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PORTUGAL
COMO DESTINO
Seguido de mitologia da saudade

Eduardo Lourenço
1
Índice
Dramaturgia cultural portuguesa ................. 4
Tempo português .............................................. 38

2

3
Citação Nº 1

PORTUGAL
COMO DESTINO
Dramaturgia cultural portuguesa

4

É tentador assimilar o destino de um povo ao do
indivíduo, com o seu nascimento, a sua adolescência, maturidade e declínio. A analogia organicista
é, naturalmente, falaciosa. Nem a povos ou civilizações extintos o paradigma humano se aplica. O
tempo do indivíduo, a leitura que ele próprio faz
do seu percurso, pode ajustar-se a esse processo
de surgimento, afirmação e desapa­ ição.
r
Um povo tem igualmente uma história e, por
comodidade hermenêutica, pode ser tentado
a ler o seu percurso em termos subjectivos de
afirmação de si, de presença mais ou menos
forte entre os outros ou de existência precária
ou ameaçada neste ou naquele momento. Mas
o tempo dessa história não é, como o dos indivíduos, percebido ao mesmo tempo como finito
e irrever­sível.
O tempo de um povo é trans-histórico na própria
medida em que é «historicidade», jogo imprevisível com os tempos diversos em que o seu destino se espelhou até ao presente e que o futuro
reorganizará de maneira misteriosa. Cada povo
só o é por se conceber e viver justamente como
destino. Isto é, simbolicamente, como se existisse

5
desde sempre e tivesse consigo uma promessa de
duração eterna. É essa con­ icção que confere a
v
cada povo, a cada cultura, pois ambos são indissociáveis, o que chamamos «identidade».
Como para os indivíduos, a identidade só se
define na relação com o outro. Como essa relação
varia com o tempo — é o que chamamos a nossa
história —, a identidade é percebida e vivida por
um povo em termos simultaneamente históricos
e trans-históricos. Mas só o que a cada momento
da vida de um povo aparece como para­
doxalmente inalterável ou subsistente através da
sucessão dos tempos confere sentido ao conceito
de identidade. Podemos assi­ ilar essa estranha
m
permanência no seio da mudança àquilo que os
românticos alemães designaram, para desespero
da historio­rafia iluminista, como «alma dos
g
povos».

6

Citação Nº 2

Frutuosamente na Índia, tomando-se a primeira
potência colonizadora europeia, perde num único
combate o seu jovem rei, D. Sebastião, e põe em
perigo uma independência política velha de mais
de quatro séculos. O Império-refúgio tinha-se
tornado, com o tempo, um refúgio ilusório e fizera perder ao pequeno país que o inventara o sentido das realidades.

7
Citação Nº 3

Monismo castelhano em geral, mas também
interesse e fascínio pela cultura lusitana, sobretudo pela sua poesia lírica. Nada disto se altera
com a perda de independência política. Mas
altera-se aos poucos e, por fim, duravelmente, a
imagem recíproca dos dois países.
A Espanha, durante o século XVII, integra,
incons­cientemente ou não, o património cultural
lusitano no seu e Por­ ugal, consciente ou incont
scientemente, reflui para si mesmo, toma-se de
ilha imperial gloriosa em ilha perdida na qual
espera a ressurreição do seu passado simbolicamente intacto e como que sublimado naquela
obra que durante esses sessenta anos guardará
intacta a memória do passado.
O sebastianismo é ape­ as a forma popular dessa
n
crença de uma vinda do rei vencido. O verdadeiro Sebastião é o texto dos Lusíadas que desde
então — embora só o romantismo lhe confira esse
estatuto — se con­ erteu na referência icónica da
v
cultura portuguesa.

8

9
Citação Nº 4

As categorias de ordem profana, tais como a historiografia moderna as explicitou, subordinando
toda a compreensão a um processo de causas e
consequências e inscrevendo a aventura humana
numa temporalidade irreversível desvinculada do seu suporte simbólico e transtemporal,
adaptam-se mal a fenómenos da pura ordem
do desejo e do sonho como o do sebastianismo.
Só numa cultura intrinsecamente mística que
coloca na ressurrei­ão e, por conseguinte, no
ç
futuro o tempo que, resumindo todos os tempos,
lhe dá sentido é que uma espera messiânica, real
ou simbólica, como a que o sebastianismo encarnou em Portugal, é compreensível.
E ninguém a ilustrou melhor do que o autor
da História do Futuro, o padre António Vieira.
Nenhum desmentido da experiência o arrancou
ao sonho do regresso de D. Sebastião, que deveria representar para um Portugal restaurado,
mas sem­ re em vias de perder a sua recuperada
p
independência, não só a confirmação dessa nova
vida, mas também o anúncio e já o começo de
um Quinto Império, o de Cristo, de que Portugal
seria a histórica manifestação. António Vieira

não era um louco rema­
tado, antes um sagaz
observador do mundo, diplomata insigne com o
seu quê de maquiavélico, entenda-se, ao serviço
de causa em si mesmo boa, como é próprio de um
eminente jesuíta.
A sua visão, de forte inspiração bíblica, constitui um todo. Não há outro código para decifrar
os aparentemente contraditórios e até perturbantes acontecimentos de um mundo criado por
Deus e governado pela sua Providência além do
texto bíblico. Que é um texto, não acidental, mas
intrinsecamente profético. O tempo da profecia
não se regula pelos imperativos da temporalidade
hu­mana. Tudo nele são sinais e indícios. Portugal
não é para ele uma nação como outra qualquer.
É uma nação literalmente eleita. Eleita para
anunciar e ilustrar o reino universal de Cristo,
tal como ele e os seus companheiros de missão
o anunciam em terras da China ou nas florestas
da Amazónia. O destino singular e universal de
Portugal não se resume no facto de a sua presença
e, com ela, a imagem de Cristo terem chegado aos
quatro cantos da Terra. Esse é apenas um indício exterior.
Mesmo antes de se lançar na sua aventura descobridora e missionária, Portugal, para António
Vieira, era já um povo messiânico. Um povo
assim não pode perecer. As suas quedas — como
a de Alcácer Quibir ou a da perda da independência — explicam-se por qualquer desvio do
ideal de que é portador. Não há na cultura portuguesa dis­curso mais alucinatório e sublime que
o de António Vieira. É a síntese arrebatada, mas

10

11
simbolicamente coerente, de cinco sécu­ de
los
vida colectiva vividos com a convicção arreigada
mas também culturalmente cultivada de que a
própria existência de Portugal é da ordem não só
do milagre, como da profecia.
Pela sua pública fidelidade crística, Portugal profetiza. Pelo menos, profetizava nos tempos de
Vieira, nesse século XVII em que a cultura portuguesa, no sentido profano, mas tam­ ém religib
oso, dialoga cautamente com a cultura dominante do tempo. O seu tempo próprio é outro,
o da fidelidade incondi­ional, exageradamente
c
passiva, à ortodoxia consagrada pelo Concílio de
Trento. Exagerou-se sem dúvida, num tempo de
reatamento com o movimento geral da Europa,
como foi já o do século XVIII, ainda no tempo de
D. João V, monarca faustoso e mecenas de vários
artistas europeus, e sobretudo no de Pombal,
o nosso isolamento, tido como indeclinável
decadência.
Mesmo António Vieira, que na segunda metade
do século XVII muito viajara na Europa ao
serviço do Portugal restaurado, patriota ardente,
sofreu com essa imagem de povo decaído, pouco
conhe­ido e considerado na Europa. Sessenta
c
anos de submissão po­ítica a Espanha haviam
l
subalternizado Portugal e, quando, em 1640, os
Portugueses recuperam, penosamente, com forte
auxí­io diplomático ou conivência da Inglaterra
l
e da França, a sua autonomia, é como se tivessem acordado outros. Conscientes disso, os seus
reis não são representados com a sua coroa real
na cabeça, mas com ela ao lado, em rica mesa.

12

13
Alguma coisa se quebrara com o interregno filipino — assim será pensado o do­ ínio espanhol
m
após a Restauração — e a memória portuguesa
integra uma espécie de não-tempo, que desde
então será sempre não só dolorosamente recordado, mas como que subtraído ao curso glorificado da nossa história. Emergindo desse tempo,
baptizado como cativeiro, uma vez mais assimilado à época de escravidão do povo judaico em
Babilónia, a Restauração só podia ser pensada e
vivida como o terceiro milagre português. E ninguém contribuiu mais do que António Vieira
para lhe conferir esse estatuto.
Na lógica profé­ica de António Vieira importa
t
tanto a temporalidade sincrónica dos acontecimentos como a capacidade de os usar para
fins, na lógica ordinária, inconciliáveis. Sobre a
experiência dos tempos de cativeiro, resgatados
pelo seu fim providencial, António Vieira, reunindo numa só visão as profecias do sapateiro
Bandarra, émulo de Nostradamus, as esperanças
no regresso de D. Sebastião, refundador não só
do reino perdido, mas de um novo reino, erguerá
a sua utopia de um Quinto Império, prome­ ido,
t
segundo ele, ao primeiro rei de Portugal e contido nos Descobrimentos iniciadores e iniciáticos
do infante D. Henrique. Esta utopia e o seu sonho
chegaram intactos até à Mensagem, de Fernando
Pessoa.

