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MARTÍN FIERRO: O ESPAÇO E A FIGURA DO GAÚCHO
APRESENTADOS NA OBRA DE JOSÉ HERNANDEZ¹
Francieli Corbellini²
fracorbellini@gmail.com
RESUMO
O espaço sempre foi considerado um dos elementos fundamentais em toda obra literária. Com
Martin Fierro não poderia ser diferente. Além de descrever como é e como se porta a figura
do gaúcho, José Hernandez nos faz passear pelos pampas e descobrir por que meios nosso
personagem passa e qual a significação deles na construção da sua história de vida. Este
trabalho visa apresentar ao leitor estes espaços, relacionando, também, os costumes de Fierro
com os que ainda perduram na tradição gaúcha, e relatando uma breve história da Argentina,
bem como a época e em que condições o livro foi escrito, para justificar a criação deste. Com
apontamentos do livro O Martin Fierro de Jorge Luis Borges, entre outros argumentos, foi
possível constatar que alguns instrumentos e costumes permanecem na cultura do Rio Grande
do Sul, mas sua presença mais forte é notada na personalidade destemida e também no amor
pela terra, pelo estado, que é a extensão de sua própria casa.
1 INTRODUÇÃO
O contexto histórico da Argentina de 1829 a 1874 foi marcado pelo autoritarismo, pela
guerra civil e, especialmente, pela disputa de poder entre federalistas e unitaristas. Entre meio
a isso, nasce o autor que vai imortalizar o mito do herói gaúcho, retratando seus costumes e
suas lidas pelo pampa argentino. José Hernández escreve Martín Fierro para denunciar os
abusos do governo de Domingo Faustino Sarmiento, que foi de 1868 a 1874. Hernández não
concordava e era opositor às ideias unitaristas, vertente de Sarmiento.
Martin Fierro é a obra mais completa tratando-se do gaúcho. A vestimenta,
companhia da viola, andanças pelo pampa atrás do gado, o cavalo como melhor amigo; tudo é
eternizado neste livro escrito em verso. Este trabalho desenvolve-se a fim de, além de
apresentar o panorama político e uma breve biografia de Hernández, analisar o espaço com
todas as características da vida e costumes do gaúcho. Para tanto, utilizam-se fundamentações
de Jorge Luis Borges, José Luis B. Beired, Salvador Ferrando Lamberty, Francisco Viana,
entre outros. Desta forma, pretende-se chegar a uma análise minuciosa da obra e, ao mesmo
tempo, acrescentar informações ao conhecimento que já se tem sobre o mito do gaúcho.
2 HISTÓRIA DA ARGENTINA E BIOGRAFIA DE JOSÉ HERNANDEZ
Este capítulo trata da história da Argentina entre 1829 e 1874, ressaltando aspectos
políticos, especialmente a disputa entre unitaristas e federalistas, que levaram José Hernández
a escrever o mito do herói gaúcho: Martín Fierro.
2.1 HISTÓRIA DA ARGENTINA
A Argentina, segundo maior país da América Latina em território com 2.766.890 km²
e população de 42.192.494 de habitantes em 2011, sofreu com as mudanças de poder no
decorrer de sua história. Uma dessas mudanças, e dentre as mais marcantes, ocorreu na época
____________________________
1
Trabalho realizado no primeiro semestre de 2012, para a Disciplina de Introdução à História da Literatura
Ocidental II, com orientação da Professora Mara Ferreira Jardim.
2
Graduanda de Letras da Faculdade Porto-Alegrense, Porto Alegre/RS.
de Domingos Faustino Sarmiento, cuja vertente política assume o governo de Buenos Aires
em 1853, mas ele governou de 1868 a 1874. Coincidentemente período este da escrita da
primeira parte da obra de José Hernández que será analisada aqui, Martín Fierro.
Faz-se necessário, antes de qualquer coisa, apontar as características das duas
vertentes políticas da época que será apresentada neste trabalho: os caudilhos federalistas e os
unitaristas liberais. A oposição de ideais resultou em uma guerra civil que perdurou anos na
Argentina. “Quem era contra o poder dos caudilhos passou a ser unitário, aqueles que estavam
do outro lado ganharam o nome de federais.” (VIANA, 1990, p. 21).
Por unitários, então, deve-se entender uma elite urbana e estancieira com
certas características e crenças liberais, proveniente principalmente de
Buenos Aires, e que via na centralização política, encabeçada pela elite porteña, uma
forma de unificar a região e a nação da Argentina. Já os federalistas defendiam uma
maior participação provincial nas decisões políticas, de modo que isso atendia aos
seus interesses locais que eram geralmente fundados na relação de troca entre
caudilhos e seus dependentes ou apoiadores. (TERLIZZI, 20_, p. 6).
Antes de os unitaristas liberais, partido de Sarmiento, assumirem o governo da
Argentina, estavam a frente do poder o partido dos caudilhos federalistas, cuja figura mais
marcante foi Juan Manuel de Rosas. Rosas governou com característica autoritária e
perseguiu implacavelmente seus opositores.
Toda sanguinária e monótona propaganda rosista apontava para o mesmo alvo: a
expansão, sem fronteiras, da criação de gado, a absoluta hegemonia de Buenos Aires
sobre as províncias, o enclausuramento do país como se fosse um tubo de ensaio e a
convicção de que a violência era a única maneira de assegurar o poder. (VIANA,
1990, p. 20).
Buenos Aires foi muito próspera sob Rosas, mas apenas para alguns que já detinham
certo poder e que partilhavam o mesmo ideal político federalista. Houve a expansão dos
saladeros (estabelecimentos de processamento de charque) e a criação de gado, consolidando
uma política a favor do poder dos grandes estancieiros. Segundo Beired (1996) é neste
governo que se inicia a “expedição ao deserto”, representada na parte I da obra de José
Hernández, que foi uma guerra genocida centrada no ataque e expulsão das tribos indígenas
dos pampas e na ocupação de seus territórios para a criação de gado. A maior e mais
significativa investida contra os índios na época de Rosas ocorreu entre 1833 e 1834, mas essa
guerra perdurou até o ano de 1880. Os maiores beneficiários, sem fugir à política de Rosas,
eram os proprietários de terras. Vale acrescentar que Rosas “era um dos dez maiores
latifundiários do país.” (VIANA, 1990, p. 23).
No entanto, segundo Viana (1990, p.20) “Rosas foi inigualável na arte de manipular os
índios, os gaúchos e os negros, transformando-os numa massa aguerrida e fanatizada a serviço
de si mesmo e de seus interesses de classe.” Mesmo sendo um paradoxo, Rosas queria paz e
não guerra. Entendia que os índios viviam para a guerra e, assim, deveriam ser assimilados e
não exterminados e, já que cada aldeia seria uma escola de guerra, seria possível trocar os
peões pelos índios nas milícias a frente de combates. “Os índios viam nele uma espécie de
totem de carne e osso: costumavam dizer que Rosas era um amigo que jamais os haviam
enganado. Rosas via nesse invulgar exército de marginais uma arma contra futuras ameaças
externas.” (VIANA, 1990, p. 26).
Depois de todo um governo voltado para o poder, caracterizado pela subordinação,
iniciado em 1829, sendo Rosas adorado como um deus, a última década foi marcada por
mudanças múltiplas. Surgiram novas estâncias voltadas para a produção de ovelha e não de
gado, houve a introdução de novas técnicas e a emergência de uma nova elite, descendente de
imigrantes, que buscava espaço e se chocava com os criadores de gado e as milícias rurais,
afirma Viana (1996).
Em meio a todo este contexto argentino, nos países limítrofes, e na própria Argentina,
já tomavam forma revoltas liberais. No Brasil, a Revolução Farroupilha (1835/1845 no Rio
Grande do Sul) e a Sabinada (1837 na Bahia). No Uruguai a sua própria independência
(declarada 1825 e reconhecida em 1828). Na Argentina, as províncias de Corrientes, Santa Fé
e Entre Rios já expandiam-se pelos ideais liberais. Chega a hora de Buenos Aires receber um
novo governador. Segundo Beired (1996), os caudilhos federalistas foram depostos com a
Batalha de Monte Caseros, por uma aliança internacional entre Corrientes e Entre Rios, esta
última governada por Justo José de Urquiza que será o primeiro governador unitarista de
Buenos Aires após Rosas (províncias argentinas), Brasil e Uruguai. Juan Manoel de Rosas,
derrotado, deixa sua cadeira em 1852.
Os unitaristas liberais foram importantes para o país, mas seus governos também
foram marcados pela prática de guerra. A princípio, adotou-se uma nova Constituição já em
1853 que, segundo Beired (1996, p. 38) era
de cunho liberal, estabeleceu a forma representativa, republicana e federativa de
governo; a divisão dos poderes em legislativo, executivo e judiciário; a eleição
indireta para presidente; os direitos individuais; e liberdade de culto paralelamente à
adoção do catolicismo como religião oficial do Estado, entre outras disposições.
Justo J. de Urquiza, general, principal opositor de Rosas, foi eleito em 1853 e ficou no
poder por seis anos. Liberal, mas com traços federalistas, realizou um política que atendeu os
interesses do interior. “Engana-se quem pensar que Urquiza foi um marco de renascimento.
Rosas e Urquiza descendiam de um mesmo trono ancestral. O caudilhismo. O que houve foi
uma troca de guarda. A substituição de um tirano por outro.” (VIANA, 1990, p. 33).
Depois de Urquiza, a Argentina ainda passou pelo comando de Bartolomé Mitre
Martinez de 1862 a 1868 e, finalmente, chegamos a Domingo Faustino Sarmiento, com
governo de 1868 a 1874.
Domingos Faustino Sarmiento fora pessoa polêmica e de fundamental importância
no debate político argentino do séc. XIX. Suas ideias e motivações o levaram muito
cedo a se envolver em conflitos e disputas em relação ao tipo de sociedade que se
construía – ou que se queria construir – dentro da nascente nação argentina. Muito
cedo inspirado por ideais liberais e progressistas – inspirado em partes pelos
responsáveis por sua formação -, o jovem San Juanino esbarra numa torrente de
conflitos de interesses e poder que esmagavam a Argentina de seu tempo. Muito
cedo acaba por envolver-se em rusgas políticas o que o faz deixar o país em direção
ao exílio nos Andes chilenos e a alinhar-se com o partido Unitário (...). (TERLIZZI,
20_, p. 1).
