SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 21
Memorial do Convento, de José Saramago
Saramago, em Memorial do Convento, recorre a um momento da História e, em
forma de narração alegórica, propõe uma reflexão sobre esses acontecimentos, sobre
o comportamento e o destino humano e sobre um mundo onde há a magia do
inexplicável.
Romance histórico, mas também social e de espaço, este romance articula o
plano da História (espaço físico e sociocultural) com o plano da ficção e o plano do
fantástico. O título Memorial do Convento sugere memórias de um passado delimitado
pela construção do convento de Mafra, com o que de grandioso e de trágico
representou como símbolo do país. A verdade histórica do reinado de D. João V (no
século XVIII), com a construção do convento de Mafra, a Inquisição e os autos-de-fé,
ou os espaços sociais cortesãos, eclesiásticos e populares, serve de base contextual
para a narração ficcional da reinvenção histórica e para a construção da acção com
uma vertente do fantástico que envolve a relação de Blimunda e Baltasar, a realização
dos sonhos da passarola ou as crenças num universo de magia.
O fio condutor da intriga passa por Blimunda, que imprime à acção uma
dinâmica muito própria e lhe confere espiritualidade, ternura e magia. A acção acaba
por se centrar na relação entre Baltasar e Blimunda, que transgride todos os códigos
em qualquer tempo, nomeadamente da época.
As vozes do narrador e das personagens proporcionam, constantemente, uma
análise crítica aos tempos representados e da enunciação, mas, sobretudo, um
comentário e uma crítica ao presente, por onde passa também a História, permitindo
confrontar o ser e o tempo.
José Saramago (16-11-1922, Azinhaga, Golegã), romancista, cronista,
dramaturgo, poeta, tradutor, director literário de jornais, foi galardoado, em 1998, com
o prémio Nobel da Literatura. Na sua obra, é possível encontrar a palavra herdada e a
palavra ansiada; deparar com o homem moderno, as suas tensões, as suas angústias
e as suas dúvidas; viajar ao interior do homem na procura da experiência mágica de
nos conhecermos; perscrutar o que o mundo nos pode dizer, através da sua magia,
dos seus elementos sobrenaturais; descobrir as possibilidades da escrita, graças à
inovação, a subversão, ao entrelaçamento de discursos.
A personalidade de Saramago é, como a sua própria obra, multifacetada e
sempre em busca do sentido para esta efemeridade, que constitui a vida e o mundo.
Um dos mais belos exemplos da arquitectura saramaguiana é Memorial do
Convento. A construção do convento de Mafra, o espectro da Inquisição, o projecto da
passarola voadora do Padre Bartolomeu de Gusmão e um conjunto de outros factos
que sucederam durante o reinado de D. João V dão corpo a esta obra. Com as
memórias de uma época, reinventando a Historia pela ficção, constrói um romance
histórico, mas simultaneamente social, ao fazer a análise das condições sociais,
morais e económicas da corte e do povo.
E mesmo que as regras discursivas sejam aparentemente ignoradas e haja
linguagens que abandonam a tradicional hierarquia de correlação, o discurso flui
dentro de uma concepção lógica. As intencionais infracções da norma prestam-se a
leituras que alternam o discurso escrito com o discurso oral e, sobretudo, com um
discurso monologado que resulta da mistura de vozes que se produzem no
pensamento das personagens.
Contextualização
Memorial do Convento evoca a História portuguesa do reinado de D. João V,
no século XVIII, procurando uma ponte com as situações políticas de meados do
século XX. Reescreve essa época de luxo e de grandeza da corte de Portugal, que
procura imitar o esplendor da corte francesa do Rei-Sol, Luís XIV (rei de 1643-1715).
O poder absoluto e o iluminismo que configuram este Século das Luzes vão marcar os
seus gostos estéticos e as mentalidades de uma forma decisiva.
Em Portugal, D. João V deixa-se influenciar pelos diplomatas que o cercam –
intelectuais estrangeirados (D. Luís da Cunha, Alexandre de Gusmão e Francisco
Xavier de Oliveira – O Cavaleiro de Oliveira –, Luís António Verney) – e pela riqueza
vinda do Brasil.
O aparecimento no Brasil de grandes jazidas de ouro de aluvião permite a
resolução de alguns problemas financeiros e leva o rei a investir no luxo dos palácios e
das igrejas. Ao querer ultrapassar a magnificência do Escorial de Madrid e do palácio
de Versalhes, e em acção de graças pelo nascimento do seu filho, manda construir o
convento de Mafra, com a inclusão de um grandioso palácio e uma extraordinária
basílica. Por isso, o principal ministro e homem de confiança, o cardeal da Mota (D.
João da Mota e Silva), solicita ao Papa o título de Fidelíssimo para o Rei português
que adquire o cognome de o Magnânimo, devido às grandes obras no campo da arte,
da literatura e da ciência, como o referido convento de Mafra, o Aqueduto das Águas
Livres de Lisboa, a Real Academia Portuguesa de História, a introdução da ópera
italiana, com Domenico Scarlatti1
(1685-1757) e a companhia de Paheti.
D. João V é aclamado rei a 1 de Janeiro de 1707, quando a situação
económica do país se apresenta extremamente grave e Portugal se encontra
envolvido na Guerra da Sucessão de Espanha. Casa a 9 de Julho de 1708 com D.
Maria Ana da Áustria, irmã do imperador austríaco Carlos III. Lisboa, ao receber D.
Maria Ana da Áustria para consorte do monarca, apresenta Arcos de Triunfo com
alegorias do Sol (símbolo do Rei) do qual se aproxima uma Águia (símbolo da esposa
austríaca), ave que o fita, sem sofrer com os seus raios.
A vida sentimental de D. João V está, entretanto, marcada pelas relações com
a madre Paula (Paula Teresa da Silva) do Convento de Odivelas, com quem se
envolve durante vinte anos e de quem tem um filho, o infante D. José, que chega a
inquisidor-mor; com D. Madalena de Miranda, uma freira do mesmo convento de
Odivelas, que lhe dá como filho o infante D. Gaspar, mais tarde arcebispo de Braga; e
com uma francesa de quem nasce o infante D. António.
Enquanto o rei se interessa pela ostentação e esplendor da corte ou pelas suas
fugas sentimentais, a Inquisição ocupa-se com a ordem religiosa e a moral,
estendendo a sua acção aos campos culturais, sociais e políticos. O rigor e as
perseguições do Santo Ofício aumentam no seu reinado, com as vítimas a serem não
só os cristãos-novos e os que cometem delitos de superstição, feitiçaria, magia,
crença sebastianista, heterodoxia, mas também os intelectuais que, muitas vezes, se
vêem forçados a fugir para a Europa culta, de onde trazem ideias novas. O
dramaturgo António José da Silva, o Judeu (1705-1739), que Saramago refere no fim
de Memorial do Convento, é uma das vítimas da Inquisição.
1
Domenico Scarlatti (1685 1757), filho do compositor Alessandro Scarlatti (mestre de capela da
corte da rainha Cristina da Suécia), foi em Lisboa, desde 1720, professor da Infanta D. Maria
Bárbara, filha de D. João V. Após o casamento desta com o príncipe Fernando VI de Espanha,
Scarlatti acompanhou-a na corte de Madrid, onde faleceu. Famoso pelas modernas técnicas do
piano e do cravo, Scarlatti teve, entre os seus alunos, Carlos Seixas (1704-1742), um dos mais
importantes compositores portugueses.
Também conhecida por Tribunal do Santo Oficio, a Inquisição, criada pelo
Papa Gregório IX, no século XIII, para combater as heresias religiosas que aparecem
pela Europa, é confiada aos jesuítas e aos dominicanos, na dependência da Santa Sé.
Este tribunal instala-se, no século XIII, em Espanha, na Alemanha, em França e, no
século XVI, no reinado de D. João III, em Portugal. Com frequência, serve o poder
instituído, embora a sua acção esteja orientada para o combate às várias heresias e
desvios religiosos, incluindo a censura aos livros, às práticas de adivinhação e
feitiçaria, à bigamia. Com o decorrer do tempo passa a ter influência em todos os
sectores da vida social, política e cultural, e, desde que haja uma denúncia, o acusado
está sujeito a toda a sorte de torturas físicas e mentais, incluindo a perda de bens e a
morte. A força do Tribunal do Santo Ofício é enorme, mas acaba por criar conflitos
entre os reis e os jesuítas, até que em 1821 é extinto.
Memorial do Convento é uma narrativa histórica que percorre este período de
aproximadamente trinta anos da História portuguesa, no reinado de D. João V,
entrelaçando personagens e acontecimentos verídicos com seres conseguidos pela
ficção. Saramago fundamenta-se na realidade histórica da Inquisição, da família real,
do padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão2
(inventor da passarola voadora) e de
muitas das figuras da intelectualidade e da política portuguesas, embora ficcionasse a
sua acção.
Classificação (tipo de romance)
Romance histórico, Memorial do Convento oferece-nos uma minuciosa
descrição da sociedade portuguesa do início do século XVIII, marcada pela
sumptuosidade da corte, associada à Inquisição, e pela exploração dos operários,
metaforicamente apreciados como se de tijolos se tratasse para a obra do convento de
Mafra. A referência à guerra da sucessão, em que Baltasar se vê amputado da mão
esquerda, a imponência bárbara dos autos-de-fé, a que não falta a “alegria devota”, a
construção do convento, os esponsais da infanta Maria Bárbara, a construção da
passarola voadora pelo Padre Bartolomeu de Gusmão e tantos outros acontecimentos
confirmam a correspondência aproximada ao que nessa época ocorre e conferem à
obra a designação de romance histórico.
Dentro da linha neo-realista, preocupado com a realidade social, em que
sobressai o operariado oprimido, Memorial do Convento apresenta-se também como
um romance social, ao ser crónica de costumes de uma época, reinterpretada para
servir os objectivos do autor empírico. E, nesta medida, pode afirmar-se como
romance de intervenção, ao apresentar a história repressiva portuguesa da primeira
metade do século XX.
Note-se que o passado se presentifica e sugere um presente actuante, quer
pela intemporalidade de comportamentos, desejos ou anseios, quer pela denúncia de
situações de opressão, repressão e censura no momento da escrita. Em Memorial do
Convento há uma tentativa de encontrar um sentido para a história de uma época que
permita compreender o tempo presente e recolher ensinamentos para o futuro.
Se optarmos por uma classificação de acordo com os elementos estruturais da
narrativa — personagem, espaço e acontecimento — designaremos a obra como
romance de espaço ao representar uma época, interessando-se por traduzir não
apenas o ambiente histórico, mas também por apresentar vários quadros sociais que
permitem um melhor conhecimento do ser humano. A riqueza do cenário,
reconstruindo Lisboa e diversas povoações em seu redor, permite observar as
2
Bartolomeu de Gusmão estudou com os Jesuítas da Baía. Devido ao interesse pelas questões
científicas, veio em 1701 para Portugal. Fez o curso de Cânones da Universidade de Coimbra, mas a sua
atenção, com o apoio de D. João V, prendeu-se com experiências aerostáticas, a que não ficou alheia a
mistificada passarola voadora. Segundo parece, foi forçado a tugir a Inquisição por possível adesão ao
judaísmo ou por se ter envolvido num caso de bruxaria. Morreu em Toledo (Espanha), em 1724.
preocupações com os factos históricos e as vivências do povo humilde; espreitar a
intimidade e os deveres conjugais — “duas vezes por semana” — do rei D. João V,
que necessita de herdeiros; assistir à construção de um convento em Mafra; recordar
a passarola voadora do padre Bartolomeu Lourenço; ou reviver as perseguições
religiosas e políticas da Inquisição. Sempre que pode, uma voz narrativa insurge-se
sarcasticamente contra os repressores:
Devagar, a terra aproxima-se, Lisboa distingue-se melhor, o rectângulo torto do
Terreiro do Paço, o labirinto das ruas e travessas, o friso das varandas onde o padre morava, e
onde agora estão entrando os familiares do Santo Oficio para o prenderem, tarde piaram,
gente tão escrupulosa dos interesses do céu e não se lembram de olhar para cima, é certo que,
a tal altura, a máquina é um pontinho no azul.
Categorias do texto narrativo
Acção
O rei D. João V, Baltasar e Blimunda e Bartolomeu Lourenço protagonizam as
diversas acções que se entretecem em Memorial do Convento.
A acção principal é a construção do convento de Mafra. Esta acção resulta da
reinvenção da História pela ficção. Situando-se no início do século XVIII, encontra-se
um entrelaçamento de dados históricos, como o da promessa de D. João V de
construir um convento em Mafra, e o do sofrimento do povo que nele trabalhou.
Conhece-se a situação económica e social do país, os autos-de-fé praticados pela
Inquisição, o sonho e a construção da passarola voadora pelo padre Bartolomeu de
Gusmão, as críticas ao comportamento do clero, os casamentos da infanta Maria
Bárbara e do príncipe D. José.
Paralelamente à acção principal, encontra-se uma acção que envolve Baltasar
Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas. São estas personagens que estabelecem, muitas
vezes, o fio condutor da intriga e que lhe conferem fragmentos de espiritualidade, de
ternura, de misticismo e de magia.
A centralidade conferida às obras do convento e os espaços sociais de Lisboa
ou de Mafra dão frequentemente lugar a uma intriga de profunda humanidade trágica.
As duas acções voluntariamente surgem em fragmentos que se reconstituem por
encaixes vários e recriam situações, costumes, tradições, ambientes e problemas.
Espaço
Os espaços físicos privilegiados pela acção são Lisboa e Mafra. Entre os vários
lugares da capital ou dos arredores são referidos com frequência o Terreiro do Paço, o
Rossio, S. Sebastião da Pedreira, Odivelas, Xabregas, Azeitão e outros sítios. Nas
referências a Mafra, encontramos a Vela, onde se constrói o convento, Pêro Pinheiro,
serra do Barregudo, no Monte Junto, Torres Vedras e outros locais.
Outros espaços surgem na obra, embora possuam menor relevo ou sejam meras
referências. Estão neste caso Jerez de los Caballeros, onde Baltasar perde a mão,
Olivença, Montemor, Aldegalega, Morelena, Pegões, Vendas Novas, Montemor,
Évora, Elvas, Caia, Coimbra, Holanda ou Áustria.
Lisboa e Mafra são também espaços sociais. Da primeira, afirma o narrador
que “esta cidade, mais que todas, é uma boca que mastiga de sobejo para um lado e
de escasso para o outro” Sobre Mafra, encontramos constantes referências a que
dava trabalho para muita gente, mas socialmente destruiu famílias e criou
marginalização.
O Alentejo surge igualmente como um espaço social importante, na medida em
que permite conhecer-se a miséria que então o povo passava, “por ser a fome muita
nesta província”.
Tempo
A reconstituição da História passa pela ficção ou, como afirma o próprio José
Saramago, “a História é ficção”. Daí que se perceba o aparente desprezo do tempo
cronológico.
As referências temporais são escassas ou apresentam-se por dedução. O
discurso flui, recuperando vários fragmentos temporais ou antecipando outros. As
analepses são pouco significativas, apenas surgem a justificar projectos anteriores, O
pendor oral ou de monólogo mental e as digressões favorecem diversas prolepses que
conferem ao narrador o estatuto de omnisciência e transformam o discurso num todo
compreensível, apesar de toda a fragmentação.
1711 D. Maria Ana Josefa “chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa
portuguesa”
D. João V, “um homem que ainda não fez vinte e dois anos”
“S. Francisco andava pelo mundo, precisamente há quinhentos anos, em mil duzentos e
onze”
A data de 1711, tempo cronológico do início da acção, não surge explícita na obra, mas
facilmente se deduz pelos dados utilizados. Se a referência a “há quinhentos anos” em 1211,
permite concluir que estamos em 1711, também ficamos a conhecer a mesma data se
soubermos que o rei D. João V nasceu em 1689, há “vinte e dois anos”.
1624 Esta analepse serve para se conhecer o desejo dos franciscanos em possuírem um
convento em Mafra3
.
1709 A condenação à fogueira pela Inquisição surge em 1711 ou 1712, quando a rainha vai no
quinto mês da gravidez. Há, porém, a recuperação do tempo de 1709 ao afirmar que isto
acontece “dois anos depois de se queimarem pessoas em Lisboa”.
Várias indicações temporais surgem associadas às primeiras datas. As idades de Sete-
Sóis (26 anos) ou Blimunda (19 anos); a batalha em frente a Jerez de los Caballeros, em
“Outubro do ano passado”; o regresso da nau de Macau que partiu “há vinte meses” ainda
Sete-Sóis andava na guerra; o nascimento e baptizado da infanta Maria Bárbara ou do infante
D. Pedro, que morrerá com dois anos; e o nascimento do futuro rei D. José em 1714.
1717 A data da bênção da primeira pedra do convento de Mafra conhece-se pela expressão “se
não foi dito já, sempre são seis anos de casos decorridos”. A indicação de 17 de
Novembro de 1717 surge como dado cronológico. No ano seguinte, regressados a Lisboa,
Baltasar e Blimunda começam os trabalhos na passarola voadora do padre Bartolomeu de
Gusmão.
O ano de 1728 pode deduzir-se pelas referências aos príncipes D. José, de 14 anos, e
Maria Bárbara, de 17 anos, ou ainda ao arquitecto João Francisco Ludovice4
que vive em
Portugal há 28 anos. A ordem para que se acabe o convento no espaço de dois anos confirma
a data de 1728.
3
O convento de Matra inclui Palácio e Basílica. É o maior conjunto arquitectónico barroco de Portugal. A
primeira pedra foi lançada em 1717 e, apesar da vasta área que cobre, a sua sagração conseguiu
realizar-se treze anos depois, em 1730, quando D. João V fez 41 anos. A conclusão propriamente dita de
todo o complexo só aconteceu em 1735.
4
João Frederico Ludovice: nasceu em Hohenhart, na Suabia, Alemanha. Com o pai iniciou-se na arte da
ourivesaria, vindo a trabalhar em Roma e, mais tarde, em Portugal. Chegou a Lisboa em 1701, com 31
anos, dedicando-se a arquitectura. Contratado pelos jesuítas, trabalhou no sacrário de Santo Antão. D.
João V, entretanto, contratou-o para a elaboração dos planos do Convento de Mafra, cuja acção é
deveras meritória. Esses planos do convento, que reflectem a sua aprendizagem italo-germânica, servirão
para marcar o início das obras joaninas definidas pela concepção de grandiosidade e gigantismo.
1729 Casamento de D. José com a infanta espanhola Mariana Vitória e da infanta Maria Bárbara
com o príncipe D. Fernando, que será VI de Espanha.
1730 22 de Outubro de 1730 é indicado como o da sagração do convento de Mafra, dia do
aniversário de D. João V, que completa 41 anos.
1739 A narrativa termina nove anos depois da sagração do convento de Mafra, quando Blimunda
encontra Baltasar a ser queimado em auto-de-fé, em Lisboa. Entre os condenados estava
também o dramaturgo António José da Silva, que foi queimado precisamente em 1739.
Estrutura
A estrutura de um romance assenta na coexistência de vários conflitos que se
enredam e através do texto manifestam ou desocultam a realidade e os problemas do
ser humano.
Em Memorial do Convento, observa-se uma reinvenção da História, de actos e
de comportamentos para despertar os leitores para situações reais perturbantes que
devem ser analisadas. Pela ficção e com a sua palavra reveladora e denunciadora,
José Saramago propõe o repensar da História portuguesa à luz das mentalidades
actuais e possibilita a consciencialização sobre a verdade do homem. Assim,
consegue a missão do escritor que, numa realização estética, fornece uma mensagem
ética.
A estrutura de Memorial do Convento apresenta duas linhas condutoras da
acção – construção do convento de Mafra e relações entre Baltasar e Blimunda –, que
se entrelaçam com acontecimentos diversos recolhidos na História ou fantasiados.
Memorial do Convento está dividido em 25 partes, ou capítulos, não nomeadas
nem numeradas, mas perfeitamente reconhecidas pelos espaços em branco que as
separam.
Cap./Parte Sequências narrativas
I • Relação Rei/Rainha e a promessa da construção do convento em Mafra
— Apresentação de um facto histórico: propósito da construção de um convento franciscano em
Mafra;
— Narração satírica das motivações desta intenção: promessa do rei D. João V de construir um
convento, caso a esposa, D. Maria Ana Josefa, lhe desse um herdeiro;
— Sonhos de D. Maria Ana e de D. João V com o futuro descendente...
II • Os milagres conseguidos pelos franciscanos e o seu desejo na construção do convento
— “O célebre caso da morte de Frei Miguel da Anunciação” que conservara o corpo intacto; a
locomoção da imagem de Santo António, numa janela, que assustou os ladrões; a recuperação das
lâmpadas do convento de S. Francisco de Xabregas, que tinham sido roubadas...
— A gravidez da rainha;
— O desejo dos franciscanos, desde 1624, de construção de um convento em Mafra.
III • A situação socioeconómica: excesso de riqueza/extrema pobreza
— Os excessos do Entrudo e a penitência da Quaresma;
— A impostura de alguns penitentes que “têm os seus amores à janela e vão na procissão menos por
causa da salvação da alma do que por passados ou prometidos gostos do corpo”;
— A devoção das mulheres que, com a liberdade de percorrerem as igrejas sozinhas, aproveitavam,
muitas vezes, para encontros com os amantes secretos;
— A situação da rainha que, grávida, só podia sonhar com o cunhado D. Francisco;
— A sátira a “mais uns tantos maridos cucos…”.
IV • Baltasar Sete-Sóis regressa da guerra maneta
— O passado “heróico” de Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, que perde a mão esquerda nas lutas de
Olivença;
— A viagem até Lisboa por Évora, Montemor, Pegões e Aldegalega, matando um ladrão que havia
tentado assaltá-lo;
— Em Lisboa, anda pela ribeira, pelo Terreiro do Paço, pelo Rossio, por bairros e praças, juntando-se
a outros mendigos;
— Com João Elvas vai passar a noite num “telheiro abandonado” onde “falaram de crimes
acontecidos...”
V • O auto-de-fé no Rossio e o conhecimento travado entre Baltasar, Blimunda e o padre
Bartolomeu
— A rainha D. Maria Ana, no quinto mês de gravidez, não pode assistir ao auto-de-fé;
— Descrição de um auto-de-fé e os condenados pelo Santo Ofício;
— A mãe de Blimunda, Sebastiana Maria de Jesus, acusada de ser feiticeira e cristã-nova,
“condenada a ser açoitada em público e a oito anos de degredo no reino de Angola”;