14

Citação Nº 5

Mas porventura o mais original, nesta versão
de um Quinto e último império sob a égide de
Cristo, foi o facto de António Vieira ter imaginado que a sua prova, e igualmente o seu centro mítico, não seria tanto o abatido Portugal
como o Portugal restaurado, para quem o jovem
Brasil era já a anteci­ ada certeza de perenidade
p
e grandeza.
Atentou-se pouco, tomando-a como interessado
desvario, que o Norte do Brasil fora a terra missionária de eleição de António Vieira, nesta translação do sonho imperial português do Oriente
para o Brasil. Nos dois casos, Portugal habituarase a viver fora de si mesmo e a vincular a sua imagem única de povo europeu a esses dois espaços.
Mas um encolhia a olhos vistos, o do Oriente ou
o da primeira expansão africana. Ainda nos meados do século XVI, Portugal abandona os seus
pontos fortes em Marrocos.
E no século XVII vai deixando a Holandeses e
Ingleses o monopólio comercial do Oriente. Com
a Restauração, para assegurar o apoio inglês,
cede Bombaim, Tânger e a mão de uma princesa à aliada e, desde então, sempre protectora

15
Inglaterra. Ficava o Brasil, que, liberto da ameaça
holandesa que António Vieira vivera de cruz,
arma e palavra nos lábios, se desenhava como
refúgio, promessa e garantia de uma sobrevivência política nacional sem par. Durante mais de
dois séculos, Portugal — e ainda mais os portugueses do Brasil e os já brasileiros — inventa o
Brasil e o Brasil assegura a Portugal, por vezes
em sentido literal, a sua sobrevivência.

Citação Nº 6

De tão fundas consequências como a fundação
«historial» de Herculano foi a recriação visionária
e mítica de Garrett. O que Herculano fundou em
prosa epicamente nostálgica, Garrett fun­ ou em
d
nostalgia elegíaca, colocando Camões, de uma
vez para sempre, no centro da nova mitologia
pátria, pátria de feitos, sem dúvida, mas pátria
de canto, de cultura, sem as quais a memória
deles não existe. Mas não o pôs no centro sem
lhe mudar de algum modo o conteúdo e, até, de
o inverter.
É ele o verdadeiro rei Sebastião ou, pelo menos, o
seu livro o novo Gral, pois foi por via dele, como
no seu drama Frei Luís de Sousa é manifesto, que
a esperança da ressurreição pátria se conservou.
Pátria que nesse momento de liberdade triunfante, mas impotente — tão vulnerável a sente
Garrett como quase todo o seu século —, precisa de se lembrar do seu passado glorioso para
não desespe­ ar do futuro. Portugal existe porque
r
existiu e existiu porque Camões o salvaguardou
na sua memória, como a dos Hebreus se perpetua na Bíblia. Garrett não espera o futuro e o

16

17
renascimento da alma e da cultura portuguesas
de qualquer profecia com ga­ antia providencial,
r
mas da vontade e da capacidade de rees­ rever o
c
seu passado como se fosse presente e de reler nas
pedras do presente que atestam tão glorioso passado, «viajando na nossa terra», a mensagem do
futuro.
A saudade é gosto amargo do bem passado, «delicioso pungir de acerbo espinho», mas igualmente
penhor de ressurreição do que, por excesso de
vida, não pode morrer. Com ele, a saudade não
é apenas perfume de alegrias mortas, sentimento um pouco desencantado de não encontrar no presente a imagem perdida de um país
fora da história, como lhe parece — ou parece o
seu a olhos estranhos —, mas o corpo e a sombra da alma portuguesa. Unindo historicamente,
e não acidental ou liricamente, Portugal e a saudade, Garrett instaurou a primeira mitologia cultural portuguesa sem transcendência. A que fez
do país de Camões o país-saudade, o Portugalsaudade, que não tem outro destino senão o da
busca de si mesmo. Com adequação aos tempos e
aos modos da futura vida portu­guesa, o essencial
desta percepção mítica de Portugal permane­ erá
c
intacto até aos dias de Pascoais e de Pessoa.

18

19
Citação Nº 7

O mundo e a visão romanescos de Júlio Dinis
são mais intranscendentes. Mas o seu retrato de
Portugal, contemporâneo do de Camilo, retrato
de pose longa, como então se usava na fotografia, desenha, por assim dizer, a outra face, se não
do mesmo Portugal, a sua versão numa óptica
desdramatizada ou, em todo o caso, não trágica,
adequada a uma sociedade que aceita a mudança
e o progresso ainda parco do século e caminha
por dentro e por fora ao seu ritmo. O Portugal
de Júlio Dinis, os seus personagens, a cultura
que eles ilustram ou neles e com eles se exprime
não vão para parte alguma, utópica ou passionalmente desejada, estão. neste estar configuram
um particular momento da cultura portuguesa,
menos parada do que parece, cultura de um país
que abandona tranquilamente o «mundo antigo»,
o da cosmologia, da teologia, da ideologia que o
romantismo mal se atrevera a pôr em causa.
Aceitando uma espécie de sabedoria moderna,
amigo do progresso, confiante na bondade inata

20

do coração, Júlio Dinis tem um ar de discípulo do
vigário saboiardo, corrigido pela fleuma inglesa.
Com ele, além duma origi­nal captação do tempo,
ou, antes, da sua duração, surge no horizonte da
nossa cultura, destinado a futuro sucesso, o fan­
tasma da Inglaterra como influência paradigmática não apenas na ordem da economia, da
política, do poder, mas também na da ficção.
Vendo bem, esta segunda emergência do paradigma inglês na nossa cultura é então mais epidérmica do que o fora no roman­ismo. Não nos
t
trouxe nem o desafio transgressivo de Byron,
nem o amor de passados arquétipos, fonte de
novos nacionalismos, como Walter Scott. Júlio
Dinis, conhecedor do meio inglês do Porto, como
mais tarde António Nobre, é uma excepção, não
a regra. Nos meados do último século, Portugal
começa a sentir-se, sem mórbido sentimento de
inferioridade, provincial e pro­incianamente,
v
um pequeno país, politicamente pacífico, esfor­
çando-se por acompanhar uma Europa já em
plena segunda revolução industrial, sem imaginar sequer o que os seus efeitos irão induzir
na ordem dos comportamentos, das ideias, das

21
Citação Nº 8

cren­ as, pelo menos nos seus centros nevrálgiç
cos, Lisboa e Porto, e na sua única cidade universitária, Coimbra.
Portugal não está ainda na Europa, mesmo se a
nova Europa da máquina de vapor e do telégrafo,
da maior circulação dos jornais, está já dentro
das suas fronteiras. Na década de 60, Paris, então
capital cultural da Europa, fica ligada a Lisboa.
Em sentido próprio, Portugal acede um pouco
ao coração da Europa. Portugal, isto é, a sua
escassa classe financeira, industrial, aristocrática
e política, mas também, e de uma maneira paradoxal, a sua classe intelectual. É nesse momento
exacto que uma nova geração, como se acabasse
de descobrir um tesouro caído do céu, descobre
que não é europeia, isto é, que não sente, nem
conhece, nem pensa, nem cria como podia fazêlo se estivesse «realmente» nessa Europa que lhe
envia as suas criações e os ecos reais ou fantásticos do que toda uma juventude vai nomear a
«vida superior», a da Civilização, com maiúscula.

22

23
Citação Nº 9

Antero assume a pose do profeta da revolução,
melhor, do seu apóstolo, perfeitamente consciente do quixotismo que a sua crítica radical do
passado nacional representa, mas não menos
convicto de que a revolução que anuncia e de que
espera um novo Portugal é de essência reli­ iosa.
g
A sua célebre conferência termina assimilando o
socia­ismo ao cristianismo do mundo moderno:
l
«o cristianismo foi a revolução do mundo antigo:
a revolução não é mais que o cris­ianismo do
t
mundo moderno.»
Pelo seu carácter utopista, pela própria ambiguidade de um discurso que, ao mesmo tempo
que recusava a imagem do pas­ado nacional,
s
lhe anunciava um futuro digno de um Portugal
anterior à sua merecida decadência de povo que
não soubera conquistar a liberdade de consciência, nem cultivar o espírito científico, nem libertar-se da tentação imperial de tipo guerreiro, um
texto como o da «conferência» de Antero parecia
votado não apenas ao destino de uma provocação

24

retórica, como ao mais melancólico da inoperância, não só no plano ideológico, como no mais
decisivo, de ordem cultural.
Não foi o caso: pela sua radicalidade, pelo seu
retrato impiedoso — mesmo se, em parte, injusto
ou parcial —, não apenas deste ou daquele aspecto
da sociedade portuguesa, mas de Portugal
enquanto cultura estrutu­almente anacrónica,
r
desfasada do novo espírito europeu, filho da revolução e do progresso na ordem da crítica e da
ciência, o texto de Antero alcançou um estatuto sem equivalente na história da cultura portuguesa. Independentemente da sua pertinência
ou extravagância, esse texto instituiu Portugal,
enquanto destino histórico e cultural, e não apenas como sujeito político, como aconteceu no
romantismo, em assunto privilegiado da nossa
cultura. Ou, com mais precisão, instaurou a
cultura, não só nossa, mas em geral, como o horizonte dentro do qual um povo se define como
actor efectivo ou mero espectador da aventura da
humanidade concebida como um todo.

25
Citação Nº 10

Em menos de duas décadas, o panorama cultural
português sofreu uma metamorfose que só pode
comparar-se à que o im­ acto do Renascimento
p
italiano produzira entre nós no século XVI.
Numa perspectiva quase só literária, o nosso
romantismo reatara o antigo diálogo com a
Europa. De 1870 a 1890, esse diálogo tornou-se
imperativo e foi vivido e ilustrado, como Antero
o havia anunciado, em termos que poderíamos
rotular de «sociológicos» de inspiração diversa
e por vezes inconciliável ao nível dos princípios,
que iam de Proudhon a Auguste Comte, mas que
obedeciam a um leitmotiv comum: europeizar
Portugal, único meio de o arrancar à sua passividade e ao influxo do passado. A
europeização fazia-se em termos pragmáticos,
pelos progressos induzidos pela revolução industrial em curso, a que introduzia em Portugal,
como no resto da Europa, ou no longín­ uo Far
q
West, o caminho-de-ferro e o telégrafo, a especulação financeira, uma tímida indústria.

