontológico de la existencia en el pensamiento del filósofo. Con el objetivo de compreender como la angustia y la desesperación constituyen elementos para la existencia autentica realizamos esta investigación que está estructurada en tres capítulos: en el primer capítulo delinearemos brevemente el contexto histórico y filosófico; en el segundo capítulo dilucidaremos su crítica la teoría absoluta de la línea filosófica hegeliana, prosiguiendo daremos enfoque al concepto de individuo y existencia como posibilidad. Dada esta comprensión, reflectaremos el concepto de angustia y su pedagogía, y la desesperación humana como enfermedad para muerte; en el tercer capítulo daremos énfasis a la fe como salto y la existencia humana en la relación con El Absoluto. Tanto la angustia cuanto la desesperación son problemas existenciales muy reales, y son, por lo tanto, aspectos inerentes a la condición humana, que a través de las posibilidades de elección se da el salto por la fe marcada por la relación con El Absoluto. Palabras clave: Individuo. Angustia. Desesperación. Fe. Absoluto.
  • 9. 9 SUMÁRIO 1INTRODUÇÃO................................................................................................................ 9 2 KIERKEGAARD: VIDA, CONTEXTO HISTÓRICO E FILOSÓFICO................ 13 2.1 VIDA E OBRAS............................................................................................................ 13 2.2 CONTEXTO HISTÓRICO........................................................................................... 18 2.3 CONTEXTO FILOSÓFICO.......................................................................................... 20 3 ANGÚSTIA E DESESPERO COMO ELEMENTO ONTOLÓGICO DA EXISTÊNCIA HUMANA................................................................................................. 24 3.1 PONTO DE PARTIDA DA FILOSOFIA DE KIERKEGAARD: CRÍTICA AO PENSAMENTO DE HEGEL.............................................................................................. 24 3.2 O INDIVÍDUO E A EXISTÊNCIA COMO POSSIBILIDADE.................................. 27 3.3 O CONCEITO DE ANGÚSTIA................................................................................... 31 3.3.1 A pedagogia da angústia............................................................................................. 31 3.4 O DESESPERO HUMANO.......................................................................................... 34 3.4.1 Doença para a morte................................................................................................... 36 4 A FÉ E A LIBERDADE................................................................................................. 39 4.1 A FÉ COMO REMÉDIO – O SALTO PARA LIBERDADE.......................................... 40 4.2 A EXISTÊNCIA HUMANA NA RELAÇÃO COM O ABSOLUTO............................. 42 5 CONCLUSÃO................................................................................................................. 46 REFERÊNCIAS................................................................................................................. 48 BIBLIOGRAFIAS CONSULTADAS............................................................................... 49
  • 10. 10 1 INTRODUÇÃO A busca pelo sentido da vida sempre foi como também continua sendo um dos maiores anseios da humanidade pelo fato de que o existir é algo grandioso demais para não dar valor. Existir é um fator importantíssimo para o conhecimento de nós mesmos e de tudo que nos cerca, pois nos impulsiona para uma maior compreensão da realidade em que vivemos. É, sobretudo, a partir dessas afirmações que nos propusemos a discutir o existencialismo de Kierkegaard. O século XIX foi um dos momentos mais importante na história da filosofia. Neste período vemos despontar vários filósofos, como Fichte, Schelling, Nietzsche, Karl Marx, Hegel, os quais estes são alguns dos mais representativos desta época. E é neste contexto de grandes pensadores que nasce Sören Aabye Kierkegaard (1813-1855), filósofo, teólogo, crítico e poeta dinamarquês, considerado o pai do existencialismo. Suas inúmeras produções contribuíram definitivamente para que ocupasse um lugar de destaque na história do pensamento ocidental. Pelas suas obras podemos confrontar temas que contribuíram para a constituição da filosofia da existência voltada para a realidade vivida buscando resgatar o valor do indivíduo enquanto subjetividade. O presente trabalho propõe uma reflexão acerca do existencialismo de Sören Kierkegaard com base a pesquisa bibliográfica, sobre os conceitos de angústia e desespero humano como fundamento ontológico da existência no pensamento do filósofo. Com o objetivo de compreender como a angústia e o desespero constituem elementos para a existência humana que realizamos esta pesquisa. A nossa reflexão acerca do tema proposto buscaremos apresentar sucintamente o conteúdo, os objetivos, a importância e o método de nossa pesquisa a fim de fornecer elementos para uma boa leitura e uma melhor compreensão na abordagem significante da existência humana marcada intrinsecamente pela angústia e pelo desespero, traçada pelo nosso filósofo existencialista. O nosso trabalho está estruturado em três capítulos: no primeiro capítulo delinearemos brevemente o contexto histórico e filosófico do nosso autor. No segundo capítulo elucidaremos a sua crítica a teoria absoluta hegeliana. E prosseguindo daremos enfoque ao conceito de indivíduo e existência como possibilidade. Dada esta compreensão, refletiremos o conceito de angústia e sua pedagogia, e o desespero humano como doença para morte. No
  • 11. 11 terceiro capítulo daremos ênfase à fé como salto e a existência humana na relação com o Absoluto. Veremos, portanto, que tanto a angústia quanto o desespero são problemas existenciais muito reais, e são aspectos inerentes à condição humana, que através das possibilidades de escolha se dá o salto pela fé marcada pela relação com o Absoluto. No primeiro capítulo aprofundaremos pontos da vida, do contexto histórico e filosófico de Kierkegaard. Sua filosofia tem como fonte de inspiração ele mesmo em sua existência singular e concreta. Sua vida repleta de inquietações e angústias, que são expressas em seus textos, exerceu profunda influencia no desenvolvimento de seu pensamento. Convêm recordar sinteticamente os decisivos na formação da personalidade de pensador dinamarquês. Sob as aparências de uma vida sem acontecimentos singulares, ocultou as inquietações e angústia de uma das épocas mais perturbadas do mundo moderno nascente. Duas figuras dominaram sua vida curta e agitada: a do pai Mikael Pederson Kierkegaard e a da jovem Regina Olsen, a noiva a quem amava não conseguindo tomar por esposa em conseqüência do sentimento de culpa e de melancolia de que se tornou vítima devido à educação que recebera do pai. Além de herdar um temperamento tristonho recebeu uma formação cristã com exageros escrúpulos quanto ao pecado. Desde a infância foi transmitida como herança a religiosidade sombria, envolta a uma atmosfera de maldição que pesava sobre o pai. Mikael, homem que quando jovem, era pastor de ovelhas nas planícies da Jutlandia, interior da Dinamarca, sofrendo fome e frio amaldiçoou Deus no alto de uma colina, o qual com oitenta e dois anos não foi capaz de esquecer este episódio. Kierkegaard sempre percebeu algo estranho no ambiente familiar, o qual teve a surpresa da revelação do segredo de seu pai: o fato de ter seduzido a mulher que ia ser sua mãe antes de casados. Foi um verdadeiro e terrível trauma. De seu pai, portanto, ele recebeu as armas da melancolia, da dialética e da inquietação. Kierkegaard foi educado dentro das concepções do cristianismo luterano onde se acentuava a condição pecaminosa da natureza humana intrinsecamente corrompida. Sören Kierkegaard sentiu todo o peso desses ensinamentos e refletiu-os em sua maneira de viver, pensar e escrever. Outro fato que deixou marcas inesquecíveis na vida e no pensamento de Kierkegaard foi seu amor por Regina Olsen. Ele amou-a apaixonadamente, e apenas comprometido com ela em noivado, arrependeu-se e procurou por todos os meios romper o compromisso. Devolvendo-lhe a aliança com uma nota fria e obscura, não hesitou e rompeu definitivamente com Regina. Pode-se dizer que as razões do rompimento seria uma timidez de sua formação física defeituosa aliada a um complexo de culpabilidade herdada do pai que o impedia, no seu
  • 12. 12 modo de pensar, de ser feliz no matrimônio. Este fato de amor fracassado teve profundas conseqüências em sua vida cultural e espiritual, onde Kierkegaard buscou vincular-se cada vez mais com o Deus transcendente. A polêmica com a Igreja oficial da Dinamarca foi outro fato marcante da vida e do pensamente de Sören, pois lutou contra o mero formalismo de cristãos e a aparência institucional na qual esta se encontrava dedicando-se somente aos interesses do estado. A verdade em questão, para o nosso pensador, era a do cristianismo, do tornar-se cristão. Vale salientar também como fato de importante relevância no contexto de seu pensamento a sua oposição a Hegel. Kierkegaard se opôs a sua filosofia questionando seu universalismo e o seu caráter abstrato, tentando valorizar o indivíduo numa época em que a filosofia e a teologia estavam impregnadas do pensamento do filósofo alemão. Para Hegel, o indivíduo se explica pelo sistema, ou seja, o indivíduo é um momento da totalidade sistemática que o ultrapassa e na qual ele se realiza. Ele postulava que a história obedece a uma lógica absoluta, nesse aspecto o homem perde a liberdade na medida em que se encontra preso nesse desfecho lógico da história. Para Kierkegaard, o sistema esgota a existência do seu caráter concreto, pois a existência é o devir concreto do homem enquanto singularidade. Opõe-se, portanto, Kierkegaard, ao idealismo em seu caráter abstrato e especulativo. Esta aversão contra os sistemas teóricos e abstratos o conduziu a enfatizar a existência individual. Passando por este breve contexto marcante no pensamento do nosso autor, buscaremos refletir no segundo capítulo sobre a angústia e o desespero como constitutivo ontológico da existência humana, tendo em vista a fé e a liberdade como possibilidade para uma existência autêntica. O caminho, portanto, que pretendemos trilhar neste trabalho é basicamente uma reflexão e maior compreensão, como já apontamos, no que se refere ao conceito de angústia e desespero inerente a existência humana na visão de Sören Kierkegaard. Ressaltamos ainda neste capítulo a crítica ao pensamento de Hegel como ponto de partida da sua filosofia e a valorização do indivíduo e a existência como possibilidade. Deteremos-nos em compreender o sentido e a prioridade do indivíduo e a sua existência caracterizada pelas possibilidades, possibilidades de escolher, pois existir é escolher. No terceiro capítulo pretendemos identificar a fé e a liberdade como salto para a verdadeira existência caracterizando a sua relação com o Absoluto. Experiência vivida no sentido verdadeiro de cristãos, um cristianismo autêntico. O nosso referencial de pesquisa fundamenta-se no Conceito de angústia (1844) e o Desespero Humano (1849) como doença para a morte. Kierkegaard sentiu necessidade de ampliar suas idéias, evidenciadas pelas suas próprias experiências de vida, a respeito da fé e
  • 13. 13 da liberdade. Em o Conceito de angústia, ele fala do pecado enquanto supõe o livre-arbítrio, ou seja, uma angústia diante da livre escolha entre as possibilidades em constante relação com o mundo. Para ele a liberdade gera no homem profunda insegurança, medo e angústia. Kierkegaard apresenta a angústia como “vertigem da liberdade, que nasce quando, ao querer o espírito institui a síntese, a liberdade mergulha o olhar no abismo das suas possibilidades e se agarra à finitude para não cair”. No que diz respeito ao Desespero Humano, buscaremos, fundamentalmente, descrevê-lo como questão essencial quanto à angústia. Essencial pelo fato de o indivíduo, no decorrer de sua existência, não poder desfazer-se destes sentimentos. Nortearemos o desespero com a seguinte questão: em que sentido o desespero é uma doença mortal? E como ela se caracteriza na existência humana? Esse desespero é, para Kierkegaard, um fenômeno universal. Segundo o autor, “assim como o médico poderia dizer que provavelmente não há uma única pessoa em vida que seja completamente sadia, assim também aquele que conhece o ser humano pode dizer que não vive uma única pessoa na qual não haja um pouco de desespero”. Todo ser humano vive de alguma forma, em maior ou menor grau, em desespero. Embora esteja presente em todas as pessoas cada indivíduo desespera por si mesmo. A importância e a mensagem filosófica existencial kierkegaardiana nos traz a identificação do indivíduo que se coloca em um contínuo devir diante das possibilidades da existência, onde a angústia, a liberdade, o desespero e a fé encontram-se em primeiro plano. Kierkegaard prioriza o caráter existencial da vida humana, rejeita as pretensões da razão absoluta e lança bases para a filosofia existencial contemporânea. Ele aborda questões ontológicas profundas da existência humana, como veremos na angústia e no desespero, refletidas no homem enquanto singular, indivíduo e existente. Vemos, assim, que a luta e a busca da interioridade existencial de Kierkegaard é presente e atual em nosso existir. Pois vivemos em uma época de angustiante desespero pela falta de sentido de viver. Uma angústia e desespero em conseqüência das escolhas somente materialistas em meio a uma cultura exageradamente consumista. Pois, para estes, o que importa é aquilo que traz a felicidade momentânea, prazerosa e individualista. E ai o homem se encontra em meio a uma liberdade que não traz a verdadeira felicidade, a uma descrença de valores religiosos, onde tudo parece não haver sentido, descartando até a própria vida. Portanto falar do pensamento de Kierkegaard é falar dele mesmo, como também falar da existência do homem atual.