Já em 1864 era constante o recrutamento forçado de civis para lutar em guerras como
a do Paraguai e contra as revoltas dos caudilhos ao governo liberal da Argentina, como retrata
Hernández, na obra Martín Fierro (1987, p. 26):
E começam as desgraças,
Dando princípio à função,
Pois que não há salvação,
Que ele queira ou não queira,
O mandavam para a fronteira.
Sarmiento reorganizou esse exército, impôs pena de morte aos desertores – como
apresenta Hernández (1987, p. 30):
À menor falta, lambiam
nossas costelas à espada;
- mesmo sem fazermos nada,
como se fosse um Palermo,
nos davam cada lambada,
de deixar um pobre enfermo.
O governante interveio nas províncias para garantir lisura das eleições e exterminou os
últimos focos dos caudilhos. Marcado pelo iluminismo, Sarmiento e seus colegas de grupo
intelectual “Geração de 37”, viam na razão a solução para todos os males da humanidade.
Para Sarmiento, governar era povoar, modernizar e educar. Seria um país de habitantes-
produtores no qual todos desfrutariam da igualdade de direitos civis enquanto apenas uma
certa minoria possuiria direitos políticos, afirma Beired (1996). Assim, “o Estado era o lugar
privilegiado a partir do qual o cidadão (...) e a sociedade como um todo seriam modelados.”
(BEIRED, 1996, p. 42).
Juan Batista Alberdi foi quem inspirou a Constituição de 1853. Também liberal,
defendia que o país deveria alcançar o progresso material e via na imigração de habitantes da
Europa o elemento-chave dessa estratégia. Sarmiento aderiu a essa prática imigratória e,
consequentemente, à expulsão dos índios dos pampas argentinos para a ocupação europeia.
“A Argentina recebeu, entre 1869 e 1930, mais imigrantes em relação a sua população que
qualquer outro país moderno.” (ARCHETTI, 2003, p. 3).
José Herández contestou a ida dos civis para o exército de forma obrigada, porque
Martín Fierro nos conta que não iam somente para expulsar os índios, como mostram as
passagens do livro (1987,p. 31) abaixo:
Cadê índios ou serviço,
se nem havia quartel!...
Nos mandava o coronel
trabalhar em suas chácras
- e deixávamos as vacas
p’ra que as levasse o infiel.
A Argentina teve prosperidade econômica no período de Sarmiento. Houve a
especialização do país no setor agropecuário, a formação de uma burguesia extremamente rica
e concentrada, um gigantesco fluxo de imigrantes e a emergência de grandes centros urbanos.
Porém, acrescenta Beired (1996, p. 86/87) referindo-se às disputas políticas:
Toda essa prosperidade econômica desenvolveu-se à luz de práticas políticas
autoritárias e de violentas tensões políticas e sociais. Os conflitos entre os caudilhos
federalistas e os liberais defensores de um projeto unitário tingiram de sangue
durante décadas a bacia do Prata.
2.2 JOSÉ HERNANDEZ
“Hernández ignorou sempre sua importância e não teve talento a não ser naquela
ocasião... O poema compõe toda sua vida e, fora dele, nada resta se não o homem
inteiramente comum, com as ideias comuns da época.” (LUGONES in
BORGES/GUERRERO, 2007, p. 29). Lugones referiu-se ao poema Martín Fierro de José
Hernández. O autor seria apenas um homem comum após esta obra, ou parte dela já que
críticos, como Jorge Luis Borges, dizem que a segunda parte do livro não saiu ao espelho da
primeira, frustrando expectativas. No entanto, Hernández ainda escreveu Vida Del Chaco
(1863) e Instruccion Del Estanciero (1881). Martín Fierro foi dividido em El Gaucho Martín
Fierro (1872) e La Vuelta de Martín Fierro (1879).
O autor nasceu no povoado de Perdriel, subúrbio de Buenos Aires, em 10 de
novembro de 1834. Esse dia é o “Dia da Tradição” na República Argentina. Seu pai, Rafael
Hernández, era puramente federalista e sua mãe – da qual ficou órfão aos nove anos – Isabel
Pueyrredón, era unitarista.
Ainda criança, foi levado aos campos e ali aprendeu a cavalgar e as outras lidas do
gaúcho. Também participou das lutas no deserto pampa contra os índios. Após a queda de
Rosas, com apenas 19 anos, iniciou uma vida aventureira, como soldado e como periodista
(aquele que escreve periódicos, jornalista). Aderiu à vertente caudilha e fez oposição aos
liberais.
Em 1863 casou-se com Carolina González Del Solar na província de Entre Rios. Ali
desempenhou vários cargos oficiais e criou o jornal “Rio de La Plata”, de curta duração
porque em 1870, com o assassinato de Urquiza, o general López Jordán, então no governo de
Entre Rios, foi expulso dali por Sarmiento. Hernández foi com López para o Rio Grande do
Sul, viveu em Santana do Livramento em 1871 e ali provavelmente escreveu trechos de
Martín Fierro, segundo Hernández (1987).
Somente em 1872 o autor voltou à Buenos Aires e ali imprime a primeira parte de sua
obra-prima. Sarmiento sai do poder em 1874, voltando ao poder os caudilhos. Caudilhos estes
que já não eram tão autoritários como foi Rosas. Hernández imprime a segunda parte do livro
em 1879, a pedido da população, pelo sucesso que fez a primeira parte. Ele torna-se Senador
em 1881 e fez parte do Conselho Geral de Educação. Ficou ali, em Belgrano, bairro de
Buenos Aires, até falecer em 21 de outubro de 1886, com 52 anos, talvez consumido por uma
doença cardíaca.
O pai de Hernández, mantendo características caudilhas, era administrador de
estâncias. Hernández era espírita e dizia-se federalista, mas não rosista. Ele escreve Martín
Fierro para denunciar injustiças locais e temporais, mas em sua obra entraram o mal, o
destino e a desventura que são eternos, como dizem Borges e Guerrero (2007) além de ser a
obra que cria o mito do herói gaúcho, com seus costumes, que até hoje é lembrado na
Argentina e muito mais no Rio Grande do Sul, também em função da Revolução Farroupilha
(1835/1845).
3 ANÁLISE DO ESPAÇO E O MITO DO GAÚCHO NA OBRA MARTÍN FIERRO
Este capítulo apresenta a análise do espaço e a construção do mito do herói gaúcho na
obra de José Hernández, Martín Fierro, considerando os locais apresentados – pampa
argentino, bolicho, casa, estância dos fazendeiros, entre outros – e os costumes que
caracterizam o gaúcho.
3.1 A FIGURA DO GAÚCHO E O ESPAÇO APRESENTADOS EM MARTÍN FIERRO
E atendam a relação
de um gaúcho perseguido
que foi bom pai e marido
dedicado e diligente;
entretanto, muita gente
o considera bandido. (p. 20).³
Borges e Guerrero (2007) dizem que excluindo a principal obra, Martín Fierro, as
obras de Hernández foram insignificantes. Tal afirmação baseia-se no que foi e é este poema:
a mais importante obra da literatura argentina. Mesmo assim, Borges e Guerrero (2007)
consideram Martín Fierro um texto triste e com uma nada complexa psicologia do gaúcho.
Há autores que classificam esta obra de Hernández como sendo uma epopeia e
realmente há características deste gênero no poema, como a invocação aos santos, logo no
início da leitura:
Imploro aos santos do céu
que ajudem meu pensamento;
__________________________________________________________________________________
³Todas as citações deste capítulo, sem indicação de obra e seus respectivos autores, foram tiradas de
HERNANDEZ, José. Martín Fierro. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1987.
suplico, neste momento
em que canto minha história,
me refresquem a memória
e aclarem-me o entendimento.
Venham santos milagrosos,
e cada um deles me ajude:
- minha língua não se grude
e nem se turve a vista;
peço a meu Deus que me assista
em uma ocasião tão dura. (p. 17).
No entanto, por mais que a obra reproduza as aventuras de Fierro e tenha esta
invocação, não foi classificada como uma epopeia. Ela faz parte do romantismo argentino.
Para Borges e Guerrero (2007) o protagonista é um gaúcho qualquer ou todos os gaúchos ao
mesmo tempo. O poema está escrito em uma linguagem rústica ou que, ao menos, pretende
isso. A primeira parte foi publicada em 1872 e devido ao sucesso dessa, Hernández resolve
retomar a história, publicando a segunda parte em 1879.
Martín Fierro é a representação do gaúcho. Para Lamberty (1989, p. 12) “el Gauchos
são chamados os camponeses do Uruguai e parte da Argentina, o que mostra a força de um
povo sem fronteiras (...). Raça que brotou nas entranhas do pampa, na figura do primitivo
peão. Gaúcho, acima de tudo, é o peão campeiro”.
Lamberty (1989) acrescenta que o termo gaúcho vem de “gahú”, do guarani, que
significa canto triste ou uivo de cão, e de “che”, do quíchua, que significa gente. A melhor
definição seria homem que canta triste. Hernández apresenta esta característica em Fierro, já
na primeira estrofe:
Aqui me ponho a cantar
ao compasso desta viola
que o homem a quem desola
uma pena extraordinária,
é como a ave solitária
que no canto se consola. (p. 17).
O canto, portanto, é o primeiro aspecto apontado na obra que tem ligação com a
formação da figura do gaúcho. Canto este sempre acompanhado da viola. Este gaúcho, muitas
vezes errante pelos pampas, já foi considerado um andarilho e contrabandista, mas ele tinha
seus motivos para ser assim e Lamberty (1989, p. 15) os defende:
Mas os gaúchos primitivos, em tempos remotos, vagavam por quê? Certamente não
por preguiçosos, mas sim na busca de serviços. Eram contrabandistas numa terra que
nem fronteiras definidas existiam. Caçadores de gado selvagem, num mundo onde a
natureza era a lei da sobrevivência.
Fierro não era um andarilho, mas tona-se um por imposição do governo. Na Argentina
de 1872, o governo recrutava os homens dos pampas para combater os índios e é isso que
Hernández mais condena no governo Sarmiento. O herói tinha família, casa, gado para criar.
Vivia tranquilo nestas acomodações até o recrutamento. “Tive, no pago, em bom
tempo/filhos, fazenda e mulher” (p. 27).