26

27
Citação Nº 11

Mais difícil, nos termos em que a Geração de
70 e, com ela, a maioria da classe liberal a dese­
javam, era a revolução cultural que o progresso
técnico supunha, a transformação do ensino,
a criação de uma tradição científica, o gosto da
experimentação, condições da liquidação do
passado e da construção de um novo Portugal.
Ora, como era fatal, os estigmas denunciados
por Antero eram tudo menos estímulos, eram os
próprios obstáculos a essa europeização mítica.
Nós não podíamos, por artes mágicas, transformar-nos nos Claude Bernard, nos Charcot, nos
Liebieg, nos Darwin ou mesmo nos Michelet,
nos Niebhur, nos Renan ou nos Comte, que essa
gera­ ão lia com paixão, mas também como fruç
tos excepcionais de uma cultura que lhes caía em
casa literalmente do céu.
O para­oxo da Geração de 70, que se dera
d
como missão «europeizar» Portugal, libertálo, na medida do possível, do seu arcaísmo, foi
o de retratar um país, como ninguém o fizera antes, em função de um modelo de civilização que tinha em Paris, Londres ou Berlim a
sua vitrina. O resultado, como seria de esperar, e

28

con­ rariamente aos seus propósitos de aggiornat
mento, foi um retra­o deprimente da sociedade
t
portuguesa, o de um Portugal não apenas pouco
ou nada «europeu», como essa geração o sonhava
ou pretendia, ao menos nas suas classes dominantes ou institui­ões representativas (Igreja,
ç
Parlamento, Banca, Universidade), mas mórbida e mimeticamente fascinado por essa mesma
Euro­pa que ele não era, mas oniricamente imaginava ser. Nunca se tirou a Portugal e à sua cultura
um retrato mais cruel do que aquele que Eça de
Queirós deixou, com o rasto indelével do génio
satírico e realista que foi o seu, nos mais famosos
roman­ es da nossa literatura. O facto de os retc
ratistas estarem também inscritos no retrato em
nada atenua a verdade nem o alcance desse olhar
sem piedade sobre nós mesmos.
Até porque a ironia e a auto-ironia, cada vez mais
presentes nessa descida ao coração do tempo
português, redimiam pouco a pouco essa espeleologia, para não dizer esse exercício de anatomia,
sobre o corpo morto de Portugal. Que no fim da
lição, que era para os seus autores uma mistura
indiscernível de júbilo e maceração, acabou por
ressuscitar e mesmo por subir ao céu.

29
Citação Nº 12

Para cada geração, a menos que haja catástrofe
natural ou herança amaldiçoada, o momento de
entrada na vida é um es­ lendor. A geração da
p
República conheceu o seu esplendor, so­ retudo
b
quando ainda o não era. O Portugal de então era
paupér­ imo, mas estava cheio de boa vontade. Lá
r
fora, o mundo e o século abriam em fanfarra. Os
homens lançam-se nos ares.
Os transatlânticos de luxo anunciam catástrofes
em que ninguém acreditava. Mesmo a guerra não
suspendeu o furor patético e universal do progresso. A guerra fazia o seu mal com a veloci­dade
e a tragédia, como sempre. Os pobres sentiamse menos pobres com tanta exposição universal.
Depois da belle époque, os anos loucos. Portugal
acompanhava de longe a festa dos outros. Sem
que ninguém lhe pedisse, ia bater-se na Flandres.
Era a nossa maneira de «estar na Europa» com
lama pelos joelhos.
Foi modesta, mas entusiasta e de boa vontade,
a nossa República. Queria saber, interessavase pela instrução, pela pedagogia, era sinceramente povo e popular. À parte as colónias, não
tinha ideal nenhum, queria ser uma pequena

França entre Douro e Guadiana. Mas os tempos
não iam para Franças. Qualquer coisa nova, mais
tarde baptizada de «rebelião das massas», exigia
ser actor da história, não apenas de feiras, festejos públicos e trabalho sem garantias.
O bolchevismo na atrasadíssima Rússia, o fascismo na paupérrima Itália, ofereciam os seus
modelos. Escolhemos o mais latino e o mais próximo. E demos-lhe uma de mão caseira, familiaríssima, revanche do tradicional catolicismo
contra o ci­adino anticlericalismo, cautério da
t
economia doméstica sobre a dependência excessiva do crédito e do investimento estrangeiro.
[...]
O Portugal real, rústico, pobre, politicamente
imerso em convulsões anedóticas, sofrendo as
repercussões da Europa, só retém das rêveries quiméricas de Pascoais, como reterá das não
menos quiméricas de Pessoa, o que pode ensartar
no seu ramalhete de nacionalismo ancestral.
O profético e o dinâmico delas escapam-lhe.
Sofre e orgulha-se por morrer na Flandres,
exalta-se por atravessar o Atlântico, sabe Deus
com que custo, para religar as duas metades de
um mundo luso-brasileiro então ainda sentimentalmente próximas. Mas não há um sujeito destes
feitos com sabor a epopeia forçada. A República
democrática, como se fosse uma pequena
Weimar, sonha com uma nova ordem. Em 1918,
o primeiro de uma longa série de «caudilhos»
dispostos a porem ordem na «desordem» europeia estabelece uma breve ditadura em Portugal.
Chamava-se Sidónio Pais e, talvez por ter sido

30

31
assassinado um ano depois, transformou-se num
dos raros personagens lendários da medíocre
história portuguesa deste século.
Uma vez mais ressuscitou-se nele o espectro
regenerador de D. Sebastião. Deste, tinha a coragem e o garbo. Adorado pelas mulheres, em
plena aurora do cinema, foi a primeira star da
nossa moderna mitologia. Suscitou paixões,
de nítido fundo anti-republicano e pré-ditatorial. Para que nunca mais fosse esquecido, entusiasmou Fernando Pessoa, que nunca morreu de amores pela «democracia à portuguesa».
Tínhamos, na tradição de Oliveira Martins, um
possível Bismark. Morto, tivemos uma referência
para uma nova ordem.
[...]
Até aos sobressaltos dos anos 60, conspícuos jornais do Ocidente referiram-se ao Estado Novo
como ao exemplo mesmo de «ditadura sábia».
Começa a ser possível, após vinte anos de democracia, num povo tão pragmático como o português, situarmo-nos melhor em relação a esse
meio século da história nacional, que teve a pretensão e a vontade, como nenhum outro desde o
século XVIII e da reforma liberal de Mousinho
da Silveira, de remodelar, em profundidade, não
só o destino político empírico de Portugal, mas a
sua mentalidade.
O que, a bem dizer, não era um trabalho de
Hércules, pois o essencial — à parte o esforço
de modernização material induzido pela época e
pelo seu dinamismo— dessa «remodelação» destinava-se, ao menos simbolicamente, a rasurar

sistematicamente os mais incómodos vestígios
da ideologia e da prática do século de liberalismo
que o precedeu.
Provavelmente, embora noutros termos, esta é
a situação da maioria das nações europeias —
todas velhas, mesmo as que parecem novas —
implicadas na edificação de um inédito organismo histórico-político chamado Europa. Talvez
só a Inglaterra lhe escape, que nunca foi nação
«só europeia», ou a Itália, que nunca foi nação.
Todas as outras, a começar pela mais orgânica
de todas, em termos políticos, a França ou a
Alemanha, poderosa massa etnocultural, conhecem no seu interior as dores inéditas de uma
mudança de ser, estar, actuar no mundo que ninguém sabe como assumir. O caso de Portugal é
único. Nunca esteve aco
mpanhado na definição do seu destino. Está
agora acompanhado de mais, de certo modo
sobreprotegido, contente com a companhia e as
ajudas que recebe, que o compensam do Império
perdido e, aparentemente, não o privam de nada.
Como no célebre monólogo de Gil Vicente, pode
ocupar com desembaraço os lugares de «tudo» e
de «ninguém».
Mas, obscuramente, no meio de orgias pagas
com o dinheiro dos outros, pela primeira vez,
Portugal não sabe bem o que é. Não sabe bem o
que é como destinocendo pouco esse nome por
serem eco do mero estado político ou ideológico
da Nação, Portugal está sofrendo uma metamorfose cultural de rara intensidade. Determinada
por uma séria revisitação do seu lastro histórico e

32

33
cultural próprio — em arqueologia, em história,
em organização administrativa e jurídica
autónomas, em vida simbólica —, tanto como
pela pressão de novos saberes e técnicas que já
não nos chegam com anos-luz de atraso, mas em
tempo real. Embora tudo se passe, em geral, em
compartimentos estanques, sem enquadramento
num plano que vise simbolicamente esse «outro
Portugal», mais interessante que o sonhado, para
folclóricas exibições para o mundo ver, como
Quinto Império. O Quinto Império está em
nossa casa se o não leiloarmos tão obscenamente
na feira dos mitos extintos.
E é aqui que o sintagma «Portugal como destino»
adquire a sua pertinência. De uma certa maneira,
como a última exposição do século o mostrou
— ao menos em parte e através do seu conceito
«oceânico» —, o mundo está todo em Portugal
e Portugal em parte alguma. Parece o sonho de
Pessoa, mas não é. É mesmo o contrário. A simbólica dispersão oceânica não nos trouxe de volta
o «mar português», este sentimento de ser uma
«realidade específica» em diálogo com o mundo,
um sítio nosso, e não um espaço de reciclagem
virtual das invenções, dos sentimentos, dos
escândalos dos outros, à la page pelos meridianos
de resto inacessíveis e, no fundo, desinteressantes
— de Amsterdão, ou de São Francisco, ou da
nova Moscovo. A história e o destino de Portugal
nunca foram trágicos fora da tragédia adiada que
a vida é. Também não o são agora. Pela primeira
vez, o nosso país vive-se a si mesmo e começa até
a ser visto pelos outros, que sabem onde ficamos

