SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 37
Baixar para ler offline
A superação da metafísica e o fim das verdades eternas

                                      Entrevista com Ernildo Stein


      Há trinta anos morria o autor de Sein und             Munster e Wüppertal, todas na Alemanha. Atual-
Zeit (Ser e tempo), publicada em 1927, ou seja,             mente, leciona no Departamento de Filosofia da
há quase oitenta anos. Martin Heidegger foi, nas            PUCRS.
palavras do Prof. Dr. Ernildo Stein, “o pensador                 Stein publicou dezenas de livros, entre eles
de vulto que, na filosofia, problematizou de modo           Seminário sobre a verdade: lições introdu-
mais profundo a modernidade", pois, segundo                 tórias para a leitura do parágrafo 44 de Ser
Ernildo Stein, “com a modernidade, surgiu a                 e tempo. Petrópolis: Vozes, 1993; A caminho
questão da subjetividade e com isso a questão do            de uma fundamentação pós-metafísica. Por-
método. O ser humano está livre das amarras da              to Alegre: Edipucrs, 1997; Diferença e metafísi-
tradição e da história passada, para traçar o seu           ca. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000; Compreen-
caminho e os seus projetos". Assim, “passa a con-           são e finitude. Ijuí: Unijuí, 2001; Introdução
siderar a natureza e os recursos do Planeta como            ao pensamento de Martin Heidegger. Porto
transformáveis e manipuláveis sem limite. Heideg-           Alegre: Edipucrs, 2002; Mundo Vivido: Das vi-
ger vê nisso o surgimento de uma espécie de com-            cissitudes e dos usos de um conceito da fe-
pulsão para a transformação. Ele costuma chamar             nomenologia. Porto Alegre: Edipucrs, 2004;
a irresistível tendência de o ser humano transfor-          Seis estudos sobre Ser e Tempo. 3. ed. Petró-
mar tudo de dispositivo (Gestell)". Dessa forma,            polis: Vozes, 2005. Confira a seguir, na íntegra, a
Heidegger, ainda na primeira metade do século               entrevista com o filósofo.
XX, levanta “o problema daquilo que hoje deno-
minamos globalização".                                      IHU On-Line – Quais são os aspectos mais
      Em entrevista exclusiva por e-mail para a             atuais na filosofia heideggeriana? Qual é a
IHU On-Line, em 19 de junho de 2006, o filósofo             importância de Heidegger como um intér-
Ernildo Stein destacou que, já no final dos anos            prete da pós-modernidade?
1930, a filosofia de Heidegger problematizava o             Ernildo Stein – O filósofo é, sem dúvida, o pen-
que hoje entendemos por globalização. Além dis-             sador de vulto que, na filosofia, problematizou de
so, continua Stein, esse filósofo “libertou o ser hu-       modo mais profundo a modernidade. Até que
mano como ser no mundo de qualquer amarra                   ponto suas idéias sempre acertaram é uma outra
metafísica, deixando como tarefa sua, a instaura-           questão. Não podemos, no entanto, negar a im-
ção da verdade.” E completa: “Estamos sós no                portância de sua teoria de que, com a moderni-
Planeta e nele somos um acontecimento que se es-            dade, surgiu a questão da subjetividade e com
panta consigo mesmo.”                                       isso a questão do método. O ser humano está li-
      Graduado em Filosofia e bacharel em Direito           vre das amarras da tradição e da história passa-
pela UFRGS, Stein é doutor em Filosofia pela mes-           da, para traçar o seu caminho e os seus projetos.
ma instituição com a tese Compreensão e finitude            Por isso, passa a considerar a natureza e os recur-
– estrutura e movimento da interrogação Heideg-             sos do Planeta como transformáveis e manipulá-
geriana. Cursou pós-doutorado nas universidades             veis sem limite. Heidegger vê nisso o surgimento
de Erlangen, Heidelberg, Freiburg, Frankfurt,               de uma espécie de compulsão para a transforma-

                                                        4
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO



ção. Ele costuma chamar a irresistível tendência                     Ernildo Stein – Heidegger fala em fim da meta-
de o ser humano transformar tudo de dispositivo                      física como superação dos limites impostos em
(Gestell). Foi assim que ele previu o que chama                      nome de teorias que se dizem filosóficas, mas
de europeização do mundo, a lógica e o cálculo                       não tratam das condições de possibilidade do co-
se disseminando implacavelmente pelo Planeta,                        nhecimento, simplesmente falam de coisas e ob-
arrasando as culturas locais com o progresso.                        jetos. A superação da metafísica não significa o
Com isso, o filósofo levanta, já no fim dos anos                     fim da metafísica. Kant1 mesmo dizia que sempre
1930, o problema daquilo que hoje denomina-                          respiraremos o “ar impuro” da metafísica e “te-
mos globalização.                                                    mos uma mancha podre” que nos faz operar com
      A filosofia não deve ser avaliada por sua atua-                conceitos independentes da realidade. Heideg-
lidade, mas pela capacidade de ela, nos diversos                     ger concordaria com Kant, caso a afirmação dele
filósofos, pensar os fundamentos que podem, de                       não fosse uma pretensão de salvar o que não
certo modo, reger o comportamento dos seres hu-                      pode ser salvo em sua teoria do conhecimento.
manos, fazendo uso de sua liberdade. A filosofia                     Para Heidegger o fim da metafísica significa ape-
não compete com a ciência na descoberta de no-                       nas que estamos livres do comando de outros
vos objetos. Ela pensa a moldura ou o âmbito nos                     mundos não-humanos. Estamos sós no Planeta e
quais as ciências descobrem e situam seus objetos.                   nele somos um acontecimento que se espanta
A filosofia não se volta contra a ciência, mas tem                   consigo mesmo.
um timing mais longo, porque não está submetida
às urgências de transformação da realidade.                          IHU On-Line – O que o senhor quer dizer
      Talvez convenha dizer que Heidegger, final-                    com uma fundamentação pós-metafísica?
mente, sem nenhuma inibição, libertou o ser hu-                      Ernildo Stein – Assim como vivemos a chamada
mano como ser no mundo de qualquer amarra                            pós-modernidade e nela identificamos a fragmen-
metafísica, deixando como tarefa sua, a instaura-                    tação de toda a unidade entre ciência, arte e reli-
ção da verdade. Heidegger declara que não há                         gião, assim temos que reconhecer que, se ainda
verdades absolutas ou literalmente “não há verda-                    procuramos razões que não sejam as razões da
des eternas”. A verdade só existe porque o ser hu-                   ciência, essas não são mais razões ou fundamen-
mano opera com ela. É por isso que se inverte a                      tos metafísicos. O pós-metafísico é um mundo
relação medieval entre teologia e antropologia.                      sem fundamentos absolutos. Quem dá a moldura
Não há Deus sem o ser humano, pois somente ele,                      na qual se dá o acontecer daquilo que revela os li-
o ser humano, abre o espaço para o problema de                       mites da objetivação da ciência é o modo de o ho-
Deus e assim deixa acontecer o que pode ser ex-                      mem ser no mundo que a filosofia pode descrever
presso em enunciados que tratam da possibilidade                     como sentido.
de Deus.
                                                                     IHU On-Line – Como o conceito de angústia
IHU On-Line – O que implica o fim da meta-                           é tratado por Heidegger em Ser e Tempo?
física sugerido por Heidegger? Como enten-                           Ernildo Stein – Heidegger, quando cria conceitos
der esse argumento hoje?                                             não os apresenta como prontos. É próprio da feno-

