3. Citação Nº 1
PORTUGAL
COMO DESTINO
Dramaturgia cultural portuguesa
4
É tentador assimilar o destino de um povo ao do
indivíduo, com o seu nascimento, a sua adolescência, maturidade e declínio. A analogia organicista
é, naturalmente, falaciosa. Nem a povos ou civilizações extintos o paradigma humano se aplica. O
tempo do indivíduo, a leitura que ele próprio faz
do seu percurso, pode ajustar-se a esse processo
de surgimento, afirmação e desapa ição.
r
Um povo tem igualmente uma história e, por
comodidade hermenêutica, pode ser tentado
a ler o seu percurso em termos subjectivos de
afirmação de si, de presença mais ou menos
forte entre os outros ou de existência precária
ou ameaçada neste ou naquele momento. Mas
o tempo dessa história não é, como o dos indivíduos, percebido ao mesmo tempo como finito
e irreversível.
O tempo de um povo é trans-histórico na própria
medida em que é «historicidade», jogo imprevisível com os tempos diversos em que o seu destino se espelhou até ao presente e que o futuro
reorganizará de maneira misteriosa. Cada povo
só o é por se conceber e viver justamente como
destino. Isto é, simbolicamente, como se existisse
5
4. desde sempre e tivesse consigo uma promessa de
duração eterna. É essa con icção que confere a
v
cada povo, a cada cultura, pois ambos são indissociáveis, o que chamamos «identidade».
Como para os indivíduos, a identidade só se
define na relação com o outro. Como essa relação
varia com o tempo — é o que chamamos a nossa
história —, a identidade é percebida e vivida por
um povo em termos simultaneamente históricos
e trans-históricos. Mas só o que a cada momento
da vida de um povo aparece como para
doxalmente inalterável ou subsistente através da
sucessão dos tempos confere sentido ao conceito
de identidade. Podemos assi ilar essa estranha
m
permanência no seio da mudança àquilo que os
românticos alemães designaram, para desespero
da historiorafia iluminista, como «alma dos
g
povos».
6
Citação Nº 2
Frutuosamente na Índia, tomando-se a primeira
potência colonizadora europeia, perde num único
combate o seu jovem rei, D. Sebastião, e põe em
perigo uma independência política velha de mais
de quatro séculos. O Império-refúgio tinha-se
tornado, com o tempo, um refúgio ilusório e fizera perder ao pequeno país que o inventara o sentido das realidades.
7
5. Citação Nº 3
Monismo castelhano em geral, mas também
interesse e fascínio pela cultura lusitana, sobretudo pela sua poesia lírica. Nada disto se altera
com a perda de independência política. Mas
altera-se aos poucos e, por fim, duravelmente, a
imagem recíproca dos dois países.
A Espanha, durante o século XVII, integra,
inconscientemente ou não, o património cultural
lusitano no seu e Por ugal, consciente ou incont
scientemente, reflui para si mesmo, toma-se de
ilha imperial gloriosa em ilha perdida na qual
espera a ressurreição do seu passado simbolicamente intacto e como que sublimado naquela
obra que durante esses sessenta anos guardará
intacta a memória do passado.
O sebastianismo é ape as a forma popular dessa
n
crença de uma vinda do rei vencido. O verdadeiro Sebastião é o texto dos Lusíadas que desde
então — embora só o romantismo lhe confira esse
estatuto — se con erteu na referência icónica da
v
cultura portuguesa.
8
9
6. Citação Nº 4
As categorias de ordem profana, tais como a historiografia moderna as explicitou, subordinando
toda a compreensão a um processo de causas e
consequências e inscrevendo a aventura humana
numa temporalidade irreversível desvinculada do seu suporte simbólico e transtemporal,
adaptam-se mal a fenómenos da pura ordem
do desejo e do sonho como o do sebastianismo.
Só numa cultura intrinsecamente mística que
coloca na ressurreião e, por conseguinte, no
ç
futuro o tempo que, resumindo todos os tempos,
lhe dá sentido é que uma espera messiânica, real
ou simbólica, como a que o sebastianismo encarnou em Portugal, é compreensível.
E ninguém a ilustrou melhor do que o autor
da História do Futuro, o padre António Vieira.
Nenhum desmentido da experiência o arrancou
ao sonho do regresso de D. Sebastião, que deveria representar para um Portugal restaurado,
mas sem re em vias de perder a sua recuperada
p
independência, não só a confirmação dessa nova
vida, mas também o anúncio e já o começo de
um Quinto Império, o de Cristo, de que Portugal
seria a histórica manifestação. António Vieira
não era um louco rema
tado, antes um sagaz
observador do mundo, diplomata insigne com o
seu quê de maquiavélico, entenda-se, ao serviço
de causa em si mesmo boa, como é próprio de um
eminente jesuíta.