— O encontro com o padre Bartolomeu Lourenço e Baltasar Mateus, o Sete-Sóis;
— O convite de Blimunda para Baltasar permanecer em sua casa até voltar a Mafra;
— O ritual do casamento e a consumação do amor entre Baltasar e Blimunda.
VI • O padre Bartolomeu Lourenço e a “máquina voadora”
— O trigo holandês para saciar Lisboa;
— As experiências da “máquina de voar” em S. Sebastião da Pedreira, numa quinta do duque de
Aveiro;
— A aceitação de Baltasar para ser ajudante do padre Bartolomeu.
VII • Nascimento da filha de D. João V, Maria Bárbara
— Apesar de alguma decepção do rei, por não ser um menino, mantém a promessa de construir o
convento.
VIII • Os poderes de Blimunda em ver dentro dos corpos
— O mistério de Blimunda que come o pão de olhos fechados e possui o poder de olhar por dentro
das pessoas;
— A prova do poder de Blimunda que, ainda em jejum, sai à rua com Baltasar.
• Nascimento do segundo filho de D. João V, o infante D. Pedro
• Escolha do alto da Vela em Mafra para edificar o convento
IX — Mudança de Baltasar e Blimunda para a abegoaria na quinta do duque de Aveiro, em S. Sebastião
da Pedreira;
— Continuação da construção da passarola voadora pelo padre Bartolomeu Lourenço, por Blimunda
e Baltasar.
• O padre Bartolomeu Lourenço parte para a Holanda, enquanto Sete-Sóis regressa a Mafra, a
casa dos pais, acompanhado de Blimunda
— Tourada no Terreiro do Paço com Baltasar e Blimunda na assistência, antes de partirem para
Mafra;
— Partida para Mafra de Blimunda e Baltasar.
X — Ao chegar à casa da família em Mafra, Baltasar, acompanhado de Blimunda, é recebido por sua
mãe, Marta Maria; o pai, João Francisco, encontrava-se a trabalhar no campo;
— Baltasar fica a saber que o pai vendeu a el-rei uma terra que tinha na Vela para a construção do
convento;
— A única irmã de Baltasar, Inês Antónia, e o marido, Álvaro Diogo, conhecem “a nova parenta”;
— Morte do infante D. Pedro, que vai a enterrar em S. Vicente de Fora;
— Baltasar vai visitar as obras do convento e passa a ajudar o pai no campo.
• Nascimento do infante D. José, terceiro filho da rainha
• Doença do rei, enquanto o seu irmão D. Francisco tenta a cunhada, revelando à rainha o
interesse em tornar-se seu marido
— Ida de D. João V para Azeitão “curar os seus achaques”;
— Apesar da recuperação da saúde do rei, D. Maria Ana continua os sonhos com o cunhado.
XI • Regresso do padre Bartolomeu, que deseja que Blimunda consiga armazenar éter composto
de “vontades”
— Bartolomeu é recebido em casa do pároco de Mafra, Francisco Gonçalves, perto da casa de Sete-
Sóis;
— Em conversa com Blimunda e Baltasar, fala-lhes da descoberta na Holanda, de que o éter se
encontrava na “vontade” de cada um;
— O padre pede a Blimunda que olhe dentro das pessoas e encontre essa “vontade”, que é como
uma nuvem fechada.
XII — Em Mafra, Blimunda comunga em jejum, pela primeira vez; e vê na hóstia “uma nuvem fechada”;
— O padre Bartolomeu pede, por carta, a Baltasar e a Blimunda que regressem a Lisboa;
— Uma tempestade, comparável ao “sopro de Adamastor”, destruiu a igreja de madeira, construída
especialmente para a cerimónia da inauguração dos alicerces, mas foi reerguida em dois dias, o que
passou a ser visto como milagre.
• Inauguração da primeira pedra do convento, a 17 de Novembro de 1717
— 17 de Novembro de 1717: procissão e bênção da primeira pedra;
• Regresso de Baltasar e Blimunda a Lisboa, onde começam a trabalhar na passarola
— Reflexão do narrador sobre o amor “das almas, dos corpos e das vontades”.
XIII — Baltasar e Blimunda constroem a forja;
— O padre Bartolomeu diz a Blimunda que são necessárias pelo menos duas mil “vontades”;
— 8 de Junho de 1719: a procissão do Corpo de Deus;
— Enumeração dos participantes e descrição com comentários irónicos;
— Monólogos cheios de sarcasmo do patriarca e de el-rei.
XIV — O padre Bartolomeu regressa de Coimbra, “doutor em cânones”;
• O músico Scarlatti, napolitano de 35 anos, que ensina a infanta D. Maria Bárbara, toma
conhecimento do projecto da passarola
— Diálogo entre Bartolomeu e Scarlatti sobre o poder extraordinário da música e a essência da
verdade;
— O padre revela o seu segredo ao músico e apresenta-lhe a “trindade terrestre”: ele, Sete-Sóis e
Sete-Luas;
— O padre Bartolomeu Lourenço prepara um sermão para a festa do Corpo de Deus questionando
os fundamentos da trindade divina.
XV • A epidemia da cólera e da febre amarela e a recolha das “vontades” por Blimunda
— O padre Bartolomeu pede a Blimunda que aproveite a ocasião para recolher as vontades que se
libertam do peito dos moribundos;
— Depois de cumprida a tarefa, Blimunda fica doente;
— Ao toque de cravo de Scarlatti, Blimunda recupera a sua saúde;
— Com as vontades recolhidas e a máquina de voar pronta, o padre Bartolomeu precisa de avisar el-
rei.
XVI — O duque de Aveiro recupera a Quinta de 5. Sebastião da Pedreira, pois ganha a demanda com a
coroa.
• A concretização da viagem da passarola voadora, com o padre Bartolomeu, Baltasar e
Blimunda
— O padre Bartolomeu descobre que o Santo Ofício já estava à sua procura;
— Os três, depois de retirarem o telhado da abegoaria e colocarem tudo o que possuem dentro da
máquina, decidem levantar voo;
— Scarlatti, que chegara a tempo de ver a máquina subir, senta-se ao cravo e toca uma música,
antes de atirar o instrumento para dentro do poço;
— Os três sobrevoam a vila de Mafra; mas, com dificuldades de navegação por falta de vento, têm de
aterrar;
— O padre Bartolomeu, por emoção ou medo, tenta incendiar a máquina, sendo impedido por
Baltasar e Blimunda;
— O padre parte sozinho mata adentro;
— Blimunda e Baltasar escondem a máquina sob a ramagem e partem na mesma direcção: “Isto aqui
é a serra do Barregudo, lhes disse um pastor, e aquele monte além... é Monte Junto.”
— Chegam a Mafra dias depois, quando uma procissão celebra o milagre que julgavam ser uma
aparição do Espírito Santo, e que mais não fora do que a máquina voadora
XVII • O regresso de Baltasar com Blimunda a Mafra, onde começa a trabalhar nas obras do
convento, e anúncio da morte do padre Bartolomeu em Toledo
— Baltasar inicia o seu trabalho de carreiro nas obras do convento;
— O andamento das obras do convento;
— Notícias do terramoto de Lisboa;
— Dois meses depois de ter chegado a Mafra, regresso de Baltasar a Monte Junto, onde haviam
deixado a máquina de voar;
— Manutenção da máquina;
— Domenico Scarlatti em casa do visconde;
— Conversa às escondidas de Scarlatti e Blimunda: “resolvi vir a Mafra saber se estavam vivos.”
“Vim-te dizer, e a Baltasar, que o padre Bartolomeu de Gusmão morreu em Toledo... dizem que
louco...”
XVIII • Caracterização dos gastos reais e dos trabalhadores em Mafra
— Visão irónica e depreciativa de Portugal;
— Esforços colossais e vítimas causadas pela construção do convento;
— Outros relatos de histórias pessoais: Francisco Marques, José Pequeno, Joaquim da Rocha,
Manuel Milho, João Anes e Julião Mau-Tempo.
XIX • Baltasar torna-se boieiro e participa no carregamento da pedra do altar (Benedictione),
verificando-se, durante o transporte, o esmagamento de um trabalhador
— A azáfama na construção do convento;
— Baltasar passa de carreiro a boieiro ajudado por José Pequeno;
— Transporte, de Pêro Pinheiro até Mafra, de uma imensa pedra: “Entre Pêro Pinheiro e Mafra
gastaram oito dias completos. Quando entraram no terreiro... toda a gente se admirava com o
tamanho desmedido da pedra, tão grande. Mas Baltasar murmurou, olhando a basílica, tão pequena.”
— Morte do trabalhador Francisco Marques, que acabou esmagado sob uma roda de um carro de
bois.
XX — Blimunda acompanha Baltasar ao Monte Junto. Depois de lá passarem a noite, Blimunda, ainda
em jejum, procura certificar-se de que as vontades ainda estavam guardadas dentro de cada uma
das duas esferas;
— Renovação da máquina voadora em Monte Junto;
— Viagem de regresso;
— Morte de João Francisco, pai de Sete-Sóis.
XXI • Decisão de D. João V de que a sagração do convento se fará em 22 de Outubro de 1730, data
do seu aniversário
— D. João V manifesta o desejo de construir em Portugal uma basílica como a de S. Pedro em
Roma;
— Chama o arquitecto João Frederico Ludovice (ou Ludwig) para executar tal tarefa, mas este diz-lhe
que o rei não viveria o suficiente para ver a obra concluída;
— Decisão de D. João V: ampliar a dimensão do projecto do convento de 80 para 300 frades;
— Com “medo de morrer”, D. João V decide que a sagração da basílica de Mafra seja a 22 de
Outubro de 1730 (dia do seu aniversário);
— Recrutamento em todo o reino de operários para Mafra;
— Escolha dos homens como tijolos.
XXII • Casamentos da infanta Maria Bárbara com o príncipe Fernando VI de Espanha e do príncipe
D. José com a infanta espanhola Mariana Vitória
— A “troca das princesas”, em 1729, une as famílias reais de Portugal e Espanha;
— Viagem ao rio Caia para levar a princesa Maria Bárbara e trazer Mariana Vitória;
— João Elvas acompanha, com um grupo de pedintes, a comitiva à fronteira;
— Cerimónia do casamento com música de Domenico Scarlatti.
XXIII • Baltasar vai ao Monte Junto e desaparece com a passarola
— Transporte de várias estátuas de santos para Mafra;
— A viagem de trinta noviços, do convento de S. José de Ribamar, em Algés, para Mafra;
— Baltasar decide ir sozinho ao Monte Junto verificar o estado da passaroia;
— A máquina inesperadamente levanta voo quando Baltasar “entrou na passarola” para a reparar.
XXIV • Blimunda procura Baltasar, enquanto em Mafra se faz a sagração do convento, em 22 de
Outubro de 1730
— Blimunda, inquieta e angustiada, procura o seu homem;
— No cume do Monte Junto, usa o espigão de ferro de Baltasar para evitar ser violada por um frade;
— Em Mafra, começam as festas da sagração do convento.
XXV • Durante nove anos Blimunda procura Baltasar e vai encontrá-lo em Lisboa a ser queimado
num auto-de-fé
— Blimunda procura Baltasar por todas as partes do país;
— Em 1739, onze “supliciados, entre eles António José da Silva, encontram-se a caminho da fogueira
num auto-de-fé, na praça do Rossio;
— Estava lá também Baltasar e, quando está para morrer, a sua “vontade” desprende-se e é
recolhida dentro do peito de Blimunda.
A dimensão simbólica/histórica
Citando Croce, afirma Saramago que ‘“toda a história é contemporânea”. De
facto, observa-se que em Memorial do Convento há uma intenção de interferência do
passado com o presente, com a particularidade de conseguir utilizar a reinvenção da
História como estratégia discursiva para olhar a actualidade. A História torna-se
matéria simbólica para reflectir sobre o presente, na perspectiva da denúncia e dela
extrair uma moralidade que sirva de lição para o futuro.
A relação título/conteúdo
O título Memorial do Convento apresenta uma carga simbólica quer enquanto
sugere as memórias – evocativas do passado –, e pressuposições existenciais, quer
ao remeter para o Mundo místico e misterioso. Ao lado da história da construção do
convento, com tudo o que de grandioso e de trágico representou, surge o fantástico
erudito e popular que permite a realização dos sonhos e as crenças num universo de
magia.
Em Memorial do Convento, o romance histórico convive e entretece-se com o
universo mágico criado pela ficção. O convento de Mafra liga-se ao sonho dos frades
que aproveitam a oportunidade de terem um convento, mas reflecte, sobretudo, a
magnificência da corte de D. João V e do poder absoluto, que se contrapõe ao
sacrifício e à opressão do povo que nele trabalhou, muitas vezes aniquilado para servir
o sonho do seu rei.
A construção do convento de Mafra, o espectro da Inquisição, o projecto da
passarola voadora do Padre Bartolomeu de Gusmão e um conjunto de outros factos
que sucederam durante o reinado de D. João V dão corpo a este memorial. Com as
memórias de uma época, é um romance histórico, mas simultaneamente social ao
fazer a análise das condições sociais, morais e económicas da corte e do povo.
O nome das personagens
D. João
Em Memorial do Convento, José Saramago caracteriza o rei D. João V como
megalómano, infantil, devasso, libertino e ignorante, que não hesita em utilizar o povo,
o dinheiro e a posição social para satisfazer os seus caprichos.
Poderoso e rico, D. João V medita “no que fará a tão grandes somas de
dinheiro, a tão extrema riqueza” e anda preocupado com a falta de descendente,
apesar de possuir bastardos. Promete “levantar um convento em Mafra” se tiver filhos
da rainha Maria Ana Josefa, com quem tem relações para cumprimento do dever, em
encontros frios e programados. A sua pretensão vai realizar-se com o nascimento da
princesa Maria Bárbara e, apesar da decepção por não ser um menino, mantém a
promessa de que “Haveremos convento” (cap. VII).
As suas relações com a rainha D. Maria Ana Josefa surgem como cumprimento
de um dever:
“D. Maria Ana estende ao rei a mãozinha suada e fria, que mesmo tendo aquecido
debaixo do cobertor logo arrefece ao ar gélido do quarto, e el-rei, que já cumpriu o seu dever,
e tudo espera do convencimento e criativo esforço com que o cumpriu, beija-lha como a rainha
e futura mãe”
Em Memorial do Convento, o rei, que com “medo de morrer” decide a sagração
da basílica de Mafra para o dia do seu aniversário (22 de Outubro de 1730), surge,
diferente da História, ridicularizado.
Baltasar Sete-Sóis
Baltasar Mateus, de alcunha Sete-Sóis, é, com Blimunda, uma das
personagens mais interessantes da obra e das que possuem maior densidade
psicológica.
Baltasar, depois de deixar o exército, por ficar maneta em combate com os
castelhanos, na guerra da sucessão, chega a Lisboa como pedinte. Conhece
Blimunda Sete-Luas, com quem partilhará a sua vida. Vai ainda partilhar do sonho da
passarola voadora do padre Bartolomeu de Gusmão, ajudando a construí-la e
participando no seu primeiro voo. É este que os alcunha:
“o padre virou-se para ela, sorriu, olhou um e olhou outro, e declarou, Tu és Sete-Sóis
porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras, e, assim, Blimunda, que até aí
só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas.”
Blimunda Sete-Luas
Filha de Sebastiana Maria de Jesus, que fora, pela Inquisição, condenada e
degredada, por ser cristã-nova, conhece Baltasar Sete-Sóis. Com capacidades de
vidente e possuidora de uma sabedoria muito própria, vai ajudar na construção da
passarola e partilhar com Baltasar as alegrias, tristezas e preocupações da vida.
Blimunda é uma estranha vidente que vê no interior dos corpos os males que
destroem a vida e consegue recolher as “vontades” vitais que permitirão o voo da
passarola do padre Bartolomeu. Por amar Baltasar, Blimunda recusa usar a magia
para conhecer o seu interior.
O poder de Blimunda permite, simultaneamente, curar e criar, ou melhor, ver o
que está no mundo, as verdades mais profundas que o sustentam.
Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão
“Já o padre Bartolomeu Lourenço regressou de Coimbra, já é doutor em cânones,
confirmado de Gusmão por apelativo onomástico e firma escrita.”
O sonho da passarola voadora e a sua futura realidade apresentam o padre
Bartolomeu Lourenço como um homem que só conseguirá evitar a Inquisição pela
amizade que lhe tem o rei D. João V, que também possui o sonho e a esperança da
máquina voadora.
Ajudado por Baltasar Sete-Sóis e Blimunda e, por vezes, com a companhia de
Domenico Scarlatti, que ao som do cravo sonhava e ajudava a sonhar, o padre
Bartolomeu Lourenço construiu a sua obra. A sua morte, em Toledo, “para onde tinha
fugido, dizem que louco”, é anunciada pelo músico Scarlatti a Sete-Sóis e a Blimunda.
Personalidade autêntica da História, Bartolomeu de Gusmão estudou com os
Jesuítas da Baía. Devido ao interesse pelas questões científicas, veio em 1701 para
Portugal. Fez o curso de Cânones da Universidade de Coimbra, mas a sua atenção,
com o apoio de D. João V, prendeu-se com experiências aerostáticas, a que não ficou
alheia a mistificada “passarola voadora”. Segundo parece, foi forçado a fugir à
Inquisição por possível adesão ao judaísmo ou por se ter envolvido num caso de
bruxaria. Morreu em Toledo (Espanha), em 1724.
O Povo
Personagem importante, o povo trabalhador construiu o convento de Mafra, à
custa de muitos sacrifícios e mesmo de algumas mortes. Definido pelo seu trabalho,
pela sua miséria física e moral, pela sua devoção, este povo humilde surge como o
verdadeiro obreiro da realização do sonho de D. João V. Os trabalhadores são apenas
qualquer coisa mais desta obra grandiosa, ou, como diz o narrador, “a diferença que
há entre tijolo e homem é a diferença que se julga haver entre quinhentos e
quinhentos [...].
As personagens e os seus projectos
“D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D.
Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa
portuguesa e até hoje ainda não emprenhou.”
Este começo do Memorial do Convento de José Saramago coloca
imediatamente as personagens como elemento preponderante dos apontamentos ou
da efabulação que deseja narrar e trazer à memória. E é com personagens
importantes e com a referência à Inquisição que a obra termina:
“São onze os supliciados. A queima já vai adiantada, os rostos mal se distinguem.
Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba
enegrecida, prodígio cosmético da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no
centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-
Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.”
Ao lado das personagens do poder – régio e religioso – surge a família de
Baltasar e Blimunda, cuja união mágica, mas pagã, é confirmada pelo padre
Bartolomeu Lourenço. Por ironia, são as forças do poder e da repressão que,
indirectamente, contribuem para que estes se conheçam, quando a mãe de Blimunda
é degredada por bruxaria. A relação entre Baltasar e Blimunda é um símbolo da
transgressão dos códigos sociais, mas, ao mesmo tempo, é o símbolo da harmonia
com o universo e as suas forças cósmicas.
Sempre com o espectro da Inquisição por perto, Baltasar e Blimunda unem-se,
por laços psicológicos e pelas suas capacidades de excepção, ao padre Bartolomeu
Lourenço no seu projecto. E o padre que sonha ou que crê, pela sua inteligência, na
concretização da “passarola” que voa, acaba por sucumbir, logo que o seu invento
acontece, por medo do Santo Oficio.
Baltasar, por acidente, acaba, também, o seu voo nas mãos da Inquisição.
Blimunda reencontra o seu marido num segundo auto-de-fé, não como espectador
mas como condenado à fogueira. E, desta vez, Blimunda faz tudo para, pelos seus
poderes mágicos, libertar a alma do companheiro:
“Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não
subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.”
Saramago consegue dotar esta personagem feminina de forças latentes e
extraordinárias que permitem ao povo a sua sobrevivência, mesmo quando a
repressão atinge requintes de sadismo. Em qualquer época, há sempre uma Blimunda
para contestar o poder e resistir.
Estas personagens servem a própria intenção do autor na necessidade de
repensar os acontecimentos e as figuras históricas à luz de uma nova realidade criada
no presente e pressentida no futuro. Saramago problematiza e preocupa-se com o
mundo em que vive. Mas, também como afirma Nuno Júdice, “as personagens de
Memorial do Convento agem como os personagens de Pirandello – não em busca de
um autor mas em busca de um romance, numa deambulação pelo espaço e pelo
tempo de uma História perdida. Nessa ficção, a construção do convento é uma
alegoria da própria construção do romance: o grande edifício que dá a sua razão de
ser aos construtores – tanto o autor como as suas personagens – que, uma vez
terminada a obra, encontram a sua justificação num duplo fim: o fim da História e o fim
da estória.
O destino humano
Numa entrevista, afirma Saramago: “Até há uns anos a minha resposta era
esta: Escrevo porque quero que as pessoas me queiram bem. Depois, comecei a dar
outra resposta: Escrevo porque no fundo não quero morrer. Mas agora nem sequer
isso. E tenho isto muito, muito dentro de mim: Escrevo para compreender.
Compreender o quê? Tudo. Quem somos nós? O que é isso de ser um ser humano? À
luz do processo do desenvolvimento do animal que somos, isso está mais ou menos
claro. A antropologia diz de onde é que viemos, por que fases passámos até chegar
àquilo que somos. Mas a minha pergunta é esta: e aquilo que somos tinha
forçosamente de ser o que é? Em que momento desse processo nós tomamos por um
caminho que nos veio dar a isso? Quantos caminhos possíveis teriam que existir que
fariam de nós outras pessoas? Dizemos que somos seres humanos e que aquilo que
nos separa dos animais é que temos razão e os animais, instinto. E aonde é que nos
levou a razão? E que é isto das raças, das crenças, das religiões, das ideologias, das
superstições, dos preconceitos, essa máquina alienante em que vivemos e que cada
vez nos afasta mais de uma relação humana regida pelo princípio fundamental
do respeito do outro?”
Observando Memorial do Convento, julgamos que a escrita saramaguiana
persegue esta última preocupação – “escrevo para compreender”. Ao longo da obra,
verifica-se que há uma grande preocupação com o ser humano, a sua miséria e a sua
luta, as injustiças e os seus anseios, a sua grandeza e os seus limites. O próprio D.
João V, com toda a magnificência da sua obra, surge, com frequência, como um fraco,
incapaz de controlar os seus achaques ou a sua vida.
A crítica
Memorial do Convento apresenta-se desde logo como uma crítica cheia de
ironia e sarcasmo à opulência do Rei e de alguns nobres, por oposição à extrema
pobreza do povo. “Esta cidade, mais que todas, é uma boca que mastiga de sobejo
para um lado e de escasso para o outro”; “A tropa andava descalça e rota, roubava os
lavradores”. O adultério e a corrupção dos costumes são factores de sátira ao longo da
obra. Critica a mulher porque “entre duas igrejas, foi encontrar-se com um homem”;
critica “uns tantos maridos cucos” e não perdoa os frades que “içam as mulheres para
dentro das celas e com elas se gozam”; não lhe escapam os nobres e o próprio Rei,
até porque este considera que as freiras o recebem “nas suas camas”, nomeadamente
a madre Paula de Odivelas.
Em Memorial do Convento, José Saramago apresenta uma caricatura da