1   Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussiano, considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna,
    representante do Iluminismo, indiscutivelmente um dos seus pensadores mais influentes da filosofia. Kant teve um grande
    impacto no Romantismo alemão e nas filosofias idealistas do século XIX, tendo esta faceta idealista sido um ponto de partida
    para Hegel. Kant estabeleceu uma distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si (que chamou noumenon), isto é, entre o que
    nos aparece e o que existiria em si mesmo. A coisa-em-si (noumenon) não poderia, segundo Kant, ser objeto de conhecimento
    científico, como até então pretendera a metafísica clássica. A ciência se restringiria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria
    constituída pelas formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias do entendimento. A IHU On-Line
    número 93, de 22 de março de 2004, dedicou sua matéria de capa à vida e à obra do pensador. Também sobre Kant foi
    publicado em 2005 o Cadernos IHU em formação número 2, intitulado Emmanuel Kant – Razão, liberdade, lógica e
    ética. Os Cadernos IHU em formação estão disponíveis para download na página www.unisinos.br/ihu do Instituto
    Humanitas Unisinos – IHU. (Nota da IHU On-Line)


                                                                 5
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO



menologia ir atrás dos indícios formais que podem                     precisa do conceito de ser, Deus não precisa do
localizar traços comuns que podem ser converti-                       ser, não faz ontologia, Deus não filosofa.”
dos em conceitos e, no caso, em existenciais. A fi-
losofia não carrega consigo só uma cesta de con-                      IHU On-Line – Quais são suas objeções em
ceitos lógicos prontos. Depende do filósofo a ca-                     relação à leitura que Padre Vaz realiza de
pacidade de descobrir sinais que podem nos levar                      Heidegger?
a novos conceitos, por exemplo, sobre o ser hu-                       Ernildo Stein – Lima Vaz2 fez seu tema o diag-
mano. É assim que a angústia é descrita como a                        nóstico sintomático de Heidegger sobre o niilis-
súbita percepção do ser humano de que ele é fini-                     mo em que mergulhamos com a metafísica
to, isto é, de que está jogado entre um ainda não,                    onto-teológica. Isso porque nela o fundamento é
o futuro e o não mais, o passado. A angústia que                      convertido em objeto e Deus é definido como um
disso resulta é o que mantém o ser humano, hu-                        único expediente de causa de si mesmo. O filóso-
mano. O que ele poderá fazer é tentar fugir dessa                     fo brasileiro não concorda inteiramente com o
angústia, fugindo de si mesmo e divertindo-se                         diagnóstico do filósofo alemão, mas é com base
numa “brincadeira” com os objetos, no instante                        nesse diagnóstico que ele vê a possibilidade de
presente. De todo o modo, porém, a angústia apa-                      colocar os problemas verdadeiros nas duas ma-
recerá de repente e, de modo implacável, remete-                      trizes de inteligibilidade: a natureza e a cultura.
rá o ser humano contra o futuro e contra o passa-                     São elas que, no futuro, mudarão totalmente, a
do e sem resultado.                                                   não ser que o ser humano seja capaz de manter
                                                                      uma identidade, a transformação que a técnica
IHU On-Line – De que forma se apresenta a                             produz nessas duas matrizes. E essa identidade é
compreensão e a finitude nesse filósofo? O                            a pergunta pela vida boa. Como posso ser feliz,
que elas podem ensinar à contemporanei-                               como assumo volume e importância como ser
dade?                                                                 biológico e passageiro, que significa viver sua
Ernildo Stein – Heidegger não aceita outra                            vida? Em todo o caso, Lima Vaz encontrou mais
transcendência que a transcendência finita. Com-                      razões em Heidegger, no seu questionamento ra-
preensão é essa transcendência, por isso ela é fini-                  dical, do que em Hegel3, cuja maquinaria dialéti-
ta. No entanto, o filósofo quer, com isso, dizer que                  ca nada mói, nada resolve, porque seu motor,
com a filosofia não consegue o ser humano pu-                         Deus (ou a sociedade sem classes, ou a História),
xar-se pelos cabelos do banhado. Isso quer dizer                      é conceito vazio. Deus está morto, diz Hegel, e é
que o ser humano pensa tudo enquanto é e, pelo                        comovedora a frase no penúltimo capitulo da Fe-
fato de ser, nos permite chegar às coisas. Como                       nomenologia do espírito: “E esse é o sentimen-
diz literalmente “tão finito é o ser humano que ele                   to doloroso da consciência infeliz de que Deus

2   Pe. Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-2002): filósofo e padre jesuíta, autor de importante obra filosófica. A IHU On-Line
    número 19, de 27 de maio de 2002, dedicou sua matéria de capa à vida e à obra de Lima Vaz. A referida edição teve como
    título Sábio, humanista e cristão. Sobre ele também pode ser consultado na IHU On-Line número 140, de 9 de maio de 2005,
    um artigo em que comenta a obra de Teilhard de Chardin. A revista Síntese. Revista de Filosofia, n. 102, jan.-abr. 2005, p.
    5-24, publica o artigo Um Depoimento sobre o Padre Vaz, de Paulo Eduardo Arantes, professor do Departamento de Filosofia
    da USP, que merece ser lido e consultado com atenção. Celebrando a memória do Padre Vaz, a edição 142, de 23 de maio de
    2005, publicou a editoria Memória. Consulte nesta edição um comentário sobre a sua contribuição para a discussão ética no
    Brasil. (Nota da IHU On-Line)
3   Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo alemão, um dos pensadores mais influentes dos tempos recentes. Como Aristóteles e
    Santo Tomás de Aquino, Hegel tentou desenvolver um sistema filosófico no qual estivessem integradas todas as contribuições
    de seus principais predecessores. Sua primeira obra, A fenomenologia do espírito, tornou-se a favorita dos hegelianos da
    Europa continental no séc. XX. Nesse livro, Hegel considerava uma variedade tão grande de concepções quanto os diversos
    estados da mente, e encarava-as como estágios no desenvolvimento do espírito em direção a uma maior maturidade. Sua
    segunda obra, A Ciência da Lógica, tenta fazer uma análise sistemática dos conceitos. Sua Enciclopédia das ciências
    filosóficas contém todo o seu sistema de uma forma condensada. O último livro de Hegel foi A filosofia do direito. Depois
    de sua morte, seus alunos publicaram suas conferências sobre filosofia da história, da religião e da arte e história da filosofia,
    usando principalmente suas anotações. (Nota da IHU On-Line)