A sua visão, de forte inspiração bíblica, constitui um todo. Não há outro código para decifrar
os aparentemente contraditórios e até perturbantes acontecimentos de um mundo criado por
Deus e governado pela sua Providência além do
texto bíblico. Que é um texto, não acidental, mas
intrinsecamente profético. O tempo da profecia
não se regula pelos imperativos da temporalidade
humana. Tudo nele são sinais e indícios. Portugal
não é para ele uma nação como outra qualquer.
É uma nação literalmente eleita. Eleita para
anunciar e ilustrar o reino universal de Cristo,
tal como ele e os seus companheiros de missão
o anunciam em terras da China ou nas florestas
da Amazónia. O destino singular e universal de
Portugal não se resume no facto de a sua presença
e, com ela, a imagem de Cristo terem chegado aos
quatro cantos da Terra. Esse é apenas um indício exterior.
Mesmo antes de se lançar na sua aventura descobridora e missionária, Portugal, para António
Vieira, era já um povo messiânico. Um povo
assim não pode perecer. As suas quedas — como
a de Alcácer Quibir ou a da perda da independência — explicam-se por qualquer desvio do
ideal de que é portador. Não há na cultura portuguesa discurso mais alucinatório e sublime que
o de António Vieira. É a síntese arrebatada, mas
10
11
7. simbolicamente coerente, de cinco sécu de
los
vida colectiva vividos com a convicção arreigada
mas também culturalmente cultivada de que a
própria existência de Portugal é da ordem não só
do milagre, como da profecia.
Pela sua pública fidelidade crística, Portugal profetiza. Pelo menos, profetizava nos tempos de
Vieira, nesse século XVII em que a cultura portuguesa, no sentido profano, mas tam ém religib
oso, dialoga cautamente com a cultura dominante do tempo. O seu tempo próprio é outro,
o da fidelidade incondiional, exageradamente
c
passiva, à ortodoxia consagrada pelo Concílio de
Trento. Exagerou-se sem dúvida, num tempo de
reatamento com o movimento geral da Europa,
como foi já o do século XVIII, ainda no tempo de
D. João V, monarca faustoso e mecenas de vários
artistas europeus, e sobretudo no de Pombal,
o nosso isolamento, tido como indeclinável
decadência.
Mesmo António Vieira, que na segunda metade
do século XVII muito viajara na Europa ao
serviço do Portugal restaurado, patriota ardente,
sofreu com essa imagem de povo decaído, pouco
conheido e considerado na Europa. Sessenta
c
anos de submissão poítica a Espanha haviam
l
subalternizado Portugal e, quando, em 1640, os
Portugueses recuperam, penosamente, com forte
auxíio diplomático ou conivência da Inglaterra
l
e da França, a sua autonomia, é como se tivessem acordado outros. Conscientes disso, os seus
reis não são representados com a sua coroa real
na cabeça, mas com ela ao lado, em rica mesa.
12
13
8. Alguma coisa se quebrara com o interregno filipino — assim será pensado o do ínio espanhol
m
após a Restauração — e a memória portuguesa
integra uma espécie de não-tempo, que desde
então será sempre não só dolorosamente recordado, mas como que subtraído ao curso glorificado da nossa história. Emergindo desse tempo,
baptizado como cativeiro, uma vez mais assimilado à época de escravidão do povo judaico em
Babilónia, a Restauração só podia ser pensada e
vivida como o terceiro milagre português. E ninguém contribuiu mais do que António Vieira
para lhe conferir esse estatuto.
Na lógica proféica de António Vieira importa
t
tanto a temporalidade sincrónica dos acontecimentos como a capacidade de os usar para
fins, na lógica ordinária, inconciliáveis. Sobre a
experiência dos tempos de cativeiro, resgatados
pelo seu fim providencial, António Vieira, reunindo numa só visão as profecias do sapateiro
Bandarra, émulo de Nostradamus, as esperanças
no regresso de D. Sebastião, refundador não só
do reino perdido, mas de um novo reino, erguerá
a sua utopia de um Quinto Império, prome ido,
t
segundo ele, ao primeiro rei de Portugal e contido nos Descobrimentos iniciadores e iniciáticos
do infante D. Henrique. Esta utopia e o seu sonho
chegaram intactos até à Mensagem, de Fernando
Pessoa.
14
Citação Nº 5
Mas porventura o mais original, nesta versão
de um Quinto e último império sob a égide de
Cristo, foi o facto de António Vieira ter imaginado que a sua prova, e igualmente o seu centro mítico, não seria tanto o abatido Portugal
como o Portugal restaurado, para quem o jovem
Brasil era já a anteci ada certeza de perenidade
p
e grandeza.
Atentou-se pouco, tomando-a como interessado
desvario, que o Norte do Brasil fora a terra missionária de eleição de António Vieira, nesta translação do sonho imperial português do Oriente
para o Brasil. Nos dois casos, Portugal habituarase a viver fora de si mesmo e a vincular a sua imagem única de povo europeu a esses dois espaços.
Mas um encolhia a olhos vistos, o do Oriente ou
o da primeira expansão africana. Ainda nos meados do século XVI, Portugal abandona os seus
pontos fortes em Marrocos.