sociedade portuguesa da época de D. João V, revelando-se antimonárquico e com um
humanismo fechado à transcendência, bastante angustiado e pessimista. Nas
questões religiosas, não só usa a ironia, como também se revela frontal nas
apreciações à Inquisição e aos santos que a ela se ligaram como S. Domingos e
Santo Inácio, considerados “ibéricos e sombrios, logo demoníacos, se não é isto
ofender o demónio” Esta acusação resulta de toda a imagem histórica dos tempos
inquisitoriais e das práticas então havidas. Há uma constante denúncia da Inquisição e
dos seus métodos e uma crítica às pessoas que dançam em volta das
fogueiras onde se queimaram os condenados.
A sátira estende-se a Mafra e à situação dos trabalhadores; à atitude do rei em
obrigar todo o homem válido a trabalhar no convento; aos príncipes, como D.
Francisco, que se entretém a “espingardear” os marinheiros ou quer seduzir a rainha,
sua cunhada, e tomar o trono.
O processo narrativo
Memorial do Convento não só problematiza a História como procura,
metaforicamente, exprimir uma compreensão do mundo contemporâneo. Por isso,
Saramago rejeita a omnipotência do narrador, na medida em que considera que é o
autor que põe em causa o presente que conhece e o passado que lhe chega através
das suas investigações. Para Saramago, a omnipotência do narrador é pura ficção.
Em várias entrevistas afirma: “nos meus romances, há pelo menos um homem dentro:
eu”: É ele que através da narrativa procura documentar o tempo, reconstituir a História
e fazer os seus juízos de valor.
Recordando Umberto Eco (Seis Passeios nos Bosques da Ficção, 1995), que
se refere à possível mistura de autor modelo, autor empírico e narrador com o
objectivo de melhor envolver o leitor, julgamos que em Saramago esta convergência
frequentemente acontece, permitindo imprimir na narrativa não apenas a marca do
narrador, mas também a do seu autor que assume uma voz crítica, entrando no
discurso do narrador. É o autor que convoca a História e numa metáfora do mundo
busca razões da sua existência e sentido.
Há, diversas vezes, um discurso de sobreposições narrativas com uma voz (ou
um plural de vozes) que tanto descreve como desconstrói as situações, que dialoga
com o narratário ou manuseia as personagens como títeres, que domina os
conhecimentos da História ou se sente limitado, que faz ponderações ou ironiza. Ao
misturar a História e a ficção, o real e o fantástico, consegue múltiplas formas de
enunciação de que o leitor menos avisado não se apercebe. Podemos falar de um
narrador com uma polifonia ou pluralidade de vozes que reinventa mundos e os
multiplica e que reinventa a própria linguagem.
“Perguntou el-rei, É verdade o que acaba de dizer-me sua eminência, que se eu
prometer levantar um convento em Mafra terei filhos, e o frade respondeu, Verdade é, senhor,
porém só se o convento for franciscano, tornou el-rei, Como sabeis, e frei António disse, Sei,
não sei como vim a saber, eu sou apenas a boca de que a verdade se serve para falar, afé não
tem mais que responder, construa vossa majestade o convento e terá brevemente sucessão, não
o construa e Deus decidirá. Com um gesto mandou el-rei ao arrábio que se retirasse, e depois
perguntou a D. Nuno da Cunha. É virtuoso esse frade, e o bispo respondeu, Não há outro que
mais o seja na sua ordem. Então D. João, o quinto do seu nome, assim assegurado sobre o
mérito do empenho, levantou a voz para que claramente o ouvisse quem estava e o soubessem
amanhã cidade e reino, Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de
franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar deste
dia em que estamos, e todos disseram, Deus ouça vossa majestade, e ninguém ali sabia quem
iria ser posto à prova, se o mesmo Deus, se a virtude de frei António, se a potência do rei, ou,
finalmente, a fertilidade dificultosa da rainha.
(...)
É uma pedra só, por via destes e outros tolos orgulhos é que se vai disseminando o
ludíbrio geral, com suas formas nacionais e particulares, como esta de afirmar nos compêndios
e histórias, Deve-se a construção do convento de Mafra ao rei D. João V, por um voto que fez
se lhe nascesse um filho, vão aqui seiscentos homens que não fizeram nenhum filho à rainha e
eles é que pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz.”
Uma voz narrativa controla a acção narrada, as motivações e pensamentos das
personagens, mas faz também as suas reflexões e juízos valorativos. Mas esta voz,
que ultrapassa a do narrador omnisciente, chega a expor o próprio estatuto ficcional,
quando, por exemplo, afirma que não é possível que a personagem Blimunda “tenha
pensado esta subtileza, e daí, quem sabe, nós não estamos dentro das pessoas,
sabemos lá o que elas pensam, andamos é a espalhar os nossos próprios
pensamentos pelas cabeças alheias.”
Sem preocupações em delimitar o texto histórico e o ficcional, Memorial do
Convento entretece-se com intratextualidades múltiplas que permitem que o passado
só o seja enquanto história, mas que seja presente ao testemunhar a realidade da vida
actual ou vibração intemporal do comportamento humano, O passado evocado
reescreve o presente na busca de uma desocultação do sentido da História para
melhor entender e superar a condição humana e as contingências do tempo. Como
afirma Maria Alzira Seixo (A Palavra do Romance), Saramago “consegue, de modo
ímpar na nossa actual ficção, que o seu discurso romanesco seja atravessado pela
História produzindo um tipo de linguagem onde o passado objectual se contamina pelo
presente crítico e perspectivante”.
Em Memorial do Convento, os discursos facilmente passam da História à
ficção, das reflexões críticas aos ensaios metaficcionais (comentando a própria
escrita); tanto são produzidos por um narrador heterodiegético como por um autor-
modelo que se assume como consciência e que se aparta da simples omnisciência.
Narrador e criador da obra confundem-se com frequência. O narrador não só é
conduzido pelos pontos de vista do autor como encontra outras vozes a argumentar, a
reflectir e a ironizar com a história contada.
“Devagar, a terra aproxima-se, Lisboa distingue-se melhor, o rectângulo torto do
Terreiro do Paço, o labirinto das ruas e travessas, o friso das varandas onde o padre
morava, e onde agora estão entrando os familiares do Santo Oficio para o prenderem,
tarde piaram, gente tão escrupulosa dos interesses do céu e não se lembram de olhar
para cima, é certo que, a tal altura, a máquina é um pontinho no azul”.
Há sempre uma voz a controlar a narrativa, apresentando-se como
contemporânea do leitor, mas apropriando-se do passado, que evoca quer para fazer
a sua leitura, quer, sobretudo, para se posicionar ideologicamente sobre o presente ou
mesmo sobre o futuro. De acordo com a locução de Sartre (in Situations, 1) de
“narração Deus-Pai” estamos perante um narrador privilegiado, com poder de
ubiquidade, enquanto nos relata o que está dentro da consciência de cada
personagem e fora dela, mas que possui também presciência, enquanto sabe o antes
e o depois. Mais do que uma focalização omnisciente, que permite ao narrador
alternar a exposição dos acontecimentos com afirmações sobre o que irá suceder
mais tarde, as formas verbais do presente são facilmente substituídas pelas do futuro,
como sinal evidente do conhecimento intemporal, próprio de um demiurgo.
Maria Alzira Seixo (in O Essencial sobre José Saramago, 1987) refere que em
Memorial do Convento há seis matizes de narrador: o que habita um presente
intemporal e se revela omnisciente; o conhecedor do futuro, capaz de revelar as
grandes linhas da História e do final a que conduzem; o que ficciona e recria os limites
da realidade; o que se revela numa omnisciência limitada perante o entrecruzar de
actos particulares e destinos singulares; o crítico irónico ou humorista perante a sua
possibilidade de manipular.
Linguagem e estilo
Saramago recusa um “narrador unilinear” Por isso, a existência de uma
linguagem plurivocal permite registar as diversas formas de intervenção quer na
narrativa e na desconstrução histórica, quer na construção ficcional. As frases e a
ausência de pontuação favorecem essa pluralidade de vozes que se observa. As
regras discursivas são aparentemente ignoradas. Há, no texto, linguagens que
abandonam a tradicional hierarquia de correlação proposta pelos padrões discursivos,
embora sem desprezarem uma estrutura organizativa.
A pontuação transgride os princípios apresentados pelas aprendizagens
gramaticais, fluindo dentro da concepção lógica do próprio discurso. A estrutura
sintáctica infringe intencionalmente a norma, prestando-se a leituras que alternam o
discurso escrito, com o discurso oral e, sobretudo, com um discurso monologado que
resulta da mistura de vozes que se produzem no pensamento das personagens.
“Por uma hora ficaram os dois sentados, sem falar. Apenas uma vez Baltasar se
levantou para pôr alguma lenha na fogueira que esmorecia, e uma vez Blimunda espevitou o
morrão da candeia que estava comendo a luz, e então, sendo tanta a claridade, pôde Sete-Sóis
dizer, Por que foi que perguntaste o meu nome, e Blimunda respondeu, Porque minha mãe o
quis saber e queria que eu o soubesse, Como sabes, se com ela não pudeste falar, Sei que sei,
não sei como sei, não faças perguntas a que não posso responder, faze como fizeste, vieste e
não perguntaste porquê, E agora, Se não tens onde viver melhor, fica aqui, Hei-de ir para
Mafra, tenho lá família, Mulher, Pais e uma irmã, Fica, enquanto não fores, será sempre tempo
de partires, Por que queres tu que eu fique, Porque é preciso, Não é razão que me convença, Se
não quiseres ficar, vai-te embora, não te posso obrigar, Não tenho forças que me levem daqui,
deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por
dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não o farás e já o fizeste, Não sabes de
que estás a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar, onde durmo, Comigo.
Deitaram-se, Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou Baltasar, e Blimunda
respondeu, Dezanove anos, mas já então se tornara muito mais velha. Correu algum sangue
sobre a esteira. Com as pontas dos dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda
persignou-se efez uma cruz no peito de Baltasar, sobre o coração. Estavam ambos nus. Numa
rua perto ouviram vozes de desafio, bate de espadas, correrias. Depois o silêncio. Não correu
mais sangue.
Quando, de manhã, Baltasar acordou, viu Blimunda deitada ao seu lado, a comer pão,
de olhos fechados. Só os abriu, cinzentos àquela hora, depois de ter acabado de comer, e disse,
Nunca te olharei por dentro.”
Note-se como facilmente se gera o desvio à norma, conseguindo que várias
frases sejam ditas a mais do que uma voz em diálogo interno. Afirma Manuel Gusmão:
“A obra romanesca de José Saramago fala uma linguagem coral e une um desejo de
ficção a um desejo de história. A oralidade da sua escrita vem do modo como combina
maneiras, construções e ritmos da tradição literária, com a coloquialidade mais
comum; com o uso irónico, a transformação e a invenção de provérbios. Vem do modo
como, na sua prosa, uma só frase é já um diálogo, ou um fragmento de diálogo, onde
cabem o acordo e o desacordo.” (“Lendo José Saramago”, Avante!, 29 de Outubro de
1998). A riqueza da sua linguagem resulta desta transgressão ou capacidade de
reinventar a escrita, dando à linguagem um tom de crónica histórica, quer no género
quer no sentido de quem conversa, com recurso à voz do seu autor, à ironia que
desperta e provoca o leitor, à reflexão filosófica, à constatação dos factos, ou mesmo,
a momentos de intimismo poético. A sua linguagem flutua entre a riqueza dos termos,
jogos conceituais e duplicidades sintácticas, que se combinam com discursos simples
da oralidade, cheios de expressões triviais, de frases idiomáticas ou proverbiais, de
ditados e aforismos, de humor e de ironia.
Síntese
Memorial do Convento
• Memorial do Convento evoca a História portuguesa do reinado de D. João V, no século XVIII,
procurando uma ponte com as situações políticas de meados do século XX.
• Durante o reinado de D. João V, o rigor e as perseguições do Santo Ofício aumentam com
vítimas que tanto podem ser cristãos-novos como todos os considerados culpados de heresias,
por se associarem a práticas mágicas ou de superstição.
• Memorial do Convento caracteriza uma época de excessos e diferenças sociais, que se
mantêm na actualidade: opulência/miséria; poder/opressão; devassidão/penitência;
sagrado/profano; amor ausente/amor sincero...
• Memorial do Convento é uma narrativa histórica que entrelaça personagens e acontecimentos
verídicos com seres conseguidos pela ficção.
• Romance histórico, Memorial do Convento oferece-nos uma minuciosa descrição da
sociedade portuguesa do início do século XVIII; romance social, dentro da linha neo-realista,
preocupa-se com a realidade social, em que sobressai o operariado oprimido; romance de
intervenção, visa denunciar a história repressiva portuguesa da primeira metade do século XX;
romance de espaço, representa uma época, interessando-se por traduzir não apenas o
ambiente histórico, mas também vários quadros sociais que permitem um melhor conhecimento
do ser humano.
• Em Memorial do Convento, há duas linhas condutoras da acção: a construção do convento de
Mafra e as relações entre Baltasar e Blimunda.
• A acção principal é a construção do convento de Mafra, que entrelaça o desejo megalómano
do rei com o sofrimento do povo.
• Paralelamente à acção principal, encontra-se uma acção que envolve Baltasar Sete-Sóis e
Blimunda Sete-Luas, numa história de espiritualidade, de ternura, de misticismo e de magia.
• As duas acções, que se encaixam, sugerem uma profunda humanidade trágica.
• Os espaços físicos e sociais privilegiados são Lisboa e Mafra.
• A reconstituição da História passa pela ficção, revelando um aparente desprezo do tempo.
• Em Memorial do Convento o romance histórico convive e entretece-se com o universo mágico
criado pela ficção.
• As personagens servem a própria intenção do autor na necessidade de repensar os
acontecimentos e as figuras históricas à luz de uma nova realidade criada no presente e
pressentida no futuro.
• As personagens femininas adquirem, na obra, um claro relevo: D. Maria Ana é uma rainha
triste e insatisfeita, que vive um casamento de aparência e com escrúpulos morais nas relações
sexuais e nos sonhos; Blimunda é a mulher com capacidades de vidente e possuidora de uma
sabedoria muito própria, cheia de sensualidade e amor verdadeiro.
• Saramago rejeita a omnipotência do narrador, na medida em que considera que é o autor que
põe em causa o presente que conhece e o passado que lhe chega através das suas
investigações. Para Saramago a omnipotência do narrador é pura ficção.
• Uma voz narrativa controla a acção narrada, as motivações e os pensamentos das
personagens, mas faz também as suas reflexões e juízos valorativos.
• A História, em Memorial do Convento, torna-se matéria simbólica para reflectir sobre o
presente, na perspectiva da denúncia e dela extrair uma moralidade que sirva de lição para o
futuro.
• Observando Memorial do Convento, julgamos que a escrita saramaguiana persegue uma
preocupação com o ser humano, a sua miséria e a sua luta, as injustiças e os seus anseios, a
sua grandeza e os seus limites.
• Em Memorial do Convento há, diversas vezes, um discurso de sobreposições narrativas com
uma voz (ou um plural de vozes) que tanto descreve como desconstrói as situações, que
dialoga com o narratário ou manuseia as personagens como títeres, que domina os
conhecimentos da História ou se sente limitado, que faz ponderações ou ironiza.
Glossário
D. João V – historicamente, rei de Portugal desde 1 de Janeiro de 1707, D. João V (1689-1754), filho de
D. Pedro II e de Maria Sofia de Neuburgo, adquire o cognome de Magnânimo devido à promoção de
obras grandiosas como o convento de Mafra. Casa em 1708 com D. Maria Ana da Áustria, de quem tem
seis filhos, entre os quais D. José (sucessor no reino), D. Maria Bárbara (futura rainha de Espanha), e D.
Pedro (consorte de D. Maria I). Das relações fora do casamento (incluindo com a madre Paula do
convento de Odivelas) tem outros filhos.
Iluminado – adepto do Iluminismo; indivíduo que pretende ser inspirado por Deus. Como adjectivo
significa: alumiado; que possui iluminuras; colorido; que recebe luz.
Iluminismo – movimento cultural e intelectual, relevante na Europa durante os séculos XVII e XVIII, que
pretendeu “dominar pela razão a problemática total do Homem” (Brugger). Descartes, Voltaire, Jean-
Jacques Rousseau, Montesquieu, Diderot, d’Alembert e Mirabeau são as grandes referências deste
movimento em França. Outras figuras importantes são Locke e Newton ou mesmo os imperadores
Frederico II da Prússia e Catarina II da Rússia. Em Portugal, este movimento tem a sua primeira fase com
D. João V e os diplomatas que o cercam, como D. Luís da Cunha, Alexandre de Gusmão e Francisco
Xavier de Oliveira (o Cavaleiro de Oliveira), Luís António Verney. D. José adere ao movimento que
ficou conhecido com o nome de ‘despotismo iluminado” e lançou o Marquês de Pombal no surto de uma
renovação de vulto. Dos seus colaboradores, distingue-se António Nunes Ribeiro Sanches, que escreveu
as Cartas sobre a Educação da Mocidade.
Madre Paula de Odivelas – (Paula Teresa da Silva e Almeida) a mais célebre amante do rei D. João V,
nasce em Lisboa em 30 de Janeiro de 1718. Neta de João Paulo de Bryt, antigo soldado da guarda
estrangeira de Carlos V e, mais tarde, ourives em Lisboa, Paula Teresa entra, aos 17 anos, para o
convento de Odivelas. Depois de um ano de noviciado, aí professa. Bela e jovem, rapidamente conquista
o coração de D. João V, frequentador do convento de Odivelas. D. Francisco de Portugal e Castro, conde
de Vimioso, que mantinha relações com Soror Paula, teve de a deixar a favor do soberano. Esta fica a ser
sua amante, tornando-se madre do convento e passando a receber todas as atenções do rei e uma
generosidade extensiva à sua família. Em Memorial do Convento, de José Saramago, o rei caracteriza
Madre Paula como “flor de claustro perfumada de incenso, carne gloriosa”.
Palácio dos Estaus – situava-se onde se ergue, desde o século XIX, o teatro D. Maria II, no topo norte
do Rossio. Mandado construir em 1449, pelo regente D. Pedro, o paço dos Estaus (que significava
pensão de forasteiros) foi sede da Inquisição em Lisboa (denominada “Casa de Despacho da Santa
Inquisição”), sede da Regência e do Governo Provisório, Escola Normal, Câmara dos Pares e
Intendência--Geral da Polícia.
Quando José Saramago, em Memorial do Convento, conta o voo de Bartolomeu Lourenço de Gusmão
e dos seus ajudantes Baltasar e Blimunda, diz que os familiares do Santo Ofício “vão na direcção do
Rossio, do palácio dos Estaus, a informar que fugiu o padre a quem iam buscar para o cárcere”.
Passarola voadora – foi um “instrumento de andar pelo ar”, como consta da petição de privilégio do
padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão ao rei O. João V, e de que teve alvará, em 19 de Abril de 1709.
Nesse mesmo ano, em 8 de Agosto, na sala dos embaixadores da Casa da Índia, apresentou a sua
primeira experiência elevando a uns quatro metros um pequeno balão de papel, cheio de ar quente,
perante a admiração da Corte, do Núncio Apostólico, Cardeal Conti (futuro papa Inocêncio XIII) e do
Corpo Diplomático (como referem documentos da época).
Depois de Leonardo da Vinci, no século XVI, ter desenhado a primeira máquina voadora, o padre
Bartolomeu torna-se num pioneiro da historia da aviação ao conseguir inventar um aeróstato, o primeiro
engenho capaz de se elevar no ar. Mais tarde, em 1783, os irmãos Montgolfier (Joseph e Étienne) irão
lançar em Annonay, em França, um balão de ar quente capaz de transportar pessoas.
O padre Bartolomeu Lourenço (Santos, Brasil, 1685 – Toledo, Espanha, 1724) era um visionário, que
acreditava na ciência e nas capacidades dos homens. Mas o inventor português parece ter sido forçado a
fugir à Inquisição, embora a tenha evitado, durante muito tempo, pela amizade do rei.
Pêro Pinheiro – é uma das vinte freguesias do concelho de Sintra (no distrito de Lisboa), com 16,06 km2
de área. Foi elevada a vila em 24 de Agosto de 1989. Sensivelmente entre Sintra e Mafra, pela EN 9, é o
principal centro de transformação de rochas ornamentais de Portugal e considerado um dos maiores da
Europa. O convento de Mafra foi construído em pedra liós (uma rocha calcária, esbranquiçada, compacta,
dura, contendo, frequentemente, fósseis) da região de Pêro Pinheiro.
Romance de espaço – representa uma época, interessando-se por traduzir não apenas o ambiente
histórico, mas também por apresentar vários quadros sociais que permitem um melhor conhecimento do
ser humano. Dá primazia á descrição dos ambientes físicos e sociais, procurando “pintar” os espaços,
onde se enquadra a acção. Esta classificação resulta da análise dos elementos estruturais da narrativa:
personagem, espaço e acontecimento.
Romance de intervenção – visa um empenhamento social e político de intervenção cívica, de denúncia,
de luta pela justiça, pela dignidade humana e pela liberdade. Em geral, surge associado e, por vezes,
confundido com o romance social.
Romance histórico – é, por definição, o que mistura história e ficção, reconstruindo ficticiamente
acontecimentos, costumes e personagens históricos, O romance histórico surge no início do século XIX,
durante o romantismo. São vários os romances históricos que se celebrizaram como, por exemplo,
Ivanhoe (de Walter Scott), Eurico, o Presbítero (de Alexandre Herculano) ou Guerra e Paz (de
Tolstoi).
Romance social – é o que dá relevo à narração dos costumes, das motivações comportamentais e dos
padrões de conduta. Tem em atenção e expõe os modos de vida, os preconceitos e os valores de uma
sociedade.
Serra de Montejunto – situada no extremo sul do concelho do Cadaval e a norte do concelho de
Alenquer, a serra de Montejunto tem cerca de 15 km de extensão e 7 km de largura, com o ponto mais
elevado a 666 m. Faz parte da região do Oeste, na continuação do maciço montanhoso e calcário da
Estremadura.