34

35
e quem somos, como um povo insolentemente
feliz. Exibicionistamente feliz, até, como nos está
nas veras da alma. Antes isso que o masoquismo,
um tudo nada hipócrita, com que éramos «os
lusíadas coitados». Mas de que está cheio este
novíssimo contentamento de arraial minhoto?
Da total ausência de interesse pela «ideia de
Portugal» que tenha qualquer conteúdo além
do da sua representação, da sua imagem, do seu
look no espelho alheio, seja ele desportivo, turístico, artístico, cultural, já que não é fácil imaginar que aí figure como uma referência obrigatória na ordem económica ou científica. No
meio século de cultura salazarista, Portugal só
tinha «exterior».
Ele mesmo era uma ilha, um «oásis de paz»,
como lhe chamou Marcelo Caetano, e só podia
distrair-se com a balbúrdia do mundo e as suas
extravagâncias. Desde há um quarto de século,
sem cuidados de império, rendeiros módicos da
nova Europa, podemos cultivar, enfim, o nosso
jardim, como o Cândido de Voltaire.
Não sem sucesso em tudo o que diz respeito a
alindamento público e doméstico, ao acesso a um
conforto que a segunda vaga migratória trouxe
até às aldeias camilianas da província portuguesa, prelúdio a uma «mundialização» de comportamentos, costumes, divertimento nocturno
e diurno que, pela primeira vez ou segunda, se
pensarmos nos Descobrimentos ou na revolução
do caminho-de-ferro, pôs termo, real e metafisicamente, ao fosso característico da cultura portuguesa e da maneira como durante séculos se

viveu e se amou nesse viver. Refiro-me, naturalmente, à tão nacional dicotomia — ao mesmo
tempo geográfica, metafísica e simbólica — do cá
dentro e lá fora.
Depois de Camões, contornando o lugar
extinto de Antero, Pascoais e Pessoa conceberam a empresa de «imaginar» um destino para
Portugal. Com uma radicalidade sem exemplo.
Reimaginando-o, não «pensando-o» em moldes
ou exemplos que nunca haviam sido os seus e
adaptados como se o fossem, se foi ele dissolvendo num país sempre atrasado na imitação de
modelos alheios que, como amigos de Job, vinham até à sua enxerga para o consolar.
Portugal não foi o único país da Europa que se
contorcionou na impotência de se viver e sentir
menos do que era ou tinha sido por não estar à
altura de uma modernidade incontornável por
fora e, mais ainda, por dentro. A questão ainda
não terminou, inverteu apenas os termos em que
era vivida nos fins do século XIX e princípios do
século XX. A Rússia de Dostoievski e de Tolstoi
e a Espanha de Unamuno transformaram o seu
mal-estar civilizacional e histórico em drama
espiritual e exportaram-no para o mundo,
primeiro simbólica ou miticamente, depois nas
convulsões de uma revolução destinada a mudar
não apenas «o destino de uma nação», mas também o da humanidade inteira.

36

37
Citação Nº 1

PORTUGAL
COMO DESTINO
Tempo português

38

A cultura portuguesa nunca produziu — pelo
menos até Eça de Queirós — nem Montaigne,
nem Montesquieu, nem Swift, nem Lessing, isto
é, um olhar exterior a si mesma que a acordasse, não de qualquer cegueira dogmática ou culposa, mas da contemplação feliz e maravilhada
de si mesma. Todos os povos vivem, mais ou
menos, confinados no amor de si próprios. Mas
a maneira como os Portugueses se comprazem
nessa adoração é verdadeiramente singular. Seria
absurdo pretender que um povo entre outros, e
ainda por cima um pequeno povo, possa estar
fora ou escapar a esse maelström a que chamamos História.
Contudo, evitar o destino comum, instalarse, não se sabe por que aberração ou milagre,
à margem do mundo, é um pouco aquilo que o
povo português sempre, tem feito. Portugal vivese «por dentro», numa espécie de isolamento sublimado, e «por fora», como o exemplo dos povos
de vocação universal, indo ao ponto de dispersar o seu corpo e a sua alma pelo mundo inteiro.
A imagem é de Camões e todos os portugueses
a conhecem de cor. Essa mitologia está inscrita

39
na bandeira portuguesa. Portugal foi o único
país que colocou no centro da sua bandeira a
esfera armilar, em suma, a representação do universo. Isto não espanta ninguém e ainda menos
os Portugueses.
Essa imagem não é apenas de ordem cosmológica
— consagração do papel de Portugal como descobridor de «novas terras e novos céus» —, mas de
ordem crística: a do convidado modesto sentado
no lugar de honra dos eleitos. esse, desenrolarse-á sem entraves no seu espaço interior, de Luís
de Camões ao padre António Vieira e a Pessoa,
ao mais banal dos seus governantes. O mais curioso é que, num momento de fanatismo, Portugal
amputou-se ou recalcou a sua parte de Israel para
se tomar, paradoxalmente, uma espécie de Israel
católico. Talvez estivesse na ordem das coisas
ou, pelo menos, da história. Em nome de Cristo,
Portugal assumiu o papel impossível de povo
«eleito».
À volta do brasão de Portugal, evocando as cinco
chagas de Cristo, os reis desse país, então senhor dos mares, do Brasil ao Japão, ousaram colocar-se no centro do mundo. Os Portugueses não
são o único povo que se sente desconhecido,
mal conhecido ou decaído do antigo esplendor,
real ou imaginário. De algum modo, é o caso de
toda a gente e, hoje, até daqueles povos e culturas
que, durante séculos, os outros olharam como
faróis do mundo. Mas o que surpreende, nos
Portugueses, é o facto de parecer terem decidido viver como os cristãos nas catacumbas. Não
porque pese sobre eles qualquer ameaça efectiva,

mas porque não suportam ser olhados por quem
ignore ou tenha esquecido a sua vida imaginária.
Preferem então, a exemplo de Fernando Pessoa,
ausentar-se de si mesmos e outorgar-se, como ele
o fez com insólita fulgurância, o próprio estatuto
da ausência.
Uma ausência onde tudo e nada são indefinidamente reversíveis: Não sou nada. Nunca serei
nada. Não posso querer ser nada. À parte isso,
tenho em mim todos os sonhos do mundo. Os
leitores estrangeiros imaginam muitas vezes que
Fernando Pessoa, convertido em português universal, é uma excepção. A título de génio literário, sem dúvida. Não a título de português,
a despeito do seu desejo de querer «ser tudo
de todas as maneiras» e sair assim, por conta
de todos, da «pequena casa lusitana», esse sítio
simultaneamente banal e onírico que é o único
onde os Portugueses se sentem em casa. Nele são
tão estrangeiros como fora dele.
O seu lugar não se situa apenas no mapa. E muito
menos se circunscreve ao pequeno rectângulo,
deitado à beira do Atlântico, carregado de passado e vida singulares, que chamamos Portugal.
Desde os tempos mais recuados que essa terra,
Atlântida sem lembrança dela, parece desertar
a Europa. Por necessidade ou cupidez, raro por
aventura, os Portugueses partiram dela ao longo
dos séculos, por vezes sem esperança de regresso.
A longa história de Portugal, incluindo nela a
anterior ao seu nascimento como reino, é a de
uma deriva e de uma fuga sem fim. Isso explica
a dispersão dos Portugueses e a sua presença no

40

41
mundo, outrora no Brasil, na África, no Oriente
e hoje no Canadá, nos Estados Unidos, na
Venezuela, no Havai ou mais perto, nesta Europa,
em França, na Alemanha na Suíça, mesmo na
vizinha Espanha. Mas nem essa deriva, nem essa
fuga, explicam a singularidade dos Portugueses.
Povo emigrante antes de o ser, por vontade ou
à força, adaptável, discreto no meio dos outros, sempre pronto, na aparência, a trocar a sua
identidade pela dos outros, na realidade nunca
abandonou o seu ponto de partida.
Quer dizer, a sua verdadeira pátria, a do sonho
adormecido mas nunca extinto no fundo do seu
ser. A saudade, a nostalgia ou a melancolia são
modalidades, modulações da nossa relação de
seres de memória e sensibilidade com o tempo.
Ou, antes, com a temporalidade, aquilo que, a
exemplo de Georges Poulet, designarei como
«tempo humano». Isso significa que essa temporalidade é diversa daquela outra, abstractamente
universal, que atribuímos ao tempo como sucessão irreversível.
Só esse «tempo humano», jogo da memória e
constitutivo dela, permite a inversão, a suspensão ficcional do tempo irreversível, fonte
de uma emoção a nenhuma outra comparável.
Nela e através dela sentimos ao mesmo tempo
a nossa fugacidade e a nossa eternidade. A esse
título, a nostalgia, a melancolia, a própria saudade, revindicada pelos Portugueses como um
estado intraduzível e singular, são sentimentos
ou vivências universais. Da universalidade do
«tempo humano», precisamente. É o conteúdo,

42

43
a cor desse tempo, a diversidade do jogo que a
memória desenha na sua leitura do passado o que
distingue a nostalgia da melancolia e estas duas
da saudade. Em si mesma, a saudade não tem
história. Mas têm-na as manifestações dela. Só
em termos historicistas, e sem nenhuma coerência interna, essa história — escrita com fins dogmáticos — mereceu alguma atenção.
Antes de ser pensada, a saudade foi cantada e
é filha e prisioneira do lirismo que primeiro
lhe deu voz. Antes de se tomar o mito que já a
não deixa pensar e a configura num papel hagiográfico-patriótico, a saudade não foi mais que
a expressão do excesso de amor em relação a
tudo o que merece ser amado: o amigo ausente,
a amada distante, a natureza imemorial e íntima,
escrínio de todos os amores, flor de verde pinho,
ondas do mar.
Nenhuma ressonância trágica perpassa naquelas canções em que a saudade comparece em toda
a sua ingenuidade. No seu berço céltico, o da
Galícia e Portugal, a saudade parece modulada
pelo ritmo universal do mar. Descobre-se, sem
bem o saber ainda, que a eternidade é feita de
tempo e o tempo de eternidade. Tudo é aí, simultaneamente, passado e presente. Esta música de
fundo, primeiro exterior, tornar-se-á música da
alma. Sabemos que o jovem Sartre pensou no
título Melancholia para o livro que havia de se
tomar célebre com o nome de A Náusea.