E no século XVII vai deixando a Holandeses e
Ingleses o monopólio comercial do Oriente. Com
a Restauração, para assegurar o apoio inglês,
cede Bombaim, Tânger e a mão de uma princesa à aliada e, desde então, sempre protectora
15
9. Inglaterra. Ficava o Brasil, que, liberto da ameaça
holandesa que António Vieira vivera de cruz,
arma e palavra nos lábios, se desenhava como
refúgio, promessa e garantia de uma sobrevivência política nacional sem par. Durante mais de
dois séculos, Portugal — e ainda mais os portugueses do Brasil e os já brasileiros — inventa o
Brasil e o Brasil assegura a Portugal, por vezes
em sentido literal, a sua sobrevivência.
Citação Nº 6
De tão fundas consequências como a fundação
«historial» de Herculano foi a recriação visionária
e mítica de Garrett. O que Herculano fundou em
prosa epicamente nostálgica, Garrett fun ou em
d
nostalgia elegíaca, colocando Camões, de uma
vez para sempre, no centro da nova mitologia
pátria, pátria de feitos, sem dúvida, mas pátria
de canto, de cultura, sem as quais a memória
deles não existe. Mas não o pôs no centro sem
lhe mudar de algum modo o conteúdo e, até, de
o inverter.
É ele o verdadeiro rei Sebastião ou, pelo menos, o
seu livro o novo Gral, pois foi por via dele, como
no seu drama Frei Luís de Sousa é manifesto, que
a esperança da ressurreição pátria se conservou.
Pátria que nesse momento de liberdade triunfante, mas impotente — tão vulnerável a sente
Garrett como quase todo o seu século —, precisa de se lembrar do seu passado glorioso para
não desespe ar do futuro. Portugal existe porque
r
existiu e existiu porque Camões o salvaguardou
na sua memória, como a dos Hebreus se perpetua na Bíblia. Garrett não espera o futuro e o
16
17
10. renascimento da alma e da cultura portuguesas
de qualquer profecia com ga antia providencial,
r
mas da vontade e da capacidade de rees rever o
c
seu passado como se fosse presente e de reler nas
pedras do presente que atestam tão glorioso passado, «viajando na nossa terra», a mensagem do
futuro.
A saudade é gosto amargo do bem passado, «delicioso pungir de acerbo espinho», mas igualmente
penhor de ressurreição do que, por excesso de
vida, não pode morrer. Com ele, a saudade não
é apenas perfume de alegrias mortas, sentimento um pouco desencantado de não encontrar no presente a imagem perdida de um país
fora da história, como lhe parece — ou parece o
seu a olhos estranhos —, mas o corpo e a sombra da alma portuguesa. Unindo historicamente,
e não acidental ou liricamente, Portugal e a saudade, Garrett instaurou a primeira mitologia cultural portuguesa sem transcendência. A que fez
do país de Camões o país-saudade, o Portugalsaudade, que não tem outro destino senão o da
busca de si mesmo. Com adequação aos tempos e
aos modos da futura vida portuguesa, o essencial
desta percepção mítica de Portugal permane erá
c
intacto até aos dias de Pascoais e de Pessoa.
18
19
11. Citação Nº 7
O mundo e a visão romanescos de Júlio Dinis
são mais intranscendentes. Mas o seu retrato de
Portugal, contemporâneo do de Camilo, retrato
de pose longa, como então se usava na fotografia, desenha, por assim dizer, a outra face, se não
do mesmo Portugal, a sua versão numa óptica
desdramatizada ou, em todo o caso, não trágica,
adequada a uma sociedade que aceita a mudança
e o progresso ainda parco do século e caminha
por dentro e por fora ao seu ritmo. O Portugal
de Júlio Dinis, os seus personagens, a cultura
que eles ilustram ou neles e com eles se exprime
não vão para parte alguma, utópica ou passionalmente desejada, estão. neste estar configuram
um particular momento da cultura portuguesa,
menos parada do que parece, cultura de um país
que abandona tranquilamente o «mundo antigo»,
o da cosmologia, da teologia, da ideologia que o
romantismo mal se atrevera a pôr em causa.
Aceitando uma espécie de sabedoria moderna,
amigo do progresso, confiante na bondade inata
20
do coração, Júlio Dinis tem um ar de discípulo do
vigário saboiardo, corrigido pela fleuma inglesa.
Com ele, além duma original captação do tempo,
ou, antes, da sua duração, surge no horizonte da
nossa cultura, destinado a futuro sucesso, o fan
tasma da Inglaterra como influência paradigmática não apenas na ordem da economia, da
política, do poder, mas também na da ficção.
