1. A atualidade de Søren Kierkegaard
Marcio Gimenes de Paula
O indivíduo como ponto inicial na
filosofia kierkegaardiana
Patricia Carina Dip E mais:
Filosofia de Kierkegaard: defesa >> Maria Teresa
pela alteridade Bustamante Teixeira:
314Ano IX
Álvaro Valls
Gestão e Saúde Coletiva
09.11.2009
O avanço da pesquisa >>Jesuítas assassinados em
ISSN 1981-8469 em Kierkegaard no Brasil El Salvador. 20 anos depois
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2. A atualidade de Søren Kierkegaard
Nos próximos dias 12 e 13 de novembro, realiza-se, na Unisinos, a segunda parte da Jornada
Argentino-Brasileira de Estudos de Kierkegaard. Ela é antecedida, nos dias 9 e 10 de novembro,
pelo evento que acontece em Buenos Aires. A atualidade do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard
(1813-1855) é discutida nesta edição da IHU On-Line por especialistas que estarão tanto em Buenos
Aires como aqui em São Leopoldo, RS.
Patricia Carina Dip, pesquisadora do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas
(CONICET), na Argentina, fala sobre a filosofia de Kierkegaard como aporte ético à alteridade. O
indivíduo como ponto inicial na filosofia kierkegaardiana é um dos aspectos abordados por Marcio
Gimenes de Paula, da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Os pontos de proximidade e ruptura
entre as ideias de Kierkegaard e Schopenhauer são o foco de Deyve Redyson de Melo dos Santos,
professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Álvaro Valls, da Unisinos, faz um balanço das
pesquisas sobre o dinamarquês no Brasil. Luiz Rohden, também da Unisinos, fala sobre a crítica
de Gadamer e Kierkegaard à filosofia abstrata. Ana María Fioravanti e Maria Jose Binetti (Univer-
sidade John F. Kennedy, na Argentina) oferecem um panorama sobre os estudos sobre esse autor
na Argentina, e comentam aspectos sobre a filosofia pós-moderna e a força infinita do espírito
humano. Either/Or e o texto como arena é o tema que instiga a pesquisadora Jacqueline Ferreira
em sua entrevista à IHU On-Line. Comparando Kierkegaard e Tillich, Jonas Roos examina a virada
nos conceitos tradicionais religiosos proposta por ambos pensadores. O filósofo e psicanalista Mario
Fleig, da Unisinos, reflete sobre a leitura de Lacan sobre Kierkegaard.
A programação completa do evento pode ser conferida no sítio do Instituto Humanitas Unisinos
– IHU, que está apoiando o evento:
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_eventos&Itemid=19&task=detalhe&id=152
No próximo dia 16 de novembro, celebram-se os vinte anos do assassinato de seis jesuítas, to-
dos eles professores da Universidade Centro-Americana José Simeón Cañas (UCA), em El Salvador.
Juntamente com eles, foram também assassinadas a senhora Elba Ramos e sua filha Celina, que
trabalhavam na residência dos jesuítas. O debate de Noam Chomsky e John Sobrino sobre o tema e
o evento a ser realizado na Unisinos, são temas desta edição.
Completam esta edição mais duas entrevistas. Uma com Julius Lipner, professor de Hinduísmo
na Universidade de Cambridge, e outra com a médica Maria Teresa Bustamante Teixeira, profes-
sora da UFJF, sobre gestão e saúde coletiva.
A todas e todos uma ótima leitura e uma excelente semana!
IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. ISSN 1981-8769.
Expediente
Diretor da Revista IHU On-Line: Inácio Neutzling (inacio@unisinos.br). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 (grazielaw@unisi-
nos.br). Redação: Márcia Junges MTB 9447 (mjunges@unisinos.br) e Patricia Fachin MTB 13062 (prfachin@unisinos.br). Revisão: Vanessa
Alves (vanessaam@unisinos.br). Colaboração: César Sanson, André Langer e Darli Sampaio, do Centro de Pesquisa e Apoio aos Traba-
lhadores – CEPAT, de Curitiba-PR. Projeto gráfico: Bistrô de Design Ltda e Patricia Fachin. Atualização diária do sítio: Inácio Neutzling,
Greyce Vargas (greyceellen@unisinos.br) e Juliana Spitaliere. IHU On-Line pode ser acessada às segundas-feiras, no sítio www.unisinos.
br/ihu. Sua versão impressa circula às terças-feiras, a partir das 8h, na Unisinos. Apoio: Comunidade dos Jesuítas - Residência Concei-
ção. Instituto Humanitas Unisinos - Diretor: Prof. Dr. Inácio Neutzling. Gerente Administrativo: Jacinto Schneider (jacintos@unisinos.br).
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do IHU: humanitas@unisinos.br - ramal 4121.
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3. Leia nesta edição
PÁGINA 02 | Editorial
A. Tema de capa
» Entrevistas
PÁGINA 07 | Patricia Carina Dip: A filosofia de Kierkegaard como aporte ético à alteridade
PÁGINA 10 | Marcio Gimenes de Paula: O indivíduo como ponto inicial na filosofia kierkegaardiana
PÁGINA 13 | Deyve Redyson Melo dos Santos: Kierkegaard e Schopenhauer. Proximidades e rupturas
PÁGINA 16 | Luiz Rohden: A crítica de Gadamer e Kierkegaard à filosofia abstrata
PÁGINA 18 | Jonas Roos: Uma virada nos conceitos tradicionais religiosos
PÁGINA 20 | Mario Fleig: Que peso tem para um filho o pai em pecado? Lacan leitor de Kierkegaard
PÁGINA 23 | Álvaro Valls: O avanço da pesquisa em Kierkegaard no Brasil
PÁGINA 27 | Ana María Fioravanti e Maria Jose Binetti: A filosofia pós-moderna e a força infinita do espírito humano
PÁGINA 30 | Jacqueline Ferreira: O texto como arena
B. Destaques da semana
» Teologia Pública
PÁGINA 36 | Julius Lipner: Um Deus para cada contexto
» Entrevista da Semana
PÁGINA 39 | Maria Teresa Bustamante Teixeira: Gestão e saúde coletiva
» Memória
PÁGINA 43| Ana Formoso: Ignacio Ellacuría - Um pensador, negociador e cristão
» Coluna Cepos
PÁGINA 45 | Rafaela Barbosa: A nova Record: A construção do padrão tecnoestético e da liderança
pela via do reality show A Fazenda
» Destaques On-Line
PÁGINA 47 | Destaques On-Line
C. IHU em Revista
» Eventos »
769.
PÁGINA 52| Mártires em El Salvador: uma memória que continua forte 20 anos depois
nisi-
essa » Perfil
aba- PÁGINA 55| Faustino Teixeira
ing,
nos.
» IHU Repórter
cei- PÁGINA 58| Lauro Antônio Lacerda d’Ávila
br).
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5. Biografia - Søren Kierkegaard
Søren Kierkegaard nasceu em 5 de maio de 1813, em Copenhague,
onde faleceu em 11 de novembro de 1855. A brevidade de sua vida
contrasta com a qualidade e a extensão de sua produção, ainda não
classificada nos círculos acadêmicos. Se não é filósofo, nem teólogo,
nem psicólogo, nem literato, nem místico, nem pedagogo, como é que
sua influência está tão presente em Jaspers, Heidegger, Sartre, Ricoeur,
Benjamin, Kafka, Buber, Chestov, Lívinas, Derrida, Rosenzweig, Janké-
lévich, Bloch, Merleau-Ponty, Arendt, Deleuze, Canetti, Barth, Lacan,
Bataille, Tillich, Adorno?
Sempre contrário à Igreja Oficial da Dinamarca, luterana pietista, na
maioria dos países a recepção das obras de Kierkegaard esteve ligada
à igreja em função da característica dos seus escritos. Na Alemanha,
por exemplo, foi traduzido por teólogos. Na França, a recepção se deu
mais na área da estética. No Brasil, a recepção se dá, ao mesmo tempo,
junto a teólogos, literatos e filósofos.
Bibliografia - Frygt og Bæven, 1843 (Temor e
tremor).
ceito de angústia).
V. - Forord, 1844 (Prefácios).
- Gjentagelsen, 1843 (A repeti- - Fire opbyggelige Taler,
Obras de Søren Kierkegaard ção). 1844 (Quatro discursos edificantes
Søren Kierkegaards Samlede - Tre opbyggelige Taler, 1843 1844).