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  • 1. PORTUGAL COMO DESTINO Seguido de mitologia da saudade Eduardo Lourenço 1
  • 2. Índice Dramaturgia cultural portuguesa ................. 4 Tempo português .............................................. 38 2 3
  • 3. Citação Nº 1 PORTUGAL COMO DESTINO Dramaturgia cultural portuguesa 4 É tentador assimilar o destino de um povo ao do indivíduo, com o seu nascimento, a sua adolescência, maturidade e declínio. A analogia organicista é, naturalmente, falaciosa. Nem a povos ou civilizações extintos o paradigma humano se aplica. O tempo do indivíduo, a leitura que ele próprio faz do seu percurso, pode ajustar-se a esse processo de surgimento, afirmação e desapa­ ição. r Um povo tem igualmente uma história e, por comodidade hermenêutica, pode ser tentado a ler o seu percurso em termos subjectivos de afirmação de si, de presença mais ou menos forte entre os outros ou de existência precária ou ameaçada neste ou naquele momento. Mas o tempo dessa história não é, como o dos indivíduos, percebido ao mesmo tempo como finito e irrever­sível. O tempo de um povo é trans-histórico na própria medida em que é «historicidade», jogo imprevisível com os tempos diversos em que o seu destino se espelhou até ao presente e que o futuro reorganizará de maneira misteriosa. Cada povo só o é por se conceber e viver justamente como destino. Isto é, simbolicamente, como se existisse 5
  • 4. desde sempre e tivesse consigo uma promessa de duração eterna. É essa con­ icção que confere a v cada povo, a cada cultura, pois ambos são indissociáveis, o que chamamos «identidade». Como para os indivíduos, a identidade só se define na relação com o outro. Como essa relação varia com o tempo — é o que chamamos a nossa história —, a identidade é percebida e vivida por um povo em termos simultaneamente históricos e trans-históricos. Mas só o que a cada momento da vida de um povo aparece como para­ doxalmente inalterável ou subsistente através da sucessão dos tempos confere sentido ao conceito de identidade. Podemos assi­ ilar essa estranha m permanência no seio da mudança àquilo que os românticos alemães designaram, para desespero da historio­rafia iluminista, como «alma dos g povos». 6 Citação Nº 2 Frutuosamente na Índia, tomando-se a primeira potência colonizadora europeia, perde num único combate o seu jovem rei, D. Sebastião, e põe em perigo uma independência política velha de mais de quatro séculos. O Império-refúgio tinha-se tornado, com o tempo, um refúgio ilusório e fizera perder ao pequeno país que o inventara o sentido das realidades. 7
  • 5. Citação Nº 3 Monismo castelhano em geral, mas também interesse e fascínio pela cultura lusitana, sobretudo pela sua poesia lírica. Nada disto se altera com a perda de independência política. Mas altera-se aos poucos e, por fim, duravelmente, a imagem recíproca dos dois países. A Espanha, durante o século XVII, integra, incons­cientemente ou não, o património cultural lusitano no seu e Por­ ugal, consciente ou incont scientemente, reflui para si mesmo, toma-se de ilha imperial gloriosa em ilha perdida na qual espera a ressurreição do seu passado simbolicamente intacto e como que sublimado naquela obra que durante esses sessenta anos guardará intacta a memória do passado. O sebastianismo é ape­ as a forma popular dessa n crença de uma vinda do rei vencido. O verdadeiro Sebastião é o texto dos Lusíadas que desde então — embora só o romantismo lhe confira esse estatuto — se con­ erteu na referência icónica da v cultura portuguesa. 8 9
  • 6. Citação Nº 4 As categorias de ordem profana, tais como a historiografia moderna as explicitou, subordinando toda a compreensão a um processo de causas e consequências e inscrevendo a aventura humana numa temporalidade irreversível desvinculada do seu suporte simbólico e transtemporal, adaptam-se mal a fenómenos da pura ordem do desejo e do sonho como o do sebastianismo. Só numa cultura intrinsecamente mística que coloca na ressurrei­ão e, por conseguinte, no ç futuro o tempo que, resumindo todos os tempos, lhe dá sentido é que uma espera messiânica, real ou simbólica, como a que o sebastianismo encarnou em Portugal, é compreensível. E ninguém a ilustrou melhor do que o autor da História do Futuro, o padre António Vieira. Nenhum desmentido da experiência o arrancou ao sonho do regresso de D. Sebastião, que deveria representar para um Portugal restaurado, mas sem­ re em vias de perder a sua recuperada p independência, não só a confirmação dessa nova vida, mas também o anúncio e já o começo de um Quinto Império, o de Cristo, de que Portugal seria a histórica manifestação. António Vieira não era um louco rema­ tado, antes um sagaz observador do mundo, diplomata insigne com o seu quê de maquiavélico, entenda-se, ao serviço de causa em si mesmo boa, como é próprio de um eminente jesuíta. A sua visão, de forte inspiração bíblica, constitui um todo. Não há outro código para decifrar os aparentemente contraditórios e até perturbantes acontecimentos de um mundo criado por Deus e governado pela sua Providência além do texto bíblico. Que é um texto, não acidental, mas intrinsecamente profético. O tempo da profecia não se regula pelos imperativos da temporalidade hu­mana. Tudo nele são sinais e indícios. Portugal não é para ele uma nação como outra qualquer. É uma nação literalmente eleita. Eleita para anunciar e ilustrar o reino universal de Cristo, tal como ele e os seus companheiros de missão o anunciam em terras da China ou nas florestas da Amazónia. O destino singular e universal de Portugal não se resume no facto de a sua presença e, com ela, a imagem de Cristo terem chegado aos quatro cantos da Terra. Esse é apenas um indício exterior. Mesmo antes de se lançar na sua aventura descobridora e missionária, Portugal, para António Vieira, era já um povo messiânico. Um povo assim não pode perecer. As suas quedas — como a de Alcácer Quibir ou a da perda da independência — explicam-se por qualquer desvio do ideal de que é portador. Não há na cultura portuguesa dis­curso mais alucinatório e sublime que o de António Vieira. É a síntese arrebatada, mas 10 11
  • 7. simbolicamente coerente, de cinco sécu­ de los vida colectiva vividos com a convicção arreigada mas também culturalmente cultivada de que a própria existência de Portugal é da ordem não só do milagre, como da profecia. Pela sua pública fidelidade crística, Portugal profetiza. Pelo menos, profetizava nos tempos de Vieira, nesse século XVII em que a cultura portuguesa, no sentido profano, mas tam­ ém religib oso, dialoga cautamente com a cultura dominante do tempo. O seu tempo próprio é outro, o da fidelidade incondi­ional, exageradamente c passiva, à ortodoxia consagrada pelo Concílio de Trento. Exagerou-se sem dúvida, num tempo de reatamento com o movimento geral da Europa, como foi já o do século XVIII, ainda no tempo de D. João V, monarca faustoso e mecenas de vários artistas europeus, e sobretudo no de Pombal, o nosso isolamento, tido como indeclinável decadência. Mesmo António Vieira, que na segunda metade do século XVII muito viajara na Europa ao serviço do Portugal restaurado, patriota ardente, sofreu com essa imagem de povo decaído, pouco conhe­ido e considerado na Europa. Sessenta c anos de submissão po­ítica a Espanha haviam l subalternizado Portugal e, quando, em 1640, os Portugueses recuperam, penosamente, com forte auxí­io diplomático ou conivência da Inglaterra l e da França, a sua autonomia, é como se tivessem acordado outros. Conscientes disso, os seus reis não são representados com a sua coroa real na cabeça, mas com ela ao lado, em rica mesa. 12 13
  • 8. Alguma coisa se quebrara com o interregno filipino — assim será pensado o do­ ínio espanhol m após a Restauração — e a memória portuguesa integra uma espécie de não-tempo, que desde então será sempre não só dolorosamente recordado, mas como que subtraído ao curso glorificado da nossa história. Emergindo desse tempo, baptizado como cativeiro, uma vez mais assimilado à época de escravidão do povo judaico em Babilónia, a Restauração só podia ser pensada e vivida como o terceiro milagre português. E ninguém contribuiu mais do que António Vieira para lhe conferir esse estatuto. Na lógica profé­ica de António Vieira importa t tanto a temporalidade sincrónica dos acontecimentos como a capacidade de os usar para fins, na lógica ordinária, inconciliáveis. Sobre a experiência dos tempos de cativeiro, resgatados pelo seu fim providencial, António Vieira, reunindo numa só visão as profecias do sapateiro Bandarra, émulo de Nostradamus, as esperanças no regresso de D. Sebastião, refundador não só do reino perdido, mas de um novo reino, erguerá a sua utopia de um Quinto Império, prome­ ido, t segundo ele, ao primeiro rei de Portugal e contido nos Descobrimentos iniciadores e iniciáticos do infante D. Henrique. Esta utopia e o seu sonho chegaram intactos até à Mensagem, de Fernando Pessoa. 14 Citação Nº 5 Mas porventura o mais original, nesta versão de um Quinto e último império sob a égide de Cristo, foi o facto de António Vieira ter imaginado que a sua prova, e igualmente o seu centro mítico, não seria tanto o abatido Portugal como o Portugal restaurado, para quem o jovem Brasil era já a anteci­ ada certeza de perenidade p e grandeza. Atentou-se pouco, tomando-a como interessado desvario, que o Norte do Brasil fora a terra missionária de eleição de António Vieira, nesta translação do sonho imperial português do Oriente para o Brasil. Nos dois casos, Portugal habituarase a viver fora de si mesmo e a vincular a sua imagem única de povo europeu a esses dois espaços. Mas um encolhia a olhos vistos, o do Oriente ou o da primeira expansão africana. Ainda nos meados do século XVI, Portugal abandona os seus pontos fortes em Marrocos. E no século XVII vai deixando a Holandeses e Ingleses o monopólio comercial do Oriente. Com a Restauração, para assegurar o apoio inglês, cede Bombaim, Tânger e a mão de uma princesa à aliada e, desde então, sempre protectora 15