Vendo bem, esta segunda emergência do paradigma inglês na nossa cultura é então mais epidérmica do que o fora no romanismo. Não nos
t
trouxe nem o desafio transgressivo de Byron,
nem o amor de passados arquétipos, fonte de
novos nacionalismos, como Walter Scott. Júlio
Dinis, conhecedor do meio inglês do Porto, como
mais tarde António Nobre, é uma excepção, não
a regra. Nos meados do último século, Portugal
começa a sentir-se, sem mórbido sentimento de
inferioridade, provincial e proincianamente,
v
um pequeno país, politicamente pacífico, esfor
çando-se por acompanhar uma Europa já em
plena segunda revolução industrial, sem imaginar sequer o que os seus efeitos irão induzir
na ordem dos comportamentos, das ideias, das
21
12. Citação Nº 8
cren as, pelo menos nos seus centros nevrálgiç
cos, Lisboa e Porto, e na sua única cidade universitária, Coimbra.
Portugal não está ainda na Europa, mesmo se a
nova Europa da máquina de vapor e do telégrafo,
da maior circulação dos jornais, está já dentro
das suas fronteiras. Na década de 60, Paris, então
capital cultural da Europa, fica ligada a Lisboa.
Em sentido próprio, Portugal acede um pouco
ao coração da Europa. Portugal, isto é, a sua
escassa classe financeira, industrial, aristocrática
e política, mas também, e de uma maneira paradoxal, a sua classe intelectual. É nesse momento
exacto que uma nova geração, como se acabasse
de descobrir um tesouro caído do céu, descobre
que não é europeia, isto é, que não sente, nem
conhece, nem pensa, nem cria como podia fazêlo se estivesse «realmente» nessa Europa que lhe
envia as suas criações e os ecos reais ou fantásticos do que toda uma juventude vai nomear a
«vida superior», a da Civilização, com maiúscula.
22
23
13. Citação Nº 9
Antero assume a pose do profeta da revolução,
melhor, do seu apóstolo, perfeitamente consciente do quixotismo que a sua crítica radical do
passado nacional representa, mas não menos
convicto de que a revolução que anuncia e de que
espera um novo Portugal é de essência reli iosa.
g
A sua célebre conferência termina assimilando o
sociaismo ao cristianismo do mundo moderno:
l
«o cristianismo foi a revolução do mundo antigo:
a revolução não é mais que o crisianismo do
t
mundo moderno.»
Pelo seu carácter utopista, pela própria ambiguidade de um discurso que, ao mesmo tempo
que recusava a imagem do pasado nacional,
s
lhe anunciava um futuro digno de um Portugal
anterior à sua merecida decadência de povo que
não soubera conquistar a liberdade de consciência, nem cultivar o espírito científico, nem libertar-se da tentação imperial de tipo guerreiro, um
texto como o da «conferência» de Antero parecia
votado não apenas ao destino de uma provocação
24
retórica, como ao mais melancólico da inoperância, não só no plano ideológico, como no mais
decisivo, de ordem cultural.
Não foi o caso: pela sua radicalidade, pelo seu
retrato impiedoso — mesmo se, em parte, injusto
ou parcial —, não apenas deste ou daquele aspecto
da sociedade portuguesa, mas de Portugal
enquanto cultura estrutualmente anacrónica,
r
desfasada do novo espírito europeu, filho da revolução e do progresso na ordem da crítica e da
ciência, o texto de Antero alcançou um estatuto sem equivalente na história da cultura portuguesa. Independentemente da sua pertinência
ou extravagância, esse texto instituiu Portugal,
enquanto destino histórico e cultural, e não apenas como sujeito político, como aconteceu no
romantismo, em assunto privilegiado da nossa
cultura. Ou, com mais precisão, instaurou a
cultura, não só nossa, mas em geral, como o horizonte dentro do qual um povo se define como
actor efectivo ou mero espectador da aventura da
humanidade concebida como um todo.
25
14. Citação Nº 10
Em menos de duas décadas, o panorama cultural
português sofreu uma metamorfose que só pode
comparar-se à que o im acto do Renascimento
p
italiano produzira entre nós no século XVI.
Numa perspectiva quase só literária, o nosso
romantismo reatara o antigo diálogo com a
Europa. De 1870 a 1890, esse diálogo tornou-se
imperativo e foi vivido e ilustrado, como Antero
o havia anunciado, em termos que poderíamos
rotular de «sociológicos» de inspiração diversa
e por vezes inconciliável ao nível dos princípios,
que iam de Proudhon a Auguste Comte, mas que
obedeciam a um leitmotiv comum: europeizar
Portugal, único meio de o arrancar à sua passividade e ao influxo do passado. A
europeização fazia-se em termos pragmáticos,
pelos progressos induzidos pela revolução industrial em curso, a que introduzia em Portugal,
como no resto da Europa, ou no longín uo Far
q
West, o caminho-de-ferro e o telégrafo, a especulação financeira, uma tímida indústria.
26
27
15. Citação Nº 11
Mais difícil, nos termos em que a Geração de
70 e, com ela, a maioria da classe liberal a dese
javam, era a revolução cultural que o progresso
técnico supunha, a transformação do ensino,
a criação de uma tradição científica, o gosto da
experimentação, condições da liquidação do
passado e da construção de um novo Portugal.
Ora, como era fatal, os estigmas denunciados
por Antero eram tudo menos estímulos, eram os
próprios obstáculos a essa europeização mítica.