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Humanismo
HumanismoHumanismo
HumanismoLikaa
 
2. título à efabulação
2. título à efabulação2. título à efabulação
2. título à efabulaçãoHelena Coutinho
 
Eduardo Lourenço: Portugal como destino pocket book design
Eduardo Lourenço: Portugal como destino pocket book designEduardo Lourenço: Portugal como destino pocket book design
Eduardo Lourenço: Portugal como destino pocket book designkylebowie
 
Real vs. Ficcional (MEMORIAL DO CONVENTO)
Real vs. Ficcional (MEMORIAL DO CONVENTO)Real vs. Ficcional (MEMORIAL DO CONVENTO)
Real vs. Ficcional (MEMORIAL DO CONVENTO)Teresa Ferreira
 
Prosa medieval
Prosa medievalProsa medieval
Prosa medievalheleira02
 
Memorial do Convento-Dimensão simbólica
Memorial do Convento-Dimensão simbólicaMemorial do Convento-Dimensão simbólica
Memorial do Convento-Dimensão simbólicananasimao
 
2. elementos paratextuais [título e contracapa]
2. elementos paratextuais [título e contracapa]2. elementos paratextuais [título e contracapa]
2. elementos paratextuais [título e contracapa]Helena Coutinho
 
Memorial do Convento narrador, espaço e tempo
Memorial do Convento narrador, espaço e tempoMemorial do Convento narrador, espaço e tempo
Memorial do Convento narrador, espaço e tempoAntónio Teixeira
 
Contextualização Lusíadas
Contextualização LusíadasContextualização Lusíadas
Contextualização LusíadasAntónia Mancha
 
Renascimento, Humanismo e Classicismo
Renascimento, Humanismo e ClassicismoRenascimento, Humanismo e Classicismo
Renascimento, Humanismo e ClassicismoTeresa Pombo
 
Renascimento, Classicismo e Humanismo
Renascimento, Classicismo e HumanismoRenascimento, Classicismo e Humanismo
Renascimento, Classicismo e Humanismocomplementoindirecto
 

Mais procurados (20)

Humanismo
HumanismoHumanismo
Humanismo
 
2. título à efabulação
2. título à efabulação2. título à efabulação
2. título à efabulação
 
Memorial do Convento 3ª E - 2011
Memorial do Convento   3ª E - 2011Memorial do Convento   3ª E - 2011
Memorial do Convento 3ª E - 2011
 
Eduardo Lourenço: Portugal como destino pocket book design
Eduardo Lourenço: Portugal como destino pocket book designEduardo Lourenço: Portugal como destino pocket book design
Eduardo Lourenço: Portugal como destino pocket book design
 
1. génese do romance
1. génese do romance1. génese do romance
1. génese do romance
 
Real vs. Ficcional (MEMORIAL DO CONVENTO)
Real vs. Ficcional (MEMORIAL DO CONVENTO)Real vs. Ficcional (MEMORIAL DO CONVENTO)
Real vs. Ficcional (MEMORIAL DO CONVENTO)
 
Prosa medieval
Prosa medievalProsa medieval
Prosa medieval
 
3. intencionalidade
3. intencionalidade3. intencionalidade
3. intencionalidade
 
Memorial do Convento-Dimensão simbólica
Memorial do Convento-Dimensão simbólicaMemorial do Convento-Dimensão simbólica
Memorial do Convento-Dimensão simbólica
 
2. elementos paratextuais [título e contracapa]
2. elementos paratextuais [título e contracapa]2. elementos paratextuais [título e contracapa]
2. elementos paratextuais [título e contracapa]
 
Memorial do Convento narrador, espaço e tempo
Memorial do Convento narrador, espaço e tempoMemorial do Convento narrador, espaço e tempo
Memorial do Convento narrador, espaço e tempo
 
Camões - contextualização
Camões - contextualizaçãoCamões - contextualização
Camões - contextualização
 
Contexto de Os Lusíadas
Contexto de Os LusíadasContexto de Os Lusíadas
Contexto de Os Lusíadas
 
Os Lusiadas Versus Mensagem
Os Lusiadas Versus MensagemOs Lusiadas Versus Mensagem
Os Lusiadas Versus Mensagem
 
Contextualização Lusíadas
Contextualização LusíadasContextualização Lusíadas
Contextualização Lusíadas
 
Mensagem - Fernando Pessoa
Mensagem - Fernando Pessoa Mensagem - Fernando Pessoa
Mensagem - Fernando Pessoa
 
Renascimento, Humanismo e Classicismo
Renascimento, Humanismo e ClassicismoRenascimento, Humanismo e Classicismo
Renascimento, Humanismo e Classicismo
 
Renascimento, Classicismo e Humanismo
Renascimento, Classicismo e HumanismoRenascimento, Classicismo e Humanismo
Renascimento, Classicismo e Humanismo
 
Mensagem & Os Lusíadas
Mensagem & Os LusíadasMensagem & Os Lusíadas
Mensagem & Os Lusíadas
 
O barroco
O barrocoO barroco
O barroco
 

Destaque

Memorial convento- José Saramago
Memorial convento- José SaramagoMemorial convento- José Saramago
Memorial convento- José Saramagobecresforte
 
Análise da estrutura e conteúdo dos poemas
Análise da estrutura e conteúdo dos poemasAnálise da estrutura e conteúdo dos poemas
Análise da estrutura e conteúdo dos poemasPéricles Penuel
 
6. sequências narrativas
6. sequências narrativas6. sequências narrativas
6. sequências narrativasHelena Coutinho
 
MATRÍCULA PRÉ - ESCOLAR 2016/17
MATRÍCULA PRÉ - ESCOLAR 2016/17MATRÍCULA PRÉ - ESCOLAR 2016/17
MATRÍCULA PRÉ - ESCOLAR 2016/17Pedro França
 
CURSOS PROFISSIONAIS – EXAMES ÉPOCA MAIO
CURSOS PROFISSIONAIS – EXAMES ÉPOCA MAIOCURSOS PROFISSIONAIS – EXAMES ÉPOCA MAIO
CURSOS PROFISSIONAIS – EXAMES ÉPOCA MAIOPedro França
 
NORMA 01/JNE/2016 – Instruções para a Inscrição nas Provas e Exames do 3.º ci...
NORMA 01/JNE/2016 – Instruções para a Inscrição nas Provas e Exames do 3.º ci...NORMA 01/JNE/2016 – Instruções para a Inscrição nas Provas e Exames do 3.º ci...
NORMA 01/JNE/2016 – Instruções para a Inscrição nas Provas e Exames do 3.º ci...Pedro França
 

Destaque (9)

Memorial convento- José Saramago
Memorial convento- José SaramagoMemorial convento- José Saramago
Memorial convento- José Saramago
 
Capítulo i
Capítulo iCapítulo i
Capítulo i
 
Baltasar e Blimunda
Baltasar e Blimunda Baltasar e Blimunda
Baltasar e Blimunda
 
Análise da estrutura e conteúdo dos poemas
Análise da estrutura e conteúdo dos poemasAnálise da estrutura e conteúdo dos poemas
Análise da estrutura e conteúdo dos poemas
 
6. sequências narrativas
6. sequências narrativas6. sequências narrativas
6. sequências narrativas
 
MATRÍCULA PRÉ - ESCOLAR 2016/17
MATRÍCULA PRÉ - ESCOLAR 2016/17MATRÍCULA PRÉ - ESCOLAR 2016/17
MATRÍCULA PRÉ - ESCOLAR 2016/17
 
Soluções Livro
Soluções LivroSoluções Livro
Soluções Livro
 
CURSOS PROFISSIONAIS – EXAMES ÉPOCA MAIO
CURSOS PROFISSIONAIS – EXAMES ÉPOCA MAIOCURSOS PROFISSIONAIS – EXAMES ÉPOCA MAIO
CURSOS PROFISSIONAIS – EXAMES ÉPOCA MAIO
 
NORMA 01/JNE/2016 – Instruções para a Inscrição nas Provas e Exames do 3.º ci...
NORMA 01/JNE/2016 – Instruções para a Inscrição nas Provas e Exames do 3.º ci...NORMA 01/JNE/2016 – Instruções para a Inscrição nas Provas e Exames do 3.º ci...
NORMA 01/JNE/2016 – Instruções para a Inscrição nas Provas e Exames do 3.º ci...
 