É no início do poema que se descreve este bom tempo. Tem-se aqui o primeiro espaço,
quase um paraíso para Fierro: a casa da família, a pequena estância, seus afazeres do dia a dia
em companhia do cavalo. Aqui, Fierro está em seu estado mais completo, sente-se feliz com o
que tem. Abaixo, um relato sobre como se dava a vida, ainda na estância do pai:
Eu conheci esta terra
quando o paisano vivia,
no rancho que possuía,
com seus filhos e a mulher...
Era uma delícia ver
como a vida lhe corria. (p. 21).
Em relação aos costumes e afazeres, Fierro conta que acordava cedo e ai até o galpão
esperar o dia amanhecer em companhia do chimarrão. “E os galos, soltando o
canto/anunciavam que clareava/contente o índio rumava/ao galpão...que era um encanto” (p.
21).
O galpão vem a ser a instalação que guardava toda a indumentária de trabalho desse
gaúcho, era o local onde guardavam-se os objetos da lida campeira. Para Fierro é o espaço do
encanto, para Lamberty (1989) é a querência que, de origem espanhola, significa lugar
querido. Hernández não utiliza esta denominação, mas a querência seria a estância com a
casa, o galpão, os espaços que são importantes para o gaúcho. “Querência é o local onde se
nasce, brinca, cresce... onde se vive (...). Querência é a pátria, é o chão, lar, torrão e pago”
(LAMBERTY, 1989, p. 94).
E sentado junto ao fogo,
a esperar a luz do dia,
ao chimarrão se prendia
até fartar-se, mui cocho,
enquanto a china dormia
tapadinha com seu poncho. (p. 21).
O chimarrão é a bebida típica da tradição gaúcha, também chamado de mate amargo.
A base dessa bebida é a erva-mate que é considerada energizante. “O chimarrão, inicialmente,
foi servido num pequeno porongo, com um canudinho de taquara, contendo uma trança de
fibras silvestres em uma base, para evitar os fragmentos da erva”. (LAMBERTY, 1989, p.
62). Ainda é costume, especialmente no interior do Estado do Rio Grande do Sul, Estado que
também mantém as tradições gaúchas como costume, oferecer o chimarrão às visitas como se
fosse o sinal de boas-vindas.
A estrofe anterior faz menção à mulher gaúcha. China era, apesar de ter outros
significados atualmente, o modo de referir-se às mulheres. Hernández também utiliza a
denominação prenda. Os gaúchos sempre foram valentes, fortes como guerreiros, corajosos e
a mulher era a cuidadora do lar. Por vezes, ajudava o marido nas lidas do pampa, em trabalhos
mais leves ou substituía-o quando ele saída à procura de gado selvagem.
Na obra de Hernández, a mulher mostra-se como uma consoladora do marido e, por
isso, Fierro demonstra respeito à esposa. Porém, o respeito acaba quando ele descobre que ela
já consola outro homem:
Quem terá duro peito,
que não queira uma mulher?...
Nos alivia o sofrer,
e, se não sai cavaleira,
será a melhor companheira
que o homem poderá ter. (p. 73).
As mulheres, desde então,
conheci-as toda numa.
Não tentarei sorte alguma
com carta tão conhecida:
fêmea e cadela parida
não se me acerca nenhuma. (p. 77).
O gaúcho, portanto, é forte e corajoso. Hernández não poupou elogios ao protagonista
de sua obra:
Onde passe outro crioulo
Martín Fierro há de passar:
ninguém o fará recuar,
nem os fantasmas o espantam. (p. 17).
Não saio fora dos trilhos
nem que venham degolando;
c’os brandos sou sempre brando,
e sou duro com os duros,
e ninguém noutros apuros,
me viu andar titubeando. (p. 19).
Segundo Lamberty (1989, p. 87) “a vida nômade do primitivo campeiro era temperada
de bravura e coragem. Predominava a lei da sobrevivência, considerada sinônimo de
machismo”. Mais adiante, Lamberty (1989) acrescenta que o machismo gaúcho era muito
mais sinônimo de valentia do que de submissão da mulher pelo homem. Esse não queria
minimizá-la, em seus direitos, ou ridicularizá-la perante a sociedade.
Depois do chimarrão, o gaúcho iniciava suas lidas campeiras. Hernández apresenta
então mais um símbolo do tradicionalismo gaúcho: o cavalo. “E os pingos, a relinchar,/junto
ao palanque chamando” (p. 21). Lamberty (1989) diz que o homem domava o cavalo para ter
seus serviços, sendo considerado que, aquele que estivesse bem montado, sempre sairia
vitorioso de uma batalha.
Os gaúchos também eram domadores de gado selvagem. Este gado estava solto pelo
pampa e é o pampa o espaço mais importante da obra de Hernández. Localizado na região
central da Argentina, o pampa, muitas vezes descrito pelo autor como sendo o deserto,
também compõe partes das terras do Rio Grande do Sul e Uruguai.
Neste espaço é que se passa toda a saga deste herói. É ali que fica seu rancho, é ali que
trabalha e é ali que estão os índios que ele vai combater por imposição do governo. A
denominação de deserto é usada não pelo local ter características de um deserto, mas por ser
uma terra ausente de civilização. Era praticamente uma terra sem dono que, atualmente,
abriga a criação de gado e a plantação de cereais.
Ir-se a correr o deserto
o mesmo que um foragido,
deixando como no olvido,
mas sem esquecer-lhes os traços,
a mulher em outros braços,
- os filhos, tudo perdido!... (p. 98).
Na obra, também são dadas as características deste pampa:
Tudo é só céu e horizonte
em imenso campo verde!
Infeliz de quem se perde
ou que seu rumo extravia!
Se em cruzá-lo alguém porfia,
minha experiência então herde. (p. 139).
Também relata-se o pampa como espaço perigoso:
Somente a astúcia do homem
pode ajudá-lo a escapar;
não há auxílio que esperar,
senão do Senhor o amparo:
frente ao deserto, é mui raro
possa a gente se salvar. (p. 139).
Hernández também usa a denominação de campo para este pampa. "P'ra mim o campo
é só flores/sempre que livre me vejo;/onde me chame o desejo/p'ra lá dirijo meu passo; (p.
49). Mais tarde esse campo já não é um lugar tão agradável para Fierro. Após a estrofe citada
acima, ele deserda do exército já que descobriu que não receberá nenhum pagamento pelo
trabalho já cumprido. Se passaram 3 anos do afastamento de Fierro de seu rancho. O herói
retorna a sua casa, que agora também vira sinônimo de tristeza, pois está sem mulher e sem
filhos:
Não tinha mulher, nem rancho,
por cima era desertor:
não tinha uma prenda boa
nem vintém de tirador.
A meus filhos infelizes
pensei torná-los a achar,
e andava de um lado a outro
sem ter nem o que pitar. (p. 53/54).
Nessas andanças em busca dos filhos, um novo espaço se configura: um bolicho. Por
estas características, entende-se que no pampa haviam também vilarejos. Em um bolicho,
Fierro cometerá seu primeiro crime. Ele vai provocar uma mulher negra que já estava
acompanhada de um homem com o qual Fierro trava uma batalha que leva à morte:
E por fim, numa topada
no meu ferro o levantei,
e, como um saco de ossos,
contra a cerca o atirei.
Esperneou várias vezes,
sentindo a morte chegar. (p.57).
O segundo delito também inicia-se em um bolicho, que é um local onde homens se
encontram para beber, conversar e comprar - pode ser considerado um pequeno mercado
também - com um homem ladino (esperto, ardiloso):
Outra vez, em um bolicho
tomava uns tragos à tarde;
um taura, fazendo alarde
de quebra e de valentão,
foi se chegando, e meteu
o pingo sob a ramada;
sem que lhe dissesse nada,
me quedei junto ao balcão. (p. 58).
Nesta ocasião Fierro foge do local com muita pressa, diferentemente do que aconteceu
no primeiro crime em que ele limpa seu facão na grama, monta em seu cavalo e segue seu
caminho sem arrependimentos. Neste segundo delito, que também acaba em morte, ele, por já
ter morto um homem, vira um perseguido pela justiça:
E como a justiça
não andava bem, ali,
quando o estrebuchar o vi
o pulpeiro pregou o grito,
para o palanque segui,
a fazer-me pequenino. (p. 59).
Já ao perceber que estava sem rancho, Fierro tornara-se um andarilho, mas com os
últimos enfrentamentos, suas andanças tornam-se mais difíceis. Então ele percorre o pampa e
faz dele o seu rancho:
Assim, ao cair da noite,
tinha o mato por guarida:
onde o tigre passa a vida,
o homem a pode passar;
não queria me arriscar
ao certo de uma partida. (p. 63).
Em uma noite, Fierro é surpreendido por uma comissão de cavaleiros em sua
perseguição. Neste episódio, o pampa será testemunha de uma amizade que toma forma pela
bravura de nosso herói:
Qual minhoca me peguei
o solo, para escutar;
pronto senti retumbar
no chão a pata dos fletes;
que eram muitos os ginetes
percebi sem vacilar. (p. 63).
Talvez por no coração
tocar-lhe um santo bendito,
um gaúcho pregou o grito,
dizendo. - "Cruz não consente
que se cometa o delito
de assim matar-se o valente". (p. 69).
Portanto, Cruz foi o amigo que a valentia de Fierro surpreendeu ao enfrentar um
batalhão de homens. A partir daí, o pampa passa a ser percorrido pelos dois, Fierro e Cruz,
juntos. O caminho é feito de muitos causos ou histórias sobre a vida de cada um. Ao final
destas narrativas, Fierro e Cruz encontram-se e são acolhidos pelos índios. Hernández encerra
a primeira parte do livro neste trecho, publicando a segunda parte somente sete anos depois.
Ainda pelo pampa, já na segunda parte da obra, apresenta-se um novo desafio:
Recordarão que eu e Cruz
para o deserto rumamos;
assim pelo pampa entramos,
caindo no fim da viagem,
em meio a indiada selvagem,
junto a um toldo que encontramos. (p. 99).