Nós não podíamos, por artes mágicas, transformar-nos nos Claude Bernard, nos Charcot, nos
Liebieg, nos Darwin ou mesmo nos Michelet,
nos Niebhur, nos Renan ou nos Comte, que essa
gera ão lia com paixão, mas também como fruç
tos excepcionais de uma cultura que lhes caía em
casa literalmente do céu.
O paraoxo da Geração de 70, que se dera
d
como missão «europeizar» Portugal, libertálo, na medida do possível, do seu arcaísmo, foi
o de retratar um país, como ninguém o fizera antes, em função de um modelo de civilização que tinha em Paris, Londres ou Berlim a
sua vitrina. O resultado, como seria de esperar, e
28
con rariamente aos seus propósitos de aggiornat
mento, foi um retrao deprimente da sociedade
t
portuguesa, o de um Portugal não apenas pouco
ou nada «europeu», como essa geração o sonhava
ou pretendia, ao menos nas suas classes dominantes ou instituiões representativas (Igreja,
ç
Parlamento, Banca, Universidade), mas mórbida e mimeticamente fascinado por essa mesma
Europa que ele não era, mas oniricamente imaginava ser. Nunca se tirou a Portugal e à sua cultura
um retrato mais cruel do que aquele que Eça de
Queirós deixou, com o rasto indelével do génio
satírico e realista que foi o seu, nos mais famosos
roman es da nossa literatura. O facto de os retc
ratistas estarem também inscritos no retrato em
nada atenua a verdade nem o alcance desse olhar
sem piedade sobre nós mesmos.
Até porque a ironia e a auto-ironia, cada vez mais
presentes nessa descida ao coração do tempo
português, redimiam pouco a pouco essa espeleologia, para não dizer esse exercício de anatomia,
sobre o corpo morto de Portugal. Que no fim da
lição, que era para os seus autores uma mistura
indiscernível de júbilo e maceração, acabou por
ressuscitar e mesmo por subir ao céu.
29
16. Citação Nº 12
Para cada geração, a menos que haja catástrofe
natural ou herança amaldiçoada, o momento de
entrada na vida é um es lendor. A geração da
p
República conheceu o seu esplendor, so retudo
b
quando ainda o não era. O Portugal de então era
paupér imo, mas estava cheio de boa vontade. Lá
r
fora, o mundo e o século abriam em fanfarra. Os
homens lançam-se nos ares.
Os transatlânticos de luxo anunciam catástrofes
em que ninguém acreditava. Mesmo a guerra não
suspendeu o furor patético e universal do progresso. A guerra fazia o seu mal com a velocidade
e a tragédia, como sempre. Os pobres sentiamse menos pobres com tanta exposição universal.
Depois da belle époque, os anos loucos. Portugal
acompanhava de longe a festa dos outros. Sem
que ninguém lhe pedisse, ia bater-se na Flandres.
Era a nossa maneira de «estar na Europa» com
lama pelos joelhos.
Foi modesta, mas entusiasta e de boa vontade,
a nossa República. Queria saber, interessavase pela instrução, pela pedagogia, era sinceramente povo e popular. À parte as colónias, não
tinha ideal nenhum, queria ser uma pequena
França entre Douro e Guadiana. Mas os tempos
não iam para Franças. Qualquer coisa nova, mais
tarde baptizada de «rebelião das massas», exigia
ser actor da história, não apenas de feiras, festejos públicos e trabalho sem garantias.
O bolchevismo na atrasadíssima Rússia, o fascismo na paupérrima Itália, ofereciam os seus
modelos. Escolhemos o mais latino e o mais próximo. E demos-lhe uma de mão caseira, familiaríssima, revanche do tradicional catolicismo
contra o ciadino anticlericalismo, cautério da
t
economia doméstica sobre a dependência excessiva do crédito e do investimento estrangeiro.
[...]
O Portugal real, rústico, pobre, politicamente
imerso em convulsões anedóticas, sofrendo as
repercussões da Europa, só retém das rêveries quiméricas de Pascoais, como reterá das não
menos quiméricas de Pessoa, o que pode ensartar
no seu ramalhete de nacionalismo ancestral.
O profético e o dinâmico delas escapam-lhe.
Sofre e orgulha-se por morrer na Flandres,
exalta-se por atravessar o Atlântico, sabe Deus
com que custo, para religar as duas metades de
um mundo luso-brasileiro então ainda sentimentalmente próximas. Mas não há um sujeito destes
feitos com sabor a epopeia forçada. A República
democrática, como se fosse uma pequena
Weimar, sonha com uma nova ordem. Em 1918,
o primeiro de uma longa série de «caudilhos»
dispostos a porem ordem na «desordem» europeia estabelece uma breve ditadura em Portugal.
Chamava-se Sidónio Pais e, talvez por ter sido
30
31
17. assassinado um ano depois, transformou-se num
dos raros personagens lendários da medíocre
história portuguesa deste século.