                                                                  6
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO



morreu”. Apesar de Hegel falar do Deus da Sex-                          pela frente e, a partir daí, o regime pôs um de seus
ta-feira Santa, Nietzsche4 o toma a sério e proclama                    agentes para supervisionar as suas aulas. O filósofo
“Deus está morto”. Isso que se estendeu como um                         foi ingênuo porque desconhecia as ciências huma-
lema na entrada do projeto da modernidade. Lima                         nas da sociologia, da política, da economia e pen-
Vaz procura defender contra as críticas de Heideg-                      sava, contudo, poder diagnosticar o futuro de um
ger uma ontologia teológica que possa sustentar,                        regime. Quem olha com atenção para a capa do
como uma espécie de realismo, os enunciados da                          meu livro Diferença e Metafísica. Porto Alegre:
teologia e da religião. Nisso os dois filósofos se dis-                 Edipucrs, 2000 vê que ela é feita com uma carta
tanciam e está com os estudiosos ver quem tem ra-                       inédita de Heidegger que está em minhas mãos,
zão nos seus argumentos que aqui não podem ser                          em que ele se defende dizendo: “Ide a Munique e
apresentados de maneira completa.                                       perguntai ao Pe. Karl Rahner5 que assistiu às mi-
                                                                        nhas aulas de 34 a 36, para verem a crítica que se
IHU On-Line – Qual o significado que pode                               ousava contra o biologismo, o racismo do nacio-
ter o fato de Heidegger aceitar o cargo de rei-                         nal-socialismo”. É verdade que os filósofos não fo-
tor em plena Alemanha nazista?                                          ram feitos para serem heróis da resistência, Platão6
Ernildo Stein – O filósofo fez um juízo equivoca-                       que o diga, preso pelo tirano de Siracusa a cujo re-
do sobre o regime que estava começando, pensan-                         gime tinha aderido. E mesmo Aristóteles7 não esca-
do que aceitando a reitoria, teria condições de criar                   pou do problema, indo asilar-se na sua fazenda de
a nova universidade que substituiria a universidade                     Eubéia, para que os gregos não praticassem um
dos mandarins. Ao ver que caíra na armadilha, de-                       segundo crime contra Sócrates8.
mitiu-se no décimo mês dos quatro anos que tinha


4   Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo alemão, conhecido por seus polêmicos conceitos “além-do-homem”, transvaloração
    dos valores, niilismo, vontade de poder e eterno retorno. Entre suas obras figuram como as mais importantes: Assim Falou
    Zaratustra. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998; O Anticristo. Lisboa: Guimarães, 1916; A Genealogia da
    Moral. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2004. Escreveu até 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso que nunca o
    abandonou, até o dia de sua morte. A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da edição número 127 da IHU On-Line, de 13 de
    dezembro de 2004. Sobre o filósofo alemão, conferir ainda a entrevista exclusiva realizada pela IHU On-Line edição 175, de
    10 de abril de 2006, com o jesuíta cubano Emilio Brito, docente na Universidade de Louvain-La-Neuve, intitulada Nietzsche
    e Paulo. (Nota da IHU On-Line)
5   Karl Rahner (1904-2004): importante teólogo católico do século XX, ingressou na Companhia de Jesus em 1922. Doutorou-se em
    Filosofia e em Teologia. Foi perito do Concílio Vaticano II e professor na Universidade de Münster. A sua obra teológica compõe-se de
    mais de 4 mil títulos. Suas obras principias são: Geist in Welt (O Espírito no mundo), 1939, Hörer des Wortes (Ouvinte da Palavra),
    1941, Schrifften zur Theologie (Escritos de Teologia), 16 volumes escritos entre 1954 e 1984, Grundkurs des Glaubens (Curso
    Fundamental da Fé), 1976. Em 2004, celebramos seu centenário de nascimento. A Unisinos dedicou à sua memória o Simpósio
    Internacional O Lugar da Teologia na Universidade do século XXI, realizado de 24 a 27 de maio daquele ano. A IHU
    On-Line n.º 90, de 1º de março de 2004, publicou um artigo de Rosino Gibellini sobre Rahner; e a n.º 94, de 29 de março de 2004,
    uma entrevista de J. Moltmann, analisando o pensamento de Rahner. No dia 28 de abril de 2004, no evento Abrindo o Livro, Érico
    Hammes, teólogo e professor da PUCRS, apresentou o livro Curso Fundamental da Fé, uma das principais obras de Karl Rahner. A
    entrevista com o prof. Érico Hammes pode ser conferida na IHU On-Line n.º 98, de 26 de abril de 2004. Ainda sobre Rahner,
    publicamos uma entrevista com H. Vorgrimler na IHU On-Line n.º 97, de 19 de abril de 2004, sob o título Karl Rahner: teólogo do
    Concílio Vaticano nascido há 100 anos. A edição número 102 da IHU On-Line de 24 de maio de 2004 dedicou a matéria de capa à
    memória do centenário de nascimento de Karl Rahner. Os Cadernos Teologia Pública n. 5 de 2004 publicaram o artigo Conceito e
    Missão da Teologia em Karl Rahner, de autoria do Prof. Dr. Érico João Hammes. (Nota da IHU On-Line)
6   Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense. Criador de sistemas filosóficos influentes até hoje, como a Teoria das Idéias e a
    Dialética. Discípulo de Sócrates, Platão foi mestre de Aristóteles. Entre suas obras, destacam-se A República e o Fédon.
    (Nota da IHU On-Line)
7   Aristóteles de Estagira (384 a C. – 322 a. C.): filósofo grego, um dos maiores pensadores de todos os tempos. Suas reflexões
    filosóficas – por um lado originais e por outro reformuladoras da tradição grega — acabaram por configurar um modo de
    pensar que se estendeu por séculos. Prestou inigualáveis contribuições para o pensamento humano, destacando-se: ética,
    política, física, metafísica, lógica, psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia, história natural e outras áreas de
    conhecimento. É considerado, por muitos, o filósofo que mais influenciou o pensamento ocidental. (Nota da IHU On-Line)
8   Sócrates (470 a. C. – 399 a. C.): filósofo ateniense e um dos mais importantes ícones da tradição filosófica ocidental. (Nota da
    IHU On-Line)