Junto aos índios, Fierro e Cruz viram testemunhas das batalhas e relatam a fúria com
que os selvagens enfrentavam os cristãos. Esta segunda parte do poema é escrita quando o
partido da vertente política de Hernández assume o poder de Buenos Aires, após o governo de
Sarmiento. Portanto, o autor procura melhorar a imagem desse atual governo. Antes relatava a
obrigação de alistar-se e prestar serviço ao exército; agora relata a rebeldia dos índios.
É guerra dura a do índio,
porque ele vem como fera:
donde queria ele entrevera
e de golpear não se cansa;
só de seu pingo e da lança
toda salvação espera. (p. 109).
O pampa, que deu um amigo a Fierro, tirou-o dele mais tarde em função de uma peste
que assolava os índios que os acolheram:
De joelhos a seu lado,
o encomendei a Jesus;
faltou-me aos olhos a luz
e me afundei num desmaio,
como ferido de raio,
ao ver morto o amigo Cruz. (p. 122).
Fierro ainda passa por mais uma aventura no deserto. Encontra uma mulher, cujo filho
será levado por um índio. Fierro a defende, mata o selvagem e, por este ato, acredita não mais
ser bem recebido pela tribo que o ajudara. Então, ele resolve abandonar o pampa:
Senti-me assim obrigado
a abandonar o deserto.
Se me houvesse descoberto,
mesmo matando em peleia,
por vingança me lanceia
a indiada toda, de certo. (p. 136).
O herói chega então a algumas estâncias e tenta informar-se sobre o paradeiro dos
filhos. Ele ficou tranquilo ao descobrir que o juiz não mais o perseguia. Neste trecho do
poema, Fierro conta que dez anos se passaram, culpando o juiz pelo sofrimento. Pode-se
entender que esse juiz seria a representação do governante da Argentina, Sarmiento, que
esteve no poder oito anos destes dez anos e Hernández o culpa pela desgraça de Fierro e pela
sua própria:
Por culpa dele passei
dez anos no sofrimento
e não são poucos dez anos
para quem já chega a velho.
E foi assim que os passei,
se nesta conta não erro:
estive três na fronteira,
dois outros como matreiro,
e mais cinco, lá, entre os índios,
dirão de meu desespero. (p. 142).
Fierro encontra dois de seus filhos em um bolicho. Este passa a ser o espaço do
reencontro, que após todas as andanças, para nosso herói também torna-se o lugar da
felicidade que antes reinava em seu rancho. Há o encontro, também, com o filho de Cruz. Isso
tudo era motivo de muita alegria, mesmo tendo também recebido notícias desagradáveis como
a morte da esposa.
Os filhos passam a ser os narradores na obra. Tem-se, então, outros espaços
importantes da vida de cada um. O filho mais velho passa pela Penitenciária:
Remeteu-nos, como disse,
para a justiça ordinária,
e fomos, pela sumária,
para o cárcere malvado,
que por batismo arranjado,
chamam de Penitenciária. (p. 148).
A Penitenciária representa o espaço da injustiça, já que Hernández mostra que não há
critérios para os julgamentos, pois o rapaz não havia cometido nenhum crime. Ali o filho de
Fierro passa pelo sofrimento de não estar mais em contato com o pampa, lugar tão amado
pelos gaúchos.
Ali não tem sol o dia
a noite não tem estrelas;
sem que lhe valham querelas,
encerrado o purificam:
suas lágrimas salpicam
os muros das frias celas. (p. 150).
Já o segundo filho passou pelos cuidados de uma tia e de nada carecia ao lado dela,
configurando-se este o espaço da tranquilidade. O rapaz não trabalhava e, como ele mesmo
diz, "eu vivia folgazão" (p. 157). No entanto, foi-lhe nomeado um tutor com a morte da tia,
isso com a intervenção de um juiz. A estabilidade, apresentada por várias vezes no poema, se
modifica sempre por interferência do juiz, por interferência do governo.
Levou-me consigo um velho
que logo mostrou a facha,
pois bem merecia a taxa
de ser meio chimarrão;
um renegado e ladrão
a quem chamavam Viscacha. (p. 159).
A querência de Dom Viscacha foi o espaço do sofrimento do segundo filho de Fierro.
Porém, apesar de ter vivido na miséria com o velho, o rapaz chorou sua morte pela solidão em
que passaria a viver. O velho também lhe ensinara alguns conselhos. Afinal, Viscacha
tornara-se alguém importante para o rapaz.
Talvez eu tivesse a culpa,
porque de susto fugi;
soube depois que volvi,
mas não garanto esse enredo,
que seus vizinhos, de medo,
não mais passam por ali. (p. 177).
O rapaz tem um amor não correspondido por uma viúva, do qual procura livrar-se
procurando um feiticeiro ladino, mas só se cura ao ser levado à fronteira. A fronteira vem a
ser outro espaço importante. Fierro passou por ela, o segundo filho dele também e, por fim, o
filho de Cruz regressou de lá ao encontrar todos no bolicho. O próprio autor teve de cruzar a
fronteira para fugir do governo Sarmiento.
Não há pistas na obra sobre qual seria a fronteira a que Hernández refere-se. Pelas
características geográficas do próprio pampa, seria a fronteira como Rio Grande do Sul, pois
sabe-se que o autor, ao cruzar a fronteira, acomoda-se em Santana do Livramento.
Da fronteira, então, vem o novo personagem do poema: o filho do amigo Cruz. "Era
um moço forasteiro/de regular aparência/e que, há pouco, pelo pago/gauderiava com
frequência" (p. 183). Chamado de Picardia, o rapaz também canta sua história apresentando
os lugares por que passou. Esteve na estância de um velho dono de ovelhas; foge para Santa
Fé e lá fora recolhido por algumas tias.
Ao contar a situação deste rapaz, Hernández ameniza o clima da obra que apresenta a
guerra, crimes e episódios tristes, pois acrescenta um fato humorístico: Picardia sente-se
atraído por uma mulata e passa por maus momentos enquanto reza ao lado de uma das tias e
da própria mulata:
Recebi um beliscão
que eu já estava a perceber;
por corrigir-me querer,
tendo a mulata ali ao pé,
outra vez vim a dizer:
"Artigos de Santa Fé". (p. 186).
Isto contou Picardia, relatando que percorrera o pampa para, por fim, ser recolhido e
levado à fronteira. "Assim servi na fronteira/em um corpo de milícia/levado pela malícia/de
um outro mais calaveira" (p. 204).
Após todos contarem seus caminhos, chega ao bolicho um moreno e inicia-se, com
Fierro, uma trova. Segundo Lamberty (1989) as trovas eram o pedestal básico do gaúcho, que
no início apresentava-se pela forma descritiva e individual e depois sob disputas de rimas. A
trova apresentada na obra tem as características de um duelo entre Fierro e o moreno. Os dois
lançam desafios um ao outro e, por vezes, têm vontade de partir para o duelo corporal.
Iniciam a trova apresentando-se e Fierro lança o primeiro questionamento: "me dirás qual é,
no mundo/o grande canto da terra" (p.221).
Falam sobre o canto do mar, de onde nasce o amor, o que entende-se por lei. Como o
moreno responde à altura, ele também lança seus desafios: "p'ra que fim o Padre
Eterno/criaria a quantidade" (p. 227). Questiona sobre a medida, o peso, a formação do tempo
e depois apresenta sua história. Fierro é que encerra a trova elogiando o moreno pela
coragem:
Pude conhecer a todos
os negros mais peleadores;
havia alguns superiores
de corpo e da vista... ai-juna!
Se vivo, lhe darei uma
história das bem melhores. (p. 233).
Após esta disputa, todos seguiram seus caminhos. Fierro, os filhos e o filho de Cruz
ainda passaram a noite juntos na relva, sendo a noite no pampa a melhor guardiã que o gaúcho
poderia ter. "Assim, pois, aquela noite/foi p'ra todos uma festa" (p. 235). No entanto, foi
somente uma noite:
Mas sem poder viver juntos,
tal era sua pobreza,
resolveram separar-se,
nesse transe de incerteza
à procura de um refúgio
para alívio da miséria. (p. 235).
Fierro delega a seus filhos e ao filho de Cruz seus conselhos de pai e Hernández
coloca-se como narrador do último capítulo. O autor vai falar sobre sua obra, desculpando-se
por talvez ter incomodado alguém com suas palavras e pedindo permissão para descansar:
Permitam-me descansar,
pois que já trabalhei tanto!
Por esta altura me planto,
de prosseguir já desisto. (p. 245).
Ninguém se creia ofendido,
pois a ninguém incomodo;
e se canto deste modo
por achá-lo que convém,
NÃO É POR MAL DE NINGUÉM
SE NÃO PARA BEM DE TODOS. (p. 246).
4 CONCLUSÃO
Através deste trabalho, conclui-se que a obra de Hernández não é fácil de ser
analisada, apesar de muitos autores terem afirmado de que se trata de uma obra simples,
mesmo sendo a mais importante da literatura argentina. São muitos as assuntos que poderiam
ter sido analisados neste estudo, mas a brevidade de aspectos sobre a representação do gaúcho
e a análise do espaço apresentados já contribuem para a melhor compreensão do poema como
um todo.
O gaúcho perdura com a ideia de ser um homem corajoso, adornado pela sua
indumentária como o chimarrão, seu rancho, o cavalo e as lidas diárias do pampa.
Obviamente que muitas características não se apresentam mais como foi retratado na obra,
mas o espírito permanece até nossos dias. O espaço é importante no poema porque é uma
forma de também representar o estado de espírito dos personagens. Assim como acontece em
muitas outras obras românticas, já que o envolvimento com a natureza configura uma das
principais características do romantismo.
Por fim, esta monografia contribuiu muito para a tomada de conhecimento acerca de
como surgiu o mito do gaúcho, quais os vieses políticos e opiniões que levaram o autor a
escrever o poema e a importância deste livro para a tradição até hoje comemorada na
Argentina e no Rio Grande do Sul.
REFERÊNCIAS
ARCHETTI, Eduardo P. O “Gaúcho”, o tango, primitivismo e poder na formação da
identidade nacional da Argentina. Scientific Eletronic Library Online Scielo, 2003.
Disponível em http://www.scielo.br/pdf/mana/v9n1/a02v09n1.pdf. Acesso em 20 set.2012.
BEIRED, José Luiz Bendicho. Breve história da Argentina. São Paulo: Ática, 1996.
BORGES, Jorge Luis. GUERRERO, Margarita. O “Martin Fierro”. Porto Alegre: LP&M,
2007.