  • 14. 14 2 SÖREN KIERKEGAARD: VIDA, CONTEXTO HISTÓRICO E FILOSÓFICO No presente capítulo faremos uma abordagem geral da trajetória que envolveu o pensamento de Sören Kierkegaard; tal abordagem elucidará seu perfil bibliográfico, seu contexto histórico e filosófico. Teremos uma visão de como este filósofo dinamarquês e precursor do existencialismo colocou a existência no centro de sua reflexão e por assim dizer, foi um dos pensadores mais influentes do século XIX. Neste cenário, perceberemos que, a biografia de Kierkegaard é parte integrante de sua filosofia. Veremos um pensador apaixonado marcado pelo seu relacionamento com Regina Olsen, e ao mesmo tempo um revoltado que se opõe claramente ao sistema de totalidade de Hegel, filosofia marcante de sua época, como também aos rígidos princípios do protestantismo dinamarquês, religião do Estado. 2.1 VIDA E OBRAS O pensador Sören Aabye Kierkegaard nasceu em Copenhague, capital da Dinamarca, a 5 de maio de 1813. Filósofo, teólogo, poeta e crítico impiedoso da religiosidade institucional, além do mais, considerado o pensador de maior destaque da corrente existencialista contemporânea pela sua opção radical e pela defesa do valor da existência humana enquanto indivíduo. As suas idéias são expressões de sua existência. Foi o último dos sete filhos do segundo casamento de Mikael Pederson Kierkegaard com a sua própria doméstica Anne Srensdatter, uma vez que já era viúvo sem filhos. Sören nasceu quando o pai já tinha cinqüenta e seis anos e a mãe quarenta e quatro, pelo qual ele se considerou o “filho da velhice”. Cinco irmãos de Kierkegaard morreram antes dele. Sobreviveu somente Pedro, que depois se tornou bispo luterano. Kierkegaard passou toda sua primeira infância na companhia do pai, que insistiu muito num aprendizado rigoroso seja do latim como do grego, inculcou no filho uma devoção pietista1 fortemente vivenciada pela família. A profundidade do sentimento religioso sempre o 1 Pietismo – corrente religiosa proveniente do luteranismo na Alemanha no século XVII – tal corrente reivindicava um cristianismo mais fervoroso, fundamentado em uma prática religiosa e em uma moral pessoal mais austera.
  • 15. 15 acompanhou desde a infância. Ele mesmo descreve o cristianismo que lhe fora transmitido; um cristianismo na qual a imagem central era do Cristo ensangüentado morrendo na cruz e não a do Cristo Redentor e Ressuscitado. Tal prática consentia a visão de uma humanidade que só poderia ser pecadora, sabendo apenas repetir pelos seus atos o escândalo da condenação de Cristo à morte. Este era o cristianismo do pai de Kierkegaard e que recebera de educação: Criança, recebi uma educação cristã rigorosa e austera que foi, para perspectivas humanas uma loucura. [...] a minha confiança na vida quebrouse pelas impressões a que sucumbira o próprio velho melancólico que me tinha imposto [...] Que há de espantoso se [...] o cristianismo me tenha parecido a mais inumana crueldade, se bem que nunca, mesmo quando dele mais afastado estive, o tenha deixado de respeitar [...].2 A juventude do filósofo também foi profundamente marcada pela influência do pai Mikael Pederson, de personalidade depressiva, melancólica e inquieta. Ele que era um pequeno pastor de ovelhas nas planícies de Jutlândia, interior da Dinamarca, revoltou-se contra natureza da sua condição, e assim teria blasfemado contra o Deus insensível que permitia a miséria. E depois de tê-lo amaldiçoado, cumulava então, vantagens e fortuna como fanqueiro na capital. Mikael, tendo engravidado a mãe de seus filhos ainda durante o período do luto de um ano da morte da primeira esposa, vivia atormentado pelos remorsos da cena da maldição e buscava a verdade religiosa pelas mais diversas vias. Desenvolveu uma fé dominada pelo medo de ser punido por Deus através dos filhos, o que de fato, perdeu quase todos. Kierkegaard carregava as conseqüências de ser o filho de um pai velho, que transmitia a sua melancolia para o menino. Ele mesmo afirmava de nunca ter vivido a felicidade de ser criança. Em 1830, seguindo o desejo do pai, estuda teologia na Universidade de Copenhague, mas não se interessa tanto pela teologia clássica quanto pelos assuntos filosóficos e literários. Todavia, o talento desenvolveu em Sören a imaginação e o senso de discussão. Neste ambiente universitário, lê e conhece de Schleiermacher e Hegel, descobre o romantismo alemão, apaixona-se pelo teatro e pela música, escreve peças e participa do circulo literário e político. Rompe com o estilo de vida de seu pai e leva uma vida de boêmio. Vivencia uma fase onde nada é levado a sério, e tudo é apenas uma brincadeira. Kierkegaard descreve esta 2 KIERKEGAARD, Sören. Diário de um sedutor; Temor e tremor; O desespero humano. Tradução de Carlos Grifo, Maria J. Marinho, Adolfo Casais Monteiro São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os pensadores) p. 72/3.
  • 16. 16 forma de atitude como o estádio estético, uma existência que afasta a vida, e na qual tudo é brincadeira sem compromisso nem responsabilidade. Em 1835, Sören torna-se melancólico e temendo a loucura, foge do pai e faz uma viagem mais longa, para o norte de Selândia, para afastar-se um pouco da vida que estava levando em Copenhague. Durante este tempo sofre uma espécie de despertar espiritual. Kierkegaard indica este acontecimento como o “grande terremoto”, e que foi talvez a revelação de uma culpa paterna de ter violentado a criada – a mãe de Kierkegaard - quando sua primeira esposa ainda estava viva. Surpreendido pela revelação do segredo de seu pai, na angústia sem recurso, Kierkegaard chegou à maturidade. Tal experiência, podendo dizer também “crise”, o levou a uma reaproximação ao cristianismo e uma reconciliação com o pai. Ainda muito envolvido por esta fase de sua existência, em 1838, o pai veio a falecer. Afetado pela perda, porém foi o momento que Kierkegaard despertou realmente e superou a crise. E prosseguindo sua formação acadêmica, em 1840, prestou os exames de teologia para tornar-se pastor. Já em 1841, terminando a tese Sobre o Conceito de Ironia pregou seu primeiro sermão. Por fim, percebe-se incapaz, e compreende que sua timidez e sua fraca voz o impedem de ser um pregador. Outra grande crise que marcou a vida de Kierkegaard e revelada em sua obra Diário do Sedutor (1843) foi a paixão e o noivado rompido com Regina Olsen. Em 1837, Kierkegaard conheceu Regina, uma moça de 16 anos e de uma família burguesa de Copenhague. Os dois viveram uma forte paixão que os levaram ao noivado em 1840. No entanto, ele não conseguiu concluir o noivado e meses depois rompeu com Regina. As páginas do Diário atestam que ele se sentiu inseguro, lutou consigo mesmo, depois julgou impossível casar; e ao que parece, o obstáculo foi a melancolia. Mais tarde, Regina casou-se com Johan Frederik Schlegel (1817-1896), seu professor. Kierkegaard certamente amava Regina, pois toda sua obra respira a sua presença. A lembrança e a imagem de Regina o acompanharam na provação do luto da morte de seu pai e durante seus estudos. Os motivos do rompimento não são muito claros, supõe-se que tenha sido o seu desejo de não revelar a Regina os delitos do pai, a preocupação de não expô-la, juntamente com os eventuais filhos à ira de Deus que pesava sobre a família dos Kierkegaards. De certa forma, a relação com Regina constituiu a chave para toda a obra de Kierkegaard, tanto para a obra literária, onde em romances filosóficos ele elabora a sua história, como para a obra filosófica, que trata da relação entre existência e realidade, e como também para a obra religiosa. Catorze dias depois do rompimento com Regina, Kierkegaard viaja para Berlim, que naquela época era o centro cultural da Europa. Ele buscava escapar do
  • 17. 17 escândalo provocado pelo rompimento do seu noivado. Em Berlim, freqüentou as aulas do alemão Schelling, o filósofo de maior renome nesse período pós-hegeliano. Todavia, Kierkegaard, decepcionado com o contato com Schelling, volta a Copenhague aos 6 de março de 1842. Antes de partir, Kierkegaard escreveu uma tese de doutorado sobre a ironia socrática. A polêmica com a Igreja oficial da Dinamarca é outro episódio marcante na vida de Sören. Foi um ataque que atravessou todas as barreiras e não poupou nem os ministros e nem seus famíliares. Kierkegaard acusou os luteranos de haverem subordinado as coisas sagradas aos interesses seculares, colocando a vida religiosa dentro da ordem burguesa. Acusou o cristianismo oficial de eximir os homens da necessidade de uma vida ascética e das boas obras. A intensidade desses debates de caráter religioso perturbou a saúde de Kierkegaard que veio a falecer aos quarenta e dois anos de idade no dia 11 de novembro de 1855, em Copenhague. Suas obras. Como primeira obra é uma tese de doutorado em Teologia defendida em setembro de 1841, onde escreve o Conceito de ironia profundamente relacionada a Sócrates. Para o autor, o conceito de ironia é como um negativo, o caminho. Não a verdade, mas o caminho. Assim, podemos pensar que a ironia não passa de uma interpretação da realidade e, como tal, necessita do movimento, da ação para ter validade. Em Sócrates a realidade já tinha perdido sua validade, mas ele deixava a ordem existente subsistir quando dizia não saber e pedia esclarecimento ao outro. Com esse esclarecimento acabava por desconstruir tal ordem. Sócrates se alimenta do negativo, uma negatividade infinita que destrói tudo o que é poder objetivo, tudo perde seu valor absoluto, tanto a vida como a morte. Ele se move no negativo e o que observamos nele é a liberdade, infinitamente transbordante, da subjetividade, mas isso é justamente a ironia. Segundo Kierkegaard, o ponto de partida de Sócrates é a ocasião: nela o mestre nem ensina, nem recebe, apenas ajuda no nascimento (maiêutica), pois o ser humano já está de posse da verdade. Em Sócrates, o instante não possui importância fundamental, perdese no tempo, é um nada, pois a verdade está lá, só precisa ser lembrada. Para Kierkegaard, sob o ponto de vista cristão, o instante é plenitude dos tempos; decisivo e composto pela eternidade plena. Nesse sentido o instante implica uma escolha, já que o ser humano vê o temporal sob o aspecto do eterno. A personalidade de Sören revela-se no uso freqüente de pseudônimos, tais como Victor Eremita em A alternativa, Ou... ou..., em 1843; Iohannes de Silentio em Temor e Tremor, A repetição, em 1843; Iohannes Climacus em Migalhas filosóficas, O conceito de angústia, em 1844. Foram vários os motivos que levaram Kierkegaard a usar de pseudônimos,