Værker (SV²). Editada por A. B. Dra- (Três discursos edificantes 1843). - Tre Taler ved Tænkte Lejlighe-
chmann, L. Heiberg e H. O. Lange. IV. - Fire Opbyggelige Taler, der, 1845 (Três discursos em deter-
København, Gyldendal, 1920-1936, 1843 (Quatro discursos edificantes minadas circunstâncias).
XV volumes; os quatorze primeiros 1843). VI. - Stadier paa Livets Vej,
contém as obras, o XV contém os Ín- - To opbyggelige Taler, 1844 (Dois 1845 (Estádios no caminho da vida).
dices. discursos edificantes 1844). VII. - Afsluttende Uvidenska-
I. - Enten-Eller (I), 1843 (A Al- - Tre opbyggelige Taler, 1844 belig Efterskrift til de Philosophiske
ternativa I). (Três discursos edificantes 1844). Smuler,
II. - Enten-Eller (II), 1843 (A Al- - Philosophiske Smuler eller en 1846 (Post-Scriptum definitivo e
ternativa II). Smule Philosophi, 1844 (Migalhas não científico às Migalhas filosófi-
III. - To opbyggelige Taler, 1843 filosóficas). cas).
(Dois discursos edificantes 1843). - Begrebet Angest, 1844 (O con- VIII. En literair Anmeldelse,
-
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6. 1846 (Uma resenha literária). escritor). Miranda de, PAULA, Marcio Gimenes
- Opbyggelige Taler i forskjellig XIV. - Bladartikler, 1854-1855 de (Orgs.) Søren Kierkegaard no Bra-
Aand, 1847 (Discursos edificantes (Artigos jornalísticos). sil. João Pessoa: Idéia, 2007. [Cole-
em diversos espíritos). - Øieblikket, 1855 (O instante). tânea de textos em homenagem a
IX. - Kjerlighedens Gjerninger, - Hvad Christus dømmer om offi- Alvaro L. M. Valls, com pesquisado-
1847 (As obras do amor) ciel Christendom, 1855 (Como Cris- res brasileiros e argentinos].
X. - Christelige Taler, 1848 to julga o cristianismo oficial). REVISTA PORTUGUESA DE FILOSO-
(Discursos cristãos). - Guds Uforanderlighed. En Tale. FIA. Horizontes existenciários da fi-
- Krisen og en Krise i en Skues- 1855 (A imutabilidade de Deus. Um losofia. Tomo 64, Braga: 2008. [Edi-
pillerindes Liv, 1848 (A crise e uma discurso). tado por VILA-CHÃ, João José, reúne
crise na vida de uma atriz). um número significativo de textos
XI. - Lilien paa Marken og Fu- em diversos idiomas e temas].
Algumas obras de Kierkega-
glen under Himlen, 1849 (Os lírios VALLS, Alvaro L. M. Do desespero
do campo e as aves do céu). ard traduzidas ao português: silencioso ao elogio do amor desin-
- Tvende Ethisk-religieuse Smaa- teressado: aforismos, novelas e dis-
Afhandlinger, 1849 (Dois pequenos KIERKEGAARD, Søren A. O con- cursos de Søren Kierkegaard. Porto
tratados ético- religiosos). ceito de ironia. 2. ed. Bragança Alegre: Escritos, 2004.
- Sygdommen til Døden, 1849 (A Paulista: Editora Universitária São
doença para a morte). Francisco, 2005. Alguns estudos
- Ypperstepræsten-Tolderen-Syn- ______. Migalhas filosóficas. 2
deriden, 1849 (O sumo sacerdote - O ed. Petrópolis: Vozes, 2008. publicados em português
publicano - A pecadora). ______. As obras do amor. 2 ed.
XII. - Indøvelse i Christendom, Petrópolis: Vozes; Bragança Paulis- ALMEIDA, Jorge Miranda de. Éti-
1850 (Escola de Cristianismo). ta: Editora Universitária São Fran- ca e existência em Kierkegaard e
- En opbyggelige Tale, 1850 (Um cisco, 2007. Lévinas. Vitória da Conquista: UESB,
discurso edificante). ______. In vino veritas. Lisboa: 2009.
- To Taler ved Altergangen om Antígona, 2005. REDYSON, Deyve. A filosofia de
Fredagen, 1851 (Dois discursos para ______. Adquirir a sua alma na Soren Kierkegaard. Recife: Elógica,
a comunhão de sexta-feira). paciência. Lisboa: Assírio Alvim, 2004.
- Dømmer Selv! Til Selvprøvel- 2007. GRAMMONT, Guiomar de. Don
se, Samtiden anbefalet, 1851-1852 ______. É preciso duvidar de Juan, Fausto e o Judeu Errante em
(Julgai vós mesmos! Para um exame tudo. São Paulo: Martins fontes: Kierkegaard. Petrópolis: Catedral
de consciência, recomendado aos 2003. das Letras, 2003.
contemporâneos). ______. Diário de um sedutor; PAULA, Marcio Gimenes de. So-
XIII. - Bladartikler fra Tiden for Temor e tremor; O desespero huma- cratismo e cristianismo em Kierke-
‘Forfatterskabet’, 1834-1836 (Arti- no. São Paulo: Abril Cultural: 1974. gaard: o escândalo e a loucura. São
gos jornalísticos do período anterior (Os Pensadores) Paulo: Annablume: Fapesp, 2001.
à ‘atividade literária’). ______. Indivíduo e comunidade
- Af en endnu Levendes Papirer, Coletâneas de estudos e/ou tra- na filosofia Kierkegaard. São Paulo:
1838 (Dos papéis de um sobreviven- duções: Paulus, 2009.
te). ALMEIDA, Jorge Miranda de; GOUVÊA, Ricardo Quadros. Pai-
- Om Begrebet Ironi med stadigt VALLS, Alvaro L. M. Kierkegaard. Rio xão pelo paradoxo. 2 ed. São Paulo:
Hensyn til Sokrates, 1841 (O concei- de Janeiro: Jorge Zahar, 2007 (Cole- Fonte, 2006.
to de ironia constantemente referi- ção passo-a-passo, 78) ______. A palavra e o silên-
do a Sócrates). FILOSOFIA UNISINOS. v. 6, n. 3 cio. São Paulo: Alfarrábio; Custom,
- Bladartikler der staaer i Forhold (setembro-dezembro) de 2005. [Nú- 2002.
til ‘Forfatterskabet’. ����������
1842-1851 mero dedicado ao pensador dina- ROOS, Jonas. Razão e fé no pen-
(Artigos jornalísticos que estão em marquês, editado por Luiz Rohden e samento de Søren Kierkegaard: o
relação com a ‘atividade literária’). disponível em: www.revistafilosofia. paradoxo e suas relações. São Leo-
- Om min Forfatter-Virksomhed, unisinos.br] poldo: Sinodal; EST, 2006.
1851 (Sobre minha obra de escri- REICHMANN, Ernani. Soeren VALLS, Alvaro L. M. Entre Sócra-
tor). Kierkegaard. Curitiba: Edições Jr., tes e Cristo: ensaios sobre a ironia e
- Synspunktet for min Forfatter- 1972. [Tradução de trechos de di- o amor em Kierkegaard. Porto Ale-
Virksomhed, 1859 (O ponto de vista versas obras de Kierkegaard]. gre: Edipucrs, 2000.
explicativo de minha atividade de REDYSON, Deyve, ALMEIDA, Jorge
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7. A filosofia de Kierkegaard como aporte ético à alteridade
Ainda que partindo do eu, filosofia do pensador dinamarquês pode fundamentar a
defesa pela alteridade, pontua Patricia Carina Dip. Preeminência do ético sobre o
metafísico é tributária a Levinas
Por Márcia Junges e Jasson Martins | Tradução Jasson Martins
M
esmo que o “eu” seja o ponto de partida de Kierkegaard, “sua filosofia pode ser enten-
dida como um aporte ético para os que desejam defender uma verdadeira alteridade,
e não apenas pronunciar um discurso ‘politicamente correto’ sobre a diferença e a
tolerância, porém ‘praticamente’ estéril”. A afirmação faz parte da entrevista a seguir,
concedida, por e-mail, pela filósofa argentina Patricia Carina Dip à IHU On-Line. “Acre-
dito que em Kierkegaard aparece a preeminência do ético por sobre o metafísico, da qual é devedor
Levinas”, completa. Analisando as contribuições do pensador dinamarquês à política atual, ela con-
sidera que sua filosofia pode realmente inspirar a uma transformação nesse campo. “O descrédito no
qual tem caído a participação política tradicional obedece a distintos fatores; não obstante, disso
não se deduz a ‘morte’ do político, mas a necessidade de sua ‘ressurreição’. Neste sentido, a Amé-
rica Latina ocupa um papel certamente privilegiado, especialmente quando muitos intelectuais do
primeiro mundo europeu tentaram convencer-nos de que havíamos ingressado na ‘pós-modernidade
ou no pós-marxismo’. Ao contrário, creio que ainda não saímos da ilustração”, provoca. Outro tema
discutido por Dip é a contraposição e aproximação entre Kierkegaard e Marx. O primeiro, diz ela,
descreve a alienação psicológica da sociedade burguesa, enquanto o segundo se refere à alienação
social. “A diferença reside na perspectiva da análise que cada um assume”.