                                                                    7
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO



     O silêncio do filósofo sobre o gesto de que ele                se competência, não tem autoridade como filóso-
confessou a Jaspers9 que “se sentia envergonhado                    fo. São outros campos de conhecimento que de-
do passo dado”, deve-se à convicção de que uma                      vem compreender o nazismo. Entretanto, Heideg-
confissão pública não tinha sentido porque não                      ger situou, na exacerbação do dispositivo da técni-
apagaria nada. Para um filósofo como Heidegger,                     ca, a compulsão dos nazistas de produzir a morte
em cujo pensamento Deus depende do homem,                           industrializada. Por mais distantes que estejamos
não há ninguém para repor algo que possa                            do nazismo, não é a parafernália da técnica atual
resultar de qualquer arrependimento.                                que retira de cada ser humano o direito de morrer
                                                                    a sua morte. Morte é hoje, no dispositivo da técni-
IHU On-Line – O nazismo é uma anomalia                              ca, apenas uma questão de higiene pública.
ou uma radicalização da razão moderna?
Ernildo Stein – O nazismo é um totalitarismo                        IHU On-Line – Quais seriam as influências
nascido das incertezas e dos irracionalismos dos                    do cristianismo em Heidegger? E ele influ-
anos 20 de nosso século. Assim como outros tota-                    enciou, de alguma forma, o pensamento
litarismos. Tão nefasto quanto foi, não deixa de                    cristão?
ser uma espécie de banalidade do mal, mas uma                       Ernildo Stein – Certamente temos várias corren-
obra humana, uma obra com autores determina-                        tes teológicas que incorporaram as categorias da
dos que se orientaram nas mais primitivas idéias                    analítica existencial de Ser e Tempo. Bultmann11
sobre a relação dos seres humanos em sociedade.                     é um dos grandes exemplos de diálogo com Hei-
O nazismo é, em última análise, um resultado da                     degger, mas há muitos teólogos e correntes teoló-
suspensão da lei, para que o tirano pudesse fazer                   gicas que levam de contrabando elementos do dis-
dela o que bem entendesse, pois era a sua lei.                      curso heideggeriano. Apenas não têm coragem de
Agamben10 bem vê nos campos de detenção que                         levá-lo às últimas conseqüências. Heidegger teve
rodeiam a Europa com uma coroa de desespera-                        formação cristã, estudou Teologia e Filosofia católi-
dos, novos campos de concentração, em que a lei                     cas, dialogou muitíssimo com os pensadores evan-
está suspensa. Isso produz a “inexistência” de to-                  gélicos, para chegar à conclusão de que a filosofia
dos os refugiados porque estão juridicamente nus.                   não pode oferecer aval para nenhuma religião. Ao
                                                                    pé da letra diz o filósofo: “Uma filosofia cristã é um
IHU On-Line – Como o pensamento heideg-                             ferro de madeira, uma roda quadrada”.
geriano explica o paradigma da técnica leva-
do às últimas conseqüências pelos nazistas?
Ernildo Stein – Heidegger certamente não é um
intérprete do nazismo. Mesmo que para isso tives-


9  Karl Theodor Jaspers (1883-1969): filósofo e psiquiatra alemão. Ensinou Filosofia em Heidelberg desde 1921 e em Basiléia a
   partir de 1948. Fez o doutoramento em medicina, tendo inicialmente se dedicado à psicologia. É também conhecido como um
   dos principais representantes do existencialismo. (Nota da IHU On-Line)
10 Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano. É professor da Facoltà di Design e arti della IUAV (Veneza), onde ensina Estética, e

   do College International de Philosophie de Paris. Formado em Direito, foi professor da Università di Macerata, Università di
   Verona e da New York University, cargo ao qual renunciou em protesto à política do governo norte-americano. Sua produção
   centra-se nas relações entre filosofia, literatura, poesia e fundamentalmente, política. Entre suas principais obras, estão Il
   linguaggio e la morte (Einaudi, 1982), La formula della creazione (Quodlibet, 1993), escrito com Giles Deleuze, Homo
   Sacer (Einaudi, 1993/ Homo sacer - O poder soberano e a vida nua – UFMG), Que le resta di Auschwitz, (Bollati
   Boringhieri, 1998) e Stato di Eccezione (Bollati Boringhieri, 2003). (Nota da IHU On-Line)
11 Rudolf Karl Bultmann (1884-1976): teólogo luterano alemão nascido em Wiefelstede, Oldenburg, que propôs uma

   interpretação do Novo Testamento da Bíblia apoiada em conceitos de uma filosofia existencialista. Iniciou como professor
   sobre sua especialidade, o Novo Testamento (1916), em Breslau, Giessen e Marburg. Nessa cidade, tomou contato com Martin
   Heidegger e a filosofia existencialista, que influenciou seu pensamento posterior. Morreu em Marburg, então Alemanha
   Ocidental. Seu primeiro livro foi Jesus (1926) e sua mais famosa obra foi Das Evangelium des Johannes (1941). Na edição
   114, de 6 de setembro de 2004, publicamos na editoria Teologia Pública um debate sobre a obra Teologia do Novo
   Testamento, com a participação de Nélio Schneider e Johan Konings. (Nota da IHU On-Line)


                                                                8
O nazismo e o “erro” filosófico de Heidegger

                                       Entrevista com Gianni Vattimo



       “Heidegger nunca enunciou, mas acredito                o encontramos quando temos a força para proje-
que ele deveria aceitar: lembrar o ser (para tentar           tar..., e a terceira saiu na edição 161, de 24 de ou-
sair da metafísica) significa somente lembrá-lo               tubro de 2005, quando recebeu pessoalmente a
como já-sempre tendo ido embora; como Deus                    IHU On-Line, em Porto Alegre, no dia 18 de ou-
que se mostra a Moisés somente de costas. Portan-             tubro daquele ano, às vésperas de proferir sua
to, pensar o ser não é uma experiência de presen-             conferência no evento Metamorfoses da cultura
ça cheia, de verdade luminosa; se levarmos em                 contemporânea. Nessa oportunidade, ele falou
consideração que, para Heidegger, a metafísica                sobre O pós-moderno é uma reivindicação de
(esquecimento do ser) é a história do ser, então o            multiplicidade de visão de mundo. Dele também
ser tem uma história que é sempre de diminuição,              publicamos uma entrevista na 121ª edição, de 1º
de esquecimento, de ´fraqueza´...” A afirmação é              de novembro de 2004, sob o título Garzantina di
de Gianni Vattimo, filósofo italiano, que mais uma            filosofia, um artigo na edição 53, de 31 de março
vez nos brinda com uma instigante entrevista, so-             de 2003 sob o título A guerra pelos direitos huma-
bre Martin Heidegger, nos seus trinta anos de fale-           nos? e outro no número 80, de 20 de outubro de
cimento e quase oitenta anos da sua obra funda-               2003, sob o título Democracia, killer da metafísica.
mental Sein und Zeit. “Acredito que Heidegger                 A editoria Livro da Semana, na edição 149, de 1º
começou o seu ‘erro’ nazista quando deixou de                 de agosto de 2005, abordou a obra The future of
meditar sobre São Paulo e começou a mitificar                 religion, escrita por Vattimo, Richard Rorty e
Hölderlin”, é outra contundente afirmação do filó-            Santiago Zabala.
sofo do pensamento fraco. “Autenticidade signifi-                   Vattimo nasceu em Turim, em cuja universi-
ca co-responder à chamada do ser; mas o ser as-               dade se formou em Filosofia e na qual ministra au-
sim entendido é também a própria comunidade, a                las até hoje. Cursou uma especialização na Uni-
sociedade na qual se vive etc. Também por isso He-            versidade de Heidelberg (Alemanha) e teve algu-
idegger se empenhou com Hitler, errando. Mas de-              mas passagens por universidades americanas
vemos pensar que naqueles anos Lukacs e Bloch                 como professor visitante. Foi deputado no Parla-
estavam com Stalin, Giovanni Gentile, com Musso-              mento Europeu, integrando várias comissões,
lini...”. As afirmações são do filósofo italiano Gianni       como as de cultura, educação e justiça, entre ou-
Vattimo, em entrevista por e-mail à IHU On-Line,              tras. Estudioso do pensamento de Nietzsche, Hei-
em 3 de julho de 2006, explicando as relações en-             degger e Gadamer, Vattimo é conhecido como o
tre o filósofo Martin Heidegger e o nazismo.                  mentor do “pensamento fraco”. De sua produção
       Essa é a quarta entrevista exclusiva que Vatti-        intelectual, destacamos, Credere di Credere.
mo concede à IHU On-Line. A primeira foi publi-               Milano: Garzanti, 1996 (traduzido para o portu-
cada na 88ª edição, de 15 de dezembro de 2003                 guês), Dopo la cristianità. Per um cristiane-
sob o título O cristianismo é a religião do pós-mo-           simo non religioso. Milano:Garzanti, 2002
derno, a segunda na 128ª edição, de 20 de de-                 (traduzido para o português), O fim da moder-
zembro de 2004 sob o título Deus é projeto, e nós             nidade: niilismo e hermenêutica na cultura