  • 18. 18 pelo simples prazer de parecer enigmático e às vezes para enviar mensagem à sua ex-noiva, ou também, para expor diversas idéias e concepções dando aos leitores a possibilidade de que por si mesmos encontrassem sua própria solução. Como os personagens pseudônimos podem discutir seus problemas de um modo dramático e interessante, impelem o leitor a seguir adiante, ou ir além das possibilidades que eles representam. Enumerando algumas das principais obras de Sören Kierkegaard, trazemos em primeiro lugar seus Diários que nos introduzem ao clima intelectual daquele momento, uma combinação da filosofia hegeliana, das idéias estéticas românticas e da igreja luterana dinamarquesa.“Ou um ou outro”, Temor e tremor”, “A repetição”, Migalhas filosóficas e “Etapas no caminho da vida” (1845) obras que foram meios que Kierkegaard usou para transmitir de modo romântico mensagens a Regina. Seu tema é o enriquecimento da personalidade humana em seus três níveis, o estético, o ético e o da consciência religiosa. “O conceito da angústia”, Kierkegaard aprofundou o estado da angústia, a qual teremos a oportunidade de nos determos mais neste trabalho. Já a obra “Último pós-escrito não cientifico” (1846), ele assinala a passagem da produção estética para as obras religiosas, considerada a mais filosóficas de suas obras. Na obra “O ponto de vista sobre minha obra como autor” (1848), Kierkegaard faz um ensaio autobiográfico e chama a atenção sobre três acontecimentos culminantes de sua vida. Em 1846, Kierkegaard travou uma intensa polêmica com um jornal humorístico de Copenhague, “O Corsário”, que foi motivo de grande sofrimento para ele: Um jornal satírico chamado O Corsário, que encontrava um terreno fértil na efervescência das idéias liberais de 1848, [...] ridicularizando [...] homens respeitáveis e pacíficos que servem o Estado [...]. Como esse jornal elogiou Kierkegaard, ele temeu parecer cúmplice desse empreendimento [...] Nele se elogiavam os dons extraordinários do autor de Ou... ou... e da parte estética dos Estádios no caminho da vida. Todavia deploravam-se as digressões éticas e religiosas que, para Kierkegaard, representavam o essencial. Exigiu [...], como homem de bem, ser ridicularizado por O Corsário. 3 E assim foi feito, o jornal atacou Kierkegaard com aspereza, zombou de sua aparência. Em uma sociedade que estava nascendo a idéia de que a imprensa era a garantia da liberdade de expressão, pode-se imaginar a repercussão e a reprovação que caiu sobre ele. Com este episódio, Kierkegaard colocou-se como defensor da moral cristã em seus próprios ataques contra o jornal. A Igreja ficou no silêncio e Sören sentiu-se abandonado. “Daí convencer-se de que o luteranismo oficial tal qual existia na Dinamarca não era aquela religião da exigência que seu pai lhe pregara, mas um vasto compromisso com o mundo em detrimento da verdade 3 BLANC, Charles Le. Kierkegaard. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. p.40/1.
  • 19. 19 do cristianismo” (BLANC, 2003; p. 42). Seu próprio papel foi de um reformador, não o que transformou e renovou as instituições, mas sim foi aquele que despertou a consciência, ensinou o trágico da existência, restaura a honra do ideal e de todas as exigências morais ou religiosas. Kierkegaard não se oferecia como modelo, mas agia pela certeza de que seu combate e seu sacrifício eram indispensáveis à reforma do cristianismo, tal como o compreendia. Outra obra que teremos a oportunidade de aprofundar neste trabalho é “Doença até a morte” 4 (1849), onde Kierkegaard faz um tratado sobre o desespero humano. Enfim, durante a vida Kierkegaard não foi muito conhecido e também depois da morte permaneceu ignorado por muito tempo. Somente depois da primeira Guerra Mundial é que ele foi descoberto, suas obras lidas avidamente e traduzidas em várias línguas. O seu pensamento, prematuro para seus contemporâneos, tornou-se da máxima atualidade em nosso século. 2.2 CONTEXTO HISTÓRICO A época em que viveu o filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard foi, inicialmente, um período de grande crise política e militar em seu país devido a conseqüentes guerras napoleônicas. Somente na idade madura do filósofo, a Dinamarca veio a sair do atraso econômico causado pelos conflitos. Graças a uma política liberal que aboliu o trabalho obrigatório do camponês para os nobres “seus senhores”, regime medieval de servidão, e aboliu a monarquia absolutista, o país aos poucos, foi se transformando em um país industrializado e não apenas agrícola. Em um contexto mais amplo, foi um momento de grandes transformações, rompimento e revoluções. Marx foi um dos contemporâneos de Kierkegaard, e no ano seguinte da publicação do Manifesto comunista em 1848, Kierkegaard assistiu a transição do absolutismo para a democracia na Dinamarca. Kierkegaard viveu a maior parte de sua vida no reinado de Frederico VI (foi rei da Dinamarca a partir de 1808 até sua morte em 1839 e da Noruega de 1808 a 1814), porém o período mais produtivo de sua maturidade transcorreu sob os reinados sucessivos de Christian VIII (foi rei da Dinamarca de 1839 a 1848, e da Noruega em 1814, como Cristiano Frederico) 4 “A dialética do desespero – doença que marcaria o fundo da consciência do cristão até à morte – é analisado por Kierkegaard, em suas múltiplas facetas: o desespero inconsciente de ter um eu; o desespero que não quer, e o desespero que quer ser ele próprio; a relação entre desespero e pecado” (KIERKEGAARD, op. cit.,1979, p. Introdução).
  • 20. 20 e Frederico VII (rei da Dinamarca de 1848 a 1863). Política e economicamente, foi uma época pobre e de recessão para Dinamarca. Porém foi uma época da culminação da vida cultural e espiritual do país conhecida como época de ouro. A filosofia relaciona a Idade de Ouro5 dinamarquesa com o pensamento alemão a partir de um panorama da introdução dos grandes alemães na Dinamarca: Kant, Fichte, Schelling e Hegel. Kierkegaard é devedor, em muitos aspectos do pensamento kantiano, embora mantenha sua independência em relação ao filósofo. A influência de Fichte na Dinamarca pode ser notada a partir de 1807, ano em que o filósofo esteve no país dinamarquês ministrando cursos. Fichte influenciou também Frederik Christian Sibbern (1785-1872) e o norueguês-dinamarquês Henrich Steffens (1773-1845), além do próprio Kierkegaard. Schelling foi importante em dois períodos da vida intelectual dinamarquesa. A partir de 1830, o hegelianismo começou a se destacar na vida cultural dinamarquesa (arte, literatura, religião, filosofia, história). O pensamento de Hegel surgiu em solo dinamarquês nos anos 20, mas ficou mais influente a partir das aulas de Hans L. Martensen (1808-1884), ocorridas em 1837-1838, na Universidade de Copenhague. Sibbern era o mais conhecido dos filósofos dinamarqueses e teve contato pessoal com Fichte, Schleiermacher, Goethe e Schelling. Mestre e amigo de Kierkegaard, merecendo a dedicatória do Conceito de Angústia, Moller tornou-se professor da Universidade de Copenhague em 1830. Em 1837, escreveu o artigo Pensamentos sobre a possibilidade da prova da imortalidade humana. Apesar da influência hegeliana, Moller foi um crítico do pensador alemão. Confrontou a posição cristã ao pensamento de Hegel. Moller ministrou cursos em 1834-1835 sobre filosofia antiga, enfatizando a filosofia de Sócrates, e Kierkegaard foi levado a aprofundar seus estudos sobre o ateniense. Daí nasceu seu interesse em estudar o conceito de ironia em Sócrates, tema de sua dissertação. O conceito dos pensamentos de Moller é muito caro ao pensamento kierkegaardiano. Sua concepção acerca de aforismos e seu niilismo influenciaram a psicologia de Kierkegaard. A ironia em Kierkegaard é vista através de sua leitura sobre Sócrates e acerca da mesma temática no romantismo. A seção dedicada à teologia mostra que a primeira metade do século XIX foi um período de ouro também para a teologia dinamarquesa. A Faculdade de Teologia da Universidade de Copenhague possuía grande influência na vida intelectual dinamarquesa. 5 A idade de Ouro dinamarquesa foi marcada pelos debates políticos, intelectuais e literários. A cultura parece receber a maior atenção de todos os interessados. E é nesse clima que podemos situar a obra kierkegaardiana.
  • 21. 21 Ocorreram mudanças no pensamento eclesiástico e na instituição religiosa. “Movimentos de caráter pietista”6 foram intensificados. A Igreja foi presença marcante na Dinamarca do século XIX. A Igreja era como uma instituição estatal e a religião luterana a religião oficial do Estado. Bastava nascer no país para ser automaticamente cristão. Kierkegaard alegava que isto reduzia a nada a possibilidade de uma verdadeira conversão radical a Cristo. Assim o autor Charles Le Blanc comenta: Quando Kierkegaard fala de cristianismo [...] se refere: um cristianismo sem mediações, sem figuras femininas, quase sem Igreja. É também deste cristianismo que procedem vários de seus temas, é dele que herda o radicalismo da fé, é por ele que luta e é em seu nome que quis empreender uma reforma religiosa.7 O pastor local era um verdadeiro funcionário público, representava a Coroa e por isso, além da prática de suas funções especificamente religiosas também era quem coletava impostos, realizava os recenseamentos, fazia o recrutamento militar, mantinha os registros civis nos livros da Igreja, supervisionava as escolas, cuidava da assistência aos pobres e era o presidente do Conselho Municipal, além de cuidar de seus próprios interesses, muitas vezes a maior fazenda das vizinhanças. As questões políticas e os rancores misturavam-se facilmente com os assuntos religiosos. Mesmo com influência indireta dos acontecimentos sociais no seu pensamento, Kierkegaard foi o filósofo que abandonou o mundo grande com seus problemas para se dedicar ao mundo pessoal com suas inquietações e questões existenciais. 2.3 CONTEXTO FILOSÓFICO Sören Kierkegaard foi certamente um dos pensadores mais importantes e fecundos do cristianismo contemporâneo. O pensamento do nosso autor nasce em meio a um contexto marcado pelo confronto e pelo diálogo do racionalismo das luzes com o idealismo da cultura romântica: 6 “No século XVIII, a reconstrução de um país destruído e profundamente ferido pelas guerras contra a Suécia, a rejeição da antiga ordem social, como comprova a supressão parcial da servidão por Frederico IV (1699-1730), favoreceram a difusão do pietismo na Dinamarca” (BLANC, op, cit., 2003, p. 20) 7 Ibid., 2003, p. 21.