Semelhante a Fi.js mc

memorial_do_convento (1).pptx
memorial_do_convento (1).pptxmemorial_do_convento (1).pptx
memorial_do_convento (1).pptxIriaFernandes2
 
Memorialdo Convento
Memorialdo ConventoMemorialdo Convento
Memorialdo Conventojoanamatux
 
apontamentos memorial.docx
apontamentos memorial.docxapontamentos memorial.docx
apontamentos memorial.docxMartaDenis2
 
Aula de Literatura: Do Trovadorismo ao Barroco
Aula de Literatura: Do Trovadorismo ao  Barroco Aula de Literatura: Do Trovadorismo ao  Barroco
Aula de Literatura: Do Trovadorismo ao Barroco Nivaldo Marques
 
Memorial do Convento: o tempo histórico
Memorial do Convento: o tempo históricoMemorial do Convento: o tempo histórico
Memorial do Convento: o tempo históricomariacel
 
Memorial categoriasdaobra
Memorial categoriasdaobraMemorial categoriasdaobra
Memorial categoriasdaobraritasantos123
 
Romanceiro da Inconfidência - análise.pdf
Romanceiro da Inconfidência - análise.pdfRomanceiro da Inconfidência - análise.pdf
Romanceiro da Inconfidência - análise.pdfrafabebum
 
Literatura Gótica - Parte I
Literatura Gótica - Parte ILiteratura Gótica - Parte I
Literatura Gótica - Parte IWinnie Teófilo
 
Memorial do convento dimensão crítica da história (1)
Memorial do convento dimensão crítica da história (1)Memorial do convento dimensão crítica da história (1)
Memorial do convento dimensão crítica da história (1)José Galvão
 
Alexandre herculano biobibliografia comemorativa do bicentenário
Alexandre herculano biobibliografia comemorativa do bicentenárioAlexandre herculano biobibliografia comemorativa do bicentenário
Alexandre herculano biobibliografia comemorativa do bicentenárioDomingos Boieiro
 
Alexandre herculano biobibliografia comemorativa do bicentenário
Alexandre herculano biobibliografia comemorativa do bicentenárioAlexandre herculano biobibliografia comemorativa do bicentenário
Alexandre herculano biobibliografia comemorativa do bicentenárioDomingos Boieiro
 
Sociedade De Ordens
Sociedade De OrdensSociedade De Ordens
Sociedade De Ordensrestauracao
 
Glossário para compreender Memorial do Convento
Glossário para compreender Memorial do ConventoGlossário para compreender Memorial do Convento
Glossário para compreender Memorial do Conventoancrispereira
 
Saraus no séc. XVIII
Saraus no séc. XVIIISaraus no séc. XVIII
Saraus no séc. XVIIIandreaires
 
Dinastia de bragança 2
Dinastia de bragança 2Dinastia de bragança 2
Dinastia de bragança 2Carmo Silva
 
Dinastia de bragança
Dinastia de bragançaDinastia de bragança
Dinastia de bragançaCarmo Silva
 

Semelhante a Fi.js mc (20)

memorial_do_convento (1).pptx
memorial_do_convento (1).pptxmemorial_do_convento (1).pptx
memorial_do_convento (1).pptx
 
Memorial Do Convento
Memorial Do ConventoMemorial Do Convento
Memorial Do Convento
 
Memorialdo Convento
Memorialdo ConventoMemorialdo Convento
Memorialdo Convento
 
Quix0
Quix0Quix0
Quix0
 
apontamentos memorial.docx
apontamentos memorial.docxapontamentos memorial.docx
apontamentos memorial.docx
 
Aula de Literatura: Do Trovadorismo ao Barroco
Aula de Literatura: Do Trovadorismo ao  Barroco Aula de Literatura: Do Trovadorismo ao  Barroco
Aula de Literatura: Do Trovadorismo ao Barroco
 
Memorial do Convento: o tempo histórico
Memorial do Convento: o tempo históricoMemorial do Convento: o tempo histórico
Memorial do Convento: o tempo histórico
 
Memorial categoriasdaobra
Memorial categoriasdaobraMemorial categoriasdaobra
Memorial categoriasdaobra
 
Romanceiro da Inconfidência - análise.pdf
Romanceiro da Inconfidência - análise.pdfRomanceiro da Inconfidência - análise.pdf
Romanceiro da Inconfidência - análise.pdf
 
Literatura Gótica - Parte I
Literatura Gótica - Parte ILiteratura Gótica - Parte I
Literatura Gótica - Parte I
 
Memorial do convento dimensão crítica da história (1)
Memorial do convento dimensão crítica da história (1)Memorial do convento dimensão crítica da história (1)
Memorial do convento dimensão crítica da história (1)
 
Alexandre herculano biobibliografia comemorativa do bicentenário
Alexandre herculano biobibliografia comemorativa do bicentenárioAlexandre herculano biobibliografia comemorativa do bicentenário
Alexandre herculano biobibliografia comemorativa do bicentenário
 
Alexandre herculano biobibliografia comemorativa do bicentenário
Alexandre herculano biobibliografia comemorativa do bicentenárioAlexandre herculano biobibliografia comemorativa do bicentenário
Alexandre herculano biobibliografia comemorativa do bicentenário
 
Sociedade De Ordens
Sociedade De OrdensSociedade De Ordens
Sociedade De Ordens
 
Glossário para compreender Memorial do Convento
Glossário para compreender Memorial do ConventoGlossário para compreender Memorial do Convento
Glossário para compreender Memorial do Convento
 
Saraus no séc. XVIII
Saraus no séc. XVIIISaraus no séc. XVIII
Saraus no séc. XVIII
 
Os Maias - aspetos básicos
Os Maias - aspetos básicosOs Maias - aspetos básicos
Os Maias - aspetos básicos
 
Prosa medieval
Prosa medievalProsa medieval
Prosa medieval
 
Dinastia de bragança 2
Dinastia de bragança 2Dinastia de bragança 2
Dinastia de bragança 2
 
Dinastia de bragança
Dinastia de bragançaDinastia de bragança
Dinastia de bragança
 