                                                          9
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO



pós-moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996;                     nos “dribla” porque é o anúncio de um paradigma
Introdução a Heidegger. Lisboa: Instituto Pia-                    “outro”, não é uma experiência de unidade do su-
get, 1998.                                                        jeito, mas, ao contrário, exatamente uma expe-
                                                                  riência de “desorientação”).
IHU On-Line – Como Heidegger ajuda a en-
tender o enfraquecimento das estruturas do                        IHU On-Line – Como explica a aproximação
ser na pós-modernidade?                                           de Heidegger ao nazismo? É uma derivação
Gianni Vattimo – A concepção da diferença on-                     de seu pensamento filosófico?
tológica – que Heidegger começa a desenvolver                     Gianni Vattimo – De certa forma sim, foi um
em Ser e Tempo significa que o ser não deve se                    “erro” filosófico. Heidegger acreditou que fosse
confundir com o ente, com alguma “coisa” pre-                     possível reconstruir uma situação histórica análo-
sente. E, como se sabe, Heidegger pensa que                       ga àquela da Grécia pré-clássica, na qual, erran-
identificar o ser com o ente é um “esquecimento”                  do, porque esquecia a diferença ontológica, pen-
do ser. Agora, pode-se “lembrar” o ser? O que,                    sou que o ser pudesse “dar-se” de modo não-me-
porém, significaria fazê-lo “presente” diante dos                 tafísico. Mas era um erro, antes de tudo filosófico.
olhos da nossa mente, portanto, reduzi-lo nova-
mente a um “ente”. Além disso: Heidegger, nos                     IHU On-Line – O próprio nazismo deve ser
seus escritos sobre Nietzsche, escreve que a meta-                entendido como uma anormalidade na His-
física é a história do ser. Eu tiro disso tudo a se-              tória ou como uma radicalização da racio-
guinte conclusão: Heidegger nunca enunciou,                       nalidade moderna?
mas acredito que ele deveria aceitar: lembrar o ser               Gianni Vattimo – Heidegger o entendeu como
(para tentar sair da metafísica) significa somente                uma radicalização da racionalidade moderna.
lembrá-lo como já-sempre tendo ido embora;                        Pensando que esta racionalidade fosse o auge do
como Deus que se mostra a Moisés somente de                       esquecimento do ser, não a podia aceitar. De ou-
costas. Portanto, pensar o ser não é uma expe-                    tro modo, o extremo da metafísica devia também
riência de presença cheia, de verdade luminosa;                   ser o seu fim. “Onde está o perigo, cresce também
se levarmos em consideração que, para Heideg-                     o que salva” (Hölderlin13). Portanto, posição am-
ger a metafísica (esquecimento do ser) é a história               bígua; um pouco como o capitalismo para Marx: é
do ser, então o ser tem uma história que é sempre                 o pior do pior, mas é também a condição que pre-
de diminuição, de esquecimento, de “fraqueza”...                  para a revolução do proletariado...

IHU On-Line – Qual é o lugar da verdade e                         IHU On-Line – O paradigma da técnica pode
da unidade do sujeito no pensamento de                            auxiliar a compreender as bases desse e de
Heidegger?                                                        qualquer outro totalitarismo?
Gianni Vattimo – Verdade, para Heidegger, é                       Gianni Vattimo – A resposta está implícita na
também aquela secundária das proposições “ver-                    precedente. Certo, como diz em Identität und
dadeiras”, que correspondem a critérios dados                     Differenz, a possibilidade de sair da metafísica
com a abertura do ser no qual somos sempre arre-                  em direção a um novo evento do ser está também
messados. Mas a verdade “primeira” é esta aber-                   ligada ao fato de que no Gestell, no mundo técni-
tura (algo semelhante aos paradigmas dos quais                    co-totalitário, homem e mundo não têm mais os
fala Kuhn12). A relação com esta verdade primária                 caracteres de sujeito e objeto. Mas que caracteres
(por exemplo, na experiência da obra de arte, que                 terão?



12 Thomas Kuhn (1922-1996): físico norte-americano, cujo trabalho incidiu sobre história e filosofia da ciência, tornando-se um
   marco importante no estudo do processo que leva ao desenvolvimento científico. Sua obra mais conhecida é A estrutura das
   revoluções científicas. 7. ed. Säo Paulo: Perspectiva, 2003. (Nota da IHU On-Line)
13 Johann Christian Friedrich Hölderlin (1770-1843): poeta lírico alemão. (Nota da IHU On-Line)




                                                             10
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO



IHU On-Line – Se o ente está lançado no                           ponto de vista de Deus. E, portanto, nunca bom-
mundo, como entender sua responsabilida-                          bardear o Iraque em nome do verdadeiro direito
de individual e política?                                         humano.
Gianni Vattimo – Acredito que o Heidegger
dos anos 1930, aquele depois da Kehre, se deu                     IHU On-Line – Se pudéssemos trazê-lo ao
conta de que a autenticidade da qual falava Ser                   presente, como Heidegger dialogaria com o
e Tempo não é algo que se possa procurar “sozi-                   “pensamento fraco” de Gianni Vattimo?
nho”. Autenticidade significa co-responder à                      Gianni Vattimo – Teria que adotá-lo como seu
chamada do ser; mas o ser assim entendido é                       filho, embora um pouco extravagante. Fora de
também a própria comunidade, a sociedade na                       brincadeira: se Heidegger visse o que acontece
qual se vive etc. Também, por isso, Heidegger se                  hoje por causa do fundamentalismo, da pretensão
empenhou com Hitler, errando. Devemos pen-                        de ser “correto” (Bush acredita de verdade, como
sar, porém, que naqueles anos Lukacs14 e Bloch15                  os nazistas, no Gott mit uns, Deus está conosco; e
estavam com Stalin16, Giovanni Gentile17, com                     age exatamente como eles), enfraqueceria muito
Mussolini18 etc.                                                  as próprias posições...