Uma vez mais ressuscitou-se nele o espectro
regenerador de D. Sebastião. Deste, tinha a coragem e o garbo. Adorado pelas mulheres, em
plena aurora do cinema, foi a primeira star da
nossa moderna mitologia. Suscitou paixões,
de nítido fundo anti-republicano e pré-ditatorial. Para que nunca mais fosse esquecido, entusiasmou Fernando Pessoa, que nunca morreu de amores pela «democracia à portuguesa».
Tínhamos, na tradição de Oliveira Martins, um
possível Bismark. Morto, tivemos uma referência
para uma nova ordem.
[...]
Até aos sobressaltos dos anos 60, conspícuos jornais do Ocidente referiram-se ao Estado Novo
como ao exemplo mesmo de «ditadura sábia».
Começa a ser possível, após vinte anos de democracia, num povo tão pragmático como o português, situarmo-nos melhor em relação a esse
meio século da história nacional, que teve a pretensão e a vontade, como nenhum outro desde o
século XVIII e da reforma liberal de Mousinho
da Silveira, de remodelar, em profundidade, não
só o destino político empírico de Portugal, mas a
sua mentalidade.
O que, a bem dizer, não era um trabalho de
Hércules, pois o essencial — à parte o esforço
de modernização material induzido pela época e
pelo seu dinamismo— dessa «remodelação» destinava-se, ao menos simbolicamente, a rasurar
sistematicamente os mais incómodos vestígios
da ideologia e da prática do século de liberalismo
que o precedeu.
Provavelmente, embora noutros termos, esta é
a situação da maioria das nações europeias —
todas velhas, mesmo as que parecem novas —
implicadas na edificação de um inédito organismo histórico-político chamado Europa. Talvez
só a Inglaterra lhe escape, que nunca foi nação
«só europeia», ou a Itália, que nunca foi nação.
Todas as outras, a começar pela mais orgânica
de todas, em termos políticos, a França ou a
Alemanha, poderosa massa etnocultural, conhecem no seu interior as dores inéditas de uma
mudança de ser, estar, actuar no mundo que ninguém sabe como assumir. O caso de Portugal é
único. Nunca esteve aco
mpanhado na definição do seu destino. Está
agora acompanhado de mais, de certo modo
sobreprotegido, contente com a companhia e as
ajudas que recebe, que o compensam do Império
perdido e, aparentemente, não o privam de nada.
Como no célebre monólogo de Gil Vicente, pode
ocupar com desembaraço os lugares de «tudo» e
de «ninguém».
Mas, obscuramente, no meio de orgias pagas
com o dinheiro dos outros, pela primeira vez,
Portugal não sabe bem o que é. Não sabe bem o
que é como destinocendo pouco esse nome por
serem eco do mero estado político ou ideológico
da Nação, Portugal está sofrendo uma metamorfose cultural de rara intensidade. Determinada
por uma séria revisitação do seu lastro histórico e
32
33
18. cultural próprio — em arqueologia, em história,
em organização administrativa e jurídica
autónomas, em vida simbólica —, tanto como
pela pressão de novos saberes e técnicas que já
não nos chegam com anos-luz de atraso, mas em
tempo real. Embora tudo se passe, em geral, em
compartimentos estanques, sem enquadramento
num plano que vise simbolicamente esse «outro
Portugal», mais interessante que o sonhado, para
folclóricas exibições para o mundo ver, como
Quinto Império. O Quinto Império está em
nossa casa se o não leiloarmos tão obscenamente
na feira dos mitos extintos.
E é aqui que o sintagma «Portugal como destino»
adquire a sua pertinência. De uma certa maneira,
como a última exposição do século o mostrou
— ao menos em parte e através do seu conceito
«oceânico» —, o mundo está todo em Portugal
e Portugal em parte alguma. Parece o sonho de
Pessoa, mas não é. É mesmo o contrário. A simbólica dispersão oceânica não nos trouxe de volta
o «mar português», este sentimento de ser uma
«realidade específica» em diálogo com o mundo,
um sítio nosso, e não um espaço de reciclagem
virtual das invenções, dos sentimentos, dos
escândalos dos outros, à la page pelos meridianos
de resto inacessíveis e, no fundo, desinteressantes
— de Amsterdão, ou de São Francisco, ou da
nova Moscovo. A história e o destino de Portugal
nunca foram trágicos fora da tragédia adiada que
a vida é. Também não o são agora. Pela primeira
vez, o nosso país vive-se a si mesmo e começa até
a ser visto pelos outros, que sabem onde ficamos
34
35
19. e quem somos, como um povo insolentemente
feliz. Exibicionistamente feliz, até, como nos está
nas veras da alma. Antes isso que o masoquismo,
um tudo nada hipócrita, com que éramos «os
lusíadas coitados». Mas de que está cheio este
novíssimo contentamento de arraial minhoto?