Dip é doutora em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires - UBA, professora da Universidad Na-
cional de General Sarmiento – UNGS, e pesquisadora do Conselho Nacional de Investigações Científicas
e Técnicas - CONICET. Durante os últimos dez anos, dedicou-se a estudar, discutir e traduzir a obra de
S. Kierkegaard. Publicou artigos em diversas revistas e participou de várias publicações conjuntas. No
ano de 2007, publicou sua tradução (com um estudo preliminar) de S. Kierkegaard, Johannes Climacus
o el dudar de todas las cosas (Buenos Aires: Editorial Gorla, 2007). Na Jornada Argentino-Brasileira
de Estudos de Kierkegaard, apresentou o tema Subjetividade e Praxis: a recepção fenomenológica de
Kierkegaard na obra de Michel Henry. Confira a entrevista.
IHU On-Line - Na sua percepção, qual namente na academia. Isso permitiu um sintoma momentâneo dos estudos
é a situação atual dos estudos de que se escrevessem vários trabalhos sobre o dinamarquês. Quer dizer, que
Kierkegaard no campo latino-ameri- de doutorado discutindo suas ideias. em uma primeira etapa se produzam
cano de fala espanhola? Apesar de tudo isso ser muito positivo, estudos especializados, porém que
Patricia Carina Dip - Em minha opi- ainda falta a tradução das obras com- logo possamos observar a influência de
nião, os estudos da obra de Kierkega- pletas em espanhol. sua obra em escritos originais.
ard na América Latina de fala hispâni- Por outra parte, apesar de que o “Compreender” corretamente um
ca têm progredido consideravelmente maior impacto das ideias de Kierkega- filósofo da estatura de Kierkegaard
nos últimos vinte anos. Tanto no Mé- ard seja um fenômeno que pode ser supõe abandonar seu caminho teórico
xico como na Argentina, foram funda- observado em escala mundial, isso não com o objetivo de formular o próprio
das bibliotecas e sociedades dedicadas significa que tenha surgido interpreta- caminho. Ainda que este tipo de for-
exclusivamente ao estudo, tradução ções “integrais” de sua obra ou pensa- mulações não tenha sido realizado na
e divulgação da obra do pensador di- dores que pensem “com” Kierkegaard, América Latina, confio que formarão
namarquês. Além disso, a figura de inclusive distantes de seus pressupos- parte do que me atrevo a denominar
Kierkegaard foi ingressando paulati- tos básicos. Espero que isto seja só “segunda etapa” na recepção do pen-
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8. samento do dinamarquês. Esta consis- foi “consequente” com sua proposta.
tiria no abandono da “letra” e a elabo-
“‘Compreender’ Um pensador como Hume nos induzi-
ração de um pensar atual. ria a crer que este tipo de exigência
corretamente um é quase “irrealizável”. Apesar de que,
IHU On-Line - Kierkegaard nos inspi- em certo sentido, isto seja correto,
ra a compreender e a mudar a polí-
filósofo da estatura penso que um pensamento incapaz
tica atual? Por quê? Se sim, em que de ser consequente com seus próprios
aspectos?
de Kierkegaard supõe pressupostos, se torna indefectivel-
Patricia Carina Dip - É difícil respon- mente estéril.
der ao que nos induz Kierkegaard na
abandonar seu caminho Neste sentido, tanto Kierkegaard
primeira pessoa do plural. Por isso como Marx são modelos de intelectu-
direi apenas ao que induz a mim.
teórico com o objetivo ais que expressam a necessidade de vi-
Acredito que o “subjetivismo” da fi- ver de maneira comprometida. Pode-
losofia kierkegaardiana, quer dizer,
de formular o próprio mos inclusive pensá-los como autores
seu acento na compreensão do ho- complementares. Enquanto Kierkega-
mem como uma espécie de “animal”
caminho” ard nos exige um compromisso indivi-
que “valora”, pode servir de inspira- dual e privado, seja com o divino ou
ção para transformar o atual funcio- lução socialista. Em certo sentido, me com o demoníaco, ou para dizê-lo com
namento da política. O descrédito vejo inclinada a dar-lhe razão. Nietzsche, que elejamos o bem ou o
no qual tem caído a participação po- mal, o compromisso ao qual nos pro-
lítica tradicional obedece a distintos IHU On-Line - Como você analisa as põe Marx possui um sentido político
fatores; não obstante, disso não se trajetórias pessoais de Kierkegaard e social, ou bem nos identificamos
deduz a “morte” do político, mas a Marx e os impactos que estas (a bio- com os valores da burguesia, ou bem
necessidade de sua “ressurreição”. grafia) tiveram em suas filosofias? com os do proletariado.
Neste sentido, a América Latina ocu- Patricia Carina Dip - Em termos ge-
pa um papel certamente privilegia- rais sou inimiga das biografias. Es- IHU On-Line - Pensando no aspecto
do, especialmente quando muitos pecialmente do abuso em torno de do indivíduo, como entende a con-
intelectuais do primeiro mundo eu- sua utilização de que têm sido ob- David Hume (1711-1776): filósofo e histo-
ropeu tentaram convencer-nos de jeto os leitores de Kierkegaard. Não riador escocês, que com Adam Smith e Tho-
que havíamos ingressado na “pós- tem sentido tentar fundamentar o mas Reid, é uma das figuras mais importantes
modernidade ou no pós-marxismo”. do chamado Iluminismo escocês. É visto, por
desenvolvimento de uma filosofia vezes, como o terceiro e o mais radical dos
Ao contrário, creio que ainda não em aspectos relativos à vida íntima chamados empiristas britânicos. A filosofia de
saímos da ilustração. de quem a elabora. Um trauma in- Hume é famosa pelo seu profundo ceticismo.
Neste sentido, considero funda- Entre suas obras, merece destaque o Tratado
fantil não conduz necessariamente da natureza humana. (Nota da IHU On-Line)
mental recuperar um dos elementos à formulação de uma filosofia exis- Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo
essenciais da atitude ilustrada, a sa- tencial, assim como tampouco a po- alemão, conhecido por seus conceitos além-do-
ber, o “anticonformismo”. Acredito homem, transvaloração dos valores, niilismo,
breza à teorização sobre a revolução vontade de poder e eterno retorno. Entre suas
que não devemos “conformar-nos” social. Este tipo de abordagem me obras figuram como as mais importantes Assim
nem com leituras herdadas, nem com parece totalmente absurdo. falou Zaratustra (9. ed. Rio de Janeiro: Civi-
visões de mundo e interpretações do lização Brasileira, 1998), O anticristo (Lisboa:
No entanto, acredito que há um Guimarães, 1916) e A genealogia da moral (5.
político que procuram aquietar as ten- modo muito mais rico de pensar a re- ed. São Paulo: Centauro, 2004). Escreveu até
sões sociais que podem ser observadas lação entre a “vida” e a “obra”. Trata- 1888, quando foi acometido por um colapso
no seio do capitalismo global. nervoso que nunca o abandonou, até o dia de
se de observar até que ponto o autor sua morte. A Nietzsche foi dedicado o tema de
Kierkegaard pode servir de porta- Karl Heinrich Marx (1818-1883): filósofo, capa da edição número 127 da IHU On-Line,
voz da necessidade de “interessar-se” cientista social, economista, historiador e re- de 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo
pela existência do atual estado de coi- volucionário alemão, um dos pensadores que do martelo e do crepúsculo, disponível para
exerceram maior influência sobre o pensamen- download em http://www.ihuonline.unisi-
sas, no sentido de sermos capazes de to social e sobre os destinos da humanidade no nos.br/uploads/edicoes/1158266308.88pdf.