IHU On-Line – Por que Heidegger afirmou                           IHU On-Line – Que relações podem ser esta-
que era impossível ultrapassar o niilismo?                        belecidas com o pensamento cristão e o hei-
Como entender a esperança num mundo                               deggeriano? Há aí uma influência mútua?
niilista?                                                         Gianni Vattimo – Certo, se pensarmos em um
Gianni Vattimo – Como foi dito acima, o ser                       texto como a Introdução à Fenomenologia da
nunca pode dar-se como ente. A esperança do nii-                  Religião, de 1920, nos daremos conta de que al-
lismo é de que, reduzindo a imponência, a pe-                     guns, ou talvez todos os conceitos fundamentais
remptoriedade, o peso do ente, do real (paixões,                  que Heidegger desenvolveu após, em Ser e Tem-
instinto de sobrevivência, violência recíproca) o                 po (por exemplo, a autenticidade, a metafísica
ser se dê como das Gering, o mínimo, o pequeno,                   etc.) estão já todos na sua leitura das cartas de São
do qual falava Vorträge und Asufsätze.                            Paulo. Acredito que Heidegger começou o seu
                                                                  “erro” nazista - que durou somente alguns anos -
IHU On-Line – O ser-para-a-morte (Sein-zum-                       quando deixou de meditar sobre São Paulo e co-
Tode) não é um conceito muito pessimista                          meçou a mitificar Hölderlin. Entretanto, o seu
para classificar o ser humano?                                    pensamento permanece profundamente cristão; e
Gianni Vattimo – De maneira nenhuma. Signifi-                     também, a propósito de influência “mútua”, os
ca somente aceitar o próprio fim e historicidade,                 cristãos de hoje deveriam elegê-lo a verdadeiro
sentindo-se empenhados para responder a uma                       mestre, deixando de lado os tantos resíduos de
chamada que vem de outros mortais, e não pen-                     metafísica escolar que ainda dominam o ensino
sar nunca que atingimos já a verdade “objetiva”, o                nos seminários.



14 Lukács György (1885-1971): mais conhecido como Georg Lukács, filósofo húngaro. Em sua trajetória filosófica procurou
   refazer o percurso da filosofia clássica alemã, inicialmente como crítico influenciado por Kant, depois Hegel e, finalmente,
   aderindo ao marxismo. (Nota da IHU On-Line)
15 Ernst Bloch (1885-1977): filósofo alemão marxista heterodoxo, que construiu vasta obra que ressalta o papel da utopia na

   história do homem. Seu livro O Princípio Esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, foi destacado na editoria Livro da
   Semana da 151ª edição da revista IHU On-Line, de 15 de agosto de 2005, com a realização de duas entrevistas sobre a obra:
   uma com o tradutor do livro, Nélio Schneider, e outra com o professor da UFRGS, Edson Sousa. (Nota da IHU On-Line)
16 Josef Stalin (1878-1953): ditador soviético, responsável pelo stalinismo. (Nota da IHU On-Line)

17 Giovanni Gentile (1875-1944): filósofo italiano. (Nota da IHU On-Line)

18 Benito Amilcare Andrea Mussolini (1883-1945): jornalista e político italino, governou a Itália com poderes ditatoriais entre

   1922 e 1943, autodenominando-se Il Duce, que significa em italiano “o condutor”. (Nota da IHU On-Line)


                                                             11
Heidegger e a influência do cristianismo

                                     Entrevista com Emmanuel Carneiro Leão



      “Sem o cristianismo, na sua origem e prove-                  sor com grande atenção para as dificuldades e os
niência, não se compreende o pensamento de He-                     problemas dos seus alunos. A segunda grande
idegger”, pondera o Prof. Dr. Emmanuel Carneiro                    lembrança e impressão que tenho é que a impor-
                                                                   tância do ensino de Heidegger era promover a ca-
Leão, em entrevista por telefone à IHU On-Line,
                                                                   pacidade de pensamento dos alunos. Ele não
em 3 de julho de 2006, refletindo a influência do
                                                                   queria ensinar respostas, problemas, perguntas,
cristianismo em Heidegger e vice-versa. Carneiro
                                                                   doutrinas, mas desenvolver a capacidade própria
Leão menciona também a presença das idéias hei-
                                                                   de pensar de cada aluno, porque a posição que
deggerianas em Bultmann, Bruckner, Lackner e
                                                                   ele passava era que todo o homem tem uma con-
Rahner e conta algumas de suas lembranças como
                                                                   tribuição a dar à vida do pensamento, de manei-
aluno de um dos filósofos mais discutidos e estu-
                                                                   ras diferentes, com graus diferentes, com qualida-
dados da atualidade.
                                                                   de diferente, deixando transparecer que essa con-
      Doutor pela Universidade de Roma, Itália, e
                                                                   tribuição é fundamental para o desenvolvimento
licenciado em Filosofia pela Universidade de Fri-
                                                                   da capacidade de pensar de todos.
burgo, Alemanha, onde foi aluno de Heidegger,
Carneiro Leão regressou ao Brasil em meados da
                                                                   IHU On-Line – Qual é a grande contribuição
década de 1960. Desde então, dedica-se ao ma-
gistério na condição de professor titular da Univer-               da filosofia de Heidegger?
sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na qual                   Emmanuel Carneiro Leão – A principal contri-
leciona até hoje. É um dos principais divulgadores                 buição da obra de Heidegger e o grande mérito é
do pensamento heideggeriano no Brasil, tendo                       promover esse aprofundamento do pensamento.
traduzido para o português alguns livros do filóso-                Pensar não é ficar apenas nas relações já dadas,
                                                                   encontradas, mas aprofundar, com base no que é
fo alemão. É autor de, entre outros, Aprendendo
                                                                   dado, até a proveniência, a origem, a fonte de
a pensar. Petrópolis: Vozes, 1991. Leia o que o
                                                                   onde elas são oriundas.
professor pensa sobre o assunto.