HERNÁNDEZ, José. Martin Fierro. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1987.
LAMBERTY, Salvador Ferrando. ABC do tradicionalismo gaúcho. Porto Alegre: Martins
Livreiro, 1989.
TERLIZZI, Bruno Passos. Utopias e projetos de modernidade: Argirópolis a superação
utópica da barbárie em D. F. Sarmiento. São Paulo: Unicamp, 20_.Disponível em
www.ifch.unicamp.br/graduacao/anais/bruno_terlizzi.pdf. Acesso em 20 set. 2012.
VIANA, Francisco. Argentina: civilização e barbárie, a história argentina vista da Casa
Rosada. São Paulo: Atual, 1990.

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Martin fierro

  • 1. MARTÍN FIERRO: O ESPAÇO E A FIGURA DO GAÚCHO APRESENTADOS NA OBRA DE JOSÉ HERNANDEZ¹ Francieli Corbellini² fracorbellini@gmail.com RESUMO O espaço sempre foi considerado um dos elementos fundamentais em toda obra literária. Com Martin Fierro não poderia ser diferente. Além de descrever como é e como se porta a figura do gaúcho, José Hernandez nos faz passear pelos pampas e descobrir por que meios nosso personagem passa e qual a significação deles na construção da sua história de vida. Este trabalho visa apresentar ao leitor estes espaços, relacionando, também, os costumes de Fierro com os que ainda perduram na tradição gaúcha, e relatando uma breve história da Argentina, bem como a época e em que condições o livro foi escrito, para justificar a criação deste. Com apontamentos do livro O Martin Fierro de Jorge Luis Borges, entre outros argumentos, foi possível constatar que alguns instrumentos e costumes permanecem na cultura do Rio Grande do Sul, mas sua presença mais forte é notada na personalidade destemida e também no amor pela terra, pelo estado, que é a extensão de sua própria casa. 1 INTRODUÇÃO O contexto histórico da Argentina de 1829 a 1874 foi marcado pelo autoritarismo, pela guerra civil e, especialmente, pela disputa de poder entre federalistas e unitaristas. Entre meio a isso, nasce o autor que vai imortalizar o mito do herói gaúcho, retratando seus costumes e suas lidas pelo pampa argentino. José Hernández escreve Martín Fierro para denunciar os abusos do governo de Domingo Faustino Sarmiento, que foi de 1868 a 1874. Hernández não concordava e era opositor às ideias unitaristas, vertente de Sarmiento. Martin Fierro é a obra mais completa tratando-se do gaúcho. A vestimenta, companhia da viola, andanças pelo pampa atrás do gado, o cavalo como melhor amigo; tudo é eternizado neste livro escrito em verso. Este trabalho desenvolve-se a fim de, além de apresentar o panorama político e uma breve biografia de Hernández, analisar o espaço com todas as características da vida e costumes do gaúcho. Para tanto, utilizam-se fundamentações de Jorge Luis Borges, José Luis B. Beired, Salvador Ferrando Lamberty, Francisco Viana, entre outros. Desta forma, pretende-se chegar a uma análise minuciosa da obra e, ao mesmo tempo, acrescentar informações ao conhecimento que já se tem sobre o mito do gaúcho. 2 HISTÓRIA DA ARGENTINA E BIOGRAFIA DE JOSÉ HERNANDEZ Este capítulo trata da história da Argentina entre 1829 e 1874, ressaltando aspectos políticos, especialmente a disputa entre unitaristas e federalistas, que levaram José Hernández a escrever o mito do herói gaúcho: Martín Fierro. 2.1 HISTÓRIA DA ARGENTINA A Argentina, segundo maior país da América Latina em território com 2.766.890 km² e população de 42.192.494 de habitantes em 2011, sofreu com as mudanças de poder no decorrer de sua história. Uma dessas mudanças, e dentre as mais marcantes, ocorreu na época ____________________________ 1 Trabalho realizado no primeiro semestre de 2012, para a Disciplina de Introdução à História da Literatura Ocidental II, com orientação da Professora Mara Ferreira Jardim. 2 Graduanda de Letras da Faculdade Porto-Alegrense, Porto Alegre/RS.
  • 2. de Domingos Faustino Sarmiento, cuja vertente política assume o governo de Buenos Aires em 1853, mas ele governou de 1868 a 1874. Coincidentemente período este da escrita da primeira parte da obra de José Hernández que será analisada aqui, Martín Fierro. Faz-se necessário, antes de qualquer coisa, apontar as características das duas vertentes políticas da época que será apresentada neste trabalho: os caudilhos federalistas e os unitaristas liberais. A oposição de ideais resultou em uma guerra civil que perdurou anos na Argentina. “Quem era contra o poder dos caudilhos passou a ser unitário, aqueles que estavam do outro lado ganharam o nome de federais.” (VIANA, 1990, p. 21). Por unitários, então, deve-se entender uma elite urbana e estancieira com certas características e crenças liberais, proveniente principalmente de Buenos Aires, e que via na centralização política, encabeçada pela elite porteña, uma forma de unificar a região e a nação da Argentina. Já os federalistas defendiam uma maior participação provincial nas decisões políticas, de modo que isso atendia aos seus interesses locais que eram geralmente fundados na relação de troca entre caudilhos e seus dependentes ou apoiadores. (TERLIZZI, 20_, p. 6). Antes de os unitaristas liberais, partido de Sarmiento, assumirem o governo da Argentina, estavam a frente do poder o partido dos caudilhos federalistas, cuja figura mais marcante foi Juan Manuel de Rosas. Rosas governou com característica autoritária e perseguiu implacavelmente seus opositores. Toda sanguinária e monótona propaganda rosista apontava para o mesmo alvo: a expansão, sem fronteiras, da criação de gado, a absoluta hegemonia de Buenos Aires sobre as províncias, o enclausuramento do país como se fosse um tubo de ensaio e a convicção de que a violência era a única maneira de assegurar o poder. (VIANA, 1990, p. 20). Buenos Aires foi muito próspera sob Rosas, mas apenas para alguns que já detinham certo poder e que partilhavam o mesmo ideal político federalista. Houve a expansão dos saladeros (estabelecimentos de processamento de charque) e a criação de gado, consolidando uma política a favor do poder dos grandes estancieiros. Segundo Beired (1996) é neste governo que se inicia a “expedição ao deserto”, representada na parte I da obra de José Hernández, que foi uma guerra genocida centrada no ataque e expulsão das tribos indígenas dos pampas e na ocupação de seus territórios para a criação de gado. A maior e mais significativa investida contra os índios na época de Rosas ocorreu entre 1833 e 1834, mas essa guerra perdurou até o ano de 1880. Os maiores beneficiários, sem fugir à política de Rosas, eram os proprietários de terras. Vale acrescentar que Rosas “era um dos dez maiores latifundiários do país.” (VIANA, 1990, p. 23). No entanto, segundo Viana (1990, p.20) “Rosas foi inigualável na arte de manipular os índios, os gaúchos e os negros, transformando-os numa massa aguerrida e fanatizada a serviço de si mesmo e de seus interesses de classe.” Mesmo sendo um paradoxo, Rosas queria paz e não guerra. Entendia que os índios viviam para a guerra e, assim, deveriam ser assimilados e não exterminados e, já que cada aldeia seria uma escola de guerra, seria possível trocar os peões pelos índios nas milícias a frente de combates. “Os índios viam nele uma espécie de totem de carne e osso: costumavam dizer que Rosas era um amigo que jamais os haviam enganado. Rosas via nesse invulgar exército de marginais uma arma contra futuras ameaças externas.” (VIANA, 1990, p. 26). Depois de todo um governo voltado para o poder, caracterizado pela subordinação, iniciado em 1829, sendo Rosas adorado como um deus, a última década foi marcada por mudanças múltiplas. Surgiram novas estâncias voltadas para a produção de ovelha e não de gado, houve a introdução de novas técnicas e a emergência de uma nova elite, descendente de imigrantes, que buscava espaço e se chocava com os criadores de gado e as milícias rurais, afirma Viana (1996).