  • 9. Inglaterra. Ficava o Brasil, que, liberto da ameaça holandesa que António Vieira vivera de cruz, arma e palavra nos lábios, se desenhava como refúgio, promessa e garantia de uma sobrevivência política nacional sem par. Durante mais de dois séculos, Portugal — e ainda mais os portugueses do Brasil e os já brasileiros — inventa o Brasil e o Brasil assegura a Portugal, por vezes em sentido literal, a sua sobrevivência. Citação Nº 6 De tão fundas consequências como a fundação «historial» de Herculano foi a recriação visionária e mítica de Garrett. O que Herculano fundou em prosa epicamente nostálgica, Garrett fun­ ou em d nostalgia elegíaca, colocando Camões, de uma vez para sempre, no centro da nova mitologia pátria, pátria de feitos, sem dúvida, mas pátria de canto, de cultura, sem as quais a memória deles não existe. Mas não o pôs no centro sem lhe mudar de algum modo o conteúdo e, até, de o inverter. É ele o verdadeiro rei Sebastião ou, pelo menos, o seu livro o novo Gral, pois foi por via dele, como no seu drama Frei Luís de Sousa é manifesto, que a esperança da ressurreição pátria se conservou. Pátria que nesse momento de liberdade triunfante, mas impotente — tão vulnerável a sente Garrett como quase todo o seu século —, precisa de se lembrar do seu passado glorioso para não desespe­ ar do futuro. Portugal existe porque r existiu e existiu porque Camões o salvaguardou na sua memória, como a dos Hebreus se perpetua na Bíblia. Garrett não espera o futuro e o 16 17
  • 10. renascimento da alma e da cultura portuguesas de qualquer profecia com ga­ antia providencial, r mas da vontade e da capacidade de rees­ rever o c seu passado como se fosse presente e de reler nas pedras do presente que atestam tão glorioso passado, «viajando na nossa terra», a mensagem do futuro. A saudade é gosto amargo do bem passado, «delicioso pungir de acerbo espinho», mas igualmente penhor de ressurreição do que, por excesso de vida, não pode morrer. Com ele, a saudade não é apenas perfume de alegrias mortas, sentimento um pouco desencantado de não encontrar no presente a imagem perdida de um país fora da história, como lhe parece — ou parece o seu a olhos estranhos —, mas o corpo e a sombra da alma portuguesa. Unindo historicamente, e não acidental ou liricamente, Portugal e a saudade, Garrett instaurou a primeira mitologia cultural portuguesa sem transcendência. A que fez do país de Camões o país-saudade, o Portugalsaudade, que não tem outro destino senão o da busca de si mesmo. Com adequação aos tempos e aos modos da futura vida portu­guesa, o essencial desta percepção mítica de Portugal permane­ erá c intacto até aos dias de Pascoais e de Pessoa. 18 19
  • 11. Citação Nº 7 O mundo e a visão romanescos de Júlio Dinis são mais intranscendentes. Mas o seu retrato de Portugal, contemporâneo do de Camilo, retrato de pose longa, como então se usava na fotografia, desenha, por assim dizer, a outra face, se não do mesmo Portugal, a sua versão numa óptica desdramatizada ou, em todo o caso, não trágica, adequada a uma sociedade que aceita a mudança e o progresso ainda parco do século e caminha por dentro e por fora ao seu ritmo. O Portugal de Júlio Dinis, os seus personagens, a cultura que eles ilustram ou neles e com eles se exprime não vão para parte alguma, utópica ou passionalmente desejada, estão. neste estar configuram um particular momento da cultura portuguesa, menos parada do que parece, cultura de um país que abandona tranquilamente o «mundo antigo», o da cosmologia, da teologia, da ideologia que o romantismo mal se atrevera a pôr em causa. Aceitando uma espécie de sabedoria moderna, amigo do progresso, confiante na bondade inata 20 do coração, Júlio Dinis tem um ar de discípulo do vigário saboiardo, corrigido pela fleuma inglesa. Com ele, além duma origi­nal captação do tempo, ou, antes, da sua duração, surge no horizonte da nossa cultura, destinado a futuro sucesso, o fan­ tasma da Inglaterra como influência paradigmática não apenas na ordem da economia, da política, do poder, mas também na da ficção. Vendo bem, esta segunda emergência do paradigma inglês na nossa cultura é então mais epidérmica do que o fora no roman­ismo. Não nos t trouxe nem o desafio transgressivo de Byron, nem o amor de passados arquétipos, fonte de novos nacionalismos, como Walter Scott. Júlio Dinis, conhecedor do meio inglês do Porto, como mais tarde António Nobre, é uma excepção, não a regra. Nos meados do último século, Portugal começa a sentir-se, sem mórbido sentimento de inferioridade, provincial e pro­incianamente, v um pequeno país, politicamente pacífico, esfor­ çando-se por acompanhar uma Europa já em plena segunda revolução industrial, sem imaginar sequer o que os seus efeitos irão induzir na ordem dos comportamentos, das ideias, das 21
  • 12. Citação Nº 8 cren­ as, pelo menos nos seus centros nevrálgiç cos, Lisboa e Porto, e na sua única cidade universitária, Coimbra. Portugal não está ainda na Europa, mesmo se a nova Europa da máquina de vapor e do telégrafo, da maior circulação dos jornais, está já dentro das suas fronteiras. Na década de 60, Paris, então capital cultural da Europa, fica ligada a Lisboa. Em sentido próprio, Portugal acede um pouco ao coração da Europa. Portugal, isto é, a sua escassa classe financeira, industrial, aristocrática e política, mas também, e de uma maneira paradoxal, a sua classe intelectual. É nesse momento exacto que uma nova geração, como se acabasse de descobrir um tesouro caído do céu, descobre que não é europeia, isto é, que não sente, nem conhece, nem pensa, nem cria como podia fazêlo se estivesse «realmente» nessa Europa que lhe envia as suas criações e os ecos reais ou fantásticos do que toda uma juventude vai nomear a «vida superior», a da Civilização, com maiúscula. 22 23
  • 13. Citação Nº 9 Antero assume a pose do profeta da revolução, melhor, do seu apóstolo, perfeitamente consciente do quixotismo que a sua crítica radical do passado nacional representa, mas não menos convicto de que a revolução que anuncia e de que espera um novo Portugal é de essência reli­ iosa. g A sua célebre conferência termina assimilando o socia­ismo ao cristianismo do mundo moderno: l «o cristianismo foi a revolução do mundo antigo: a revolução não é mais que o cris­ianismo do t mundo moderno.» Pelo seu carácter utopista, pela própria ambiguidade de um discurso que, ao mesmo tempo que recusava a imagem do pas­ado nacional, s lhe anunciava um futuro digno de um Portugal anterior à sua merecida decadência de povo que não soubera conquistar a liberdade de consciência, nem cultivar o espírito científico, nem libertar-se da tentação imperial de tipo guerreiro, um texto como o da «conferência» de Antero parecia votado não apenas ao destino de uma provocação 24 retórica, como ao mais melancólico da inoperância, não só no plano ideológico, como no mais decisivo, de ordem cultural. Não foi o caso: pela sua radicalidade, pelo seu retrato impiedoso — mesmo se, em parte, injusto ou parcial —, não apenas deste ou daquele aspecto da sociedade portuguesa, mas de Portugal enquanto cultura estrutu­almente anacrónica, r desfasada do novo espírito europeu, filho da revolução e do progresso na ordem da crítica e da ciência, o texto de Antero alcançou um estatuto sem equivalente na história da cultura portuguesa. Independentemente da sua pertinência ou extravagância, esse texto instituiu Portugal, enquanto destino histórico e cultural, e não apenas como sujeito político, como aconteceu no romantismo, em assunto privilegiado da nossa cultura. Ou, com mais precisão, instaurou a cultura, não só nossa, mas em geral, como o horizonte dentro do qual um povo se define como actor efectivo ou mero espectador da aventura da humanidade concebida como um todo. 25
  • 14. Citação Nº 10 Em menos de duas décadas, o panorama cultural português sofreu uma metamorfose que só pode comparar-se à que o im­ acto do Renascimento p italiano produzira entre nós no século XVI. Numa perspectiva quase só literária, o nosso romantismo reatara o antigo diálogo com a Europa. De 1870 a 1890, esse diálogo tornou-se imperativo e foi vivido e ilustrado, como Antero o havia anunciado, em termos que poderíamos rotular de «sociológicos» de inspiração diversa e por vezes inconciliável ao nível dos princípios, que iam de Proudhon a Auguste Comte, mas que obedeciam a um leitmotiv comum: europeizar Portugal, único meio de o arrancar à sua passividade e ao influxo do passado. A europeização fazia-se em termos pragmáticos, pelos progressos induzidos pela revolução industrial em curso, a que introduzia em Portugal, como no resto da Europa, ou no longín­ uo Far q West, o caminho-de-ferro e o telégrafo, a especulação financeira, uma tímida indústria. 26 27