julgar o que sucede na história com século XX. Marx foi estudado no Ciclo de Estu- pdf . Sobre o filósofo alemão, conferir ain-
nossas próprias vozes. Na Crítica de dos Repensando os Clássicos da Economia. A da a entrevista exclusiva realizada pela IHU
edição número 41 dos Cadernos IHU Ideias, de On-Line edição 175, de 10-04-2006, com o
la Ilustración Agnes Heller diz que a autoria de Leda Maria Paulani tem como título jesuíta cubano Emilio Brito, docente na Uni-
alternativa é hoje “ou Kierkegaard, ou A (anti)filosofia de Karl Marx, disponível em versidade de Louvain-La-Neuve, intitulada
Marx”. Ela entende esta disjunção nos http://www.unisinos.br/ihu/uploads/publi- “Nietzsche e Paulo”, disponível para down-
cacoes/edicoes/1158330314.12pdf.pdf. Tam- load em http://www.ihuonline.unisinos.br/
termos de ou bem elegemos o existen- bém sobre o autor, confira a edição número uploads/edicoes/1158346362.52pdf.pdf. A
cialismo individualista, ou bem a revo- 278 da IHU On-Line, de 20-10-2008, intitulada edição 15 dos Cadernos IHU em formação é
A financeirização do mundo e sua crise. Uma intitulada O pensamento de Friedrich Nietzs-
Agnes Heller (1929): filósofa húngara. Proe- leitura a partir de Marx, disponível para do- che, e pode ser acessada em http://www.ihu.
minente pensadora marxista no princípio, con- wnload em http://www.unisinos.br/ihuon- unisinos.br/uploads/publicacoes/edicoes/
verteu-se a uma posição de cunho mais liberal line/uploads/edicoes/1224527244.6963pdf. 1184009658.17pdf.pdf. (Nota da IHU On-
e social-democrático. (Nota da IHU On-Line) pdf. (Nota da IHU On-Line) Line)
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9. traposição de suas filosofias, de Marx mento do dinamarquês, o problema
e Kierkegaard?
“Kierkegaard pode da angústia, pode ser tomado como
Patricia Carina Dip - Existe uma ten- chave para entender a vigência de
dência habitual, baseada na leitura
servir de porta-voz suas preocupações. Assim como as
literal das declarações do próprio condições históricas que Marx tinha
Kierkegaard, que leva a apresentá-
da necessidade de in mente ainda permanecem, as pro-
lo como o filósofo cuja categoria blemáticas da “psicologia da angús-
fundamental é a noção de indivíduo.
‘interessar-se’ pela tia” e a “ética da decisão” também.
Embora de um ponto de vista filo- A profundidade do legado kierke-
lógico isto seja assim, é importante
existência do atual gaardiano reside em certo grau de
discutir que sentido tem a individu- “universalidade” que possui seu dis-
alidade para Kierkegaard. Durante
estado de coisas, no curso para compreender os fenôme-
certo tempo, acreditei que se tra- nos psicológicos e morais.
tava do indivíduo apenas preocupa-
sentido de ser capazes
do por suas circunstâncias, mesmo IHU On-Line - Quais são as principais
quando fosse apresentado sob o cor-
de julgar o que sucede chaves de leitura que esses pensado-
retivo do “amor ao próximo”. Hoje res nos fornecem para pensarmos a
tendo a considerar que, se a postura
na história com nossas alteridade na sociedade pós-metafí-
kierkegaardiana não é revolucioná- sica?
ria, tampouco coincide plenamente
próprias vozes” Patricia Carina Dip - Em primeiro lu-
com um mero reformismo. Inclino- gar, o qualificativo “pós-metafísico”
me a pensar que o caráter do indiví- mais irrecuperável entre opressores me parece complexo devido à infi-
duo kierkegaardiano é “psicológico”; e oprimidos, as condições históricas nidade de alternativas que abarca.
e entendido em chave contemporâ- que se faziam necessárias para Marx Tanto Heidegger como Nietzsche e
nea acrescentaria que o modelo que pensar o socialismo não foram mo- o próprio Kierkegaard, entre outros,
o dinamarquês apresenta para evitar dificadas. Daí segue que ainda tem foram críticos de um certo modo de
a recaída deste na “alienação” é a sentido trabalhar em prol da reali- fazer metafísica. No entanto, isso
praxis cristã do amor ao próximo. zação de um futuro socialista. Com não é suficiente para incluir todos
Neste sentido, o dinamarquês não isto quero dizer que as polêmicas eles em um mesmo modelo teórico. A
está longe do jovem Marx, também em torno do fim das ideologias e a ontologia fundamental, o niilismo e
preocupado por resolver o problema construção de democracias liberais o cristianismo não podem ser identi-
da alienação própria da sociedade me parecem parte de um programa ficados, simplesmente. Em segundo
capitalista. Em termos gerais, diria teórico político que não comparti- lugar, não acredito que seja possível
que enquanto Kierkegaard descre- lho e que denuncio como “tenden- defender a vigência da filosofia sem
ve a alienação “psicológica” da so- ciosas”. assumir algum modo, mais ou menos
ciedade burguesa, Marx descreve a Neste contexto, Marx se torna crítico, de entender a metafísica.
alienação “social”. Ambos diagnos- mais atual do que nunca. Em algu- Por último, me parece importante
ticam que o mal do mundo burguês mas universidades latino-america- discutir a assunção de certas modas
é a alienação. A diferença reside na nas, reaparece a necessidade de re- Martin Heidegger (1889-1976): filósofo
perspectiva da análise que cada um alemão. Sua obra máxima é O ser e o tempo
pensar o legado marxista, e isso me (1927). A problemática heideggeriana é am-
assume. Esta diferença, não obstan- parece muito importante, ainda que pliada em Que é Metafísica? (1929), Cartas
te, é fundamental, posto que dela insuficiente. Só poderemos avaliar sobre o humanismo (1947), Introdução à meta-
se deduzem distintas filosofias. A fi- física (1953). Sobre Heidegger, a IHU On-Line
até que ponto o marxismo se atua- publicou na edição 139, de 2-05-2005, o artigo
losofia kierkegaardiana que se cen- lizou quando o modelo de produção O pensamento jurídico-político de Heidegger e
tra na descrição de fenômenos psi- capitalista tiver esgotado. Este es- Carl Schmitt. A fascinação por noções fundado-
cológicos e a filosofia marxiana que ras do nazismo, disponível para download em
gotamento não é automático, mas http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/
descobre um novo modo de pensar a depende de que os sujeitos históri- edicoes/1158268163.69pdf.pdf. Sobre Heideg-
história. cos estejam dispostos a revitalizar ger, confira as edições 185, de 19-06-2006, inti-
tulada O século de Heidegger, disponível para
a luta de classes. De modo que, em download em http://www.ihuonline.unisinos.
IHU On-Line - Qual é a atualidade da última instância, a atualidade do br/uploads/edicoes/1158344730.57pdf.pdf,
crítica de Kierkegaard e Marx para o marxismo só poderá ser determinada e 187, de 3-07-2006, intitulada Ser e tempo.
pensamento continental? A desconstrução da metafísica, que pode ser
pela história. acessado em http://www.ihuonline.unisinos.
Patricia Carina Dip - Levando em Pois bem, a atualidade de Marx br/uploads/edicoes/1158344314.18pdf.pdf.
conta que considero a “globaliza- não exclui a de Kierkegaard. Neste Confira, ainda, o nº 12 do Cadernos IHU Em
ção” como o modo no qual o capita- Formação intitulado Martin Heidegger. A des-
ponto me parece que a análise de construção da metafísica, que pode ser aces-
lismo se expressa hoje, produzindo Agnes Heller merece ser repensada. sado em http://www.ihu.unisinos.br/uploads/
e justificando um fosso cada vez Um dos temas mais caros ao pensa- publicacoes/edicoes/1175210604.13pdf.pdf.
(Nota da IHU On-Line)
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10. filosóficas que a maioria das vezes
nos impedem de pensar.