Fi.js mc

  • 1. Memorial do Convento, de José Saramago Saramago, em Memorial do Convento, recorre a um momento da História e, em forma de narração alegórica, propõe uma reflexão sobre esses acontecimentos, sobre o comportamento e o destino humano e sobre um mundo onde há a magia do inexplicável. Romance histórico, mas também social e de espaço, este romance articula o plano da História (espaço físico e sociocultural) com o plano da ficção e o plano do fantástico. O título Memorial do Convento sugere memórias de um passado delimitado pela construção do convento de Mafra, com o que de grandioso e de trágico representou como símbolo do país. A verdade histórica do reinado de D. João V (no século XVIII), com a construção do convento de Mafra, a Inquisição e os autos-de-fé, ou os espaços sociais cortesãos, eclesiásticos e populares, serve de base contextual para a narração ficcional da reinvenção histórica e para a construção da acção com uma vertente do fantástico que envolve a relação de Blimunda e Baltasar, a realização dos sonhos da passarola ou as crenças num universo de magia. O fio condutor da intriga passa por Blimunda, que imprime à acção uma dinâmica muito própria e lhe confere espiritualidade, ternura e magia. A acção acaba por se centrar na relação entre Baltasar e Blimunda, que transgride todos os códigos em qualquer tempo, nomeadamente da época. As vozes do narrador e das personagens proporcionam, constantemente, uma análise crítica aos tempos representados e da enunciação, mas, sobretudo, um comentário e uma crítica ao presente, por onde passa também a História, permitindo confrontar o ser e o tempo. José Saramago (16-11-1922, Azinhaga, Golegã), romancista, cronista, dramaturgo, poeta, tradutor, director literário de jornais, foi galardoado, em 1998, com o prémio Nobel da Literatura. Na sua obra, é possível encontrar a palavra herdada e a palavra ansiada; deparar com o homem moderno, as suas tensões, as suas angústias e as suas dúvidas; viajar ao interior do homem na procura da experiência mágica de nos conhecermos; perscrutar o que o mundo nos pode dizer, através da sua magia, dos seus elementos sobrenaturais; descobrir as possibilidades da escrita, graças à inovação, a subversão, ao entrelaçamento de discursos. A personalidade de Saramago é, como a sua própria obra, multifacetada e sempre em busca do sentido para esta efemeridade, que constitui a vida e o mundo. Um dos mais belos exemplos da arquitectura saramaguiana é Memorial do Convento. A construção do convento de Mafra, o espectro da Inquisição, o projecto da passarola voadora do Padre Bartolomeu de Gusmão e um conjunto de outros factos que sucederam durante o reinado de D. João V dão corpo a esta obra. Com as memórias de uma época, reinventando a Historia pela ficção, constrói um romance histórico, mas simultaneamente social, ao fazer a análise das condições sociais, morais e económicas da corte e do povo. E mesmo que as regras discursivas sejam aparentemente ignoradas e haja linguagens que abandonam a tradicional hierarquia de correlação, o discurso flui dentro de uma concepção lógica. As intencionais infracções da norma prestam-se a leituras que alternam o discurso escrito com o discurso oral e, sobretudo, com um discurso monologado que resulta da mistura de vozes que se produzem no pensamento das personagens.
  • 2. Contextualização Memorial do Convento evoca a História portuguesa do reinado de D. João V, no século XVIII, procurando uma ponte com as situações políticas de meados do século XX. Reescreve essa época de luxo e de grandeza da corte de Portugal, que procura imitar o esplendor da corte francesa do Rei-Sol, Luís XIV (rei de 1643-1715). O poder absoluto e o iluminismo que configuram este Século das Luzes vão marcar os seus gostos estéticos e as mentalidades de uma forma decisiva. Em Portugal, D. João V deixa-se influenciar pelos diplomatas que o cercam – intelectuais estrangeirados (D. Luís da Cunha, Alexandre de Gusmão e Francisco Xavier de Oliveira – O Cavaleiro de Oliveira –, Luís António Verney) – e pela riqueza vinda do Brasil. O aparecimento no Brasil de grandes jazidas de ouro de aluvião permite a resolução de alguns problemas financeiros e leva o rei a investir no luxo dos palácios e das igrejas. Ao querer ultrapassar a magnificência do Escorial de Madrid e do palácio de Versalhes, e em acção de graças pelo nascimento do seu filho, manda construir o convento de Mafra, com a inclusão de um grandioso palácio e uma extraordinária basílica. Por isso, o principal ministro e homem de confiança, o cardeal da Mota (D. João da Mota e Silva), solicita ao Papa o título de Fidelíssimo para o Rei português que adquire o cognome de o Magnânimo, devido às grandes obras no campo da arte, da literatura e da ciência, como o referido convento de Mafra, o Aqueduto das Águas Livres de Lisboa, a Real Academia Portuguesa de História, a introdução da ópera italiana, com Domenico Scarlatti1 (1685-1757) e a companhia de Paheti. D. João V é aclamado rei a 1 de Janeiro de 1707, quando a situação económica do país se apresenta extremamente grave e Portugal se encontra envolvido na Guerra da Sucessão de Espanha. Casa a 9 de Julho de 1708 com D. Maria Ana da Áustria, irmã do imperador austríaco Carlos III. Lisboa, ao receber D. Maria Ana da Áustria para consorte do monarca, apresenta Arcos de Triunfo com alegorias do Sol (símbolo do Rei) do qual se aproxima uma Águia (símbolo da esposa austríaca), ave que o fita, sem sofrer com os seus raios. A vida sentimental de D. João V está, entretanto, marcada pelas relações com a madre Paula (Paula Teresa da Silva) do Convento de Odivelas, com quem se envolve durante vinte anos e de quem tem um filho, o infante D. José, que chega a inquisidor-mor; com D. Madalena de Miranda, uma freira do mesmo convento de Odivelas, que lhe dá como filho o infante D. Gaspar, mais tarde arcebispo de Braga; e com uma francesa de quem nasce o infante D. António. Enquanto o rei se interessa pela ostentação e esplendor da corte ou pelas suas fugas sentimentais, a Inquisição ocupa-se com a ordem religiosa e a moral, estendendo a sua acção aos campos culturais, sociais e políticos. O rigor e as perseguições do Santo Ofício aumentam no seu reinado, com as vítimas a serem não só os cristãos-novos e os que cometem delitos de superstição, feitiçaria, magia, crença sebastianista, heterodoxia, mas também os intelectuais que, muitas vezes, se vêem forçados a fugir para a Europa culta, de onde trazem ideias novas. O dramaturgo António José da Silva, o Judeu (1705-1739), que Saramago refere no fim de Memorial do Convento, é uma das vítimas da Inquisição. 1 Domenico Scarlatti (1685 1757), filho do compositor Alessandro Scarlatti (mestre de capela da corte da rainha Cristina da Suécia), foi em Lisboa, desde 1720, professor da Infanta D. Maria Bárbara, filha de D. João V. Após o casamento desta com o príncipe Fernando VI de Espanha, Scarlatti acompanhou-a na corte de Madrid, onde faleceu. Famoso pelas modernas técnicas do piano e do cravo, Scarlatti teve, entre os seus alunos, Carlos Seixas (1704-1742), um dos mais importantes compositores portugueses.
  • 3. Também conhecida por Tribunal do Santo Oficio, a Inquisição, criada pelo Papa Gregório IX, no século XIII, para combater as heresias religiosas que aparecem pela Europa, é confiada aos jesuítas e aos dominicanos, na dependência da Santa Sé. Este tribunal instala-se, no século XIII, em Espanha, na Alemanha, em França e, no século XVI, no reinado de D. João III, em Portugal. Com frequência, serve o poder instituído, embora a sua acção esteja orientada para o combate às várias heresias e desvios religiosos, incluindo a censura aos livros, às práticas de adivinhação e feitiçaria, à bigamia. Com o decorrer do tempo passa a ter influência em todos os sectores da vida social, política e cultural, e, desde que haja uma denúncia, o acusado está sujeito a toda a sorte de torturas físicas e mentais, incluindo a perda de bens e a morte. A força do Tribunal do Santo Ofício é enorme, mas acaba por criar conflitos entre os reis e os jesuítas, até que em 1821 é extinto. Memorial do Convento é uma narrativa histórica que percorre este período de aproximadamente trinta anos da História portuguesa, no reinado de D. João V, entrelaçando personagens e acontecimentos verídicos com seres conseguidos pela ficção. Saramago fundamenta-se na realidade histórica da Inquisição, da família real, do padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão2 (inventor da passarola voadora) e de muitas das figuras da intelectualidade e da política portuguesas, embora ficcionasse a sua acção. Classificação (tipo de romance) Romance histórico, Memorial do Convento oferece-nos uma minuciosa descrição da sociedade portuguesa do início do século XVIII, marcada pela sumptuosidade da corte, associada à Inquisição, e pela exploração dos operários, metaforicamente apreciados como se de tijolos se tratasse para a obra do convento de Mafra. A referência à guerra da sucessão, em que Baltasar se vê amputado da mão esquerda, a imponência bárbara dos autos-de-fé, a que não falta a “alegria devota”, a construção do convento, os esponsais da infanta Maria Bárbara, a construção da passarola voadora pelo Padre Bartolomeu de Gusmão e tantos outros acontecimentos confirmam a correspondência aproximada ao que nessa época ocorre e conferem à obra a designação de romance histórico. Dentro da linha neo-realista, preocupado com a realidade social, em que sobressai o operariado oprimido, Memorial do Convento apresenta-se também como um romance social, ao ser crónica de costumes de uma época, reinterpretada para servir os objectivos do autor empírico. E, nesta medida, pode afirmar-se como romance de intervenção, ao apresentar a história repressiva portuguesa da primeira metade do século XX. Note-se que o passado se presentifica e sugere um presente actuante, quer pela intemporalidade de comportamentos, desejos ou anseios, quer pela denúncia de situações de opressão, repressão e censura no momento da escrita. Em Memorial do Convento há uma tentativa de encontrar um sentido para a história de uma época que permita compreender o tempo presente e recolher ensinamentos para o futuro. Se optarmos por uma classificação de acordo com os elementos estruturais da narrativa — personagem, espaço e acontecimento — designaremos a obra como romance de espaço ao representar uma época, interessando-se por traduzir não apenas o ambiente histórico, mas também por apresentar vários quadros sociais que permitem um melhor conhecimento do ser humano. A riqueza do cenário, reconstruindo Lisboa e diversas povoações em seu redor, permite observar as 2 Bartolomeu de Gusmão estudou com os Jesuítas da Baía. Devido ao interesse pelas questões científicas, veio em 1701 para Portugal. Fez o curso de Cânones da Universidade de Coimbra, mas a sua atenção, com o apoio de D. João V, prendeu-se com experiências aerostáticas, a que não ficou alheia a mistificada passarola voadora. Segundo parece, foi forçado a tugir a Inquisição por possível adesão ao judaísmo ou por se ter envolvido num caso de bruxaria. Morreu em Toledo (Espanha), em 1724.
  • 4. preocupações com os factos históricos e as vivências do povo humilde; espreitar a intimidade e os deveres conjugais — “duas vezes por semana” — do rei D. João V, que necessita de herdeiros; assistir à construção de um convento em Mafra; recordar a passarola voadora do padre Bartolomeu Lourenço; ou reviver as perseguições religiosas e políticas da Inquisição. Sempre que pode, uma voz narrativa insurge-se sarcasticamente contra os repressores: Devagar, a terra aproxima-se, Lisboa distingue-se melhor, o rectângulo torto do Terreiro do Paço, o labirinto das ruas e travessas, o friso das varandas onde o padre morava, e onde agora estão entrando os familiares do Santo Oficio para o prenderem, tarde piaram, gente tão escrupulosa dos interesses do céu e não se lembram de olhar para cima, é certo que, a tal altura, a máquina é um pontinho no azul. Categorias do texto narrativo Acção O rei D. João V, Baltasar e Blimunda e Bartolomeu Lourenço protagonizam as diversas acções que se entretecem em Memorial do Convento. A acção principal é a construção do convento de Mafra. Esta acção resulta da reinvenção da História pela ficção. Situando-se no início do século XVIII, encontra-se um entrelaçamento de dados históricos, como o da promessa de D. João V de construir um convento em Mafra, e o do sofrimento do povo que nele trabalhou. Conhece-se a situação económica e social do país, os autos-de-fé praticados pela Inquisição, o sonho e a construção da passarola voadora pelo padre Bartolomeu de Gusmão, as críticas ao comportamento do clero, os casamentos da infanta Maria Bárbara e do príncipe D. José. Paralelamente à acção principal, encontra-se uma acção que envolve Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas. São estas personagens que estabelecem, muitas vezes, o fio condutor da intriga e que lhe conferem fragmentos de espiritualidade, de ternura, de misticismo e de magia. A centralidade conferida às obras do convento e os espaços sociais de Lisboa ou de Mafra dão frequentemente lugar a uma intriga de profunda humanidade trágica. As duas acções voluntariamente surgem em fragmentos que se reconstituem por encaixes vários e recriam situações, costumes, tradições, ambientes e problemas. Espaço Os espaços físicos privilegiados pela acção são Lisboa e Mafra. Entre os vários lugares da capital ou dos arredores são referidos com frequência o Terreiro do Paço, o Rossio, S. Sebastião da Pedreira, Odivelas, Xabregas, Azeitão e outros sítios. Nas referências a Mafra, encontramos a Vela, onde se constrói o convento, Pêro Pinheiro, serra do Barregudo, no Monte Junto, Torres Vedras e outros locais. Outros espaços surgem na obra, embora possuam menor relevo ou sejam meras referências. Estão neste caso Jerez de los Caballeros, onde Baltasar perde a mão, Olivença, Montemor, Aldegalega, Morelena, Pegões, Vendas Novas, Montemor, Évora, Elvas, Caia, Coimbra, Holanda ou Áustria. Lisboa e Mafra são também espaços sociais. Da primeira, afirma o narrador que “esta cidade, mais que todas, é uma boca que mastiga de sobejo para um lado e de escasso para o outro” Sobre Mafra, encontramos constantes referências a que dava trabalho para muita gente, mas socialmente destruiu famílias e criou marginalização.
  • 5. O Alentejo surge igualmente como um espaço social importante, na medida em que permite conhecer-se a miséria que então o povo passava, “por ser a fome muita nesta província”. Tempo A reconstituição da História passa pela ficção ou, como afirma o próprio José Saramago, “a História é ficção”. Daí que se perceba o aparente desprezo do tempo cronológico. As referências temporais são escassas ou apresentam-se por dedução. O discurso flui, recuperando vários fragmentos temporais ou antecipando outros. As analepses são pouco significativas, apenas surgem a justificar projectos anteriores, O pendor oral ou de monólogo mental e as digressões favorecem diversas prolepses que conferem ao narrador o estatuto de omnisciência e transformam o discurso num todo compreensível, apesar de toda a fragmentação. 1711 D. Maria Ana Josefa “chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa” D. João V, “um homem que ainda não fez vinte e dois anos” “S. Francisco andava pelo mundo, precisamente há quinhentos anos, em mil duzentos e onze” A data de 1711, tempo cronológico do início da acção, não surge explícita na obra, mas facilmente se deduz pelos dados utilizados. Se a referência a “há quinhentos anos” em 1211, permite concluir que estamos em 1711, também ficamos a conhecer a mesma data se soubermos que o rei D. João V nasceu em 1689, há “vinte e dois anos”. 1624 Esta analepse serve para se conhecer o desejo dos franciscanos em possuírem um convento em Mafra3 . 1709 A condenação à fogueira pela Inquisição surge em 1711 ou 1712, quando a rainha vai no quinto mês da gravidez. Há, porém, a recuperação do tempo de 1709 ao afirmar que isto acontece “dois anos depois de se queimarem pessoas em Lisboa”. Várias indicações temporais surgem associadas às primeiras datas. As idades de Sete- Sóis (26 anos) ou Blimunda (19 anos); a batalha em frente a Jerez de los Caballeros, em “Outubro do ano passado”; o regresso da nau de Macau que partiu “há vinte meses” ainda Sete-Sóis andava na guerra; o nascimento e baptizado da infanta Maria Bárbara ou do infante D. Pedro, que morrerá com dois anos; e o nascimento do futuro rei D. José em 1714. 1717 A data da bênção da primeira pedra do convento de Mafra conhece-se pela expressão “se não foi dito já, sempre são seis anos de casos decorridos”. A indicação de 17 de Novembro de 1717 surge como dado cronológico. No ano seguinte, regressados a Lisboa, Baltasar e Blimunda começam os trabalhos na passarola voadora do padre Bartolomeu de Gusmão. O ano de 1728 pode deduzir-se pelas referências aos príncipes D. José, de 14 anos, e Maria Bárbara, de 17 anos, ou ainda ao arquitecto João Francisco Ludovice4 que vive em Portugal há 28 anos. A ordem para que se acabe o convento no espaço de dois anos confirma a data de 1728. 3 O convento de Matra inclui Palácio e Basílica. É o maior conjunto arquitectónico barroco de Portugal. A primeira pedra foi lançada em 1717 e, apesar da vasta área que cobre, a sua sagração conseguiu realizar-se treze anos depois, em 1730, quando D. João V fez 41 anos. A conclusão propriamente dita de todo o complexo só aconteceu em 1735. 4 João Frederico Ludovice: nasceu em Hohenhart, na Suabia, Alemanha. Com o pai iniciou-se na arte da ourivesaria, vindo a trabalhar em Roma e, mais tarde, em Portugal. Chegou a Lisboa em 1701, com 31 anos, dedicando-se a arquitectura. Contratado pelos jesuítas, trabalhou no sacrário de Santo Antão. D. João V, entretanto, contratou-o para a elaboração dos planos do Convento de Mafra, cuja acção é deveras meritória. Esses planos do convento, que reflectem a sua aprendizagem italo-germânica, servirão para marcar o início das obras joaninas definidas pela concepção de grandiosidade e gigantismo.
  • 6. 1729 Casamento de D. José com a infanta espanhola Mariana Vitória e da infanta Maria Bárbara com o príncipe D. Fernando, que será VI de Espanha. 1730 22 de Outubro de 1730 é indicado como o da sagração do convento de Mafra, dia do aniversário de D. João V, que completa 41 anos. 1739 A narrativa termina nove anos depois da sagração do convento de Mafra, quando Blimunda encontra Baltasar a ser queimado em auto-de-fé, em Lisboa. Entre os condenados estava também o dramaturgo António José da Silva, que foi queimado precisamente em 1739. Estrutura A estrutura de um romance assenta na coexistência de vários conflitos que se enredam e através do texto manifestam ou desocultam a realidade e os problemas do ser humano. Em Memorial do Convento, observa-se uma reinvenção da História, de actos e de comportamentos para despertar os leitores para situações reais perturbantes que devem ser analisadas. Pela ficção e com a sua palavra reveladora e denunciadora, José Saramago propõe o repensar da História portuguesa à luz das mentalidades actuais e possibilita a consciencialização sobre a verdade do homem. Assim, consegue a missão do escritor que, numa realização estética, fornece uma mensagem ética. A estrutura de Memorial do Convento apresenta duas linhas condutoras da acção – construção do convento de Mafra e relações entre Baltasar e Blimunda –, que se entrelaçam com acontecimentos diversos recolhidos na História ou fantasiados. Memorial do Convento está dividido em 25 partes, ou capítulos, não nomeadas nem numeradas, mas perfeitamente reconhecidas pelos espaços em branco que as separam. Cap./Parte Sequências narrativas I • Relação Rei/Rainha e a promessa da construção do convento em Mafra — Apresentação de um facto histórico: propósito da construção de um convento franciscano em Mafra; — Narração satírica das motivações desta intenção: promessa do rei D. João V de construir um convento, caso a esposa, D. Maria Ana Josefa, lhe desse um herdeiro; — Sonhos de D. Maria Ana e de D. João V com o futuro descendente... II • Os milagres conseguidos pelos franciscanos e o seu desejo na construção do convento — “O célebre caso da morte de Frei Miguel da Anunciação” que conservara o corpo intacto; a locomoção da imagem de Santo António, numa janela, que assustou os ladrões; a recuperação das lâmpadas do convento de S. Francisco de Xabregas, que tinham sido roubadas... — A gravidez da rainha; — O desejo dos franciscanos, desde 1624, de construção de um convento em Mafra. III • A situação socioeconómica: excesso de riqueza/extrema pobreza — Os excessos do Entrudo e a penitência da Quaresma; — A impostura de alguns penitentes que “têm os seus amores à janela e vão na procissão menos por causa da salvação da alma do que por passados ou prometidos gostos do corpo”;