  • 22. 22 As luzes haviam constituído o principal movimento filosófico do século XVIII, tomando formas especificas segundo os países. A principal característica comum: uma confiança quase ilimitada na razão, que é exercida de um ponto de vista crítico contra o obscurantismo das concepções antigas, e de um ponto de vista positivo, pois cabe à razão, pelo exercício do pensamento autônomo, prescrever leis e normas nos assuntos científicos, políticos, morais e religiosos.8 Foi uma época onde tinha a razão como uma força finita capaz de afrontar o mundo e transformá-lo. No final do século XVIII, surgem movimentos propondo outros caminhos além da razão como os do sentimento e da fé. E quem avançou nesta direção contribuindo para passagem da razão como uma força infinita e não mais a razão como força finita foi o pensador Fichte (1762-1814); este fez do eu uma autoconsciência absoluta cujo produto é o mundo, caracterizado de idealismo romântico. Fichte, Schelling (1775-1854) e Hegel (17701831) são os principais representantes desse sistema de idealismo: [...] a apologia intransigente da consciência e da interioridade no confronto com a Igreja reformada estatal e institucional da Dinamarca, com o convencionalismo burguês artificioso e estéril da sociedade e da cultura européia de seu tempo, assim como contra toda coletivização que se faça em detrimento da autentica singularidade de toda vida individua, corresponde a uma das fontes de hostilidade mais implacáveis contra Kierkegaard provenientes dos mais bens defendidos bastiões da hipocrisia cultural de sua época.9 Uma outra forma de compreensão do infinito é dado como sentimento expressada pelas atividades humanas: a arte e a religião. Este infinito romântico do sentimento religioso foi muito defendido por Novalis (1772-1801), Friedrich Schlegel (1772-1829) e Schleiermacher (1768-1834). E Kierkegaard é herdeiro desse romantismo religioso: “O eu é a síntese consciente de infinito e de finito em relação com ela própria, o que não se pode fazer senão contando com Deus.” (KIERKEGAARD, 1979, p. 208). Outra característica do romantismo é a ironia que tem um papel importante na obra de Kierkegaard: [...] A ironia é negatividade e como tal ela destaca o homem do mundo, no qual o esteta está imerso. Não é possível por isso existir „existir‟ sem sentir ironia, que é uma dimensão fundamental da pessoa humana. A ironia, assim, liberta o homem do ponto de vista estético e o leva à exigência ética. Ela não é a verdade, mas a pólvora que faz saltar as pontes, dispersar as coisas e cava 8 BLANC, op., cit.,2003, p. 23-24. PAULA, Marcio Gimenes de. Indivíduo e comunidade na filosofia de Kierkegaard. São Paulo: Paulus, 2009. p.15. 9
  • 23. 23 o abismo entre o viver no mundo, „na periferia‟, „na superfície‟, e o viver acima do mundo, no recôndito. A ironia não constitui uma passagem, mas alimenta a coragem de „escolher‟ desesperando.10 O romantismo não foi apenas uma questão de literatura e filosofia. Exerceu sua principal influência tornando-se uma espécie de atmosfera cultural, exprimindo-se concretamente por meio da pintura, da arquitetura, da moda, das expressões da linguagem corrente, vinculando a vários locais. Vemos, portanto, que com o tempo, o romantismo, como a filosofia e a tendência cultural avançou e influenciou na Dinamarca. Kierkegaard era um profundo conhecedor de obras clássicas. Entre as fontes que o influenciava estava: as belas artes, a filosofia clássica e moderna, a teologia, etc. Percebe-se em sua obra um pensamento reflexivo bastante abrangente, fruto desta sua diversidade de fontes. Toda esta abrangência tem o objetivo de confrontar as idéias, os fatos, as experiências à luz do cristianismo que, para ele, é uma consciência moderna. Estamos perto dos anos 1830. A questão das relações entre a teologia e a filosofia é ainda mais bem sentida porque o romantismo se baseara [...], no sentimento religioso. Novalis e Friedrich Schlegel, por exemplo, queriam fundar uma nova religião e escrever sua Bíblia. A fortuna da filosofia de Hegel marcara, ademais, a vitória do idealismo e o desenvolvimento da especulação teológica.11 Sob influência de seu mestre e amigo Poul Moller (1794-1838), Kierkegaard protestou muito cedo contra a redução do cristianismo a um sistema dominado pela necessidade lógica. Ele se opõe à especulação dialética da mediação a separação absoluta entre Deus e a natureza, entre o eterno e o temporal, entre o finito e o infinito, oposições absolutas a não ser no momento íntimo da fé, que é revelação de Deus no tempo: “[...] o mistério e a revelação, a verdade e o absurdo, a certeza e a incerteza, a beatitude e o sofrimento estão inextricavelmente ligados [...], essas realidade se reconhecem uma na outra” (GILES, 1989; p.8). Ele ainda recusa admitir que o mistério da Trindade perca sua opacidade e que encontre uma explicação objetiva no desenvolvimento dialético hegeliano. Seu questionamento é se tal sistema não acaba fazendo desaparecer a própria realidade, pois a dialética não pode ser real a não ser que encontre o real de novo sob os aspectos finitos e o tempo constituído pela plenitude da história onde a existência se desenrola. Para Kierkegaard, a revelação de Deus no 10 SCIACCA, Michele Federico. História da Filosofia. Tradução de Luis Washington Vita. São Paulo: Mestre Jou, 1968, p.87. 11 BLANC,op. cit., 2003, p. 27.
  • 24. 24 tempo é um paradoxo que a razão não consegue penetrar, e na sua linguagem, o paradoxo exprime a relação entre um espírito finito e uma verdade infinita: O eu é a síntese consciente de infinito e de finito em relação com ela própria, o que não se pode fazer senão contatando com Deus. Mas tornar-se si próprio, é tornar-se concreto, coisa irrealizável no finito ou no infinito, visto o concreto em questão ser uma síntese. A evolução consiste pois em afastarse indefinidamente de si próprio, numa „infinitização‟. Pelo contrário, o eu que não se torna ele próprio permanece, saiba-o ou não, desesperado. Contudo, o eu está em evolução a cada instante da sua existência (visto que o eu Katà dýnamin – em potência – não tem existência real), e não é senão o que será. Enquanto não consegue tornar-se ele próprio, o eu não é ele próprio; mas não ser ele é o desespero.12 Seu pensamento baseia-se em sua cultura romântica, religiosa e influenciada pela filosofia alemã e nos complexos sentimentais profundos. Vemos a filosofia alemã como fonte importante de seu pensamento. Portanto, a partir de 1837, Kierkegaard aprofundou no estudo dos filósofos alemães, tomando assim em particular, conhecimento de tudo o que se escrevera pró e contra Hegel, o qual teremos, no próximo capítulo, a oportunidade de refletir e detalhar melhor. Outra influência que atuou profundamente sobre o pensamento de Kierkegaard foi o cristianismo impregnado de luteranismo, o qual tinha se reduzido a pura exterioridade e mero formalismo. Além de Hegel, ele criticou severamente também esse mundo religioso de seu tempo, de um cristianismo vazio do mundo, inumano, negador da singularidade que Kierkegaard defendeu a todo custo. Através de si e de seus problemas, o nosso autor, buscou encontrar uma explicação para a sua existência. Varias vezes Kierkegaard declarou que toda sua obra nada mais era que a expressão de sua própria vida. A influência do pensamento kierkegaardiano imersa no contexto contemporâneo alcançou sucesso na Alemanha logo depois do fim da Primeira Guerra Mundial e estendeu-se a toda Europa Ocidental, considerado precursor do pensamento existencialista. Ressaltamos, portanto, a inspiração kierkegaardiana nas obras de Heidegger, Jaspers, Sartre e Gabriel Marcel, sendo o representante do existencialismo que mais se aproxima de Kierkegaard. 12 KIERKEGAARD, op. cit., 1979, p. 208.
  • 25. 25 3 ANGÚSTIA E DESESPERO NO PENSAMENTO DE KIERKEGAARD Como o objetivo do nosso trabalho é a reflexão acerca da angústia e o desespero como elementos constitutivos da existência humana no pensamento de Kierkegaard, portanto, trataremos neste capítulo sobre esses elementos que caracterizam o pensamento do nosso autor. Porém antes, refletiremos a crítica que Kierkegaard dirige ao sistema hegeliano por partir do conceito da existência do indivíduo como idéia universal. Com esta reflexão, veremos que o que interessa a Kierkegaard é o sujeito concreto em sua singularidade. Trataremos ainda neste capítulo, o homem enquanto indivíduo, e que o modo de ser desse indivíduo é existência; uma existência que não é a realidade e nem a necessidade, e sim a possibilidade; “a possibilidade como a mais importante das categorias” como define Kierkegaard em O conceito de angústia. Para ele, a existência é possibilidade como ameaça do nada, portanto, possibilidade como angústia. Finalmente, faremos a reflexão sobre O conceito de angústia caracterizada como condição humana: puro sentimento do possível, e O desespero humano como a doença mortal. 3.1 PONTO DE PARTIDA DA FILOSOFIA DE KIERKEGAARD: CRÍTICA AO PENSAMENTO DE HEGEL Para uma melhor compreensão do pensamento filosófico de Sören Kierkegaard acerca da existência e sua ferrenha crítica a dialética hegeliana, delinearemos brevemente, o idealismo lógico do alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel 13 , o grande sistematizador do idealismo pós-kantiano e uma das mentes filosóficas mais vastas e profundas. Na Alemanha, Friedrich Hegel acompanhou apaixonadamente os acontecimentos que marcaram um ponto de ruptura da história: a derrocada do mundo feudal e o nascimento da ordem burguesa. É esta a contradição dialética cuja resolução Hegel aponta como sendo a 13 Friedrich Hegel, nasceu em Stutgart, na Alemanha, em 1770. Estudou teologia e filosofia. Interessou-se pelos problemas religiosos e políticos, simpatizando-se pelo criticismo e pelo iluminismo; em seguida se dedicou ao historicismo romântico. Aproximou-se dos sistemas de Fichte e de Schelling, afastando-se deles em seguida até combatê-los quando professor nas Universidades de Iena, Heidelberg e Berlim. Nessa última universidade lecionou até há morte, adquirindo grande renome e exercendo vasta influência. Faleceu em 1831, em Berlim, vítima de cólera. Renunciara aos ideais revolucionários e críticos, para favorecer as tendências absolutistas e intransigentes do estado prussiano.