Dito isto, acredito que em Kierke-
gaard aparece a preeminência do
ético por sobre o metafísico, da qual
é devedor Levinas. Neste contexto,
a ética cristã do amor ao próximo
permite, ainda que o dinamarquês
O indivíduo como ponto inicial
se ocupe de pensar o eu antes que
ao outro, retirar derivações impor- na filosofia kierkegaardiana
tantes para quem esteja interessado
em formular uma “filosofia da alte- Hannah Arendt compreendeu o uso estratégico dos pseudôni-
ridade”. Apesar de que o ponto de
partida de Kierkegaard é o eu, sua
mos do filósofo dinamarquês, e não o considerava individualis-
filosofia pode ser entendida como ta ou enclausurado, menciona Marcio Gimenes de Paula. Ela O
um aporte ético para os que dese- tinha como um dos mestres da suspeita, que toma o indivíduo
jam defender uma verdadeira alte-
ridade, e não apenas pronunciar um
como ponto de partida
discurso “politicamente correto”
sobre a diferença e a tolerância, Por Márcia Junges e Jasson Martins
porém “praticamente” estéril. Este
N
aporte reside em compreender a
singular presença do outro como um em individualista, nem enclausurado. Para Hannah Arendt, Kierke-
imperativo moral. Neste sentido, o gaard valia-se de pseudônimos estrategicamente, e “sua posição
dinamarquês nos obriga a atuar ain- de defesa do indivíduo não pode ser vista meramente como re-
da quando não possamos formular acionária, mas antes como uma defesa diante da massificação,
uma “filosofia da alteridade” pro-
inclusive daquela operada pelos movimentos esquerdistas”. A ex-
priamente dita.
plicação é do filósofo Marcio Gimenes de Paula na entrevista que concedeu,
No que a elaboração de uma tal
filosofia diz respeito, acredito que é com exclusividade, por e-mail, à IHU On-Line. Ao lado de Nietzsche e Marx,
iminente sua necessidade. Una aná- Arendt coloca Kierkegaard, e não Freud, como um dos mestres da suspeita.
lise clara sobre as exigências da mes- O indivíduo em Kierkegaard deve ser compreendido como ponto inicial de sua
ma nos conduziria a uma crítica do filosofia, pontua Marcio. Outro tema discutido na entrevista é a questão da
discurso pós-moderno sobre a “dife- secularização na obra dos dois pensadores. Arendt entende-a como “momento
rença”. Na formulação desta crítica, onde os homens param de olhar para os céus e começam a preparar, a partir da
o marxismo poderia ocupar um papel sua condição dada, uma sociedade produzida por eles próprios. Nesse sentido,
fundamental na hora de descrever o a política é, por si só, secularizante”. Por outro lado, para Kierkegaard, “des-
sentido ideológico do programa teó- crente de sistemas e crítico da cristandade, a secularização é o ponto onde
rico da filosofia da diferença. O antí- a humanidade vai inevitavelmente desembocar, pois depois da racionalização
doto contra a ideologia que pretende
teológica, da massificação do homem e do tempo dos sistemas, tudo será ex-
ser inclusiva “na teoria” aceitando,
plicado e resultará em produto da mão humana”.
não obstante, a exclusão na “práti-
ca” ser constituída pela “filosofia da Marcio Gimenes de Paula é graduado em Teologia pelo Seminário Teoló-
praxis”. gico Presbiteriano Independente. Cursou graduação, mestrado e doutorado
em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Atualmen-
te, é professor adjunto II do departamento de Filosofia da Universidade Fe-
deral de Sergipe - UFS, pesquisador da FAPITEC-SE, membro da Sociedade
Emmanuel Lévinas (1906-1995): filósofo e Brasileira de Estudos de Kierkegaard (Sobreski), da Sociedade Brasileira de
comentador talmúdico lituano, naturaliza- Filosofia da Religião, do Grupo de Pesquisa em Ciências da Religião da UFS,
do francês. Foi aluno de Husserl e conheceu
Heidegger, cuja obra Ser e tempo o influen- do Grupo de pesquisa sobre a obra de Kierkegaard da CNPq, e da Sociedade
ciou muito. “A ética precede a ontologia” é Feuerbach Internacional. Suas pesquisas versam sobre Filosofia da Religião,
uma frase que caracteriza seu pensamento.
Escreveu, entre outros, Totalidade e Infinito Ética, Kierkegaard e cristianismo. Publicou recentemente o livro Indivíduo
(Lisboa: Edições 70, 2000). Sobre o filósofo, e comunidade na filosofia de Kierkegaard (São Paulo: Paulus, 2009). Na Jor-
conferir a edição número 277 da IHU On-Line,
de 14-10-2008, intitulada Lévinas e a majes- nada Argentino-Brasileira de Estudos de Kierkegaard, em 12 de novembro,
tade do Outro, disponível para download em apresentará a comunicação “A temática da secularização: Hannah Arendt,
http://www.unisinos.br/ihuonline/uploads/
edicoes/1224014804.3462pdf.pdf. (Nota da
leitora de Kierkegaard”. Confira a entrevista.
IHU On-Line).
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11. IHU On-Line - Quais são os pontos de um sintoma de que ninguém acredita
contato entre o tema da seculariza-
“Mesmo quando o no ato em si, mas espera a legitimação
ção entre Arendt e Kierkegaard? do mesmo na multidão.
Marcio Gimenes de Paula - A temática
critica, Sócrates segue
da secularização é bastante ampla e, IHU On-Line - Como percebe os con-
a rigor, pode ser vista desde os primór-
sendo a referência para ceitos de indivíduo e comunidade
dios do cristianismo. Ora ela parece se partindo da obra desse autor?
configurar com uma total ruptura dos
um tempo que se perdeu Marcio Gimenes de Paula - Kierkega-
conteúdos da fé e, em outros momen- ard é um filósofo que possui um pro-
tos, parece até ser um complemento
em ilusões sistemáticas fundo apreço por dois grandes perso-
da fé ou um aprofundamento dos seus nagens célebres da subjetividade. O
conteúdos. Na obra de Hannah Aren-
que parecem já tudo primeiro é Sócrates. O autor dinamar-
dt, pensadora política por excelência, quês devota seus esforços a entender
penso que o ponto central se encontra
saber. Sócrates é o a filosofia socrática e sua afirmação
exatamente na política. Em outras pa- pelo indivíduo. Mesmo quando o criti-
lavras, para a pensadora a seculariza-
antídoto, o médico ca, Sócrates segue sendo a referência
ção é vista como o momento onde os para um tempo que se perdeu em ilu-
homens param de olhar para os céus e
que aconselha o vômito sões sistemáticas que parecem já tudo
começam a preparar, a partir da sua saber. Sócrates é o antídoto, o médico
condição dada, uma sociedade produ-
em meio ao excesso que aconselha o vômito em meio ao
zida por eles próprios. Nesse sentido, a excesso de comilança. Por isso é que,
política é, por si só, secularizante. Já
de comilança” não fortuitamente, ele será o modelo
para Kierkegaard, pensador do século de toda a obra do autor até mesmo na
XIX, descrente de sistemas e crítico da guindo a esteira agostiniana, é severo crítica à Igreja oficial, já no final de
cristandade, a secularização é o ponto crítico do processo de secularização. sua produção.
onde a humanidade vai inevitavelmen- Arendt parece ser sua observadora e Já Cristo é a figura do mistério. Ele
te desembocar, pois depois da raciona- admiradora, mas ambos enxergam é aquele que preferia falar com cada
lização teológica, da massificação do o indivíduo perdido no meio de tudo indivíduo ao invés de ser legitimado
homem e do tempo dos sistemas, tudo isso. Talvez esse seja o ponto de con- pela massa, pela multidão. Contudo,
será explicado e resultará em produ- tato entre ambos os pensadores. Kierkegaard compreende Cristo tam-
to da mão humana. Kierkegaard, se- bém como Deus, como aquele capaz de
IHU On-Line - Qual é a atualidade da trazer a salvação para cada indivíduo.
Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e soció- secularização em Kierkegaard para
loga alemã, de origem judaica. Foi influenciada
por Husserl, Heidegger e Karl Jaspers. Em con-
discutirmos o indivíduo em nossos IHU On-Line - Atualmente, o que é o
sequência das perseguições nazistas, em 1941, dias? indivíduo numa sociedade seculari-
partiu para os EUA, onde escreveu grande Marcio Gimenes de Paula - Antes de zada e pós-metafísica?
parte das suas obras. Lecionou nas principais
universidades deste país. Sua filosofia assenta
mais nada, parece que nunca é demais Marcio Gimenes de Paula - Confesso
numa crítica à sociedade de massas e à sua lembrar que Kierkegaard sempre sepa- que não sei muito bem o que dizemos
tendência para atomizar os indivíduos. Preco- rou claramente indivíduo de individu- quando afirmamos viver numa socie-
niza um regresso a uma concepção política se-
parada da esfera econômica, tendo como mo-
alismo. O indivíduo, na era dos siste- dade secularizada. É bem verdade
delo de inspiração a antiga cidade grega. Entre mas filosóficos e de uma cristandade que, especialmente depois do século
suas obras, citamos: Eichmann em Jerusalém massificadora, como foi o tempo do XIX, a política como produto dos ho-
- Uma reportagem sobre a banalidade do mal
(Lisboa: Tenacitas. 2004) e O Sistema Totali-
autor dinamarquês, parece ter sido so- mens constrói – para o bem ou para o
tário (Lisboa: Publicações Dom Quixote.1978). terrado por uma avalanche promovida mal – o mundo ao seu redor. Contudo,
Sobre Arendt, confira as edições 168 da IHU ora pelo Estado, ora pela Igreja e até a secularização não deixa de ter nun-
On-Line, de 12-12- 2005, sob o título Hannah
Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Três mu-
pelas universidades. Restava, seguin- ca um pouco de religioso, e a prova
lheres que marcaram o século XX, disponível do a pista socrática e cristã, recuperar disso é a situação em que vivemos no
para download em http://www.ihuonline.uni- este indivíduo único e indivisível, áto- mundo todo e, em especial, no Brasil.
sinos.br/uploads/edicoes/1158348701.54pdf.
pdf e a edição 206, de 27-11-2006, intitulada
mo e, se quisermos pensar aqui mais Estão aí os muitos fundamentalismos,
O mundo moderno é o mundo sem política. teologicamente, imago Dei. Hoje nos- as casas legislativas cheias de sinais
Hannah Arendt 1906-1975, disponível para sa situação não parece tão diferente. religiosos e os governos, como o caso
download em http://www.ihuonline.unisinos.
br/uploads/edicoes/1164656401.35pdf.pdf .
Temos um individualismo doentio e do governo brasileiro, assinando acor-
Nas Notícias do Dia de 01-12-2006 você confe- seguimos a ter os indivíduos sufocados dos que parecem ameaçar seriamen-
re a entrevista Um pensamento e uma presen- pelas mais diversas instituições e pres- te a laicidade do Estado. Assim, pen-
ça provocativos, concedida com exclusividade
por Michelle-Irène Brudny em 01-12-2006, dis-
sões. Quando alguém vai até um culto
ponível para download em http://www.ihu. qualquer e se sente feliz por estar na Sócrates (470 a. C. – 399 a. C. ): filósofo
unisinos.br/index.php?option=com_noticias companhia de milhares de pessoas no ateniense e um dos mais importantes ícones
Itemid=18task=detalheid=2050. (Nota da da tradição filosófica ocidental. (Nota da IHU
IHU On-Line)
ato de louvor, isso nada mais é do que On-Line)
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12. so que o indivíduo numa sociedade to bem que o uso que Kierkegaard sobre ele, escrevendo sobre ele,
secularizada e pós-metafísica (o que fazia dos pseudônimos era estraté- organizando congressos, dando en-
também me parece confuso, mesmo gico e que, além disso, sua posição trevistas. Numa era massificada,
com as explicações perspicazes do de defesa do indivíduo não pode ser com instituições tão rígidas, penso
professor Gianni Vattimo) ainda se vista meramente como reacionária, que é fundamental a redescoberta
encontra em suspenso, entre a des- mas antes como uma defesa diante do indivíduo e a ironia como instân-
crença e o pavor, entre o medo e a da massificação, inclusive daquela cias significativas, lugares de onde
desconfiança. operada pelos movimentos esquer- a vida deveria partir. O indivíduo
distas. Arendt o coloca, em sua obra não é o ponto fundamental na filo-
IHU On-Line - Como Arendt, enquan- Entre o passado e o futuro, como sofia de Kierkegaard, mas é talvez o
to filósofa política, lê Kierkegaard, um dos mestres da suspeita, junta- ponto inicial. Por isso, sua influên-
um filósofo tido como individualista mente com Nietzsche e Marx, isto é, cia é tão significativa em pensando-
e que escrevia recluso em um “cas- ela contraria a tradicional divisão e res tão distintos como Paul Tillich,
telo”, sob pseudônimos? o coloca no lugar de Freud. Não pa- Karl Barth, Lacan, Wittgenstein,
Marcio Gimenes de Paula - Penso rece pouca coisa para quem atentar Paul Tillich (1886-1965): teólogo alemão,
que Arendt tinha grande apreço por ao detalhe. que viveu quase toda a sua vida nos EUA. Foi
um dos maiores teólogos protestantes do sécu-
Kierkegaard e não o considerava um lo XX e autor de uma importante obra. Entre
pensador individualista ou enclausu- IHU On-Line - Nesse sentido, como os livros traduzidos em português, pode ser
rado. Segundo avalio, ela sabia mui- você percebe a contraposição entre consultado Coragem de Ser (6ª ed. Editora Paz
e Terra, 2001) e Amor, Poder e Justiça (Edi-
Gianni Vattimo (1936): filósofo italiano,
as filosofias de Kierkegaard e Marx? tora Cristã Novo Século, 2004). (Nota da IHU
internacionalmente conhecido pelo conceito Marcio Gimenes de Paula - Creio que On-Line)
de “pensamento fraco”. Concedeu diversas Karl Löwith, no seu clássico De Hegel Karl Barth (1886-1968): teólogo cristão-pro-
entrevistas à IHU On-Line. A primeira delas testante, pastor da Igreja Reformada, e um
foi publicada na 88ª edição, de 15-12-2003,
a Nietzsche, aborda muito bem essa dos líderes da teologia dialética e da neo-orto-
disponível em http://www.ihuonline.unisinos. questão. Para ele, Kierkegaard é um doxia protestante. (Nota da IHU On-Line)
br/uploads/edicoes/1161200490.17pdf.pdf, a típico pós-hegeliano e, como tal, se Jacques Lacan (1901-1981): psicanalista
segunda na 128ª edição, de 20-12-2004, dis- francês. Realizou uma releitura do trabalho de
ponível em http://www.ihuonline.unisinos.
encontra numa esteira de pensado- Freud, mas acabou por eliminar vários elemen-
br/uploads/edicoes/1158266406.14pdf.pdf, res que caminham entre a religião, tos deste autor (descartando os impulsos sexu-
a terceira saiu na edição 161, de 24-10-2005, a literatura e a política. Contudo, ais e de agressividade, por exemplo). Para La-
quando conversou pessoalmente com a IHU On- can, o inconsciente determina a consciência,
Line, no Hotel Intercity, em Porto Alegre, no
talvez Löwith tenha cometido um mas este é apenas uma estrutura vazia e sem
dia 18 de outubro daquele ano, às vésperas de dado exagero ao colocar Kierkegaard conteúdo. Confira a edição 267 da Revista IHU
proferir sua conferência no evento Metamor- no mesmo grau de contestação de On-Line, de 04-08-2008, intitulada A função
foses da cultura contemporânea. Esse material do pai, hoje. Uma leitura de Lacan, disponível
esta disponível em http://www.ihuonline.uni-
Marx. O autor dinamarquês parece em http://www.unisinos.br/ihuonline/uplo-
sinos.br/uploads/edicoes/1158347724.5pdf. apontar claramente para um plano ads/edicoes/1217878435.7423pdf.pdf. Sobre
pdf. Também contribuiu na IHU On-Line nº transcendente e sua política parece Lacan, confira, ainda, as seguintes edições
187, de 03-07-2006, com a entrevista O na- da revista IHU On-Line, produzidas tendo em
zismo e o “erro” filosófico de Heidegger, dis-
defender tal ponto o que, por si só, vista o Colóquio Internacional A ética da psi-
ponível em http://www.ihuonline.unisinos. parece descaracterizar uma propos- canálise: Lacan estaria justificado em dizer
br/uploads/edicoes/1158344314.18pdf.pdf. ta política, embora tenha importan- “não cedas de teu desejo”? [ne cède pas sur
Concedeu, também, a entrevista Liberdade. ton désir]?, realizado em 14 e 15 de agosto de
Uma herança do cristianismo, publicada na
tes contribuições para uma ética de 2009: edição 298, de 22-06-2009, intitulada De-
edição número 287, de 30 de março de 2009, fundo cristão e seja também impor- sejo e violência, disponível para download em
disponível em http://www.ihuonline.unisinos. tante para a alteridade. Marx parece http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/
br/uploads/edicoes/1238442393.0578pdf. edicoes/1245697518.4536pdf.pdf e 303, e edi-
pdf. Dele também publicamos uma entrevis-
romper com tal coisa, e sua proposta ção 303, de 10-08-2009, intitulada A ética da
ta na 121ª edição, de 1º-11-2004, disponível é claramente fundamentada no cam- psicanálise. Lacan estaria justificado em dizer
em http://www.ihuonline.unisinos.br/uplo- po da imanência, na tentativa de al- “não cedas de teu desejo”?, disponível para
ads/edicoes/1158265679.78pdf.pdf, um ar- download em http://www.ihuonline.unisinos.