  • 3. Em meio a todo este contexto argentino, nos países limítrofes, e na própria Argentina, já tomavam forma revoltas liberais. No Brasil, a Revolução Farroupilha (1835/1845 no Rio Grande do Sul) e a Sabinada (1837 na Bahia). No Uruguai a sua própria independência (declarada 1825 e reconhecida em 1828). Na Argentina, as províncias de Corrientes, Santa Fé e Entre Rios já expandiam-se pelos ideais liberais. Chega a hora de Buenos Aires receber um novo governador. Segundo Beired (1996), os caudilhos federalistas foram depostos com a Batalha de Monte Caseros, por uma aliança internacional entre Corrientes e Entre Rios, esta última governada por Justo José de Urquiza que será o primeiro governador unitarista de Buenos Aires após Rosas (províncias argentinas), Brasil e Uruguai. Juan Manoel de Rosas, derrotado, deixa sua cadeira em 1852. Os unitaristas liberais foram importantes para o país, mas seus governos também foram marcados pela prática de guerra. A princípio, adotou-se uma nova Constituição já em 1853 que, segundo Beired (1996, p. 38) era de cunho liberal, estabeleceu a forma representativa, republicana e federativa de governo; a divisão dos poderes em legislativo, executivo e judiciário; a eleição indireta para presidente; os direitos individuais; e liberdade de culto paralelamente à adoção do catolicismo como religião oficial do Estado, entre outras disposições. Justo J. de Urquiza, general, principal opositor de Rosas, foi eleito em 1853 e ficou no poder por seis anos. Liberal, mas com traços federalistas, realizou um política que atendeu os interesses do interior. “Engana-se quem pensar que Urquiza foi um marco de renascimento. Rosas e Urquiza descendiam de um mesmo trono ancestral. O caudilhismo. O que houve foi uma troca de guarda. A substituição de um tirano por outro.” (VIANA, 1990, p. 33). Depois de Urquiza, a Argentina ainda passou pelo comando de Bartolomé Mitre Martinez de 1862 a 1868 e, finalmente, chegamos a Domingo Faustino Sarmiento, com governo de 1868 a 1874. Domingos Faustino Sarmiento fora pessoa polêmica e de fundamental importância no debate político argentino do séc. XIX. Suas ideias e motivações o levaram muito cedo a se envolver em conflitos e disputas em relação ao tipo de sociedade que se construía – ou que se queria construir – dentro da nascente nação argentina. Muito cedo inspirado por ideais liberais e progressistas – inspirado em partes pelos responsáveis por sua formação -, o jovem San Juanino esbarra numa torrente de conflitos de interesses e poder que esmagavam a Argentina de seu tempo. Muito cedo acaba por envolver-se em rusgas políticas o que o faz deixar o país em direção ao exílio nos Andes chilenos e a alinhar-se com o partido Unitário (...). (TERLIZZI, 20_, p. 1). Já em 1864 era constante o recrutamento forçado de civis para lutar em guerras como a do Paraguai e contra as revoltas dos caudilhos ao governo liberal da Argentina, como retrata Hernández, na obra Martín Fierro (1987, p. 26): E começam as desgraças, Dando princípio à função, Pois que não há salvação, Que ele queira ou não queira, O mandavam para a fronteira. Sarmiento reorganizou esse exército, impôs pena de morte aos desertores – como apresenta Hernández (1987, p. 30): À menor falta, lambiam nossas costelas à espada; - mesmo sem fazermos nada,
  • 4. como se fosse um Palermo, nos davam cada lambada, de deixar um pobre enfermo. O governante interveio nas províncias para garantir lisura das eleições e exterminou os últimos focos dos caudilhos. Marcado pelo iluminismo, Sarmiento e seus colegas de grupo intelectual “Geração de 37”, viam na razão a solução para todos os males da humanidade. Para Sarmiento, governar era povoar, modernizar e educar. Seria um país de habitantes- produtores no qual todos desfrutariam da igualdade de direitos civis enquanto apenas uma certa minoria possuiria direitos políticos, afirma Beired (1996). Assim, “o Estado era o lugar privilegiado a partir do qual o cidadão (...) e a sociedade como um todo seriam modelados.” (BEIRED, 1996, p. 42). Juan Batista Alberdi foi quem inspirou a Constituição de 1853. Também liberal, defendia que o país deveria alcançar o progresso material e via na imigração de habitantes da Europa o elemento-chave dessa estratégia. Sarmiento aderiu a essa prática imigratória e, consequentemente, à expulsão dos índios dos pampas argentinos para a ocupação europeia. “A Argentina recebeu, entre 1869 e 1930, mais imigrantes em relação a sua população que qualquer outro país moderno.” (ARCHETTI, 2003, p. 3). José Herández contestou a ida dos civis para o exército de forma obrigada, porque Martín Fierro nos conta que não iam somente para expulsar os índios, como mostram as passagens do livro (1987,p. 31) abaixo: Cadê índios ou serviço, se nem havia quartel!... Nos mandava o coronel trabalhar em suas chácras - e deixávamos as vacas p’ra que as levasse o infiel. A Argentina teve prosperidade econômica no período de Sarmiento. Houve a especialização do país no setor agropecuário, a formação de uma burguesia extremamente rica e concentrada, um gigantesco fluxo de imigrantes e a emergência de grandes centros urbanos. Porém, acrescenta Beired (1996, p. 86/87) referindo-se às disputas políticas: Toda essa prosperidade econômica desenvolveu-se à luz de práticas políticas autoritárias e de violentas tensões políticas e sociais. Os conflitos entre os caudilhos federalistas e os liberais defensores de um projeto unitário tingiram de sangue durante décadas a bacia do Prata. 2.2 JOSÉ HERNANDEZ “Hernández ignorou sempre sua importância e não teve talento a não ser naquela ocasião... O poema compõe toda sua vida e, fora dele, nada resta se não o homem inteiramente comum, com as ideias comuns da época.” (LUGONES in BORGES/GUERRERO, 2007, p. 29). Lugones referiu-se ao poema Martín Fierro de José Hernández. O autor seria apenas um homem comum após esta obra, ou parte dela já que críticos, como Jorge Luis Borges, dizem que a segunda parte do livro não saiu ao espelho da primeira, frustrando expectativas. No entanto, Hernández ainda escreveu Vida Del Chaco (1863) e Instruccion Del Estanciero (1881). Martín Fierro foi dividido em El Gaucho Martín Fierro (1872) e La Vuelta de Martín Fierro (1879). O autor nasceu no povoado de Perdriel, subúrbio de Buenos Aires, em 10 de novembro de 1834. Esse dia é o “Dia da Tradição” na República Argentina. Seu pai, Rafael Hernández, era puramente federalista e sua mãe – da qual ficou órfão aos nove anos – Isabel Pueyrredón, era unitarista.
  • 5. Ainda criança, foi levado aos campos e ali aprendeu a cavalgar e as outras lidas do gaúcho. Também participou das lutas no deserto pampa contra os índios. Após a queda de Rosas, com apenas 19 anos, iniciou uma vida aventureira, como soldado e como periodista (aquele que escreve periódicos, jornalista). Aderiu à vertente caudilha e fez oposição aos liberais. Em 1863 casou-se com Carolina González Del Solar na província de Entre Rios. Ali desempenhou vários cargos oficiais e criou o jornal “Rio de La Plata”, de curta duração porque em 1870, com o assassinato de Urquiza, o general López Jordán, então no governo de Entre Rios, foi expulso dali por Sarmiento. Hernández foi com López para o Rio Grande do Sul, viveu em Santana do Livramento em 1871 e ali provavelmente escreveu trechos de Martín Fierro, segundo Hernández (1987). Somente em 1872 o autor voltou à Buenos Aires e ali imprime a primeira parte de sua obra-prima. Sarmiento sai do poder em 1874, voltando ao poder os caudilhos. Caudilhos estes que já não eram tão autoritários como foi Rosas. Hernández imprime a segunda parte do livro em 1879, a pedido da população, pelo sucesso que fez a primeira parte. Ele torna-se Senador em 1881 e fez parte do Conselho Geral de Educação. Ficou ali, em Belgrano, bairro de Buenos Aires, até falecer em 21 de outubro de 1886, com 52 anos, talvez consumido por uma doença cardíaca. O pai de Hernández, mantendo características caudilhas, era administrador de estâncias. Hernández era espírita e dizia-se federalista, mas não rosista. Ele escreve Martín Fierro para denunciar injustiças locais e temporais, mas em sua obra entraram o mal, o destino e a desventura que são eternos, como dizem Borges e Guerrero (2007) além de ser a obra que cria o mito do herói gaúcho, com seus costumes, que até hoje é lembrado na Argentina e muito mais no Rio Grande do Sul, também em função da Revolução Farroupilha (1835/1845). 3 ANÁLISE DO ESPAÇO E O MITO DO GAÚCHO NA OBRA MARTÍN FIERRO Este capítulo apresenta a análise do espaço e a construção do mito do herói gaúcho na obra de José Hernández, Martín Fierro, considerando os locais apresentados – pampa argentino, bolicho, casa, estância dos fazendeiros, entre outros – e os costumes que caracterizam o gaúcho. 3.1 A FIGURA DO GAÚCHO E O ESPAÇO APRESENTADOS EM MARTÍN FIERRO E atendam a relação de um gaúcho perseguido que foi bom pai e marido dedicado e diligente; entretanto, muita gente o considera bandido. (p. 20).³ Borges e Guerrero (2007) dizem que excluindo a principal obra, Martín Fierro, as obras de Hernández foram insignificantes. Tal afirmação baseia-se no que foi e é este poema: a mais importante obra da literatura argentina. Mesmo assim, Borges e Guerrero (2007) consideram Martín Fierro um texto triste e com uma nada complexa psicologia do gaúcho. Há autores que classificam esta obra de Hernández como sendo uma epopeia e realmente há características deste gênero no poema, como a invocação aos santos, logo no início da leitura: Imploro aos santos do céu que ajudem meu pensamento; __________________________________________________________________________________ ³Todas as citações deste capítulo, sem indicação de obra e seus respectivos autores, foram tiradas de HERNANDEZ, José. Martín Fierro. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1987.