  • 26. 26 tarefa da Razão. Daí, portanto, o seu idealismo. Sendo alemão, Hegel continuará essa contradição, na medida em que a Alemanha se ainda achava mergulhada numa ordem feudal, estando politicamente dividida em diversos Estados não unificados. Hegel é filósofo da razão absoluta que concretamente se identifica com a história. Para ele, somente o Infinito é e torna-se a substância de toda coisa: nele, o único afirmativo, o finito é anulado, superado. Essa unidade se realiza na filosofia, que não é sentimento ou intuição mística, mas pensamento lógico, ciência do Absoluto. O seu pensamento se apresenta como um grande sistema que permite pensar tanto a natureza, a realidade física, quanto ao Espírito. O fio condutor dessa reflexão totalizante é a relação entre finito e infinito. Para Hegel, o trabalho da filosofia é da superação do entendimento finito e limitado das coisas finitas e limitadas para alcançar o saber absoluto. Portanto, nesse caminhar da consciência rumo ao saber absoluto, temos a busca da infinitude a partir da consciência finita. Sua filosofia é uma filosofia do devir, do movimento, do vir-a-ser. Para explicar a realidade em constante processo, Hegel não se utiliza da lógica tradicional, ele estabelece os princípios de uma nova lógica: a dialética14. A dialética ensina que todas as coisas e idéias morrem; e essa força destruidora é também a força motriz do processo histórico. A idéia central é de que a morte é criadora, é geradora. Todo o ser contém em si mesmo o germe da sua ruína, portanto, sua superação. Assim, o velho princípio de identidade da lógica clássica é substituído pelo da contradição criadora. O movimento da dialética se faz em três etapas: tese, antítese e síntese, ou seja, afirmação, negação e negação da negação.15 O sistema hegeliano é a apresentação de todo o real e de todo o cognoscível como expressão da automanifestação do absoluto através das fases triádicas da dialética: O absoluto se desenvolve antes de tudo numa tríade dialética fundamental: a idéia em si, isto é, a estrutura ideal do absoluto considerada em seu pôr-se na existência efetiva; a idéia fora de si, o absoluto pondo-se na natureza como fato, como idéia que se alheia e se esquece; e a idéia em si e para si, isto é, o absoluto que retorna a se depois de ter reconhecido a natureza como o seu momento próprio.16 14 Hegel aceita de Fichte, a noção de dialética como processo de afirmação, negação e negação da negação, na síntese; e de Schelling, a noção do idealismo objetivo e da identidade do sujeito e do objeto, na consciência do absoluto. 15 O método dialético: a tese é o momento do ser em si; ela põe, afirma uma parte da realidade, negando implicitamente uma outra parte da realidade, porque toda afirmação inclui uma negação. A antítese é o momento do ser extra se, fora de si; ela contrapõe, afirmando-a, a parte da realidade implicitamente negada pela tese. Pertence, de fato, à negação manifestar o que foi obscurecido pela tese, libertar a realidade dos limites da estaticidade e mostrar a sua riqueza interior. A síntese é o momento da união das partes postas pela tese e pela antítese num todo único, o qual anula as imperfeições dos momentos anteriores, mas conserva a positividade deles, ser em si e para si. (Cf. MONDIN, 1985, p. 41) 16 MONDIN, op. cit., 1985, p. 41.
  • 27. 27 Da teoria dialética resulta um novo conceito de história. O presente é retomado como resultado de um longo e dramático processo. A história não é uma simples acumulação de fatos acontecidos no tempo, mas é um verdadeiro gerador, um processo onde o motor interno é a contradição. Hegel chama de conhecimento abstrato o conhecimento determinado a partir de uma realidade dada, imediata, de simples aparência. Este conhecimento abstrato opõe ao conhecimento do ser real, concreto que consiste em descrever como uma realidade é produzida. Portanto, concebe-se assim que, conhecer o processo de constituição pelas mediações contraditórias, é conhecer o real.17 O sistema hegeliano é o último dos grandes sistemas filosóficos do Ocidente. Ele exerceu decisiva influência na formação da teoria da práxis e do existencialismo. Vários filósofos contestaram a filosofia de Hegel, de uma forma parcial ou em seu conjunto. E para o nosso pensador, a filosofia hegeliana não consegue compreender a existência do ser humano, a sua angústia e o seu desespero. Portanto, tentaremos agora delinear a crítica kierkegaardiana à supremacia da razão como único instrumento capaz de estabelecer a verdade como Hegel propunha. Como pensador cristão, Kiekegaard defendeu o conhecimento da fé contra a supremacia da razão. Para ele a existência humana possui três dimensões: a dimensão estética, na qual se procura o prazer; a dimensão ética, na qual se vivencia o problema da liberdade e da contradição entre o prazer e o dever; e a dimensão religiosa, marcada pela fé18. O homem não pode formular um sistema completo da realidade porque ele tem como seu modo de ser a existência e a existência significa o processo do devir, a contingência. Sendo assim, a existência, contingente e mutável não pode ser incluída no sistema no qual tudo é regulado porque está sujeito a leis universais e necessárias. A existência, para Kierkegaard, é 17 Compreender a dialética da realidade, no pensamento de Hegel, exige um trabalho árduo da razão, que deve se afastar do entendimento comum e se colocar do ponto de vista do absoluto. Esse caminho da consciência que se afasta do conhecimento comum e se leva ao saber absoluto é o objeto de reflexão do autor em sua obra Fenomenologia do Espírito (1806). Nela, Hegel, afirma que a consciência que alcança o saber absoluto atinge a Razão, supera o entendimento finito e adquire a certeza de ser toda a realidade. Assim, a Razão alcançaria a consciência da unidade entre ser e pensar, harmonizando a subjetividade e a objetividade. 18 “Para Kierkegaard, o homem tem como seu modo de ser a existência, [...] em contínuo devir [...] No devir do homem distinguem-se três estádios: estético, ético e religioso. Estádio estético [...] o indivíduo não tem compromissos nem finalidades: é artista despreocupado no qual a fantasia predomina sobre a razão e a vontade. Guiado pela fantasia ele abraça a realidade exterior [...] riquezas, honras e prazeres; esquiva-se da consciência, não se encontra em si mesmo [...] é incapaz, por isso, de dominar-se [...]. Exemplo típico deste estádio é Dom Juan. Estádio ético o indivíduo é o que vive com compromissos, com seriedade e honestidade [...] A forma característica do estádio ético, segundo Kiekegaard, é o matrimônio com sua seriedade e estabilidade, com seus deveres e esperanças. Típico representante deste estádio é o assessor Guilherme, do qual fala a segunda parte de Aut-aut, empregado fiel e todo dedicado à esposa e aos filhos. Estádio religioso é o momento no qual a honestidade natural não é mais suficiente, porque a fé impõe obrigações que podem entrar em conflito com a lei; por exemplo, o sacrifício de Isaac, ordenado por Deus, entra em conflito com a lei de não matar (obra Tremor e Temor). Quando o indivíduo percebe a insuficiência da moralidade, perde o sentido da segurança, da estabilidade e da suficiência que advinham da observância da lei. O estádio religioso é o da fé como risco e incerteza. Exemplo típico dele é Abraão, pai da fé.” (MONDIN, op. cit., 1985, p. 70)
  • 28. 28 irredutível à lógica, pois as leis da existência são totalmente diversas das leis do pensamento. Contra todo esforço em colocar a realidade num sistema, Kierkegaard aponta oposições no que se refere ao princípio de que a existência é uma tensão em direção não a uma totalidade pensada, que para ele, seria em direção ao indivíduo, cuja é a categoria essencial da existência: “Contra as teorias objetivas de Hegel, Kierkegaard insiste na necessidade da apropriação subjetiva da verdade, pois se trata de fundamentar o desenrolar do pensar em algo que seja ligado à raiz mais profunda da existência, que é o Indivíduo”19. Hegel procurou resolver no Espírito Absoluto todas as diferenças entre indivíduos, já Kierkegaard tentou elevar o indivíduo concreto ao nível de elemento central do pensamento filosófico, ressaltando as diferenças que são características da subjetividade. Eis o ponto da contestação à filosofia hegeliana, a qual não leva em consideração a subjetividade humana. É neste sentido que Kierkegaard influenciou as chamadas correntes irracionalistas e existencialistas, que colocaram a questão da verdade a partir do processo da existência. Opondo-se a idéia sistemática de Hegel e a seu caráter abstrato, Kierkegaard procurou destacar as condições específicas da existência humana e incorporá-las às reflexões filosóficas. Por ser defensor desta idéia, é considerado o “pai do existencialismo”. Em suas obras, Kierkegaard procurou analisar os problemas da relação existencial do homem com o mundo, consigo mesmo e com Deus. 3.2 O INDIVÍDUO E A EXISTÊNCIA COMO POSSIBILIDADE Seguindo o itinerário filosófico de Kierkegaard, queremos agora enfatizar os traços característicos de seu pensamento ressaltando o indivíduo e sua existência como uma existência de possibilidade. A pessoa é o problema central para Kierkegaard. Para ele a filosofia não pode resolver esta problemática, e sim a religião, e esta enquanto fé. Sendo assim, o duelo filosofia e religião, ou razão e fé, em nome do indivíduo é o traço do seu pensamento. Somente a religião pode justificar e garantir a sua existencialidade, pois o indivíduo e o cristão se identificam. Portanto, defender o indivíduo é também defender o Cristianismo. Percebemos assim, que seu pensamento é essencialmente religioso: é a defesa da existência do indivíduo, existência que só se torna autêntica diante da transcendência de 19 GILES, Thomas Ransom. História do existencialismo e da fenomenologia. V. I e II. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 1975, p. 9.