tigo na edição 53, de 31-03-2003, disponível
cançar a verdade pelos seus próprios br/uploads/edicoes/1249936179.2884pdf.pdf.
em http://www.ihuonline.unisinos.br/uplo- esforços. Aqui penso que há uma di- (Nota da IHU On-Line)
ads/edicoes/1161289549.27pdf.pdf, e outro ferença fundamental entre ambos. Ludwig Wittgenstein (1889-1951): filósofo
���������
no número 80, de 20-10-2003, disponível em austríaco, considerado um dos maiores do sé-
http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/ culo XX, tendo contribuido com diversas inova-
edicoes/1161201820.79pdf.pdf. A editoria Li- IHU On-Line - Qual é a atualidade de ções nos campos da lógica, filosofia da lingua-
vro da Semana, na edição 149, de 1º-08-2005, Kierkegaard no contexto do pensa- gem, epistemologia, dentre outros campos. A
abordou a obra The future of religion, escrita maior parte de seus escritos foi publicada pos-
por Vattimo, Richard Rorty e Santiago Zabala,
mento filosófico contemporâneo? tumamente, mas seu primeiro livro foi publi-
disponível em http://www.ihuonline.unisinos. Marcio Gimenes de Paula - A atu- cado em vida: Tractatus Logico-Philosophicus,
br/uploads/edicoes/1158344558.62pdf.pdf. alidade de Kierkegaard parece se em 1921. Os primeiros trabalhos de Wittgens-
De sua produção intelectual, destacamos Más tein foram marcados pelas idéias de Arthur
allá de la interpretación. (Barcelona: Paidós,
provar, entre outras tantas coisas, Schopenhauer, assim como pelos novos siste-
1995); O fim da modernidade: niilismo e her- por estarmos ainda hoje falando mas de lógica idealizados por Bertrand Russel
menêutica na cultura pós-moderna (São Paulo: e Gottllob Frege. Quando o Tractatus foi publi-
Martins Fontes, 1996); Introdução a Heidegger 0 Karl Löwith (1897-1973): filósofo alemão. cado, influenciou profundamente o Círculo de
(Lisboa: Instituto Piaget, 1998) e Diálogo con Sua obra mais famosa é Von Hegel zu Nietzsche Viena e seu positivismo lógico (ou empirismo
Nietzsche: Ensayos 1961-2000 (Barcelona: Pai- (Stuttgart, Kohlhammer, 1958). (Nota da IHU lógico). Confira na edição 308 da IHU On-Line,
dós, 2002). (Nota da IHU On-Line) On-Line) de 14-09-2009, a entrevista O silêncio e a ex-
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13. Heidegger, Jaspers, Sartre,10 Levinas,
Hannah Arendt e tantos outros. Creio
que muito mais do que ser kierke-
gaardiano, o desafio é pensar com
e contra Kierkegaard quando neces-
Kierkegaard e Schopenhauer.
sário for. Compreendê-lo como uma
perspectiva por onde se faz filosofia. Proximidades e rupturas
Penso que isso dá muito mais alegria
e sabor ao jogo. Música e tragédia são as formas mais belas de compreensão
até mesmo do Absoluto. Kierkegaard eleva a arte como aspi-
ração máxima do ser, explica Deyve Redyson Melo dos Santos.
Rupturas se apresentam ao longo de suas obras
Leia mais...
Por Márcia Junges e Jasson Martins Tradução Jasson Martins
|
Marcio Gimenes de Paula já concedeu
N
outra entrevista à IHU On-Line. Ela está dis-
ponível na página eletrônica do IHU (www.ihu.
unisinos.br) atureza, arte, música são pontos que aproximam as filosofias de
• Lutero, pai da modernidade, visto por Niet- Søren Kierkegaard e Arthur Schopenhauer. A distância entre os
zsche. Entrevista publicada na edição 280 da
Revista IHU On-Line, de 03-11-2008, disponível pensadores se dá na maneira como veem Deus e compreendem
no endereço http://www.ihuonline.unisinos.br/ alguns conceitos, além da percepção da existência, explica o
index.php?option=com_tema_capaItemid=23t
ask=detalheid=1405. teólogo e filósofo Deyve Redyson Melo dos Santos em entrevista
por e-mail à IHU On-Line. “Quando Schopenhauer inicia sua obra O Mundo
como vontade e como representação, afirmando que O mundo é minha re-
periência do inefável em Wittgenstein, com presentação, ele fundamenta o caráter objetivista de sua teoria e, de forma
Luigi Perissinotto, disponível para download
em http://www.ihuonline.unisinos.br/index. uníssona, se liga a Kierkegaard quando este pensa que o universo é dotado de
php?option=com_tema_capaItemid=23task= grandes características, e uma delas é a vontade”, assinala. Deyve acentua
detalheid=1810. (Nota da IHU On-Line).
Karl Jaspers (1883-1969): filósofo existencia- que a arte, para Schopenhauer, como a música e a tragédia, “são as mais
lista alemão. Acreditava que a filosofia não é belas formas de se compreender até mesmo o absoluto. Kierkegaard, em seu
um conjunto de doutrinas, mas uma atividade
por meio da qual cada indivíduo pode se cons-
ensaio sobre o belo musical, também eleva a arte como a aspiração máxima
cientizar da natureza de sua própria existência. do ser. As rupturas estão inseridas no contexto de suas obras, a identificação
Escreveu vários livros sobre os grandes filósofos do ideal de arte ou da arte ideal, da beleza e de suas formas, da interpre-
do passado. Escreveu Filosofia (1932), O alcan-
ce perene da filosofia (1948) e O caminho para tação do gênio e do artista e, por fim, de toda uma série de conceitos que
a sabedoria (1949). Jaspers começou a ensinar encontramos no conjunto de suas obras”.
Psiquiatria na universidade de Heidelberg em
1913 e se tornou professor de Filosofia em Hei- Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual Vale do Aracajú (UVA-CE)
delberg, em 1921. Em 1948, passou a ensinar e em Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), é mestre
Filosofia na universidade de Basiléia, na Suíça.