  • 6. suplico, neste momento em que canto minha história, me refresquem a memória e aclarem-me o entendimento. Venham santos milagrosos, e cada um deles me ajude: - minha língua não se grude e nem se turve a vista; peço a meu Deus que me assista em uma ocasião tão dura. (p. 17). No entanto, por mais que a obra reproduza as aventuras de Fierro e tenha esta invocação, não foi classificada como uma epopeia. Ela faz parte do romantismo argentino. Para Borges e Guerrero (2007) o protagonista é um gaúcho qualquer ou todos os gaúchos ao mesmo tempo. O poema está escrito em uma linguagem rústica ou que, ao menos, pretende isso. A primeira parte foi publicada em 1872 e devido ao sucesso dessa, Hernández resolve retomar a história, publicando a segunda parte em 1879. Martín Fierro é a representação do gaúcho. Para Lamberty (1989, p. 12) “el Gauchos são chamados os camponeses do Uruguai e parte da Argentina, o que mostra a força de um povo sem fronteiras (...). Raça que brotou nas entranhas do pampa, na figura do primitivo peão. Gaúcho, acima de tudo, é o peão campeiro”. Lamberty (1989) acrescenta que o termo gaúcho vem de “gahú”, do guarani, que significa canto triste ou uivo de cão, e de “che”, do quíchua, que significa gente. A melhor definição seria homem que canta triste. Hernández apresenta esta característica em Fierro, já na primeira estrofe: Aqui me ponho a cantar ao compasso desta viola que o homem a quem desola uma pena extraordinária, é como a ave solitária que no canto se consola. (p. 17). O canto, portanto, é o primeiro aspecto apontado na obra que tem ligação com a formação da figura do gaúcho. Canto este sempre acompanhado da viola. Este gaúcho, muitas vezes errante pelos pampas, já foi considerado um andarilho e contrabandista, mas ele tinha seus motivos para ser assim e Lamberty (1989, p. 15) os defende: Mas os gaúchos primitivos, em tempos remotos, vagavam por quê? Certamente não por preguiçosos, mas sim na busca de serviços. Eram contrabandistas numa terra que nem fronteiras definidas existiam. Caçadores de gado selvagem, num mundo onde a natureza era a lei da sobrevivência. Fierro não era um andarilho, mas tona-se um por imposição do governo. Na Argentina de 1872, o governo recrutava os homens dos pampas para combater os índios e é isso que Hernández mais condena no governo Sarmiento. O herói tinha família, casa, gado para criar. Vivia tranquilo nestas acomodações até o recrutamento. “Tive, no pago, em bom tempo/filhos, fazenda e mulher” (p. 27). É no início do poema que se descreve este bom tempo. Tem-se aqui o primeiro espaço, quase um paraíso para Fierro: a casa da família, a pequena estância, seus afazeres do dia a dia em companhia do cavalo. Aqui, Fierro está em seu estado mais completo, sente-se feliz com o que tem. Abaixo, um relato sobre como se dava a vida, ainda na estância do pai: Eu conheci esta terra
  • 7. quando o paisano vivia, no rancho que possuía, com seus filhos e a mulher... Era uma delícia ver como a vida lhe corria. (p. 21). Em relação aos costumes e afazeres, Fierro conta que acordava cedo e ai até o galpão esperar o dia amanhecer em companhia do chimarrão. “E os galos, soltando o canto/anunciavam que clareava/contente o índio rumava/ao galpão...que era um encanto” (p. 21). O galpão vem a ser a instalação que guardava toda a indumentária de trabalho desse gaúcho, era o local onde guardavam-se os objetos da lida campeira. Para Fierro é o espaço do encanto, para Lamberty (1989) é a querência que, de origem espanhola, significa lugar querido. Hernández não utiliza esta denominação, mas a querência seria a estância com a casa, o galpão, os espaços que são importantes para o gaúcho. “Querência é o local onde se nasce, brinca, cresce... onde se vive (...). Querência é a pátria, é o chão, lar, torrão e pago” (LAMBERTY, 1989, p. 94). E sentado junto ao fogo, a esperar a luz do dia, ao chimarrão se prendia até fartar-se, mui cocho, enquanto a china dormia tapadinha com seu poncho. (p. 21). O chimarrão é a bebida típica da tradição gaúcha, também chamado de mate amargo. A base dessa bebida é a erva-mate que é considerada energizante. “O chimarrão, inicialmente, foi servido num pequeno porongo, com um canudinho de taquara, contendo uma trança de fibras silvestres em uma base, para evitar os fragmentos da erva”. (LAMBERTY, 1989, p. 62). Ainda é costume, especialmente no interior do Estado do Rio Grande do Sul, Estado que também mantém as tradições gaúchas como costume, oferecer o chimarrão às visitas como se fosse o sinal de boas-vindas. A estrofe anterior faz menção à mulher gaúcha. China era, apesar de ter outros significados atualmente, o modo de referir-se às mulheres. Hernández também utiliza a denominação prenda. Os gaúchos sempre foram valentes, fortes como guerreiros, corajosos e a mulher era a cuidadora do lar. Por vezes, ajudava o marido nas lidas do pampa, em trabalhos mais leves ou substituía-o quando ele saída à procura de gado selvagem. Na obra de Hernández, a mulher mostra-se como uma consoladora do marido e, por isso, Fierro demonstra respeito à esposa. Porém, o respeito acaba quando ele descobre que ela já consola outro homem: Quem terá duro peito, que não queira uma mulher?... Nos alivia o sofrer, e, se não sai cavaleira, será a melhor companheira que o homem poderá ter. (p. 73). As mulheres, desde então, conheci-as toda numa. Não tentarei sorte alguma com carta tão conhecida: fêmea e cadela parida não se me acerca nenhuma. (p. 77).
  • 8. O gaúcho, portanto, é forte e corajoso. Hernández não poupou elogios ao protagonista de sua obra: Onde passe outro crioulo Martín Fierro há de passar: ninguém o fará recuar, nem os fantasmas o espantam. (p. 17). Não saio fora dos trilhos nem que venham degolando; c’os brandos sou sempre brando, e sou duro com os duros, e ninguém noutros apuros, me viu andar titubeando. (p. 19). Segundo Lamberty (1989, p. 87) “a vida nômade do primitivo campeiro era temperada de bravura e coragem. Predominava a lei da sobrevivência, considerada sinônimo de machismo”. Mais adiante, Lamberty (1989) acrescenta que o machismo gaúcho era muito mais sinônimo de valentia do que de submissão da mulher pelo homem. Esse não queria minimizá-la, em seus direitos, ou ridicularizá-la perante a sociedade. Depois do chimarrão, o gaúcho iniciava suas lidas campeiras. Hernández apresenta então mais um símbolo do tradicionalismo gaúcho: o cavalo. “E os pingos, a relinchar,/junto ao palanque chamando” (p. 21). Lamberty (1989) diz que o homem domava o cavalo para ter seus serviços, sendo considerado que, aquele que estivesse bem montado, sempre sairia vitorioso de uma batalha. Os gaúchos também eram domadores de gado selvagem. Este gado estava solto pelo pampa e é o pampa o espaço mais importante da obra de Hernández. Localizado na região central da Argentina, o pampa, muitas vezes descrito pelo autor como sendo o deserto, também compõe partes das terras do Rio Grande do Sul e Uruguai. Neste espaço é que se passa toda a saga deste herói. É ali que fica seu rancho, é ali que trabalha e é ali que estão os índios que ele vai combater por imposição do governo. A denominação de deserto é usada não pelo local ter características de um deserto, mas por ser uma terra ausente de civilização. Era praticamente uma terra sem dono que, atualmente, abriga a criação de gado e a plantação de cereais. Ir-se a correr o deserto o mesmo que um foragido, deixando como no olvido, mas sem esquecer-lhes os traços, a mulher em outros braços, - os filhos, tudo perdido!... (p. 98). Na obra, também são dadas as características deste pampa: Tudo é só céu e horizonte em imenso campo verde! Infeliz de quem se perde ou que seu rumo extravia! Se em cruzá-lo alguém porfia, minha experiência então herde. (p. 139). Também relata-se o pampa como espaço perigoso: Somente a astúcia do homem pode ajudá-lo a escapar; não há auxílio que esperar, senão do Senhor o amparo: frente ao deserto, é mui raro
  • 9. possa a gente se salvar. (p. 139). Hernández também usa a denominação de campo para este pampa. "P'ra mim o campo é só flores/sempre que livre me vejo;/onde me chame o desejo/p'ra lá dirijo meu passo; (p. 49). Mais tarde esse campo já não é um lugar tão agradável para Fierro. Após a estrofe citada acima, ele deserda do exército já que descobriu que não receberá nenhum pagamento pelo trabalho já cumprido. Se passaram 3 anos do afastamento de Fierro de seu rancho. O herói retorna a sua casa, que agora também vira sinônimo de tristeza, pois está sem mulher e sem filhos: Não tinha mulher, nem rancho, por cima era desertor: não tinha uma prenda boa nem vintém de tirador. A meus filhos infelizes pensei torná-los a achar, e andava de um lado a outro sem ter nem o que pitar. (p. 53/54). Nessas andanças em busca dos filhos, um novo espaço se configura: um bolicho. Por estas características, entende-se que no pampa haviam também vilarejos. Em um bolicho, Fierro cometerá seu primeiro crime. Ele vai provocar uma mulher negra que já estava acompanhada de um homem com o qual Fierro trava uma batalha que leva à morte: E por fim, numa topada no meu ferro o levantei, e, como um saco de ossos, contra a cerca o atirei. Esperneou várias vezes, sentindo a morte chegar. (p.57). O segundo delito também inicia-se em um bolicho, que é um local onde homens se encontram para beber, conversar e comprar - pode ser considerado um pequeno mercado também - com um homem ladino (esperto, ardiloso): Outra vez, em um bolicho tomava uns tragos à tarde; um taura, fazendo alarde de quebra e de valentão, foi se chegando, e meteu o pingo sob a ramada; sem que lhe dissesse nada, me quedei junto ao balcão. (p. 58). Nesta ocasião Fierro foge do local com muita pressa, diferentemente do que aconteceu no primeiro crime em que ele limpa seu facão na grama, monta em seu cavalo e segue seu caminho sem arrependimentos. Neste segundo delito, que também acaba em morte, ele, por já ter morto um homem, vira um perseguido pela justiça: E como a justiça não andava bem, ali, quando o estrebuchar o vi o pulpeiro pregou o grito, para o palanque segui, a fazer-me pequenino. (p. 59).
  • 10. Já ao perceber que estava sem rancho, Fierro tornara-se um andarilho, mas com os últimos enfrentamentos, suas andanças tornam-se mais difíceis. Então ele percorre o pampa e faz dele o seu rancho: Assim, ao cair da noite, tinha o mato por guarida: onde o tigre passa a vida, o homem a pode passar; não queria me arriscar ao certo de uma partida. (p. 63). Em uma noite, Fierro é surpreendido por uma comissão de cavaleiros em sua perseguição. Neste episódio, o pampa será testemunha de uma amizade que toma forma pela bravura de nosso herói: Qual minhoca me peguei o solo, para escutar; pronto senti retumbar no chão a pata dos fletes; que eram muitos os ginetes percebi sem vacilar. (p. 63). Talvez por no coração tocar-lhe um santo bendito, um gaúcho pregou o grito, dizendo. - "Cruz não consente que se cometa o delito de assim matar-se o valente". (p. 69). Portanto, Cruz foi o amigo que a valentia de Fierro surpreendeu ao enfrentar um batalhão de homens. A partir daí, o pampa passa a ser percorrido pelos dois, Fierro e Cruz, juntos. O caminho é feito de muitos causos ou histórias sobre a vida de cada um. Ao final destas narrativas, Fierro e Cruz encontram-se e são acolhidos pelos índios. Hernández encerra a primeira parte do livro neste trecho, publicando a segunda parte somente sete anos depois. Ainda pelo pampa, já na segunda parte da obra, apresenta-se um novo desafio: Recordarão que eu e Cruz para o deserto rumamos; assim pelo pampa entramos, caindo no fim da viagem, em meio a indiada selvagem, junto a um toldo que encontramos. (p. 99). Junto aos índios, Fierro e Cruz viram testemunhas das batalhas e relatam a fúria com que os selvagens enfrentavam os cristãos. Esta segunda parte do poema é escrita quando o partido da vertente política de Hernández assume o poder de Buenos Aires, após o governo de Sarmiento. Portanto, o autor procura melhorar a imagem desse atual governo. Antes relatava a obrigação de alistar-se e prestar serviço ao exército; agora relata a rebeldia dos índios. É guerra dura a do índio, porque ele vem como fera: donde queria ele entrevera e de golpear não se cansa; só de seu pingo e da lança toda salvação espera. (p. 109).