Da total ausência de interesse pela «ideia de
Portugal» que tenha qualquer conteúdo além
do da sua representação, da sua imagem, do seu
look no espelho alheio, seja ele desportivo, turístico, artístico, cultural, já que não é fácil imaginar que aí figure como uma referência obrigatória na ordem económica ou científica. No
meio século de cultura salazarista, Portugal só
tinha «exterior».
Ele mesmo era uma ilha, um «oásis de paz»,
como lhe chamou Marcelo Caetano, e só podia
distrair-se com a balbúrdia do mundo e as suas
extravagâncias. Desde há um quarto de século,
sem cuidados de império, rendeiros módicos da
nova Europa, podemos cultivar, enfim, o nosso
jardim, como o Cândido de Voltaire.
Não sem sucesso em tudo o que diz respeito a
alindamento público e doméstico, ao acesso a um
conforto que a segunda vaga migratória trouxe
até às aldeias camilianas da província portuguesa, prelúdio a uma «mundialização» de comportamentos, costumes, divertimento nocturno
e diurno que, pela primeira vez ou segunda, se
pensarmos nos Descobrimentos ou na revolução
do caminho-de-ferro, pôs termo, real e metafisicamente, ao fosso característico da cultura portuguesa e da maneira como durante séculos se
viveu e se amou nesse viver. Refiro-me, naturalmente, à tão nacional dicotomia — ao mesmo
tempo geográfica, metafísica e simbólica — do cá
dentro e lá fora.
Depois de Camões, contornando o lugar
extinto de Antero, Pascoais e Pessoa conceberam a empresa de «imaginar» um destino para
Portugal. Com uma radicalidade sem exemplo.
Reimaginando-o, não «pensando-o» em moldes
ou exemplos que nunca haviam sido os seus e
adaptados como se o fossem, se foi ele dissolvendo num país sempre atrasado na imitação de
modelos alheios que, como amigos de Job, vinham até à sua enxerga para o consolar.
Portugal não foi o único país da Europa que se
contorcionou na impotência de se viver e sentir
menos do que era ou tinha sido por não estar à
altura de uma modernidade incontornável por
fora e, mais ainda, por dentro. A questão ainda
não terminou, inverteu apenas os termos em que
era vivida nos fins do século XIX e princípios do
século XX. A Rússia de Dostoievski e de Tolstoi
e a Espanha de Unamuno transformaram o seu
mal-estar civilizacional e histórico em drama
espiritual e exportaram-no para o mundo,
primeiro simbólica ou miticamente, depois nas
convulsões de uma revolução destinada a mudar
não apenas «o destino de uma nação», mas também o da humanidade inteira.
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20. Citação Nº 1
PORTUGAL
COMO DESTINO
Tempo português
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A cultura portuguesa nunca produziu — pelo
menos até Eça de Queirós — nem Montaigne,
nem Montesquieu, nem Swift, nem Lessing, isto
é, um olhar exterior a si mesma que a acordasse, não de qualquer cegueira dogmática ou culposa, mas da contemplação feliz e maravilhada
de si mesma. Todos os povos vivem, mais ou
menos, confinados no amor de si próprios. Mas
a maneira como os Portugueses se comprazem
nessa adoração é verdadeiramente singular. Seria
absurdo pretender que um povo entre outros, e
ainda por cima um pequeno povo, possa estar
fora ou escapar a esse maelström a que chamamos História.
Contudo, evitar o destino comum, instalarse, não se sabe por que aberração ou milagre,
à margem do mundo, é um pouco aquilo que o
povo português sempre, tem feito. Portugal vivese «por dentro», numa espécie de isolamento sublimado, e «por fora», como o exemplo dos povos
de vocação universal, indo ao ponto de dispersar o seu corpo e a sua alma pelo mundo inteiro.
A imagem é de Camões e todos os portugueses
a conhecem de cor. Essa mitologia está inscrita
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21. na bandeira portuguesa. Portugal foi o único
país que colocou no centro da sua bandeira a
esfera armilar, em suma, a representação do universo. Isto não espanta ninguém e ainda menos
os Portugueses.
Essa imagem não é apenas de ordem cosmológica
— consagração do papel de Portugal como descobridor de «novas terras e novos céus» —, mas de
ordem crística: a do convidado modesto sentado
no lugar de honra dos eleitos. esse, desenrolarse-á sem entraves no seu espaço interior, de Luís
de Camões ao padre António Vieira e a Pessoa,
ao mais banal dos seus governantes. O mais curioso é que, num momento de fanatismo, Portugal
amputou-se ou recalcou a sua parte de Israel para
se tomar, paradoxalmente, uma espécie de Israel
católico. Talvez estivesse na ordem das coisas
ou, pelo menos, da história. Em nome de Cristo,
Portugal assumiu o papel impossível de povo
«eleito».