                                                                   IHU On-Line – Quais são as principais dife-
IHU On-Line – Quais são suas principais
                                                                   renças entre a fenomenologia de Heidegger
lembranças como aluno de Heidegger?
                                                                   e a de Husserl?
Emmanuel Carneiro Leão – Minha primeira
                                                                   Emmanuel Carneiro Leão – Podemos dizer
lembrança é que a atividade de ensino e acadêmi-
                                                                   que a fenomenologia de Husserl19 se constrói por
ca de Heidegger para com seus alunos, com os es-
                                                                   meio da intencionalidade da consciência. Isso sig-
tudantes, aqueles que escutavam suas palestras,
                                                                   nifica que há uma diferença entre fenômeno e fe-
era de um cuidado todo especial. Era um profes-

19   Edmund Husserl (1859-1938): filósofo alemão, principal representante do movimento fenomenológico. Marx e Nietzsche, até
     então ignorados, influenciaram profundamente Husserl, que era um crítico do idealismo kantiano. Husserl apresenta como
     idéia fundamental de seu antipsicologismo a “intencionalidade da consciência”, desenvolvendo conceitos como o da intuição
     eidética e epoché. Pragmático, Husserl teve como discípulos Martin Heidegger, Sartre e outros. (Nota da IHU On-Line)


                                                              12
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO



nomenologia e o que faz a intermediação entre                para poder abrir caminho e libertar a experiência
essa diferença é a intencionalidade dessa cons-              para o originário.
ciência. Sem consciência, não há fenomenologia,
para Husserl. Para Heidegger, já não é dessa for-            IHU On-Line – De que maneira podemos
ma. Ele acredita que a fenomenologia é o próprio             compreender a afirmação do filósofo de que
fenômeno. É por causa da fenomenologia do fe-                “chegamos muito tarde para os deuses e
nômeno que há consciência e intencionalidade. O              muito cedo para o ser”?
Dasein, a presença, o modo de ser do homem,                  Emmanuel Carneiro Leão – A nossa tradição
não é intermediário entre o fenômeno e a fenome-             entende a realidade como sendo o resultado não
nologia, mas é o lugar onde o fenômeno mostra                de uma atividade de sentido ou de criação, de um
que ele já é a fenomenologia.                                princípio absoluto. Com a modernidade não te-
                                                             mos mais essa consciência e essa necessidade, por
IHU On-Line – Como Heidegger dialoga                         isso, somos modernos à medida que perdemos
com a tradição filosófica? Quais são suas                    essa necessidade. Isso significa que chegamos tar-
principais influências e quais são os rompi-                 de para os deuses, no entanto, com a modernida-
mentos que propõe?                                           de, para conseguir-se isso houve uma mudança
Emmanuel Carneiro Leão – Heidegger tem                       nos padrões de relacionamento do homem euro-
uma formação religiosa, cristã, escolástica e, pela          peu ocidental, que é a respeito de quem estamos
escolástica, ele encontra a filosofia grega. Como a          falando. Essa mudança aconteceu porque o ho-
filosofia grega, mediada pela escolástica é a filoso-        mem de agora não quer mais receber, como o ho-
fia clássica, o que significa Platão e Aristóteles,          mem religioso de antes, os parâmetros e os pa-
Heidegger procura suas fontes, de onde provêm                drões e princípios de como ele tem que viver. Ele
esses pensadores. Por isso, a principal influência           quer, ele mesmo, assumir a construção de sua cul-
para o pensamento pré-socrático. Para se com-                tura, sua sociedade, sua vida, seu pensamento,
preender o pensamento clássico é indispensável               seu conhecimento. O homem moderno é aquele
ter uma experiência do que constitui a contribui-            que quer transformar a realidade e não apenas
ção dos pré-socráticos. Com essa recuperação dos             aceitá-la como ela é. A perda dessa perspectiva de
pré-socráticos, que é uma tradição alemã desde               aceitação leva consigo também uma experiência
Nietzsche, sobretudo, mas também de Hegel, em-               de criação, o que significa que, para sermos cria-
bora este esteja mais ao lado de Aristóteles, o que          dores, não temos que nos deixar sufocar pela for-
leva a um movimento não de retorno e recupera-               ma de conhecimento transformadora da realida-
ção das fontes da cultura, da história, do pensa-            de. Por isso, chegamos cedo demais para essa ex-
mento, da ciência, da arte. Isso é a grande influên-         periência de doação criadora do real.
cia que sofre o pensamento de Heidegger, um
pensamento cuja originalidade é a sua origem.                IHU On-Line – Há em Heidegger influências
                                                             do cristianismo? E no cristianismo vieses
IHU On-Line – Em quais aspectos Heideg-                      heideggerianos?
ger influencia o desconstrutivismo e por                     Emmanuel Carneiro Leão – Sim, sem dúvida
quê?                                                         há influências recíprocas. Heidegger queria fazer
Emmanuel Carneiro Leão – Sua influência se                   curso de teologia cristã. Toda a atividade de leitu-
dá porque, para se chegar a essa fonte de origina-           ra e interpretação da realidade que Heidegger
riedade do pensamento pré-socrático, há uma ne-              propõe é resultado do que ele aprendeu da inter-
cessidade de desvincular-se, desvencilhar-se das             pretação e na leitura da chamada hermenêutica
respostas já dadas, dos padrões de pensamento e              bíblica. Sem o cristianismo, na sua origem e pro-
conhecimento já estabelecidos até aqui. Então é              veniência, não se compreende o pensamento de
preciso se desconstruir o que se constitui a tradi-          Heidegger. No cristianismo católico e no evangéli-
ção do pensamento, do conhecimento e da arte                 co, além de várias outras orientações, a influência


                                                        13
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO



de Heidegger foi fundamental nesse século. As             ta. Sem dúvida, ele achava, inicialmente, que o
chamadas correntes evangélicas da teologia dialé-         movimento do Partido Nacional Socialista trazia
tica, teologia da morte de Deus, exegética, todas         uma resposta para a situação de crise em que se
elas têm grande presença e influência heideggeria-        encontrava a Alemanha depois da Primeira Guer-
nas. Em Bultmann, isso também pode ser notado,            ra Mundial. No entanto, a seguir, ele se convenceu
assim como em Bruckner, Lackner e Rahner. Esses           de que estava enganado, de que o nazismo não
pensadores querem ler tanto a bíblia como a tradi-        trazia nenhuma proposta de libertação, de promo-
ção cristã sob a perspectiva do pensamento de in-         ção para a Alemanha, pelo contrário, trouxe a
terpretação de Heidegger.                                 destruição. Entretanto, isso só foi perceptível com
                                                          o tempo. Inicialmente, como todos os alemães
IHU On-Line – Como o senhor avalia as rela-               que estavam em crise depois da Primeira Guerra
ções entre Heidegger e o advento do nazismo.?             Mundial, Heidegger viu nesse movimento político
Emmanuel Carneiro Leão – Heidegger foi rei-               de restauração uma saída, porém a saída que o
tor da Universidade de Friburgo no período nazis-         nazismo trouxe foi aprofundar a desgraça.