Sobre ele, conferir um artigo intitulado Imagi- em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e doutor em Filosofia
nar a paz ou sonhá-la?, publicado na IHU On- pela Universidade de Oslo, na Noruega. Deyve é professor adjunto da Univer-
Line 49ª edição, de 24-02-2003, disponível para
download em http://www.ihuonline.unisinos.
sidade Federal da Paraíba - UFPB. Pesquisa na área de Filosofia da Religião
br/uploads/edicoes/1161289883.57pdf.pdf e com ênfase em Schopenhauer, Feuerbach, Kierkegaard, Nietzsche, Cioran e
uma entrevista na 50ª edição, de 10-03-2003, Idealismo Alemão. Escreveu, entre outros, Dossiê Schopenhauer (São Paulo:
disponível em http://www.ihuonline.unisinos.
br/uploads/edicoes/1161289805.13pdf.pdf. Universo dos Livros, 2009) e A Filosofia de Søren Kierkegaard (Recife: Elógica,
(Nota da IHU On-Line) 2004). Membro do Grupo de Pesquisa sobre a obra de Kierkegaard (CNPq), é o
10 Jean-Paul Sartre (1905-1980): filósofo exis-
tencialista francês. Escreveu obras teóricas, ro- atual presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard (Sobreski).
mances, peças teatrais e contos. Seu primeiro Confira a entrevista.
romance foi A náusea (1938), e seu principal
trabalho filosófico é O ser e o nada (1943). Sar-
tre define o existencialismo em seu ensaio O
existencialismo é um humanismo, como a dou- IHU On-Line - Quais são os pontos de Deyve Melo dos Santos - A vontade
trina na qual, para o homem, “a existência pre- contato entre liberdade e vontade para Schopenhauer será um dos pon-
cede a essência”. Na Crítica da razão dialética
(1964), Sartre apresenta suas teorias políticas e em Kierkegaard e Schopenhauer? tos principais de sua concepção de fi-
sociológicas. Aplicou suas teorias psicanalíticas Arthur Schopenhauer (1788-1860): filósofo losofia. Para ele, a vontade é a coisa
nas biografias Baudelaire (1947) e Saint Genet alemão. Sua obra principal é O mundo como introduziu o budismo e a filosofia indiana na
(1953). As palavras (1963) é a primeira parte de vontade e representação, embora o seu livro metafísica alemã. Schopenhauer, entretan-
sua autobiografia. Em 1964, foi escolhido para o Parerga e Paraliponema (1815) seja o mais to, ficou conhecido por seu pessimismo e
prêmio Nobel de literatura, que recusou. (Nota conhecido. Friedrich Nietzsche foi grande- entendia o budismo como uma confirmação
da IHU On-Line) mente influenciado por Schopenhauer, que dessa visão. (Nota da IHU On-Line)
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14. em si kantiana, e esta é a resposta que leva a entender que este mundo é um
nenhum pensador conseguiu alcançar. Já
“A preocupação de mundo de sentidos.
a liberdade é o caminho para o encon-
tro de si mesmo, isto é, Schopenhauer
Kierkegaard é com a IHU On-Line - Qual é a diferença en-
entende a liberdade como a ação pri- tre a crítica que fazem a Hegel?
mordial que fará do homem um ser que
instituição estatal que Deyve Melo dos Santos - Schopenhauer
possa interagir com o mundo, com as é acusado de fazer muitos insultos a
coisas e com os seres. Interessante é
quer fazer toda uma Hegel, Schelling, Fichte. É verdade.
pensar essas duas teorias juntamente Schopenhauer afirma que Hegel é um
com o pensamento de Kierkegaard, que
nação cristã e luta em filosofastro, um charlatão e várias coi-
tinha em Schopenhauer um exemplo de sas mais. Também podemos encontrar
pensador, que elabora as categorias da
busca de uma verdadeira críticas bem formuladas com relação ao
filosofia e se põe a respondê-las. Ainda sistema da ciência de Hegel, que somen-
existe muita coisa a ser dita sobre a re-
concepção de te encontra espaço no absoluto. A crítica
lação do pensamento de Schopenhauer de Schopenhauer a Hegel está central-
e Kierkegaard, seja sobre a natureza,
cristandade. mente localizada na ideia do absoluto e
sobre a arte, sobre a música. Eles estão na forma com que esse absoluto chega
bastante próximos um do outro.
Schopenhauer condena no sistema hegeliano. A típica pergunta
IHU On-Line - Não existe um antago-
toda e qualquer Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo ale-
mão idealista. Como Aristóteles e Santo Tomás
de Aquino, tentou desenvolver um sistema fi-
nismo entre liberdade e vontade?
Deyve Melo dos Santos - Existe, e o
formulação de fé que losófico no qual estivessem integradas todas
as contribuições de seus principais predeces-
fato deste antagonismo existir faz com sores. Sua primeira obra, A fenomenologia do
que tanto em Schopenhauer como em
seja baseada numa espírito, tornou-se a favorita dos hegelianos
da Europa continental no séc. XX. Sobre Hegel,
Kierkegaard vejamos quais os ques-
tionamentos que hoje podemos fazer
pretensa vida em dogmas confira a edição especial nº 217 de 30-04-2007,
intitulada Fenomenologia do espírito, de Ge-
org Wilhelm Friedrich Hegel (1807-2007), em
perante os conceitos de liberdade
e vontade, se somos livres no pen-
e obrigações para com comemoração aos 200 anos de lançamento
dessa obra. O material está disponível em
sar, ou se nossa vontade é condição http://www.unisinos.br/ihuonline/uploads/
de podermos ser quem somos. Penso
o divino” edicoes/1177963119.41pdf.pdf. Sobre Hegel,
confira, ainda, a edição 261 da IHU On-Line,
que refletir sobre liberdade e vontade de 09-06-2008, Carlos Roberto Velho Cirne-
compreende duas tarefas difíceis, mas o caráter objetivista de sua teoria e, Lima. Um novo modo de ler Hegel, disponível
de forma uníssona, se liga a Kierkega- em http://www.unisinos.br/ihuonline/uploa-
de importância fundamental à filosofia ds/edicoes/1213054489.296pdf.pdf. ���������
(Nota da
de hoje. ard quando este pensa que o universo IHU On-Line)
é dotado de grandes características, e � Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling
uma delas é a vontade. (1775-1854): filósofo alemão. ���������������
Suas primeiras
IHU On-Line - Como podemos com- obras são geralmente vistas como um elo im-
preender essas conexões de pensa- portante entre Kant e Fichte, de um lado, e
mento tomando em consideração a IHU On-Line - E com relação aos seus Hegel, de outro. Essas obras são representa-
pontos de vista sobre a religião, tivas do idealismo e do romantismo alemães.
distância teórica que tem como pon- Criticou a filosofia de Hegel como “filosofia
to de partida tais autores? como é possível entender a aproxi- negativa”. Schelling tentou desenvolver uma
Deyve Melo dos Santos - Realmente mação entre ambos? “filosofia positiva”, que influenciou o existen-
Deyve Melo dos Santos - No modo de cialismo. Entrou para o seminário teológico de
existe uma certa distância entre nos- Tübingen aos 16 anos. (Nota da IHU On-Line)
sos dois autores, mas essa distância entender a religião, a fé e o próprio Johann Gottlieb Fichte (1762-1814): filóso-
está presente na forma de ver Deus, conceito de Deus, Schopenhauer e fo alemão. Exerceu forte influência sobre os
Kierkegaard caminham diferentemen- representantes do nacionalismo alemão, assim
na forma de compreender determina- como sobre as teorias filosóficas de Schelling,
dos conceitos e finalmente na forma de te. A preocupação de Kierkegaard é Hegel e Schopenhauer. Fichte decidiu devo-
percepção da existência. Tentar fazer com a instituição estatal que quer fa- tar sua vida à filosofia depois de ler as três
zer de toda uma nação cristã e luta em Críticas de Immanuel Kant, publicadas em
uma aproximação entre Schopenhauer 1781, 1788 e 1790. Sua investigação de uma
e Kierkegaard é uma tarefa de consta- busca de uma verdadeira concepção crítica de toda a revelação obteve a aprova-
tar que a subjetividade e a objetivida- de cristandade. Schopenhauer conde- ção de Kant, que pediu a seu próprio editor
na toda e qualquer formulação de fé para publicar o manuscrito. O livro surgiu em
de são terrenos férteis quando falamos 1792, sem o nome e o prefácio do autor, e foi
de natureza, de existência, de amor, que seja baseada numa pretensa vida saudado amplamente como uma nova obra de
de ironia, de vontade e, principalmen- em dogmas e obrigações para com o Kant. Quando Kant esclareceu o equívoco, Fi-
divino. Na verdade, podemos também chte tornou-se famoso do dia para a noite e foi
te, do mundo como representação. convidado a lecionar na Universidade de Jena.
Quando Schopenhauer inicia sua obra fazer um paralelo entre estas duas Fichte foi um conferencista popular, mas suas
O Mundo como vontade e como repre- formas de ver a fé, pois ver o mun- obras teóricas são difíceis. Acusado de ateís-
do como o pior dos mundos possíveis, mo, perdeu o emprego e mudou-se para Ber-
sentação, afirmando que O mundo é lim. Seus Discursos à nação alemã são sua obra
minha representação, ele fundamenta como Schopenhauer faz, somente nos mais conhecida. (Nota da IHU On-Line)
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