  • 29. 29 Deus. Chegar a ser um indivíduo, para Kierkegaard, é o mesmo que chegar a ser cristão em espírito e em verdade. Ser cristão é defrontar-se sozinho com Deus e realizar, assim, a plenitude individual. Os grandes conceitos kierkegaardianos ligados à existência são dialéticos porque determinam, cada qual à sua maneira, situações, um movimento em direção a outra coisa: a dúvida, a angústia, a morte, o instante, o desespero, a incerteza, a ironia, o humor, o ambíguo, o único, o salto, etc. Todos esses movimentos todavia parecem encontrar seu objetivo no cristianismo que assinala o fim das oposições dialéticas. Nele, ser e devir estão unidos: não basta ser cristão, mas também é preciso tornar-se cristão.20 A defesa da categoria do indivíduo é motivo de ataque à filosofia especulativa do sistema hegeliano, pois para Kierkegaard o homem singular não tem existência conceitual; é, portanto, uma existência que corresponde à realidade singular, corresponde ao indivíduo, podemos assim dizer: uma filosofia existencial do indivíduo21. O que importa, para Kierkegaard, não é encontrar a verdade objetiva, mas a verdade subjetiva, exclusivamente do indivíduo. “Para Kierkegaard todo o conhecimento autêntico deveria referir-se necessariamente à existência e, portanto, ser subjetivo. O conhecimento racional, abstrato, geral é incapaz de descobrir o sentido profundo da verdade. Esta é subjetiva”.22 Assim afirma o nosso pensador dinamarquês, “a subjetividade é a verdade”; e podemos ir mais além ao seu pensamento: aprender a verdade é como apropriar-se dela, é ter um interesse infinito por ela. A verdade deve tornar-se existencial no ato de o indivíduo viver aquilo em que acredita, na realização dos seus objetivos mais profundos. Qualitativamente23, a dialética existencial de 20 BLANC, op. cit., 2003, p. 100. “Mediante a categoria do indivíduo, Kierkegaard ataca o sistema hegeliano; descartando o hegelianismo e o panteísmo, ele consegue pôr a salvo a causa do cristianismo; e dentro do cristianismo o filósofo readquire um valor absoluto. „O indivíduo é a categoria pela qual devem passar – do ponto de vista religioso – o tempo, a história, a humanidade [...]. Com esta categoria o „indivíduo‟ quando aqui tudo era sistema sobre sistema. E agora não se fala mais de sistema [...]. O indivíduo: com esta categoria subsiste ou cai a causa do cristianismo.‟ A existência [...] corresponde à realidade singular, ao indivíduo: „um homem singular não tem certamente uma existência conceitual‟. A filosofia se interessa pelos conceitos, ela não se preocupa com o existente concreto que somos eu, ele, tu, em nossa irrepetível singularidade; a filosofia ocupa-se do conceito de homem, do homem em geral, mas a minha ou a tua existência não é um conceito. E se no mundo animal a espécie é superior ao indivíduo, no mundo humano – justamente pó causa do cristianismo – o indivíduo é superior à espécie. „A lei da existência (que por sua vez é graça) que Cristo instituiu para ser homem é: relaciona-te como indivíduo com Deus‟. A esta categoria Kierkegaard ligava sua importância de pensamento: „o indivíduo é e permanece a âncora que deve frear a confusão panteísta; é e permanece o peso com o qual podemos reprimi-la‟.” REALE, Giovanni; Antiseri, Dario. História da filosofia: do romantismo ao empiriocritismo, vol. 5. Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2005. p. 229. 22 GIORDANI, Mário Curtis. Iniciação ao existencialismo. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 39. 23 “A dialética em direção ao existencial exige que o indivíduo se aprofunde no autoconhecimento da existência; é cheia de decisões, de disjuntivos qualitativos. É feita de momentos heterogêneos e de saltos qualitativos, de conversões. Não há mais mediações e, sim, instantes de ruptura. O existente vai de instante em instante” (GILES, op. cit., 1989, p.8). 21
  • 30. 30 Kierkegaard não visa qualquer resultado objetivo, ela só pode ser subjetiva e se referir ao Indivíduo concreto lançado na existência. Desde que se encontre realizada a perfeita coincidência do pensamento com a vida, já não há motivo para falar, escrever ou raciocinar. [...] Não há mais nada senão existir: a verdade é a própria existência, na sua realidade singular e incomunicável [...] Ou, mais exactamente, é a consciência da existência coincidindo com essa mesma existência.24 No pensamento de Kierkegaard, o indivíduo é energia viva, ativa, autodeterminante, que surge a partir de situações concretas de opção, situações enraizadas nos momentos em que o homem focaliza todas as suas potencialidades numa opção que ressoará por toda sua vida. Essa opção que torna o simples indivíduo em um indivíduo existencial constitui a tarefa suprema do ser humano, pois trata de uma missão dirigida a cada homem e é a possibilidade de todos. Outra categoria de grande relevância para Kierkegaard é a existência em termo de possibilidade25. O existir do homem é possibilidade, ou seja, o que o homem pode fazer e realizar na experiência concreta e vivida. O possível de Kierkegaard caracteriza o existir do homem. Assim sendo, a vida do homem é existência, é relação com o mundo e com os outros. O existir como contingência absoluta, pois o existir não conhece outra necessidade a não ser a das escolhas exigidas por um existir livre sem determinação. Entendemos, portanto que, para o homem, existir é encontrar-se sempre confrontando com as possibilidades, como é para Kierkegaard: “[...] O eu katà dýnamin contém tanto de possível como de necessidade, porque é ele próprio, mas deve realizá-lo. O eu é necessidade, porque é ele próprio, e possível, porque deve realizar-se”.26 O indivíduo, para Kierkegaard, não está somente dentro e diante 24 JOLIVET, Régis. As doutrinas existencialistas: de Kierkegaard a Sartre. Porto: Livraria Tavares Martins, 1961. p. 36. v.8. 25 “Com o conceito de indivíduo, o de possibilidade é fundamental no pensamento de Kierkegaard. [...] O homem é aquilo que escolhe ser, a existência é possibilidade, obriga a escolher, implica risco, gera angústia. „A possibilidade – lemos no Diário – é a mais importante de todas as categorias. Freqüentemente se ouve dizer na verdade o contrário, que a possibilidade é tão leve e a realidade, ao contrário, tão pesada. Mas de quem ouvimos tais discursos? De alguns homens miseráveis, que jamais souberam o que seja a possibilidade. Em geral a possibilidade da qual se diz que é tão leve compreende-se como possibilidade de felicidade, de fortuna etc. Mas não é, de fato, a possibilidade; esta é uma invenção falaz que os homens, em sua corrupção, embelezam, para ter ao menos um pretexto para se lamentar da vida e da Providência, e para ter uma ocasião de se tornarem importantes aos próprios olhos. Não, na possibilidade tudo é igualmente possível, e quem realmente foi educado mediante a possibilidade, compreendeu tanto o lado terrível quanto o agradável.‟ Para Kierkegaard, se alguém sai da escola da possibilidade „não pode pretender absolutamente nada‟ e sabe que o lado terrível, a perdição, a aniquilação, habita com todo homem de porta em porta; e se tirou proveito da angústia que daí segue, „dará à realidade outra explicação; exaltará a realidade e também quando esta pesa gravemente sobre ele, se recordará que ela é muito mais leve do que a possibilidade poderia ser‟.” (REALE, op. cit., 2005, p. 233) 26 KIERKEGAARD, op, cit., 1979, p. 212.
  • 31. 31 da existência, está em relação consigo mesmo, como possibilidade de se realizar enquanto tal na existência. E nessa relação consigo mesmo, ele sente o peso das possibilidades da existência, percebendo-se assim, diante da infinitude das possibilidades e dos seus próprios limites. É peculiar do indivíduo a existência cujo modo de ser é a possibilidade. E na possibilidade tudo é possível, ela é ameaça do nada, e disso brota a condição fundamental da existência humana: a angústia, como puro sentimento do possível, isto é, do futuro, daquilo que pode acontecer e que pode ser muito mais terrível do que a realidade. Pela angústia, o homem pode chegar ao desespero: a doença mortal – um eterno morrer sem porém morrer, ou seja, não querer aceitar-se das mãos de Deus. “O desespero e a angústia caracterizam [...] a existência, pois existir significa sofrer necessariamente desespero e angústia. Aquele resulta no fracasso, esta vem ligada à possibilidade e à liberdade”.27 Nos temas a seguir, o ápice do nosso trabalho, constataremos que o desespero e a angústia são questões relevantes que Kierkegaard trata em sua filosofia, justamente por serem problemas reais do ser humano. Fazem parte da condição do indivíduo e da sua relação com a própria existência. A analise kierkegaardiana do desespero e da angústia, por meio dos pseudônimos: Anti-Climaus e Vigilius Haufniensis, talvez possa representar o momento de maior maturidade filosófica do autor, voltada a categoria do indivíduo. E é a partir deste direcionamento existencial maduro de Kierkegaard que podemos dizer que a angústia e o desespero, na qualidade de problemas existenciais, guardam entre si uma relação muito estreita, em virtude de o desespero ter o espírito como instância única assim como a angústia. Os dois estão intimamente ligados, na medida em que ambos estão embasados na própria complexidade da trama da existência pessoal de cada indivíduo. Analisemos, portanto, no pensamento kierkegaardiano, como o desespero e a angústia caracterizam finalmente o existente. 27 GIORDANI, op. cit., 1997, p. 39.
  • 32. 32 3.3 O CONCEITO DE ANGÚSTIA28 Kierkegaard, no seu conceito de angústia, descreve, em sentido amplo, a atitude do homem que compreende a sua situação no mundo. “Eis o mistério profundo da inocência: ao mesmo tempo é angústia. Sonhador, o espírito projeta a sua própria realidade que é um nada, e a inocência vê continuamente diante de si este nada”. O autor do Conceito de angústia, publicado pela primeira vez em 1844 e dedicada ao professor Paul Martin Moller,29 sob o pseudônimo de Vigilius Haufniensis30 (O vigilante de Copenhague), apresentou sua obra como um “simples esclarecimento psicológico preliminar ao problema dogmático do pecado original”.31 Esclarecimento psicológico e não filosófico; esclarecimento este que aprofundaremos, buscando uma maior compreensão deste estado na existência humana. 3.3.1 A pedagogia da angústia Para Kierkegaard, a angústia é um estado que manifesta a relação do indivíduo com o mundo, uma relação determinada pela liberdade. E sendo uma obra com o simples esclarecimento psicológico, se tratará quase que brevemente do pecado, pois a angústia está no fundamento do pecado original como a queda do homem em Genesis dá um exemplo dela. Com o primeiro pecado, o pecado entrou no mundo. O mesmo é dizer que, com o primeiro pecado de qualquer homem posterior a Adão, o pecado entra no mundo. Porém, dizer que não havia pecado antes da queda de Adão, é uma afirmação não só completamente fortuita e irrelevante no que toca ao pecado em si, como desprovida de sentido e de direito de tornar maior o pecado de Adão e menor o primeiro pecado de qualquer outro homem. 32 A angústia em Kierkegaard precede o pecado e está ligada à possibilidade e à liberdade. Ela caracteriza a existência e serve para revelar ao existente o seu ser. Desde que o que é dado não é o eu, mas somente a possibilidade do eu, colocando-se diante do nada e 28 A angústia – do latim angere, apertar, estrangular – é um sentimento que ao contrário do medo não tem objeto preciso. 29 Poeta, teólogo e filósofo diamarques (1794-1838), considerado como precursor de Kierkegaard. 30 Um dos habituais pseudônimos latinos de Kierkegaard. 31 KIERKEGAARD, Sören. O conceito de angústia. Tradução de João Lopes Alves. 2. ed. Editorial Presença, [s.d.]. p. 7. 32 Ibid, [s.d.], p. 47
  • 33. 33 como que debruçado sobre o vácuo. É vertigem diante do que não é, mas poderá ser pelo uso de uma liberdade que não se experimentou e que não se conhece. Como uma espécie de antipatia simpática ou de simpatia antipática33, a angústia é desejo do que se teme, temor do que se deseja. E é nesta mistura de coisas opostas, podendo dizer também uma fascinação que tem lugar o primeiro pecado – conforme o relato do encantamento da serpente do livro do Genesis. A angústia foi responsável pela queda do primeiro homem, Adão. No Éden ele vivia num estado de inocência mesclado com ignorância. Essa ignorância determinou sua queda. A angústia, portanto foi responsável por sua queda por estabelecer uma relação entre a inocência de Adão, a coisa proibida e o castigo. Para Kierkegaard, a queda é um ato de liberdade. Comer o fruto, a escolha provocada pela própria angústia. O ato de pecar é, então, visto como natural por ser conseqüência da própria angústia, que representa o mais alto grau de egoísmo, pois nesse estado o indivíduo não desvia o olhar dele próprio e, assim, perde de vista Deus. O pecado, aqui, é considerado como estar apartado de Deus. O pecado é uma decisão que, mesmo tomada em liberdade, acabou por amarrá-la e, para ele, é nesse local da liberdade que o indivíduo pode reencontrar a si mesmo. O ser humano transformou sua liberdade em escravidão. A angústia é a vertigem da liberdade e dessa vertigem vem a queda; ela é definida a partir de então como a experiência vivida da possibilidade. A angústia não faz sinal a uma liberdade abstrata que se identifica ao livre-arbítrio, e sim a uma liberdade concreta e finita: Pode comparar-se a angústia à vertigem. Quando o olhar mergulha num abismo, há uma vertigem, que tanto nos vem do olhar como do abismo, pois que nos seria impossível deixar de o encarar. Tal é a angústia, vertigem da liberdade, que nasce quando, ao querer o espírito instituir a síntese, a liberdade mergulha o olhar no abismo das suas possibilidades e se agarra à finitude para não cair. Nesta vertigem a liberdade soçobra. Eis até onde chega a Psicologia, recusando-se a ir mais além. No mesmo instante, porém tudo mudou, e quando a liberdade se soergue, descobre-se culpada. É entre estes dois instantes que dá o salto, inexplicado e inexplicável por qualquer das ciências. Para o homem que devém culpado na angústia, a culpabilidade é o mais ambígua possível. A angústia corresponde a um delíquio feminil em que a liberdade desmaia e, psicologicamente, não houve queda senão em estado de inconsciência; mas, ao mesmo tempo, a angústia é a coisa mais crispadamente pessoal e nenhuma manifestação concreta da liberdade se revela tão ciumenta do Eu como é possibilidade de qualquer concreção. Reencontramos ainda aqui aquele acabrunhamento que determina a ambigüidade do indivíduo, o seu estado se simpatia e antipatia. Não que, na angústia, a infinitude egoísta do possível nos tente como quando somos postos perante uma escolha; no entanto, enfeitiça-nos, inquieta-nos com a sua doce ansiedade.34 33 34 Cf. KIERKEGAARD, op. cit.,[s.d], p. 64. KIERKEGAARD, op. cit., [s.d.], p. 93/4.