  • 11. O pampa, que deu um amigo a Fierro, tirou-o dele mais tarde em função de uma peste que assolava os índios que os acolheram: De joelhos a seu lado, o encomendei a Jesus; faltou-me aos olhos a luz e me afundei num desmaio, como ferido de raio, ao ver morto o amigo Cruz. (p. 122). Fierro ainda passa por mais uma aventura no deserto. Encontra uma mulher, cujo filho será levado por um índio. Fierro a defende, mata o selvagem e, por este ato, acredita não mais ser bem recebido pela tribo que o ajudara. Então, ele resolve abandonar o pampa: Senti-me assim obrigado a abandonar o deserto. Se me houvesse descoberto, mesmo matando em peleia, por vingança me lanceia a indiada toda, de certo. (p. 136). O herói chega então a algumas estâncias e tenta informar-se sobre o paradeiro dos filhos. Ele ficou tranquilo ao descobrir que o juiz não mais o perseguia. Neste trecho do poema, Fierro conta que dez anos se passaram, culpando o juiz pelo sofrimento. Pode-se entender que esse juiz seria a representação do governante da Argentina, Sarmiento, que esteve no poder oito anos destes dez anos e Hernández o culpa pela desgraça de Fierro e pela sua própria: Por culpa dele passei dez anos no sofrimento e não são poucos dez anos para quem já chega a velho. E foi assim que os passei, se nesta conta não erro: estive três na fronteira, dois outros como matreiro, e mais cinco, lá, entre os índios, dirão de meu desespero. (p. 142). Fierro encontra dois de seus filhos em um bolicho. Este passa a ser o espaço do reencontro, que após todas as andanças, para nosso herói também torna-se o lugar da felicidade que antes reinava em seu rancho. Há o encontro, também, com o filho de Cruz. Isso tudo era motivo de muita alegria, mesmo tendo também recebido notícias desagradáveis como a morte da esposa. Os filhos passam a ser os narradores na obra. Tem-se, então, outros espaços importantes da vida de cada um. O filho mais velho passa pela Penitenciária: Remeteu-nos, como disse, para a justiça ordinária, e fomos, pela sumária, para o cárcere malvado, que por batismo arranjado, chamam de Penitenciária. (p. 148). A Penitenciária representa o espaço da injustiça, já que Hernández mostra que não há critérios para os julgamentos, pois o rapaz não havia cometido nenhum crime. Ali o filho de Fierro passa pelo sofrimento de não estar mais em contato com o pampa, lugar tão amado pelos gaúchos.
  • 12. Ali não tem sol o dia a noite não tem estrelas; sem que lhe valham querelas, encerrado o purificam: suas lágrimas salpicam os muros das frias celas. (p. 150). Já o segundo filho passou pelos cuidados de uma tia e de nada carecia ao lado dela, configurando-se este o espaço da tranquilidade. O rapaz não trabalhava e, como ele mesmo diz, "eu vivia folgazão" (p. 157). No entanto, foi-lhe nomeado um tutor com a morte da tia, isso com a intervenção de um juiz. A estabilidade, apresentada por várias vezes no poema, se modifica sempre por interferência do juiz, por interferência do governo. Levou-me consigo um velho que logo mostrou a facha, pois bem merecia a taxa de ser meio chimarrão; um renegado e ladrão a quem chamavam Viscacha. (p. 159). A querência de Dom Viscacha foi o espaço do sofrimento do segundo filho de Fierro. Porém, apesar de ter vivido na miséria com o velho, o rapaz chorou sua morte pela solidão em que passaria a viver. O velho também lhe ensinara alguns conselhos. Afinal, Viscacha tornara-se alguém importante para o rapaz. Talvez eu tivesse a culpa, porque de susto fugi; soube depois que volvi, mas não garanto esse enredo, que seus vizinhos, de medo, não mais passam por ali. (p. 177). O rapaz tem um amor não correspondido por uma viúva, do qual procura livrar-se procurando um feiticeiro ladino, mas só se cura ao ser levado à fronteira. A fronteira vem a ser outro espaço importante. Fierro passou por ela, o segundo filho dele também e, por fim, o filho de Cruz regressou de lá ao encontrar todos no bolicho. O próprio autor teve de cruzar a fronteira para fugir do governo Sarmiento. Não há pistas na obra sobre qual seria a fronteira a que Hernández refere-se. Pelas características geográficas do próprio pampa, seria a fronteira como Rio Grande do Sul, pois sabe-se que o autor, ao cruzar a fronteira, acomoda-se em Santana do Livramento. Da fronteira, então, vem o novo personagem do poema: o filho do amigo Cruz. "Era um moço forasteiro/de regular aparência/e que, há pouco, pelo pago/gauderiava com frequência" (p. 183). Chamado de Picardia, o rapaz também canta sua história apresentando os lugares por que passou. Esteve na estância de um velho dono de ovelhas; foge para Santa Fé e lá fora recolhido por algumas tias. Ao contar a situação deste rapaz, Hernández ameniza o clima da obra que apresenta a guerra, crimes e episódios tristes, pois acrescenta um fato humorístico: Picardia sente-se atraído por uma mulata e passa por maus momentos enquanto reza ao lado de uma das tias e da própria mulata: Recebi um beliscão que eu já estava a perceber; por corrigir-me querer, tendo a mulata ali ao pé, outra vez vim a dizer: "Artigos de Santa Fé". (p. 186).
  • 13. Isto contou Picardia, relatando que percorrera o pampa para, por fim, ser recolhido e levado à fronteira. "Assim servi na fronteira/em um corpo de milícia/levado pela malícia/de um outro mais calaveira" (p. 204). Após todos contarem seus caminhos, chega ao bolicho um moreno e inicia-se, com Fierro, uma trova. Segundo Lamberty (1989) as trovas eram o pedestal básico do gaúcho, que no início apresentava-se pela forma descritiva e individual e depois sob disputas de rimas. A trova apresentada na obra tem as características de um duelo entre Fierro e o moreno. Os dois lançam desafios um ao outro e, por vezes, têm vontade de partir para o duelo corporal. Iniciam a trova apresentando-se e Fierro lança o primeiro questionamento: "me dirás qual é, no mundo/o grande canto da terra" (p.221). Falam sobre o canto do mar, de onde nasce o amor, o que entende-se por lei. Como o moreno responde à altura, ele também lança seus desafios: "p'ra que fim o Padre Eterno/criaria a quantidade" (p. 227). Questiona sobre a medida, o peso, a formação do tempo e depois apresenta sua história. Fierro é que encerra a trova elogiando o moreno pela coragem: Pude conhecer a todos os negros mais peleadores; havia alguns superiores de corpo e da vista... ai-juna! Se vivo, lhe darei uma história das bem melhores. (p. 233). Após esta disputa, todos seguiram seus caminhos. Fierro, os filhos e o filho de Cruz ainda passaram a noite juntos na relva, sendo a noite no pampa a melhor guardiã que o gaúcho poderia ter. "Assim, pois, aquela noite/foi p'ra todos uma festa" (p. 235). No entanto, foi somente uma noite: Mas sem poder viver juntos, tal era sua pobreza, resolveram separar-se, nesse transe de incerteza à procura de um refúgio para alívio da miséria. (p. 235). Fierro delega a seus filhos e ao filho de Cruz seus conselhos de pai e Hernández coloca-se como narrador do último capítulo. O autor vai falar sobre sua obra, desculpando-se por talvez ter incomodado alguém com suas palavras e pedindo permissão para descansar: Permitam-me descansar, pois que já trabalhei tanto! Por esta altura me planto, de prosseguir já desisto. (p. 245). Ninguém se creia ofendido, pois a ninguém incomodo; e se canto deste modo por achá-lo que convém, NÃO É POR MAL DE NINGUÉM SE NÃO PARA BEM DE TODOS. (p. 246). 4 CONCLUSÃO Através deste trabalho, conclui-se que a obra de Hernández não é fácil de ser analisada, apesar de muitos autores terem afirmado de que se trata de uma obra simples, mesmo sendo a mais importante da literatura argentina. São muitos as assuntos que poderiam ter sido analisados neste estudo, mas a brevidade de aspectos sobre a representação do gaúcho
  • 14. e a análise do espaço apresentados já contribuem para a melhor compreensão do poema como um todo. O gaúcho perdura com a ideia de ser um homem corajoso, adornado pela sua indumentária como o chimarrão, seu rancho, o cavalo e as lidas diárias do pampa. Obviamente que muitas características não se apresentam mais como foi retratado na obra, mas o espírito permanece até nossos dias. O espaço é importante no poema porque é uma forma de também representar o estado de espírito dos personagens. Assim como acontece em muitas outras obras românticas, já que o envolvimento com a natureza configura uma das principais características do romantismo. Por fim, esta monografia contribuiu muito para a tomada de conhecimento acerca de como surgiu o mito do gaúcho, quais os vieses políticos e opiniões que levaram o autor a escrever o poema e a importância deste livro para a tradição até hoje comemorada na Argentina e no Rio Grande do Sul. REFERÊNCIAS ARCHETTI, Eduardo P. O “Gaúcho”, o tango, primitivismo e poder na formação da identidade nacional da Argentina. Scientific Eletronic Library Online Scielo, 2003. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/mana/v9n1/a02v09n1.pdf. Acesso em 20 set.2012. BEIRED, José Luiz Bendicho. Breve história da Argentina. São Paulo: Ática, 1996. BORGES, Jorge Luis. GUERRERO, Margarita. O “Martin Fierro”. Porto Alegre: LP&M, 2007. HERNÁNDEZ, José. Martin Fierro. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1987. LAMBERTY, Salvador Ferrando. ABC do tradicionalismo gaúcho. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1989. TERLIZZI, Bruno Passos. Utopias e projetos de modernidade: Argirópolis a superação utópica da barbárie em D. F. Sarmiento. São Paulo: Unicamp, 20_.Disponível em www.ifch.unicamp.br/graduacao/anais/bruno_terlizzi.pdf. Acesso em 20 set. 2012. VIANA, Francisco. Argentina: civilização e barbárie, a história argentina vista da Casa Rosada. São Paulo: Atual, 1990.