  • 7. — A devoção das mulheres que, com a liberdade de percorrerem as igrejas sozinhas, aproveitavam, muitas vezes, para encontros com os amantes secretos; — A situação da rainha que, grávida, só podia sonhar com o cunhado D. Francisco; — A sátira a “mais uns tantos maridos cucos…”. IV • Baltasar Sete-Sóis regressa da guerra maneta — O passado “heróico” de Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, que perde a mão esquerda nas lutas de Olivença; — A viagem até Lisboa por Évora, Montemor, Pegões e Aldegalega, matando um ladrão que havia tentado assaltá-lo; — Em Lisboa, anda pela ribeira, pelo Terreiro do Paço, pelo Rossio, por bairros e praças, juntando-se a outros mendigos; — Com João Elvas vai passar a noite num “telheiro abandonado” onde “falaram de crimes acontecidos...” V • O auto-de-fé no Rossio e o conhecimento travado entre Baltasar, Blimunda e o padre Bartolomeu — A rainha D. Maria Ana, no quinto mês de gravidez, não pode assistir ao auto-de-fé; — Descrição de um auto-de-fé e os condenados pelo Santo Ofício; — A mãe de Blimunda, Sebastiana Maria de Jesus, acusada de ser feiticeira e cristã-nova, “condenada a ser açoitada em público e a oito anos de degredo no reino de Angola”; — O encontro com o padre Bartolomeu Lourenço e Baltasar Mateus, o Sete-Sóis; — O convite de Blimunda para Baltasar permanecer em sua casa até voltar a Mafra; — O ritual do casamento e a consumação do amor entre Baltasar e Blimunda. VI • O padre Bartolomeu Lourenço e a “máquina voadora” — O trigo holandês para saciar Lisboa; — As experiências da “máquina de voar” em S. Sebastião da Pedreira, numa quinta do duque de Aveiro; — A aceitação de Baltasar para ser ajudante do padre Bartolomeu. VII • Nascimento da filha de D. João V, Maria Bárbara — Apesar de alguma decepção do rei, por não ser um menino, mantém a promessa de construir o convento. VIII • Os poderes de Blimunda em ver dentro dos corpos — O mistério de Blimunda que come o pão de olhos fechados e possui o poder de olhar por dentro das pessoas; — A prova do poder de Blimunda que, ainda em jejum, sai à rua com Baltasar. • Nascimento do segundo filho de D. João V, o infante D. Pedro • Escolha do alto da Vela em Mafra para edificar o convento IX — Mudança de Baltasar e Blimunda para a abegoaria na quinta do duque de Aveiro, em S. Sebastião da Pedreira; — Continuação da construção da passarola voadora pelo padre Bartolomeu Lourenço, por Blimunda e Baltasar. • O padre Bartolomeu Lourenço parte para a Holanda, enquanto Sete-Sóis regressa a Mafra, a
  • 8. casa dos pais, acompanhado de Blimunda — Tourada no Terreiro do Paço com Baltasar e Blimunda na assistência, antes de partirem para Mafra; — Partida para Mafra de Blimunda e Baltasar. X — Ao chegar à casa da família em Mafra, Baltasar, acompanhado de Blimunda, é recebido por sua mãe, Marta Maria; o pai, João Francisco, encontrava-se a trabalhar no campo; — Baltasar fica a saber que o pai vendeu a el-rei uma terra que tinha na Vela para a construção do convento; — A única irmã de Baltasar, Inês Antónia, e o marido, Álvaro Diogo, conhecem “a nova parenta”; — Morte do infante D. Pedro, que vai a enterrar em S. Vicente de Fora; — Baltasar vai visitar as obras do convento e passa a ajudar o pai no campo. • Nascimento do infante D. José, terceiro filho da rainha • Doença do rei, enquanto o seu irmão D. Francisco tenta a cunhada, revelando à rainha o interesse em tornar-se seu marido — Ida de D. João V para Azeitão “curar os seus achaques”; — Apesar da recuperação da saúde do rei, D. Maria Ana continua os sonhos com o cunhado. XI • Regresso do padre Bartolomeu, que deseja que Blimunda consiga armazenar éter composto de “vontades” — Bartolomeu é recebido em casa do pároco de Mafra, Francisco Gonçalves, perto da casa de Sete- Sóis; — Em conversa com Blimunda e Baltasar, fala-lhes da descoberta na Holanda, de que o éter se encontrava na “vontade” de cada um; — O padre pede a Blimunda que olhe dentro das pessoas e encontre essa “vontade”, que é como uma nuvem fechada. XII — Em Mafra, Blimunda comunga em jejum, pela primeira vez; e vê na hóstia “uma nuvem fechada”; — O padre Bartolomeu pede, por carta, a Baltasar e a Blimunda que regressem a Lisboa; — Uma tempestade, comparável ao “sopro de Adamastor”, destruiu a igreja de madeira, construída especialmente para a cerimónia da inauguração dos alicerces, mas foi reerguida em dois dias, o que passou a ser visto como milagre. • Inauguração da primeira pedra do convento, a 17 de Novembro de 1717 — 17 de Novembro de 1717: procissão e bênção da primeira pedra; • Regresso de Baltasar e Blimunda a Lisboa, onde começam a trabalhar na passarola — Reflexão do narrador sobre o amor “das almas, dos corpos e das vontades”. XIII — Baltasar e Blimunda constroem a forja; — O padre Bartolomeu diz a Blimunda que são necessárias pelo menos duas mil “vontades”; — 8 de Junho de 1719: a procissão do Corpo de Deus; — Enumeração dos participantes e descrição com comentários irónicos; — Monólogos cheios de sarcasmo do patriarca e de el-rei. XIV — O padre Bartolomeu regressa de Coimbra, “doutor em cânones”; • O músico Scarlatti, napolitano de 35 anos, que ensina a infanta D. Maria Bárbara, toma conhecimento do projecto da passarola
  • 9. — Diálogo entre Bartolomeu e Scarlatti sobre o poder extraordinário da música e a essência da verdade; — O padre revela o seu segredo ao músico e apresenta-lhe a “trindade terrestre”: ele, Sete-Sóis e Sete-Luas; — O padre Bartolomeu Lourenço prepara um sermão para a festa do Corpo de Deus questionando os fundamentos da trindade divina. XV • A epidemia da cólera e da febre amarela e a recolha das “vontades” por Blimunda — O padre Bartolomeu pede a Blimunda que aproveite a ocasião para recolher as vontades que se libertam do peito dos moribundos; — Depois de cumprida a tarefa, Blimunda fica doente; — Ao toque de cravo de Scarlatti, Blimunda recupera a sua saúde; — Com as vontades recolhidas e a máquina de voar pronta, o padre Bartolomeu precisa de avisar el- rei. XVI — O duque de Aveiro recupera a Quinta de 5. Sebastião da Pedreira, pois ganha a demanda com a coroa. • A concretização da viagem da passarola voadora, com o padre Bartolomeu, Baltasar e Blimunda — O padre Bartolomeu descobre que o Santo Ofício já estava à sua procura; — Os três, depois de retirarem o telhado da abegoaria e colocarem tudo o que possuem dentro da máquina, decidem levantar voo; — Scarlatti, que chegara a tempo de ver a máquina subir, senta-se ao cravo e toca uma música, antes de atirar o instrumento para dentro do poço; — Os três sobrevoam a vila de Mafra; mas, com dificuldades de navegação por falta de vento, têm de aterrar; — O padre Bartolomeu, por emoção ou medo, tenta incendiar a máquina, sendo impedido por Baltasar e Blimunda; — O padre parte sozinho mata adentro; — Blimunda e Baltasar escondem a máquina sob a ramagem e partem na mesma direcção: “Isto aqui é a serra do Barregudo, lhes disse um pastor, e aquele monte além... é Monte Junto.” — Chegam a Mafra dias depois, quando uma procissão celebra o milagre que julgavam ser uma aparição do Espírito Santo, e que mais não fora do que a máquina voadora XVII • O regresso de Baltasar com Blimunda a Mafra, onde começa a trabalhar nas obras do convento, e anúncio da morte do padre Bartolomeu em Toledo — Baltasar inicia o seu trabalho de carreiro nas obras do convento; — O andamento das obras do convento; — Notícias do terramoto de Lisboa; — Dois meses depois de ter chegado a Mafra, regresso de Baltasar a Monte Junto, onde haviam deixado a máquina de voar; — Manutenção da máquina; — Domenico Scarlatti em casa do visconde; — Conversa às escondidas de Scarlatti e Blimunda: “resolvi vir a Mafra saber se estavam vivos.” “Vim-te dizer, e a Baltasar, que o padre Bartolomeu de Gusmão morreu em Toledo... dizem que louco...”
  • 10. XVIII • Caracterização dos gastos reais e dos trabalhadores em Mafra — Visão irónica e depreciativa de Portugal; — Esforços colossais e vítimas causadas pela construção do convento; — Outros relatos de histórias pessoais: Francisco Marques, José Pequeno, Joaquim da Rocha, Manuel Milho, João Anes e Julião Mau-Tempo. XIX • Baltasar torna-se boieiro e participa no carregamento da pedra do altar (Benedictione), verificando-se, durante o transporte, o esmagamento de um trabalhador — A azáfama na construção do convento; — Baltasar passa de carreiro a boieiro ajudado por José Pequeno; — Transporte, de Pêro Pinheiro até Mafra, de uma imensa pedra: “Entre Pêro Pinheiro e Mafra gastaram oito dias completos. Quando entraram no terreiro... toda a gente se admirava com o tamanho desmedido da pedra, tão grande. Mas Baltasar murmurou, olhando a basílica, tão pequena.” — Morte do trabalhador Francisco Marques, que acabou esmagado sob uma roda de um carro de bois. XX — Blimunda acompanha Baltasar ao Monte Junto. Depois de lá passarem a noite, Blimunda, ainda em jejum, procura certificar-se de que as vontades ainda estavam guardadas dentro de cada uma das duas esferas; — Renovação da máquina voadora em Monte Junto; — Viagem de regresso; — Morte de João Francisco, pai de Sete-Sóis. XXI • Decisão de D. João V de que a sagração do convento se fará em 22 de Outubro de 1730, data do seu aniversário — D. João V manifesta o desejo de construir em Portugal uma basílica como a de S. Pedro em Roma; — Chama o arquitecto João Frederico Ludovice (ou Ludwig) para executar tal tarefa, mas este diz-lhe que o rei não viveria o suficiente para ver a obra concluída; — Decisão de D. João V: ampliar a dimensão do projecto do convento de 80 para 300 frades; — Com “medo de morrer”, D. João V decide que a sagração da basílica de Mafra seja a 22 de Outubro de 1730 (dia do seu aniversário); — Recrutamento em todo o reino de operários para Mafra; — Escolha dos homens como tijolos. XXII • Casamentos da infanta Maria Bárbara com o príncipe Fernando VI de Espanha e do príncipe D. José com a infanta espanhola Mariana Vitória — A “troca das princesas”, em 1729, une as famílias reais de Portugal e Espanha; — Viagem ao rio Caia para levar a princesa Maria Bárbara e trazer Mariana Vitória; — João Elvas acompanha, com um grupo de pedintes, a comitiva à fronteira; — Cerimónia do casamento com música de Domenico Scarlatti. XXIII • Baltasar vai ao Monte Junto e desaparece com a passarola — Transporte de várias estátuas de santos para Mafra; — A viagem de trinta noviços, do convento de S. José de Ribamar, em Algés, para Mafra; — Baltasar decide ir sozinho ao Monte Junto verificar o estado da passaroia;
  • 11. — A máquina inesperadamente levanta voo quando Baltasar “entrou na passarola” para a reparar. XXIV • Blimunda procura Baltasar, enquanto em Mafra se faz a sagração do convento, em 22 de Outubro de 1730 — Blimunda, inquieta e angustiada, procura o seu homem; — No cume do Monte Junto, usa o espigão de ferro de Baltasar para evitar ser violada por um frade; — Em Mafra, começam as festas da sagração do convento. XXV • Durante nove anos Blimunda procura Baltasar e vai encontrá-lo em Lisboa a ser queimado num auto-de-fé — Blimunda procura Baltasar por todas as partes do país; — Em 1739, onze “supliciados, entre eles António José da Silva, encontram-se a caminho da fogueira num auto-de-fé, na praça do Rossio; — Estava lá também Baltasar e, quando está para morrer, a sua “vontade” desprende-se e é recolhida dentro do peito de Blimunda. A dimensão simbólica/histórica Citando Croce, afirma Saramago que ‘“toda a história é contemporânea”. De facto, observa-se que em Memorial do Convento há uma intenção de interferência do passado com o presente, com a particularidade de conseguir utilizar a reinvenção da História como estratégia discursiva para olhar a actualidade. A História torna-se matéria simbólica para reflectir sobre o presente, na perspectiva da denúncia e dela extrair uma moralidade que sirva de lição para o futuro. A relação título/conteúdo O título Memorial do Convento apresenta uma carga simbólica quer enquanto sugere as memórias – evocativas do passado –, e pressuposições existenciais, quer ao remeter para o Mundo místico e misterioso. Ao lado da história da construção do convento, com tudo o que de grandioso e de trágico representou, surge o fantástico erudito e popular que permite a realização dos sonhos e as crenças num universo de magia. Em Memorial do Convento, o romance histórico convive e entretece-se com o universo mágico criado pela ficção. O convento de Mafra liga-se ao sonho dos frades que aproveitam a oportunidade de terem um convento, mas reflecte, sobretudo, a magnificência da corte de D. João V e do poder absoluto, que se contrapõe ao sacrifício e à opressão do povo que nele trabalhou, muitas vezes aniquilado para servir o sonho do seu rei. A construção do convento de Mafra, o espectro da Inquisição, o projecto da passarola voadora do Padre Bartolomeu de Gusmão e um conjunto de outros factos que sucederam durante o reinado de D. João V dão corpo a este memorial. Com as memórias de uma época, é um romance histórico, mas simultaneamente social ao fazer a análise das condições sociais, morais e económicas da corte e do povo. O nome das personagens D. João
  • 12. Em Memorial do Convento, José Saramago caracteriza o rei D. João V como megalómano, infantil, devasso, libertino e ignorante, que não hesita em utilizar o povo, o dinheiro e a posição social para satisfazer os seus caprichos. Poderoso e rico, D. João V medita “no que fará a tão grandes somas de dinheiro, a tão extrema riqueza” e anda preocupado com a falta de descendente, apesar de possuir bastardos. Promete “levantar um convento em Mafra” se tiver filhos da rainha Maria Ana Josefa, com quem tem relações para cumprimento do dever, em encontros frios e programados. A sua pretensão vai realizar-se com o nascimento da princesa Maria Bárbara e, apesar da decepção por não ser um menino, mantém a promessa de que “Haveremos convento” (cap. VII). As suas relações com a rainha D. Maria Ana Josefa surgem como cumprimento de um dever: “D. Maria Ana estende ao rei a mãozinha suada e fria, que mesmo tendo aquecido debaixo do cobertor logo arrefece ao ar gélido do quarto, e el-rei, que já cumpriu o seu dever, e tudo espera do convencimento e criativo esforço com que o cumpriu, beija-lha como a rainha e futura mãe” Em Memorial do Convento, o rei, que com “medo de morrer” decide a sagração da basílica de Mafra para o dia do seu aniversário (22 de Outubro de 1730), surge, diferente da História, ridicularizado. Baltasar Sete-Sóis Baltasar Mateus, de alcunha Sete-Sóis, é, com Blimunda, uma das personagens mais interessantes da obra e das que possuem maior densidade psicológica. Baltasar, depois de deixar o exército, por ficar maneta em combate com os castelhanos, na guerra da sucessão, chega a Lisboa como pedinte. Conhece Blimunda Sete-Luas, com quem partilhará a sua vida. Vai ainda partilhar do sonho da passarola voadora do padre Bartolomeu de Gusmão, ajudando a construí-la e participando no seu primeiro voo. É este que os alcunha: “o padre virou-se para ela, sorriu, olhou um e olhou outro, e declarou, Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras, e, assim, Blimunda, que até aí só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas.” Blimunda Sete-Luas Filha de Sebastiana Maria de Jesus, que fora, pela Inquisição, condenada e degredada, por ser cristã-nova, conhece Baltasar Sete-Sóis. Com capacidades de vidente e possuidora de uma sabedoria muito própria, vai ajudar na construção da passarola e partilhar com Baltasar as alegrias, tristezas e preocupações da vida. Blimunda é uma estranha vidente que vê no interior dos corpos os males que destroem a vida e consegue recolher as “vontades” vitais que permitirão o voo da passarola do padre Bartolomeu. Por amar Baltasar, Blimunda recusa usar a magia para conhecer o seu interior. O poder de Blimunda permite, simultaneamente, curar e criar, ou melhor, ver o que está no mundo, as verdades mais profundas que o sustentam. Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão “Já o padre Bartolomeu Lourenço regressou de Coimbra, já é doutor em cânones, confirmado de Gusmão por apelativo onomástico e firma escrita.”
  • 13. O sonho da passarola voadora e a sua futura realidade apresentam o padre Bartolomeu Lourenço como um homem que só conseguirá evitar a Inquisição pela amizade que lhe tem o rei D. João V, que também possui o sonho e a esperança da máquina voadora. Ajudado por Baltasar Sete-Sóis e Blimunda e, por vezes, com a companhia de Domenico Scarlatti, que ao som do cravo sonhava e ajudava a sonhar, o padre Bartolomeu Lourenço construiu a sua obra. A sua morte, em Toledo, “para onde tinha fugido, dizem que louco”, é anunciada pelo músico Scarlatti a Sete-Sóis e a Blimunda. Personalidade autêntica da História, Bartolomeu de Gusmão estudou com os Jesuítas da Baía. Devido ao interesse pelas questões científicas, veio em 1701 para Portugal. Fez o curso de Cânones da Universidade de Coimbra, mas a sua atenção, com o apoio de D. João V, prendeu-se com experiências aerostáticas, a que não ficou alheia a mistificada “passarola voadora”. Segundo parece, foi forçado a fugir à Inquisição por possível adesão ao judaísmo ou por se ter envolvido num caso de bruxaria. Morreu em Toledo (Espanha), em 1724. O Povo Personagem importante, o povo trabalhador construiu o convento de Mafra, à custa de muitos sacrifícios e mesmo de algumas mortes. Definido pelo seu trabalho, pela sua miséria física e moral, pela sua devoção, este povo humilde surge como o verdadeiro obreiro da realização do sonho de D. João V. Os trabalhadores são apenas qualquer coisa mais desta obra grandiosa, ou, como diz o narrador, “a diferença que há entre tijolo e homem é a diferença que se julga haver entre quinhentos e quinhentos [...]. As personagens e os seus projectos “D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou.” Este começo do Memorial do Convento de José Saramago coloca imediatamente as personagens como elemento preponderante dos apontamentos ou da efabulação que deseja narrar e trazer à memória. E é com personagens importantes e com a referência à Inquisição que a obra termina: “São onze os supliciados. A queima já vai adiantada, os rostos mal se distinguem. Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio cosmético da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete- Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.” Ao lado das personagens do poder – régio e religioso – surge a família de Baltasar e Blimunda, cuja união mágica, mas pagã, é confirmada pelo padre Bartolomeu Lourenço. Por ironia, são as forças do poder e da repressão que, indirectamente, contribuem para que estes se conheçam, quando a mãe de Blimunda é degredada por bruxaria. A relação entre Baltasar e Blimunda é um símbolo da transgressão dos códigos sociais, mas, ao mesmo tempo, é o símbolo da harmonia com o universo e as suas forças cósmicas. Sempre com o espectro da Inquisição por perto, Baltasar e Blimunda unem-se, por laços psicológicos e pelas suas capacidades de excepção, ao padre Bartolomeu Lourenço no seu projecto. E o padre que sonha ou que crê, pela sua inteligência, na
  • 14. concretização da “passarola” que voa, acaba por sucumbir, logo que o seu invento acontece, por medo do Santo Oficio. Baltasar, por acidente, acaba, também, o seu voo nas mãos da Inquisição. Blimunda reencontra o seu marido num segundo auto-de-fé, não como espectador mas como condenado à fogueira. E, desta vez, Blimunda faz tudo para, pelos seus poderes mágicos, libertar a alma do companheiro: “Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda.” Saramago consegue dotar esta personagem feminina de forças latentes e extraordinárias que permitem ao povo a sua sobrevivência, mesmo quando a repressão atinge requintes de sadismo. Em qualquer época, há sempre uma Blimunda para contestar o poder e resistir. Estas personagens servem a própria intenção do autor na necessidade de repensar os acontecimentos e as figuras históricas à luz de uma nova realidade criada no presente e pressentida no futuro. Saramago problematiza e preocupa-se com o mundo em que vive. Mas, também como afirma Nuno Júdice, “as personagens de Memorial do Convento agem como os personagens de Pirandello – não em busca de um autor mas em busca de um romance, numa deambulação pelo espaço e pelo tempo de uma História perdida. Nessa ficção, a construção do convento é uma alegoria da própria construção do romance: o grande edifício que dá a sua razão de ser aos construtores – tanto o autor como as suas personagens – que, uma vez terminada a obra, encontram a sua justificação num duplo fim: o fim da História e o fim da estória. O destino humano Numa entrevista, afirma Saramago: “Até há uns anos a minha resposta era esta: Escrevo porque quero que as pessoas me queiram bem. Depois, comecei a dar outra resposta: Escrevo porque no fundo não quero morrer. Mas agora nem sequer isso. E tenho isto muito, muito dentro de mim: Escrevo para compreender. Compreender o quê? Tudo. Quem somos nós? O que é isso de ser um ser humano? À luz do processo do desenvolvimento do animal que somos, isso está mais ou menos claro. A antropologia diz de onde é que viemos, por que fases passámos até chegar àquilo que somos. Mas a minha pergunta é esta: e aquilo que somos tinha forçosamente de ser o que é? Em que momento desse processo nós tomamos por um caminho que nos veio dar a isso? Quantos caminhos possíveis teriam que existir que fariam de nós outras pessoas? Dizemos que somos seres humanos e que aquilo que nos separa dos animais é que temos razão e os animais, instinto. E aonde é que nos levou a razão? E que é isto das raças, das crenças, das religiões, das ideologias, das superstições, dos preconceitos, essa máquina alienante em que vivemos e que cada vez nos afasta mais de uma relação humana regida pelo princípio fundamental do respeito do outro?” Observando Memorial do Convento, julgamos que a escrita saramaguiana persegue esta última preocupação – “escrevo para compreender”. Ao longo da obra, verifica-se que há uma grande preocupação com o ser humano, a sua miséria e a sua luta, as injustiças e os seus anseios, a sua grandeza e os seus limites. O próprio D. João V, com toda a magnificência da sua obra, surge, com frequência, como um fraco, incapaz de controlar os seus achaques ou a sua vida. A crítica