  • 15. Citação Nº 11 Mais difícil, nos termos em que a Geração de 70 e, com ela, a maioria da classe liberal a dese­ javam, era a revolução cultural que o progresso técnico supunha, a transformação do ensino, a criação de uma tradição científica, o gosto da experimentação, condições da liquidação do passado e da construção de um novo Portugal. Ora, como era fatal, os estigmas denunciados por Antero eram tudo menos estímulos, eram os próprios obstáculos a essa europeização mítica. Nós não podíamos, por artes mágicas, transformar-nos nos Claude Bernard, nos Charcot, nos Liebieg, nos Darwin ou mesmo nos Michelet, nos Niebhur, nos Renan ou nos Comte, que essa gera­ ão lia com paixão, mas também como fruç tos excepcionais de uma cultura que lhes caía em casa literalmente do céu. O para­oxo da Geração de 70, que se dera d como missão «europeizar» Portugal, libertálo, na medida do possível, do seu arcaísmo, foi o de retratar um país, como ninguém o fizera antes, em função de um modelo de civilização que tinha em Paris, Londres ou Berlim a sua vitrina. O resultado, como seria de esperar, e 28 con­ rariamente aos seus propósitos de aggiornat mento, foi um retra­o deprimente da sociedade t portuguesa, o de um Portugal não apenas pouco ou nada «europeu», como essa geração o sonhava ou pretendia, ao menos nas suas classes dominantes ou institui­ões representativas (Igreja, ç Parlamento, Banca, Universidade), mas mórbida e mimeticamente fascinado por essa mesma Euro­pa que ele não era, mas oniricamente imaginava ser. Nunca se tirou a Portugal e à sua cultura um retrato mais cruel do que aquele que Eça de Queirós deixou, com o rasto indelével do génio satírico e realista que foi o seu, nos mais famosos roman­ es da nossa literatura. O facto de os retc ratistas estarem também inscritos no retrato em nada atenua a verdade nem o alcance desse olhar sem piedade sobre nós mesmos. Até porque a ironia e a auto-ironia, cada vez mais presentes nessa descida ao coração do tempo português, redimiam pouco a pouco essa espeleologia, para não dizer esse exercício de anatomia, sobre o corpo morto de Portugal. Que no fim da lição, que era para os seus autores uma mistura indiscernível de júbilo e maceração, acabou por ressuscitar e mesmo por subir ao céu. 29
  • 16. Citação Nº 12 Para cada geração, a menos que haja catástrofe natural ou herança amaldiçoada, o momento de entrada na vida é um es­ lendor. A geração da p República conheceu o seu esplendor, so­ retudo b quando ainda o não era. O Portugal de então era paupér­ imo, mas estava cheio de boa vontade. Lá r fora, o mundo e o século abriam em fanfarra. Os homens lançam-se nos ares. Os transatlânticos de luxo anunciam catástrofes em que ninguém acreditava. Mesmo a guerra não suspendeu o furor patético e universal do progresso. A guerra fazia o seu mal com a veloci­dade e a tragédia, como sempre. Os pobres sentiamse menos pobres com tanta exposição universal. Depois da belle époque, os anos loucos. Portugal acompanhava de longe a festa dos outros. Sem que ninguém lhe pedisse, ia bater-se na Flandres. Era a nossa maneira de «estar na Europa» com lama pelos joelhos. Foi modesta, mas entusiasta e de boa vontade, a nossa República. Queria saber, interessavase pela instrução, pela pedagogia, era sinceramente povo e popular. À parte as colónias, não tinha ideal nenhum, queria ser uma pequena França entre Douro e Guadiana. Mas os tempos não iam para Franças. Qualquer coisa nova, mais tarde baptizada de «rebelião das massas», exigia ser actor da história, não apenas de feiras, festejos públicos e trabalho sem garantias. O bolchevismo na atrasadíssima Rússia, o fascismo na paupérrima Itália, ofereciam os seus modelos. Escolhemos o mais latino e o mais próximo. E demos-lhe uma de mão caseira, familiaríssima, revanche do tradicional catolicismo contra o ci­adino anticlericalismo, cautério da t economia doméstica sobre a dependência excessiva do crédito e do investimento estrangeiro. [...] O Portugal real, rústico, pobre, politicamente imerso em convulsões anedóticas, sofrendo as repercussões da Europa, só retém das rêveries quiméricas de Pascoais, como reterá das não menos quiméricas de Pessoa, o que pode ensartar no seu ramalhete de nacionalismo ancestral. O profético e o dinâmico delas escapam-lhe. Sofre e orgulha-se por morrer na Flandres, exalta-se por atravessar o Atlântico, sabe Deus com que custo, para religar as duas metades de um mundo luso-brasileiro então ainda sentimentalmente próximas. Mas não há um sujeito destes feitos com sabor a epopeia forçada. A República democrática, como se fosse uma pequena Weimar, sonha com uma nova ordem. Em 1918, o primeiro de uma longa série de «caudilhos» dispostos a porem ordem na «desordem» europeia estabelece uma breve ditadura em Portugal. Chamava-se Sidónio Pais e, talvez por ter sido 30 31
  • 17. assassinado um ano depois, transformou-se num dos raros personagens lendários da medíocre história portuguesa deste século. Uma vez mais ressuscitou-se nele o espectro regenerador de D. Sebastião. Deste, tinha a coragem e o garbo. Adorado pelas mulheres, em plena aurora do cinema, foi a primeira star da nossa moderna mitologia. Suscitou paixões, de nítido fundo anti-republicano e pré-ditatorial. Para que nunca mais fosse esquecido, entusiasmou Fernando Pessoa, que nunca morreu de amores pela «democracia à portuguesa». Tínhamos, na tradição de Oliveira Martins, um possível Bismark. Morto, tivemos uma referência para uma nova ordem. [...] Até aos sobressaltos dos anos 60, conspícuos jornais do Ocidente referiram-se ao Estado Novo como ao exemplo mesmo de «ditadura sábia». Começa a ser possível, após vinte anos de democracia, num povo tão pragmático como o português, situarmo-nos melhor em relação a esse meio século da história nacional, que teve a pretensão e a vontade, como nenhum outro desde o século XVIII e da reforma liberal de Mousinho da Silveira, de remodelar, em profundidade, não só o destino político empírico de Portugal, mas a sua mentalidade. O que, a bem dizer, não era um trabalho de Hércules, pois o essencial — à parte o esforço de modernização material induzido pela época e pelo seu dinamismo— dessa «remodelação» destinava-se, ao menos simbolicamente, a rasurar sistematicamente os mais incómodos vestígios da ideologia e da prática do século de liberalismo que o precedeu. Provavelmente, embora noutros termos, esta é a situação da maioria das nações europeias — todas velhas, mesmo as que parecem novas — implicadas na edificação de um inédito organismo histórico-político chamado Europa. Talvez só a Inglaterra lhe escape, que nunca foi nação «só europeia», ou a Itália, que nunca foi nação. Todas as outras, a começar pela mais orgânica de todas, em termos políticos, a França ou a Alemanha, poderosa massa etnocultural, conhecem no seu interior as dores inéditas de uma mudança de ser, estar, actuar no mundo que ninguém sabe como assumir. O caso de Portugal é único. Nunca esteve aco mpanhado na definição do seu destino. Está agora acompanhado de mais, de certo modo sobreprotegido, contente com a companhia e as ajudas que recebe, que o compensam do Império perdido e, aparentemente, não o privam de nada. Como no célebre monólogo de Gil Vicente, pode ocupar com desembaraço os lugares de «tudo» e de «ninguém». Mas, obscuramente, no meio de orgias pagas com o dinheiro dos outros, pela primeira vez, Portugal não sabe bem o que é. Não sabe bem o que é como destinocendo pouco esse nome por serem eco do mero estado político ou ideológico da Nação, Portugal está sofrendo uma metamorfose cultural de rara intensidade. Determinada por uma séria revisitação do seu lastro histórico e 32 33
  • 18. cultural próprio — em arqueologia, em história, em organização administrativa e jurídica autónomas, em vida simbólica —, tanto como pela pressão de novos saberes e técnicas que já não nos chegam com anos-luz de atraso, mas em tempo real. Embora tudo se passe, em geral, em compartimentos estanques, sem enquadramento num plano que vise simbolicamente esse «outro Portugal», mais interessante que o sonhado, para folclóricas exibições para o mundo ver, como Quinto Império. O Quinto Império está em nossa casa se o não leiloarmos tão obscenamente na feira dos mitos extintos. E é aqui que o sintagma «Portugal como destino» adquire a sua pertinência. De uma certa maneira, como a última exposição do século o mostrou — ao menos em parte e através do seu conceito «oceânico» —, o mundo está todo em Portugal e Portugal em parte alguma. Parece o sonho de Pessoa, mas não é. É mesmo o contrário. A simbólica dispersão oceânica não nos trouxe de volta o «mar português», este sentimento de ser uma «realidade específica» em diálogo com o mundo, um sítio nosso, e não um espaço de reciclagem virtual das invenções, dos sentimentos, dos escândalos dos outros, à la page pelos meridianos de resto inacessíveis e, no fundo, desinteressantes — de Amsterdão, ou de São Francisco, ou da nova Moscovo. A história e o destino de Portugal nunca foram trágicos fora da tragédia adiada que a vida é. Também não o são agora. Pela primeira vez, o nosso país vive-se a si mesmo e começa até a ser visto pelos outros, que sabem onde ficamos 34 35