À volta do brasão de Portugal, evocando as cinco
chagas de Cristo, os reis desse país, então senhor dos mares, do Brasil ao Japão, ousaram colocar-se no centro do mundo. Os Portugueses não
são o único povo que se sente desconhecido,
mal conhecido ou decaído do antigo esplendor,
real ou imaginário. De algum modo, é o caso de
toda a gente e, hoje, até daqueles povos e culturas
que, durante séculos, os outros olharam como
faróis do mundo. Mas o que surpreende, nos
Portugueses, é o facto de parecer terem decidido viver como os cristãos nas catacumbas. Não
porque pese sobre eles qualquer ameaça efectiva,
mas porque não suportam ser olhados por quem
ignore ou tenha esquecido a sua vida imaginária.
Preferem então, a exemplo de Fernando Pessoa,
ausentar-se de si mesmos e outorgar-se, como ele
o fez com insólita fulgurância, o próprio estatuto
da ausência.
Uma ausência onde tudo e nada são indefinidamente reversíveis: Não sou nada. Nunca serei
nada. Não posso querer ser nada. À parte isso,
tenho em mim todos os sonhos do mundo. Os
leitores estrangeiros imaginam muitas vezes que
Fernando Pessoa, convertido em português universal, é uma excepção. A título de génio literário, sem dúvida. Não a título de português,
a despeito do seu desejo de querer «ser tudo
de todas as maneiras» e sair assim, por conta
de todos, da «pequena casa lusitana», esse sítio
simultaneamente banal e onírico que é o único
onde os Portugueses se sentem em casa. Nele são
tão estrangeiros como fora dele.
O seu lugar não se situa apenas no mapa. E muito
menos se circunscreve ao pequeno rectângulo,
deitado à beira do Atlântico, carregado de passado e vida singulares, que chamamos Portugal.
Desde os tempos mais recuados que essa terra,
Atlântida sem lembrança dela, parece desertar
a Europa. Por necessidade ou cupidez, raro por
aventura, os Portugueses partiram dela ao longo
dos séculos, por vezes sem esperança de regresso.
A longa história de Portugal, incluindo nela a
anterior ao seu nascimento como reino, é a de
uma deriva e de uma fuga sem fim. Isso explica
a dispersão dos Portugueses e a sua presença no
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22. mundo, outrora no Brasil, na África, no Oriente
e hoje no Canadá, nos Estados Unidos, na
Venezuela, no Havai ou mais perto, nesta Europa,
em França, na Alemanha na Suíça, mesmo na
vizinha Espanha. Mas nem essa deriva, nem essa
fuga, explicam a singularidade dos Portugueses.
Povo emigrante antes de o ser, por vontade ou
à força, adaptável, discreto no meio dos outros, sempre pronto, na aparência, a trocar a sua
identidade pela dos outros, na realidade nunca
abandonou o seu ponto de partida.
Quer dizer, a sua verdadeira pátria, a do sonho
adormecido mas nunca extinto no fundo do seu
ser. A saudade, a nostalgia ou a melancolia são
modalidades, modulações da nossa relação de
seres de memória e sensibilidade com o tempo.
Ou, antes, com a temporalidade, aquilo que, a
exemplo de Georges Poulet, designarei como
«tempo humano». Isso significa que essa temporalidade é diversa daquela outra, abstractamente
universal, que atribuímos ao tempo como sucessão irreversível.
Só esse «tempo humano», jogo da memória e
constitutivo dela, permite a inversão, a suspensão ficcional do tempo irreversível, fonte
de uma emoção a nenhuma outra comparável.
Nela e através dela sentimos ao mesmo tempo
a nossa fugacidade e a nossa eternidade. A esse
título, a nostalgia, a melancolia, a própria saudade, revindicada pelos Portugueses como um
estado intraduzível e singular, são sentimentos
ou vivências universais. Da universalidade do
«tempo humano», precisamente. É o conteúdo,
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23. a cor desse tempo, a diversidade do jogo que a
memória desenha na sua leitura do passado o que
distingue a nostalgia da melancolia e estas duas
da saudade. Em si mesma, a saudade não tem
história. Mas têm-na as manifestações dela. Só
em termos historicistas, e sem nenhuma coerência interna, essa história — escrita com fins dogmáticos — mereceu alguma atenção.
Antes de ser pensada, a saudade foi cantada e
é filha e prisioneira do lirismo que primeiro
lhe deu voz. Antes de se tomar o mito que já a
não deixa pensar e a configura num papel hagiográfico-patriótico, a saudade não foi mais que
a expressão do excesso de amor em relação a
tudo o que merece ser amado: o amigo ausente,
a amada distante, a natureza imemorial e íntima,
escrínio de todos os amores, flor de verde pinho,
ondas do mar.
Nenhuma ressonância trágica perpassa naquelas canções em que a saudade comparece em toda
a sua ingenuidade. No seu berço céltico, o da
Galícia e Portugal, a saudade parece modulada
pelo ritmo universal do mar. Descobre-se, sem
bem o saber ainda, que a eternidade é feita de
tempo e o tempo de eternidade. Tudo é aí, simultaneamente, passado e presente. Esta música de
fundo, primeiro exterior, tornar-se-á música da
alma. Sabemos que o jovem Sartre pensou no
título Melancholia para o livro que havia de se
tomar célebre com o nome de A Náusea.
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