  • 34. 34 Para Kierkegaard, a liberdade vertiginosa não pode ser estabelecida como especulativa porque o discurso filosófico produz conceitos; portanto, para falar de liberdade devemos abandonar o terreno da lógica e partir para a psicologia, pois a esta não cabe dar definições e sim descrever estados. É por isso que Kierkegaard escreveu no início de seu tratado que era simples esclarecimento psicológico e não filosófico; a angústia como um estado que pode explicar a liberdade como vertigem. A angústia tem por origem a liberdade, entrave pela própria liberdade, a liberdade cativa de si própria. Segue então que angústia é essencialmente dialética, pois é possibilidade de algo que é e não é, que atrai e que repugna. Analisando a forma dialética da angústia em Kierkegaard, perceberemos a ambigüidade psicológica como elemento predominente. Em sua obra, Kierkegaard também identifica dois tipos de angústia: a angústia objetiva e a angústia subjetiva. Por angústia objetiva ele compreende o reflexo da pecabilidade da geração no mundo inteiro, ou seja, é a angústia pela qual o pecado entrou no mundo; é a angústia onde o homem, pelo fato da própria existência, é colocado diante de sua liberdade, da possibilidade de poder. Neste sentido, para o nosso filósofo, Adão estabeleceu o pecado não apenas em si mesmo, mas como para toda a humanidade. Portanto, a entrada do pecado no mundo teve importância para toda a criação: “Temos todo o direito de chamar a esta angústia da criação, angústia objectiva. É um produto, não das criaturas, mas daquela mudança de iluminação que estas sofreram quando o pecado de Adão degradou a sensualidade em pecabilidade [...]”35. E a angústia subjetiva, é para Kierkegaard, a do homem que experimenta pessoalmente a vertigem da liberdade por meio de seus atos e de seus pecados; seria no indivíduo como conseqüência de seu pecado. O emprego da expressão angústia objectiva induzirá [...] a pensar nessa angústia da inocência que é mero reflexo interior da liberdade como possível. [...] Mais pertinente seria lembrar que, ao falar de angústia objectiva para distinguir da angústia subjectiva, se pratica uma diferenciação inadmissível no que concerne ao estado de inocência de Adão. [...] A angústia subjectiva [...] seria a que instaura no indivíduo em conseqüência do pecado. [...] equivale aqui à angústia que existe na inocência do indivíduo, correspondente à de Adão, mas que devido à determinação quantitativa de cada geração, difere dessa em quantidade; por angústia objectiva, entendemos, pelo contrário, o reflexo da pecabilidade da geração no mundo inteiro.36 E nesta experiência da angústia subjetiva, o indivíduo pode superá-la quando a Salvação é tida como uma realidade, e isto será possível pela fé no Deus que tudo é possível: 35 36 Cf. KIERKEGAARD, op. cit.,[s.d.], p. 89. KIERKEGAARD, op. cit.,[s.d.], p. 86/7.
  • 35. 35 “A angústia é o possível da liberdade e só essa angústia forma, pela fé, o homem, no sentido absoluto da palavra, devorando todas as finitudes, pondo a descoberto todas as ilusões”37. O homem vê entre ele e o mundo um vácuo que o faz perder todo sentimento de segurança. Só na mediada em que for capaz de sofrer a prova desse abandono e dar o salto pela fé será existencialmente livre. A angústia é o lugar onde o si mesmo começa a advir, experiência cuja tonalidade afetiva é absolutamente única, pois ela não tem objeto e não é de forma alguma intencional. Nela o espírito sempre é tentado, o pecado o fascina. Podemos entender que, a angústia kierkegaardiana, é a expressão de uma perfeição da natureza humana, pois é só através dela que o homem poderá elevar-se à existência autêntica. Ela aniquila no homem todas as seguranças habituais para o entregar ao abandono de onde unicamente pode surgir a autêntica existência. Assim, percebemos mais claramente que, a angústia é a vertigem da própria liberdade. “O homem formado pela angústia é formado pela possibilidade e só aquele que a possibilidade forma está formado na sua infinitude. Por isso, a possibilidade é a mais árdua das categorias”38. Com a originalidade do pensamento de Kierkegaard sobre o Conceito de angústia podemos dizer que a angústia é a condição fundamental do homem diante do mundo, do possível que é fruto de sua liberdade. O homem experimenta angústia diante da liberdade carregada com o peso esmagador que é sua tarefa autêntica, a de ser humano, a saber, sintetizar as diferentes formas do seu ser próprio. Ela é a possibilidade da liberdade, e é preciso ser educado por ela para ser livre mediante a infinitude que lhe é própria. A angústia se vence somente com a fé. Ela é uma aventura que todo homem deve correr se não quer perder-se. Somente em virtude da fé ela possui um valor educativo. A angústia vem do fato de que Deus deixa o homem livre, à sua imagem, para operar, por seus atos concretos, as escolhas em que se projeta a fim de construir-se, de edificar-se. 3.4 O DESESPERO HUMANO39 Como vimos, anteriormente, que a angústia é a condição na qual o homem é colocado pelo possível no que se refere de sua relação com o mundo, agora veremos, portanto, que o 37 KIERKEGAARD, op. cit.,[s.d.], p. 232. Id. 39 O Desespero Humano é uma das obras de Soren Kierkegaard considerada mais importante. Ela foi escrita pelo filósofo em 1849 sob o pseudônimo Anti-Climacus. 38
  • 36. 36 desespero é inerente à relação do eu40 consigo mesmo e à possibilidade dessa relação. “Doença do espírito, do eu, o desespero pode como tal tomar três figuras: o desespero inconsciente de ter um eu (o que é verdadeiro desespero); o desespero que não quer, e o desespero que quer ser ele próprio”.41 O eu é formado da síntese do finito e do infinito, mas essa síntese é uma relação que, apesar de derivada, se relaciona consigo própria, o que fundamenta a liberdade. O homem é espírito. Mas o que é espírito? É o eu. Mas, nesse caso, o eu? O eu é uma relação, que não se estabelece com qualquer coisa de alheio a si, mas consigo própria. Mais e melhor do que na relação propriamente dita, ele consiste no orientar-se dessa relação para a própria interioridade. O eu não é a relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento que ela tem de si própria depois de estabelecida. O homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, é, em suma, uma síntese. Uma síntese é a relação de dois termos.42 O desespero pertence ao eu, consiste no viver da morte pelo eu. É inerente à personalidade do homem, à relação consigo próprio e à possibilidade desta relação. O indivíduo pode saber que está no desespero sem saber a causa de tal situação. Mas se houver uma clareza completa, isto é, se o indivíduo tiver plena consciência da motivação total, então o desespero desaparecerá na medida em que se torna consciente de tal realidade. Eis a questão que iremos refletir acerca do desespero humano, a doença mortal. 40 Para compreendermos melhor a idéia do desespero devemos levar em consideração a teoria kierkegaardiana do eu; “O conceito do „eu‟ é o conceito fundamental do romantismo. Tem um papel de primeiro plano nas filosofias de Fichte e de Schelling, e ocupa, ao mesmo tempo, um lugar especial dentro do pensamento hegeliano. [...] Em Kant o eu não é apenas objeto de percepção, mas também sujeito do pensamento. [...] o eu ou o „Eu penso‟ é o que confere a unidade à diversidade do pensamento, o que acompanha todas as representações (Crítica da razão pura). O eu é [...] consciência de si, ou seja, consciência de seu papel de acompanhante de todas as suas representações. [...] Fichte desenvolveu uma teoria do eu absoluto, isto é, de uma eu que utiliza tanto seu poder de união [...] que se torna o criador de toda a realidade (Doutrina da ciência, 1794). O eu torna-se entre os românticos uma consciência de si infinita e absoluta, um „algo‟ que encontra em si mesmo, uma subjetividade desenfreada – em Kierkegaard também a subjetividade ocupa o primeiro lugar, mas possui um limite: Deus [...] Hegel, ao contrário, em seu sistema minimiza o eu e dele faz a simples certeza de si (Ciência da lógica). O que procura é um saber para o qual a distinção entre o eu e o não-eu, entre a subjetividade e a objetividade, desapareça sob a união, um saber absoluto. [...] é precisamente a essa unidade da consciência que Kierkegaard se opõe. Ao eu como unidade, opõe o eu como relação. O que é unido é estável, o que está em relação, ao contrário, é estável, variável, frágil. Assim, o eu como relação reconhece que é, antes de mais nada, uma formação instável, sujeita à angústia, à indecisão, à doença, à morte [...] A volta sobre essa relação, a ligação da relação consigo mesmo, constitui o eu” (BLANC, op. cit.,2003, p. 84/5). 41 KIERKEGAARD, op, cit., 1979, p. 195. 42 Ibid., p. 195.
  • 37. 37 3.4.1 Doença para a morte Kierkegaard diz que o desespero é a “doença até a morte”; no entanto, podemos perguntar: mas qual o sentido desta expressão doença para a morte? Assim ele define: Esta idéia de „doença mortal‟ deve ser tomada num sentido particular. A letra significa um mal cujo termo é a morte, e serve então de sinônimo duma doença da qual se morre. Mas não é nesse sentido que se pode designar assim o desespero; porque, para o cristão, a própria morte é uma passagem para a vida. Desse modo, a nenhum mal físico ele considera „doença mortal‟. A morte põe termo às doenças, mas só por si não constitui um termo. Mas uma „doença mortal‟ no sentido estrito que dizer uma mal que termina pela morte, sem que após subsista qualquer coisa. E é isso o desespero.43 Ele não entende como um mal cuja saída é a morte. Para ele, portanto, o desesperado é um enfermo que sofre de uma doença até a morte, mas de uma doença da qual não pode morrer, o mal não morre. O desespero é uma doença até a morte porque o desesperado deseja a morte do eu, uma modificação, transformação da relação do eu com ele mesmo; é o viver a morte do eu. Do ponto de vista cristão, a vida não é fim, mas passagem à vida eterna, e assim sendo não pode haver doença mortal para o cristão. Para Kierkegaard, o desespero é a culpa do homem que não sabe aceitar a si mesmo em sua profundidade: é um eterno morrer sem, no entanto morrer, uma autodestruição impotente. Essa destruição de si próprio, o desespero, é impotente e não consegue os seus fins. A sua vontade é destruir-se, porém é exatamente isso que ela não consegue fazer. A própria impotência é uma segunda forma de destruição, na qual o desespero erra o seu alvo, que seria a destruição do eu. É a tentativa impossível para negar a possibilidade do eu ou de tornar o eu auto-suficiente. Essa doença manifesta dois sintomas particulares: o desespero em si, querer ser o eu que não se é na verdade ou desfazer de si; e o querer ser si mesmo a qualquer preço, o que significa ainda querer ser o que não se é verdadeiramente. Daí provém que haja duas formas do verdadeiro desespero. Se o nosso eu tivesse sido estabelecido por ele próprio, uma só existiria: não querermos ser nós próprios, querermo-nos desembaraçar do nosso eu, e não poderia existir outra: a vontade desesperada de sermos nós próprios.44 43 44 KIERKEGAARD, op, cit., 1979, p. 199. Ibid., p. 195.