  • 19. e quem somos, como um povo insolentemente feliz. Exibicionistamente feliz, até, como nos está nas veras da alma. Antes isso que o masoquismo, um tudo nada hipócrita, com que éramos «os lusíadas coitados». Mas de que está cheio este novíssimo contentamento de arraial minhoto? Da total ausência de interesse pela «ideia de Portugal» que tenha qualquer conteúdo além do da sua representação, da sua imagem, do seu look no espelho alheio, seja ele desportivo, turístico, artístico, cultural, já que não é fácil imaginar que aí figure como uma referência obrigatória na ordem económica ou científica. No meio século de cultura salazarista, Portugal só tinha «exterior». Ele mesmo era uma ilha, um «oásis de paz», como lhe chamou Marcelo Caetano, e só podia distrair-se com a balbúrdia do mundo e as suas extravagâncias. Desde há um quarto de século, sem cuidados de império, rendeiros módicos da nova Europa, podemos cultivar, enfim, o nosso jardim, como o Cândido de Voltaire. Não sem sucesso em tudo o que diz respeito a alindamento público e doméstico, ao acesso a um conforto que a segunda vaga migratória trouxe até às aldeias camilianas da província portuguesa, prelúdio a uma «mundialização» de comportamentos, costumes, divertimento nocturno e diurno que, pela primeira vez ou segunda, se pensarmos nos Descobrimentos ou na revolução do caminho-de-ferro, pôs termo, real e metafisicamente, ao fosso característico da cultura portuguesa e da maneira como durante séculos se viveu e se amou nesse viver. Refiro-me, naturalmente, à tão nacional dicotomia — ao mesmo tempo geográfica, metafísica e simbólica — do cá dentro e lá fora. Depois de Camões, contornando o lugar extinto de Antero, Pascoais e Pessoa conceberam a empresa de «imaginar» um destino para Portugal. Com uma radicalidade sem exemplo. Reimaginando-o, não «pensando-o» em moldes ou exemplos que nunca haviam sido os seus e adaptados como se o fossem, se foi ele dissolvendo num país sempre atrasado na imitação de modelos alheios que, como amigos de Job, vinham até à sua enxerga para o consolar. Portugal não foi o único país da Europa que se contorcionou na impotência de se viver e sentir menos do que era ou tinha sido por não estar à altura de uma modernidade incontornável por fora e, mais ainda, por dentro. A questão ainda não terminou, inverteu apenas os termos em que era vivida nos fins do século XIX e princípios do século XX. A Rússia de Dostoievski e de Tolstoi e a Espanha de Unamuno transformaram o seu mal-estar civilizacional e histórico em drama espiritual e exportaram-no para o mundo, primeiro simbólica ou miticamente, depois nas convulsões de uma revolução destinada a mudar não apenas «o destino de uma nação», mas também o da humanidade inteira. 36 37
  • 20. Citação Nº 1 PORTUGAL COMO DESTINO Tempo português 38 A cultura portuguesa nunca produziu — pelo menos até Eça de Queirós — nem Montaigne, nem Montesquieu, nem Swift, nem Lessing, isto é, um olhar exterior a si mesma que a acordasse, não de qualquer cegueira dogmática ou culposa, mas da contemplação feliz e maravilhada de si mesma. Todos os povos vivem, mais ou menos, confinados no amor de si próprios. Mas a maneira como os Portugueses se comprazem nessa adoração é verdadeiramente singular. Seria absurdo pretender que um povo entre outros, e ainda por cima um pequeno povo, possa estar fora ou escapar a esse maelström a que chamamos História. Contudo, evitar o destino comum, instalarse, não se sabe por que aberração ou milagre, à margem do mundo, é um pouco aquilo que o povo português sempre, tem feito. Portugal vivese «por dentro», numa espécie de isolamento sublimado, e «por fora», como o exemplo dos povos de vocação universal, indo ao ponto de dispersar o seu corpo e a sua alma pelo mundo inteiro. A imagem é de Camões e todos os portugueses a conhecem de cor. Essa mitologia está inscrita 39
  • 21. na bandeira portuguesa. Portugal foi o único país que colocou no centro da sua bandeira a esfera armilar, em suma, a representação do universo. Isto não espanta ninguém e ainda menos os Portugueses. Essa imagem não é apenas de ordem cosmológica — consagração do papel de Portugal como descobridor de «novas terras e novos céus» —, mas de ordem crística: a do convidado modesto sentado no lugar de honra dos eleitos. esse, desenrolarse-á sem entraves no seu espaço interior, de Luís de Camões ao padre António Vieira e a Pessoa, ao mais banal dos seus governantes. O mais curioso é que, num momento de fanatismo, Portugal amputou-se ou recalcou a sua parte de Israel para se tomar, paradoxalmente, uma espécie de Israel católico. Talvez estivesse na ordem das coisas ou, pelo menos, da história. Em nome de Cristo, Portugal assumiu o papel impossível de povo «eleito». À volta do brasão de Portugal, evocando as cinco chagas de Cristo, os reis desse país, então senhor dos mares, do Brasil ao Japão, ousaram colocar-se no centro do mundo. Os Portugueses não são o único povo que se sente desconhecido, mal conhecido ou decaído do antigo esplendor, real ou imaginário. De algum modo, é o caso de toda a gente e, hoje, até daqueles povos e culturas que, durante séculos, os outros olharam como faróis do mundo. Mas o que surpreende, nos Portugueses, é o facto de parecer terem decidido viver como os cristãos nas catacumbas. Não porque pese sobre eles qualquer ameaça efectiva, mas porque não suportam ser olhados por quem ignore ou tenha esquecido a sua vida imaginária. Preferem então, a exemplo de Fernando Pessoa, ausentar-se de si mesmos e outorgar-se, como ele o fez com insólita fulgurância, o próprio estatuto da ausência. Uma ausência onde tudo e nada são indefinidamente reversíveis: Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Os leitores estrangeiros imaginam muitas vezes que Fernando Pessoa, convertido em português universal, é uma excepção. A título de génio literário, sem dúvida. Não a título de português, a despeito do seu desejo de querer «ser tudo de todas as maneiras» e sair assim, por conta de todos, da «pequena casa lusitana», esse sítio simultaneamente banal e onírico que é o único onde os Portugueses se sentem em casa. Nele são tão estrangeiros como fora dele. O seu lugar não se situa apenas no mapa. E muito menos se circunscreve ao pequeno rectângulo, deitado à beira do Atlântico, carregado de passado e vida singulares, que chamamos Portugal. Desde os tempos mais recuados que essa terra, Atlântida sem lembrança dela, parece desertar a Europa. Por necessidade ou cupidez, raro por aventura, os Portugueses partiram dela ao longo dos séculos, por vezes sem esperança de regresso. A longa história de Portugal, incluindo nela a anterior ao seu nascimento como reino, é a de uma deriva e de uma fuga sem fim. Isso explica a dispersão dos Portugueses e a sua presença no 40 41
  • 22. mundo, outrora no Brasil, na África, no Oriente e hoje no Canadá, nos Estados Unidos, na Venezuela, no Havai ou mais perto, nesta Europa, em França, na Alemanha na Suíça, mesmo na vizinha Espanha. Mas nem essa deriva, nem essa fuga, explicam a singularidade dos Portugueses. Povo emigrante antes de o ser, por vontade ou à força, adaptável, discreto no meio dos outros, sempre pronto, na aparência, a trocar a sua identidade pela dos outros, na realidade nunca abandonou o seu ponto de partida. Quer dizer, a sua verdadeira pátria, a do sonho adormecido mas nunca extinto no fundo do seu ser. A saudade, a nostalgia ou a melancolia são modalidades, modulações da nossa relação de seres de memória e sensibilidade com o tempo. Ou, antes, com a temporalidade, aquilo que, a exemplo de Georges Poulet, designarei como «tempo humano». Isso significa que essa temporalidade é diversa daquela outra, abstractamente universal, que atribuímos ao tempo como sucessão irreversível. Só esse «tempo humano», jogo da memória e constitutivo dela, permite a inversão, a suspensão ficcional do tempo irreversível, fonte de uma emoção a nenhuma outra comparável. Nela e através dela sentimos ao mesmo tempo a nossa fugacidade e a nossa eternidade. A esse título, a nostalgia, a melancolia, a própria saudade, revindicada pelos Portugueses como um estado intraduzível e singular, são sentimentos ou vivências universais. Da universalidade do «tempo humano», precisamente. É o conteúdo, 42 43
  • 23. a cor desse tempo, a diversidade do jogo que a memória desenha na sua leitura do passado o que distingue a nostalgia da melancolia e estas duas da saudade. Em si mesma, a saudade não tem história. Mas têm-na as manifestações dela. Só em termos historicistas, e sem nenhuma coerência interna, essa história — escrita com fins dogmáticos — mereceu alguma atenção. Antes de ser pensada, a saudade foi cantada e é filha e prisioneira do lirismo que primeiro lhe deu voz. Antes de se tomar o mito que já a não deixa pensar e a configura num papel hagiográfico-patriótico, a saudade não foi mais que a expressão do excesso de amor em relação a tudo o que merece ser amado: o amigo ausente, a amada distante, a natureza imemorial e íntima, escrínio de todos os amores, flor de verde pinho, ondas do mar. Nenhuma ressonância trágica perpassa naquelas canções em que a saudade comparece em toda a sua ingenuidade. No seu berço céltico, o da Galícia e Portugal, a saudade parece modulada pelo ritmo universal do mar. Descobre-se, sem bem o saber ainda, que a eternidade é feita de tempo e o tempo de eternidade. Tudo é aí, simultaneamente, passado e presente. Esta música de fundo, primeiro exterior, tornar-se-á música da alma. Sabemos que o jovem Sartre pensou no título Melancholia para o livro que havia de se tomar célebre com o nome de A Náusea. 44