  • 15. Memorial do Convento apresenta-se desde logo como uma crítica cheia de ironia e sarcasmo à opulência do Rei e de alguns nobres, por oposição à extrema pobreza do povo. “Esta cidade, mais que todas, é uma boca que mastiga de sobejo para um lado e de escasso para o outro”; “A tropa andava descalça e rota, roubava os lavradores”. O adultério e a corrupção dos costumes são factores de sátira ao longo da obra. Critica a mulher porque “entre duas igrejas, foi encontrar-se com um homem”; critica “uns tantos maridos cucos” e não perdoa os frades que “içam as mulheres para dentro das celas e com elas se gozam”; não lhe escapam os nobres e o próprio Rei, até porque este considera que as freiras o recebem “nas suas camas”, nomeadamente a madre Paula de Odivelas. Em Memorial do Convento, José Saramago apresenta uma caricatura da sociedade portuguesa da época de D. João V, revelando-se antimonárquico e com um humanismo fechado à transcendência, bastante angustiado e pessimista. Nas questões religiosas, não só usa a ironia, como também se revela frontal nas apreciações à Inquisição e aos santos que a ela se ligaram como S. Domingos e Santo Inácio, considerados “ibéricos e sombrios, logo demoníacos, se não é isto ofender o demónio” Esta acusação resulta de toda a imagem histórica dos tempos inquisitoriais e das práticas então havidas. Há uma constante denúncia da Inquisição e dos seus métodos e uma crítica às pessoas que dançam em volta das fogueiras onde se queimaram os condenados. A sátira estende-se a Mafra e à situação dos trabalhadores; à atitude do rei em obrigar todo o homem válido a trabalhar no convento; aos príncipes, como D. Francisco, que se entretém a “espingardear” os marinheiros ou quer seduzir a rainha, sua cunhada, e tomar o trono. O processo narrativo Memorial do Convento não só problematiza a História como procura, metaforicamente, exprimir uma compreensão do mundo contemporâneo. Por isso, Saramago rejeita a omnipotência do narrador, na medida em que considera que é o autor que põe em causa o presente que conhece e o passado que lhe chega através das suas investigações. Para Saramago, a omnipotência do narrador é pura ficção. Em várias entrevistas afirma: “nos meus romances, há pelo menos um homem dentro: eu”: É ele que através da narrativa procura documentar o tempo, reconstituir a História e fazer os seus juízos de valor. Recordando Umberto Eco (Seis Passeios nos Bosques da Ficção, 1995), que se refere à possível mistura de autor modelo, autor empírico e narrador com o objectivo de melhor envolver o leitor, julgamos que em Saramago esta convergência frequentemente acontece, permitindo imprimir na narrativa não apenas a marca do narrador, mas também a do seu autor que assume uma voz crítica, entrando no discurso do narrador. É o autor que convoca a História e numa metáfora do mundo busca razões da sua existência e sentido. Há, diversas vezes, um discurso de sobreposições narrativas com uma voz (ou um plural de vozes) que tanto descreve como desconstrói as situações, que dialoga com o narratário ou manuseia as personagens como títeres, que domina os conhecimentos da História ou se sente limitado, que faz ponderações ou ironiza. Ao misturar a História e a ficção, o real e o fantástico, consegue múltiplas formas de enunciação de que o leitor menos avisado não se apercebe. Podemos falar de um narrador com uma polifonia ou pluralidade de vozes que reinventa mundos e os multiplica e que reinventa a própria linguagem. “Perguntou el-rei, É verdade o que acaba de dizer-me sua eminência, que se eu prometer levantar um convento em Mafra terei filhos, e o frade respondeu, Verdade é, senhor, porém só se o convento for franciscano, tornou el-rei, Como sabeis, e frei António disse, Sei, não sei como vim a saber, eu sou apenas a boca de que a verdade se serve para falar, afé não
  • 16. tem mais que responder, construa vossa majestade o convento e terá brevemente sucessão, não o construa e Deus decidirá. Com um gesto mandou el-rei ao arrábio que se retirasse, e depois perguntou a D. Nuno da Cunha. É virtuoso esse frade, e o bispo respondeu, Não há outro que mais o seja na sua ordem. Então D. João, o quinto do seu nome, assim assegurado sobre o mérito do empenho, levantou a voz para que claramente o ouvisse quem estava e o soubessem amanhã cidade e reino, Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar deste dia em que estamos, e todos disseram, Deus ouça vossa majestade, e ninguém ali sabia quem iria ser posto à prova, se o mesmo Deus, se a virtude de frei António, se a potência do rei, ou, finalmente, a fertilidade dificultosa da rainha. (...) É uma pedra só, por via destes e outros tolos orgulhos é que se vai disseminando o ludíbrio geral, com suas formas nacionais e particulares, como esta de afirmar nos compêndios e histórias, Deve-se a construção do convento de Mafra ao rei D. João V, por um voto que fez se lhe nascesse um filho, vão aqui seiscentos homens que não fizeram nenhum filho à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz.” Uma voz narrativa controla a acção narrada, as motivações e pensamentos das personagens, mas faz também as suas reflexões e juízos valorativos. Mas esta voz, que ultrapassa a do narrador omnisciente, chega a expor o próprio estatuto ficcional, quando, por exemplo, afirma que não é possível que a personagem Blimunda “tenha pensado esta subtileza, e daí, quem sabe, nós não estamos dentro das pessoas, sabemos lá o que elas pensam, andamos é a espalhar os nossos próprios pensamentos pelas cabeças alheias.” Sem preocupações em delimitar o texto histórico e o ficcional, Memorial do Convento entretece-se com intratextualidades múltiplas que permitem que o passado só o seja enquanto história, mas que seja presente ao testemunhar a realidade da vida actual ou vibração intemporal do comportamento humano, O passado evocado reescreve o presente na busca de uma desocultação do sentido da História para melhor entender e superar a condição humana e as contingências do tempo. Como afirma Maria Alzira Seixo (A Palavra do Romance), Saramago “consegue, de modo ímpar na nossa actual ficção, que o seu discurso romanesco seja atravessado pela História produzindo um tipo de linguagem onde o passado objectual se contamina pelo presente crítico e perspectivante”. Em Memorial do Convento, os discursos facilmente passam da História à ficção, das reflexões críticas aos ensaios metaficcionais (comentando a própria escrita); tanto são produzidos por um narrador heterodiegético como por um autor- modelo que se assume como consciência e que se aparta da simples omnisciência. Narrador e criador da obra confundem-se com frequência. O narrador não só é conduzido pelos pontos de vista do autor como encontra outras vozes a argumentar, a reflectir e a ironizar com a história contada. “Devagar, a terra aproxima-se, Lisboa distingue-se melhor, o rectângulo torto do Terreiro do Paço, o labirinto das ruas e travessas, o friso das varandas onde o padre morava, e onde agora estão entrando os familiares do Santo Oficio para o prenderem, tarde piaram, gente tão escrupulosa dos interesses do céu e não se lembram de olhar para cima, é certo que, a tal altura, a máquina é um pontinho no azul”. Há sempre uma voz a controlar a narrativa, apresentando-se como contemporânea do leitor, mas apropriando-se do passado, que evoca quer para fazer a sua leitura, quer, sobretudo, para se posicionar ideologicamente sobre o presente ou mesmo sobre o futuro. De acordo com a locução de Sartre (in Situations, 1) de
  • 17. “narração Deus-Pai” estamos perante um narrador privilegiado, com poder de ubiquidade, enquanto nos relata o que está dentro da consciência de cada personagem e fora dela, mas que possui também presciência, enquanto sabe o antes e o depois. Mais do que uma focalização omnisciente, que permite ao narrador alternar a exposição dos acontecimentos com afirmações sobre o que irá suceder mais tarde, as formas verbais do presente são facilmente substituídas pelas do futuro, como sinal evidente do conhecimento intemporal, próprio de um demiurgo. Maria Alzira Seixo (in O Essencial sobre José Saramago, 1987) refere que em Memorial do Convento há seis matizes de narrador: o que habita um presente intemporal e se revela omnisciente; o conhecedor do futuro, capaz de revelar as grandes linhas da História e do final a que conduzem; o que ficciona e recria os limites da realidade; o que se revela numa omnisciência limitada perante o entrecruzar de actos particulares e destinos singulares; o crítico irónico ou humorista perante a sua possibilidade de manipular. Linguagem e estilo Saramago recusa um “narrador unilinear” Por isso, a existência de uma linguagem plurivocal permite registar as diversas formas de intervenção quer na narrativa e na desconstrução histórica, quer na construção ficcional. As frases e a ausência de pontuação favorecem essa pluralidade de vozes que se observa. As regras discursivas são aparentemente ignoradas. Há, no texto, linguagens que abandonam a tradicional hierarquia de correlação proposta pelos padrões discursivos, embora sem desprezarem uma estrutura organizativa. A pontuação transgride os princípios apresentados pelas aprendizagens gramaticais, fluindo dentro da concepção lógica do próprio discurso. A estrutura sintáctica infringe intencionalmente a norma, prestando-se a leituras que alternam o discurso escrito, com o discurso oral e, sobretudo, com um discurso monologado que resulta da mistura de vozes que se produzem no pensamento das personagens. “Por uma hora ficaram os dois sentados, sem falar. Apenas uma vez Baltasar se levantou para pôr alguma lenha na fogueira que esmorecia, e uma vez Blimunda espevitou o morrão da candeia que estava comendo a luz, e então, sendo tanta a claridade, pôde Sete-Sóis dizer, Por que foi que perguntaste o meu nome, e Blimunda respondeu, Porque minha mãe o quis saber e queria que eu o soubesse, Como sabes, se com ela não pudeste falar, Sei que sei, não sei como sei, não faças perguntas a que não posso responder, faze como fizeste, vieste e não perguntaste porquê, E agora, Se não tens onde viver melhor, fica aqui, Hei-de ir para Mafra, tenho lá família, Mulher, Pais e uma irmã, Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires, Por que queres tu que eu fique, Porque é preciso, Não é razão que me convença, Se não quiseres ficar, vai-te embora, não te posso obrigar, Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não o farás e já o fizeste, Não sabes de que estás a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar, onde durmo, Comigo. Deitaram-se, Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou Baltasar, e Blimunda respondeu, Dezanove anos, mas já então se tornara muito mais velha. Correu algum sangue sobre a esteira. Com as pontas dos dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda persignou-se efez uma cruz no peito de Baltasar, sobre o coração. Estavam ambos nus. Numa rua perto ouviram vozes de desafio, bate de espadas, correrias. Depois o silêncio. Não correu mais sangue. Quando, de manhã, Baltasar acordou, viu Blimunda deitada ao seu lado, a comer pão, de olhos fechados. Só os abriu, cinzentos àquela hora, depois de ter acabado de comer, e disse, Nunca te olharei por dentro.”
  • 18. Note-se como facilmente se gera o desvio à norma, conseguindo que várias frases sejam ditas a mais do que uma voz em diálogo interno. Afirma Manuel Gusmão: “A obra romanesca de José Saramago fala uma linguagem coral e une um desejo de ficção a um desejo de história. A oralidade da sua escrita vem do modo como combina maneiras, construções e ritmos da tradição literária, com a coloquialidade mais comum; com o uso irónico, a transformação e a invenção de provérbios. Vem do modo como, na sua prosa, uma só frase é já um diálogo, ou um fragmento de diálogo, onde cabem o acordo e o desacordo.” (“Lendo José Saramago”, Avante!, 29 de Outubro de 1998). A riqueza da sua linguagem resulta desta transgressão ou capacidade de reinventar a escrita, dando à linguagem um tom de crónica histórica, quer no género quer no sentido de quem conversa, com recurso à voz do seu autor, à ironia que desperta e provoca o leitor, à reflexão filosófica, à constatação dos factos, ou mesmo, a momentos de intimismo poético. A sua linguagem flutua entre a riqueza dos termos, jogos conceituais e duplicidades sintácticas, que se combinam com discursos simples da oralidade, cheios de expressões triviais, de frases idiomáticas ou proverbiais, de ditados e aforismos, de humor e de ironia. Síntese Memorial do Convento • Memorial do Convento evoca a História portuguesa do reinado de D. João V, no século XVIII, procurando uma ponte com as situações políticas de meados do século XX. • Durante o reinado de D. João V, o rigor e as perseguições do Santo Ofício aumentam com vítimas que tanto podem ser cristãos-novos como todos os considerados culpados de heresias, por se associarem a práticas mágicas ou de superstição. • Memorial do Convento caracteriza uma época de excessos e diferenças sociais, que se mantêm na actualidade: opulência/miséria; poder/opressão; devassidão/penitência; sagrado/profano; amor ausente/amor sincero... • Memorial do Convento é uma narrativa histórica que entrelaça personagens e acontecimentos verídicos com seres conseguidos pela ficção. • Romance histórico, Memorial do Convento oferece-nos uma minuciosa descrição da sociedade portuguesa do início do século XVIII; romance social, dentro da linha neo-realista, preocupa-se com a realidade social, em que sobressai o operariado oprimido; romance de intervenção, visa denunciar a história repressiva portuguesa da primeira metade do século XX; romance de espaço, representa uma época, interessando-se por traduzir não apenas o ambiente histórico, mas também vários quadros sociais que permitem um melhor conhecimento do ser humano. • Em Memorial do Convento, há duas linhas condutoras da acção: a construção do convento de Mafra e as relações entre Baltasar e Blimunda. • A acção principal é a construção do convento de Mafra, que entrelaça o desejo megalómano do rei com o sofrimento do povo. • Paralelamente à acção principal, encontra-se uma acção que envolve Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas, numa história de espiritualidade, de ternura, de misticismo e de magia. • As duas acções, que se encaixam, sugerem uma profunda humanidade trágica. • Os espaços físicos e sociais privilegiados são Lisboa e Mafra.
  • 19. • A reconstituição da História passa pela ficção, revelando um aparente desprezo do tempo. • Em Memorial do Convento o romance histórico convive e entretece-se com o universo mágico criado pela ficção. • As personagens servem a própria intenção do autor na necessidade de repensar os acontecimentos e as figuras históricas à luz de uma nova realidade criada no presente e pressentida no futuro. • As personagens femininas adquirem, na obra, um claro relevo: D. Maria Ana é uma rainha triste e insatisfeita, que vive um casamento de aparência e com escrúpulos morais nas relações sexuais e nos sonhos; Blimunda é a mulher com capacidades de vidente e possuidora de uma sabedoria muito própria, cheia de sensualidade e amor verdadeiro. • Saramago rejeita a omnipotência do narrador, na medida em que considera que é o autor que põe em causa o presente que conhece e o passado que lhe chega através das suas investigações. Para Saramago a omnipotência do narrador é pura ficção. • Uma voz narrativa controla a acção narrada, as motivações e os pensamentos das personagens, mas faz também as suas reflexões e juízos valorativos. • A História, em Memorial do Convento, torna-se matéria simbólica para reflectir sobre o presente, na perspectiva da denúncia e dela extrair uma moralidade que sirva de lição para o futuro. • Observando Memorial do Convento, julgamos que a escrita saramaguiana persegue uma preocupação com o ser humano, a sua miséria e a sua luta, as injustiças e os seus anseios, a sua grandeza e os seus limites. • Em Memorial do Convento há, diversas vezes, um discurso de sobreposições narrativas com uma voz (ou um plural de vozes) que tanto descreve como desconstrói as situações, que dialoga com o narratário ou manuseia as personagens como títeres, que domina os conhecimentos da História ou se sente limitado, que faz ponderações ou ironiza.
  • 20. Glossário D. João V – historicamente, rei de Portugal desde 1 de Janeiro de 1707, D. João V (1689-1754), filho de D. Pedro II e de Maria Sofia de Neuburgo, adquire o cognome de Magnânimo devido à promoção de obras grandiosas como o convento de Mafra. Casa em 1708 com D. Maria Ana da Áustria, de quem tem seis filhos, entre os quais D. José (sucessor no reino), D. Maria Bárbara (futura rainha de Espanha), e D. Pedro (consorte de D. Maria I). Das relações fora do casamento (incluindo com a madre Paula do convento de Odivelas) tem outros filhos. Iluminado – adepto do Iluminismo; indivíduo que pretende ser inspirado por Deus. Como adjectivo significa: alumiado; que possui iluminuras; colorido; que recebe luz. Iluminismo – movimento cultural e intelectual, relevante na Europa durante os séculos XVII e XVIII, que pretendeu “dominar pela razão a problemática total do Homem” (Brugger). Descartes, Voltaire, Jean- Jacques Rousseau, Montesquieu, Diderot, d’Alembert e Mirabeau são as grandes referências deste movimento em França. Outras figuras importantes são Locke e Newton ou mesmo os imperadores Frederico II da Prússia e Catarina II da Rússia. Em Portugal, este movimento tem a sua primeira fase com D. João V e os diplomatas que o cercam, como D. Luís da Cunha, Alexandre de Gusmão e Francisco Xavier de Oliveira (o Cavaleiro de Oliveira), Luís António Verney. D. José adere ao movimento que ficou conhecido com o nome de ‘despotismo iluminado” e lançou o Marquês de Pombal no surto de uma renovação de vulto. Dos seus colaboradores, distingue-se António Nunes Ribeiro Sanches, que escreveu as Cartas sobre a Educação da Mocidade. Madre Paula de Odivelas – (Paula Teresa da Silva e Almeida) a mais célebre amante do rei D. João V, nasce em Lisboa em 30 de Janeiro de 1718. Neta de João Paulo de Bryt, antigo soldado da guarda estrangeira de Carlos V e, mais tarde, ourives em Lisboa, Paula Teresa entra, aos 17 anos, para o convento de Odivelas. Depois de um ano de noviciado, aí professa. Bela e jovem, rapidamente conquista o coração de D. João V, frequentador do convento de Odivelas. D. Francisco de Portugal e Castro, conde de Vimioso, que mantinha relações com Soror Paula, teve de a deixar a favor do soberano. Esta fica a ser sua amante, tornando-se madre do convento e passando a receber todas as atenções do rei e uma generosidade extensiva à sua família. Em Memorial do Convento, de José Saramago, o rei caracteriza Madre Paula como “flor de claustro perfumada de incenso, carne gloriosa”. Palácio dos Estaus – situava-se onde se ergue, desde o século XIX, o teatro D. Maria II, no topo norte do Rossio. Mandado construir em 1449, pelo regente D. Pedro, o paço dos Estaus (que significava pensão de forasteiros) foi sede da Inquisição em Lisboa (denominada “Casa de Despacho da Santa Inquisição”), sede da Regência e do Governo Provisório, Escola Normal, Câmara dos Pares e Intendência--Geral da Polícia. Quando José Saramago, em Memorial do Convento, conta o voo de Bartolomeu Lourenço de Gusmão e dos seus ajudantes Baltasar e Blimunda, diz que os familiares do Santo Ofício “vão na direcção do Rossio, do palácio dos Estaus, a informar que fugiu o padre a quem iam buscar para o cárcere”. Passarola voadora – foi um “instrumento de andar pelo ar”, como consta da petição de privilégio do padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão ao rei O. João V, e de que teve alvará, em 19 de Abril de 1709. Nesse mesmo ano, em 8 de Agosto, na sala dos embaixadores da Casa da Índia, apresentou a sua primeira experiência elevando a uns quatro metros um pequeno balão de papel, cheio de ar quente, perante a admiração da Corte, do Núncio Apostólico, Cardeal Conti (futuro papa Inocêncio XIII) e do Corpo Diplomático (como referem documentos da época). Depois de Leonardo da Vinci, no século XVI, ter desenhado a primeira máquina voadora, o padre Bartolomeu torna-se num pioneiro da historia da aviação ao conseguir inventar um aeróstato, o primeiro engenho capaz de se elevar no ar. Mais tarde, em 1783, os irmãos Montgolfier (Joseph e Étienne) irão lançar em Annonay, em França, um balão de ar quente capaz de transportar pessoas. O padre Bartolomeu Lourenço (Santos, Brasil, 1685 – Toledo, Espanha, 1724) era um visionário, que acreditava na ciência e nas capacidades dos homens. Mas o inventor português parece ter sido forçado a fugir à Inquisição, embora a tenha evitado, durante muito tempo, pela amizade do rei. Pêro Pinheiro – é uma das vinte freguesias do concelho de Sintra (no distrito de Lisboa), com 16,06 km2 de área. Foi elevada a vila em 24 de Agosto de 1989. Sensivelmente entre Sintra e Mafra, pela EN 9, é o principal centro de transformação de rochas ornamentais de Portugal e considerado um dos maiores da Europa. O convento de Mafra foi construído em pedra liós (uma rocha calcária, esbranquiçada, compacta, dura, contendo, frequentemente, fósseis) da região de Pêro Pinheiro.
  • 21. Romance de espaço – representa uma época, interessando-se por traduzir não apenas o ambiente histórico, mas também por apresentar vários quadros sociais que permitem um melhor conhecimento do ser humano. Dá primazia á descrição dos ambientes físicos e sociais, procurando “pintar” os espaços, onde se enquadra a acção. Esta classificação resulta da análise dos elementos estruturais da narrativa: personagem, espaço e acontecimento. Romance de intervenção – visa um empenhamento social e político de intervenção cívica, de denúncia, de luta pela justiça, pela dignidade humana e pela liberdade. Em geral, surge associado e, por vezes, confundido com o romance social. Romance histórico – é, por definição, o que mistura história e ficção, reconstruindo ficticiamente acontecimentos, costumes e personagens históricos, O romance histórico surge no início do século XIX, durante o romantismo. São vários os romances históricos que se celebrizaram como, por exemplo, Ivanhoe (de Walter Scott), Eurico, o Presbítero (de Alexandre Herculano) ou Guerra e Paz (de Tolstoi). Romance social – é o que dá relevo à narração dos costumes, das motivações comportamentais e dos padrões de conduta. Tem em atenção e expõe os modos de vida, os preconceitos e os valores de uma sociedade. Serra de Montejunto – situada no extremo sul do concelho do Cadaval e a norte do concelho de Alenquer, a serra de Montejunto tem cerca de 15 km de extensão e 7 km de largura, com o ponto mais elevado a 666 m. Faz parte da região do Oeste, na continuação do maciço montanhoso e calcário da Estremadura.