  • 38. 38 Em Kierkegaard “o homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, uma síntese, relação de dois termos”. A partir desta relação temos, então, dois tipos de desespero: um é a recusa de reconhecer o infinito em si, recusa de assumir a responsabilidade pela sua vida interior por causa das exigências que ela coloca; o outro advém da síntese de necessidade e de liberdade, pois esta provém de uma carência de liberdade ou de necessidade, e a falta de uma destas é a fuga do eu para uma infinidade de possibilidades que jamais esgotam. Uma vez que o indivíduo é a síntese entre a finitude e a infinitude, o desespero surge quando um desses fatores assume o predomínio sobre o outro. O homem em desespero tem o costume de se considerar vítima de circunstâncias externas, mas quando reconhece que o problema é interior a reação é de curar-se de si mesmo. Eis o ponto de sua grandeza e de sua miséria, pois o desespero tem como raiz, no homem, o eterno. Bem longe de não serem desesperados todos aqueles que não sentem o desespero, ou que supõem só o serem aqueles que o confessam, muito ao contrário, o homem que afirma com coragem o seu desespero não está tão longe da cura, está mais próximo do que todos aqueles que não são considerados ou não se julgam desesperados. Desesperar de uma coisa não é ainda o verdadeiro desespero, é apenas o início dele. Declara-se o desespero real quando o indivíduo desespera de si próprio. Desesperar de si próprio, ou querer desesperadamente libertar-se de si próprio é a fórmula de todo o desespero. Para Kierkegaard, quem desespera quer no seu desespero ser ele próprio45. Entretanto, o homem deseja sempre libertar-se do seu eu, do eu que é para se tornar um eu da sua própria invenção. O eu é formado da síntese do infinito e do finito, mas essa síntese é uma relação que se relaciona consigo próprio, o que fundamenta a liberdade. Nesse sentido o eu é liberdade, porém a liberdade que é a dialética das duas categorias do possível e do necessário. É neste sentido que Kierkegaard fala da doença personificada do desespero. [...] Quem desespera quer, no seu desespero, ser ele próprio. Mas então, é porque não pretende desembaraçar-se do seu eu? Aparentemente, não; mas se virmos as coisas mais de perto, encontramos sempre a mesma contradição. Este eu, que o desesperado quer ver, é um eu que ele não é (pois querer ser o eu que se é verdadeiramente é o contrario do desesperado), o que ele quer, com efeito, é separar o seu eu do seu Autor. [...] Entretanto o homem deseja sempre libertar-se do seu eu, do eu que é, para se tornar um eu da sua própria invenção. Ser este „eu‟ que ele quer faria a sua delícia [...] mas o constrangimento de ser este eu que não quer ser, é o seu suplício: não pode libertar-se de si próprio.46 45 46 Cf. KIERKEGAARD, op. cit., 1979, p. 200. Ibid., p. 201.
  • 39. 39 O eu que não se torna ele próprio permanece desesperado; enquanto não consegue tornar-se ele próprio, o eu não é ele próprio, portanto não ser ele próprio é o próprio desespero. Podemos nos perguntar, diante destas considerações de desespero: o que o desespero nos ensina? Podemos, então, chegar a conclusão que, o eu que quer se tornar ele mesmo não consegue – por causa de sua natureza finita – e que aquele que não quer ser ele mesmo sofre um fracasso. O desespero ensina que é impossível vencer o desespero, que ele é de fato a doença até a morte do eu. Mas a impossibilidade de vencer o desespero só é uma impossibilidade para aquele que não acredita em Deus, para aquele que não tem fé – se a Salvação é impossível para o homem, a Deus tudo continua sendo possível. Assim o único remédio para o desespero é a fé, porque ter fé é acreditar que para Deus tudo é possível. Porém, antes de Kierkegaard falar da fé, a qual aprofundaremos mais adiante, como antídoto da doença até a morte, ele fala do pecado. A essência do pecado para o nosso autor é o desespero, ou seja, o pecado consiste no desespero pelo fato de se desesperar por não se ter fé. O pecado é a fraqueza elevada à suprema potência. O indivíduo peca quando perante Deus, desesperado não quer ou quer ser si próprio. Pecamos quando, perante Deus ou com a idéia de Deus, desesperados, não queremos, ou queremos ser nós próprios. O pecado é deste modo fraqueza ou desafio elevados à suprema potência; é portanto, condensação do desespero. O acento recai aqui sobre estar perante Deus ou ter a idéia de Deus; o que faz do pecado aquilo que os juristas chamam „desespero qualificado‟; a sua natureza dialética, ética, religiosa, é a idéia de Deus.47 O pecado é ignorância no sentido da própria natureza, portanto, o pecado consiste perante Deus, no desespero por não querermos ser nós mesmos ou no desespero por o querermos. Ora, tendo em vista a dependência ontológica que caracteriza o eu humano, o eu não pode por si mesmo alcançar o equilíbrio e o repouso e ai permanecer, mas pode unicamente relacionando-se consigo mesmo, relacionar-se com o que aquele que estabeleceu toda relação, que é Deus. Acrescenta-se ainda que, seja qual for a escolha feita, o homem não escapa a uma fase de desespero. Kierkegaard qualifica como desespero até as vidas mais tranqüilas, inconscientes de suas próprias misérias, o que ele chama de “não-vida”. A solução acessível a este ser, que por essência o homem, é a fé paradoxal. É o relacionamento de toda a relação com a força que a formou: Deus, pois é nesta relação que se faz a junção do incondicional e da condição. 47 KIERKEGAARD, op. cit.,1979, p. 239.
  • 40. 40 4 A FÉ E A LIBERDADE Como já observamos, a existência é o modo de ser do indivíduo, como é também o reino da liberdade: o homem é o que escolhe ser, é aquilo que se torna. Segundo Kierkegaard, é exatamente a vida de fé que constitui a forma verdadeiramente autêntica da existência finita, vista como o encontro do indivíduo com a singularidade de Deus. “A angústia é o possível da liberdade e só essa angústia forma, pela fé, o homem, no sentido absoluto da palavra”. O coração do drama humano está na relação da existência com uma transcendência que constitui sua abertura a um além de si mesmo; a existência, portanto, significa poder de decisão, possibilidade de ser e de nada, como dúvida e como fé, uma ação interior da liberdade que leva a fazer opções decisivas. A fé é um dos temas preferidos de Kierkegaard. Contra o pensamento e a praxe da Igreja oficial pela sua conveniência e dependência em relação ao Estado dinamarquês sem implicações pessoais, ele sustenta com extraordinário vigor e convicção a tese da subjetividade da fé. Com estes meus olhos vi coisas terríveis e nunca recuei apavorado, mas sei muito bem que, embora as afrontasse sem medo, não se segue daí que a minha coragem me não venha da fé, nem com ela se pareça em nada. Não posso realizar o movimento da fé, não posso cerrar os olhos e lançar-me de cabeça, pleno de confiança, no absurdo [...] Não importuno Deus com mesquinhas inquietações; não me preocupa o detalhe, fixo os olhos unicamente no meu amor, cuja chama, clara e virginal, guardo dentro de mim; confia a fé em que Deus cuida das mínimas coisas. Sinto-me contente de estar casado nesta vida pela mão esquerda; a fé é demasiado humilde para solicitar a direita; que o faça em plena humildade, não o nego, jamais o negarei.48 A experiência religiosa não pode ser autêntica e verdadeira se for objetiva e desligada. Para ser verdadeira, ela deve empenhar o sujeito, isto é, tornar-se subjetiva. A subjetividade não significa somente adesão pessoal a uma verdade, mas também ausência de elementos objetivos de controle para estabelecer a verdade. E por causa destas duas características o conhecimento subjetivo é um risco. O risco é um elemento inseparável da verdadeira experiência religiosa, da fé. A fé é um risco porque requer a adesão pessoal a afirmações que não apresentam nenhuma garantia. A fé é um risco porque o seu objeto é o paradoxo, uma verdade que ultrapassa os esquemas da razão humana. “Verdade, compromisso e risco estão, 48 KIERKEGAARD, op. cit., 1979, p. 127/8.
  • 41. 41 de fato, necessariamente ligados. Não pode haver verdade para mim desde que eu não me disponha a tomar um compromisso e a arriscar tudo. Recusar o risco é recusar a verdade”.49 4.1 A FÉ COMO REMÉDIO – O SALTO PARA LIBERDADE O salto opõe-se ao conceito hegeliano de passagem A passagem de uma esfera da existência à outra não se faz por evolução, mas por salto. No salto para a fé, a angústia desempenha papel importante. Esta não possui somente o aspecto negativo de colocar a totalidade do ser, a própria existência diante do nada, mas injeta positivamente levando o homem ao salto desesperado para a fé. [...] A dialética da fé é a mais sutil e notável de todas; tem uma sublimidade de que posso ter uma idéia, mas não mais que isso. Posso muito bem executar o salto de trampolim no infinito; tal como o dançarino de corda, a espinha torceu-se-me na infância; também saltar me é fácil: um, dois e três! Lançome de cabeça na vida, mas já para o salto seguinte estou incapacitado; permaneço interdito em face do prodígio, não o consigo realizar [...] 50 Para Kierkegaard, o caminho que leva o cristão defrontar-se sozinho com Deus e realizar, assim a plenitude individual está nas etapas da existência. Por estas etapas ele entende: os estádios51 estético, ético e religioso. No estádio estético, o homem vive fora de si; no estádio ético começa a entrar em si; e no estádio religioso, volta-se completamente para si encontrando-se nas mãos de Deus. E é neste estádio, ao aprofundar em si mesmo que o homem faz experiência com o Absoluto. A categoria central da esfera religiosa é estar diante de Deus. Ele domina a existência humana. Surge assim, um diálogo misterioso entre Deus e o homem. A chamada de Deus se realiza em cada instante e é uma expressão fundamental pela qual Ele chama continuamente o homem à existência na criação. O homem deve corresponder continuamente a essa chamada, pois só assim existe autenticamente vivendo com sua individualidade sozinho com Deus. Pela fé o homem se abre totalmente a Deus e se coloca integralmente em suas mãos. A angústia de fundir-se no nada sucede a segurança de estar 49 JOLIVET, op. cit.,1961, p. 47. KIERKEGAARD, op. cit.,1979, p. 129. 51 As palavras estádio ou etapas da existência não devem sugerir uma sucessão cronológica no sentido em que cada indivíduo deva passar sucessivamente pelas etapas abandonando um, após a outra, como se abandonam os degraus de uma escada. Esses três estádios coexistem e podemos refletir ao mesmo tempo sobre os mesmos, porém não podemos é vive-los simultaneamente, pois que esses diferentes modos de existir se excluem entre si. (Cf. GIORDANI, op. cit.,1997, p. 41) 50