                                                     14
A busca pelo sentido do ser

                               Entrevista com João Augusto Mac Dowell


       Uma obra original e profunda, comparada à             João Augusto Mac Dowell – Com este título
Fenomenologia do Espírito, de Hegel. Esses                   Ontologia Fundamental, Heidegger designa o proje-
são alguns dos méritos de Ser e Tempo, conside-              to de refundamentação da Metafísica desenvolvido
rada a obra-prima de Heidegger. “Transformando               parcialmente e de maneira, afinal de contas aporéti-
o método fenomenológico, herdado de seu mestre               ca, em sua obra mestra Ser e Tempo. Este projeto
Husserl, em uma hermenêutica da própria reali-               se origina da preocupação que anima o jovem Hei-
dade, ele não só questiona as categorias com que             degger de restaurar a Metafísica como pensamento
vinham sendo interpretados o ser humano e o                  de uma transcendência real, transcendência rejeita-
ente no seu conjunto desde o início do pensamen-             da pelas correntes filosóficas dominantes, especial-
to ocidental, mas também abre novos horizontes               mente na Alemanha, no início do século XIX, o cien-
imensamente fecundos para a compreensão de                   tificismo positivista e o neokantismo, limitado a uma
sua historicidade constitutiva”. A avaliação é do fi-        transcendência meramente lógica. Tendo recebido
lósofo João Augusto Mac Dowell SJ, reitor da Fa-             sua primeira formação, também filosófica, num am-
culdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), an-          biente católico, ele pretendia com este projeto fazer
tigo Centro de Estudos Superiores da Companhia               valer a visão do mundo própria da cultura cristã,
de Jesus (CES), em Belo Horizonte. Por e-mail,               embora sobre novas bases, compatíveis com os
ele concedeu entrevista à IHU On-Line, contri-               princípios da filosofia moderna, em particular, to-
buindo para o debate sobre Heidegger no ano em               mando como ponto de partida a imanência do su-
que se completam 30 anos de sua morte.                       jeito humano. Aliás, o pensar de Heidegger, ao lon-
       Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filo-         go de todo o seu percurso, foi um pensar compro-
sofia Nossa Senhora Medianeira e em Teologia pela            metido, como tentativa de compreender o seu pró-
Philosophische Theologische Hochschule Sankt Ge-             prio tempo e de apontar caminhos para superar as
orgen, na Alemanha, Mac Dowell é mestre em Teo-              limitações do mundo moderno.
logia pela mesma instituição. É doutor em Filosofia                 Entretanto, à medida que foi desenvolvendo
pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG), na            o seu projeto nos dez anos que precederam a pu-
Itália, com a tese A gênese da ontologia fundamental         blicação de Ser e Tempo (1927), Heidegger des-
de Martin Heidegger. O trabalho foi publicado pela           cobriu que a Ontologia Fundamental não poderia
editora Herder, de São Paulo, em 1970, e chegou à            consistir na restauração da Metafísica, mesmo que
segunda edição em 1993 pela Loyola. Escreveu,                sobre novas bases, e sim na elaboração da ques-
ainda, Religião também se aprende. 3. ed. São                tão do sentido de ser, questão, segundo ele, es-
Paulo: Santuário, 2003 e organizou Saber filosófi-           quecida por toda a tradição filosófica do Ocidente
co, história e transcendência. Homenagem ao                  desde Platão. Com efeito, a Metafísica, como pen-
Padre Henrique Cláudio de Lima Vaz, SJ, em                   samento do ente como ente, determina o ser ou
seu 80ª aniversário. São Paulo: Loyola, 2002.                essência de cada ente e do ente em geral, quando
                                                             pergunta: Que é (este) ente? Mas não perguntou
IHU On-Line – Qual é a gênese da ontologia                   jamais: Que é ser?, ou melhor: Por que há ser e
fundamental de Heidegger?                                    não simplesmente nada? Em vez disso, para en-


                                                        15
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO



tender a existência do ente, ela remete a outro                    superados pelo próprio Heidegger, Ser e Tem-
ente e, finalmente, ao ente supremo (Deus), como                   po, mesmo assim, pode ser considerada sua
princípio e fundamento de toda a realidade.                        obra-prima. Por um lado, há autores – não é o
                                                                   meu caso – que seguem Heidegger até Ser e
IHU On-Line – Por que Ser e Tempo é consi-                         Tempo, mas recusam como divagação mítica
derada sua obra mestra?                                            ou poética, destituída de significado filosófico, o
João Augusto Mac Dowell – Trata-se de um                           seu pensamento ulterior. Por outro lado, as publi-
marco na história da filosofia semelhante, a meu                   cações subseqüentes do filósofo ou são relativa-
ver, por exemplo, à Fenomenologia do Espírito                      mente breves, conferências as mais das vezes, di-
de Hegel. Sua importância reside, em primeiro lu-                  vulgadas isoladamente ou reunidas em volumes
gar, na sua profunda originalidade. Heidegger pro-                 de cunho mais ou menos homogêneo, ou consis-
põe uma nova perspectiva global, que ele chama                     tem na transcrição de cursos, que, por sua própria
“existencial”, para a compreensão do ser humano                    natureza, possuem um caráter mais difuso. Apesar
e aplica-a com admirável rigor ao longo de toda a                  de consignarem passos decisivos no caminho do
obra. Transformando o método fenomenológico,                       pensar de Heidegger, estas obras, cada uma de
herdado de seu mestre Husserl, em uma herme-                       per si, não alcançam a radicalidade inventiva e a
nêutica da própria realidade, ele não só questiona                 imponência arquitetural de Ser e Tempo. Na ver-
as categorias com que vinham sendo interpretados                   dade, é a própria índole meditativa do novo pen-
o ser humano e o ente no seu conjunto desde o iní-                 sar inaugurado com a mencionada “conversão”
cio do pensamento ocidental, mas também abre                       ou “vira-volta”, que impede o filósofo de estrutu-
novos horizontes imensamente fecundos para a                       rar suas idéias à maneira relativamente analítica e
compreensão de sua historicidade constitutiva. So-                 orgânica daquela produção magistral. O que aci-
mente pouco a pouco, porém, os intérpretes do fi-                  ma de tudo, todavia, determina a primazia de Ser
lósofo compreenderam que as brilhantes descober-                   e Tempo é que as intuições fundamentais dessa
tas da Analítica Existencial sobre o ser do homem                  obra, o filosofar entendido como hermenêutica da
constituíam apenas o primeiro passo na elaboração                  realidade, a compreensão existencial do ser hu-
da questão do sentido de ser, verdadeiro alvo da                   mano, a idéia de ser-no-mundo com todas a suas
investigação heideggeriana. Entretanto, esta em-                   implicações, a contraposição entre a temporalida-
preitada, assumida em Ser e Tempo, levou-o a                       de existencial e a temporalidade cronológica e psi-
convencer-se de que a verdade do ser não poderia                   cológica, a concepção da verdade como manifes-
ser autenticamente desvendada a partir do movi-                    tação e o “des-ocultamento” do ente e, enfim, o
mento de transcendência do ser humano em busca                     primado da questão do ser, permanecem válidas
de seu sentido. Esta constatação, que não tornou                   ao longo de toda a obra heideggeriana e são elas
supérfluo o caminho percorrido até então, já que                   que vão conduzir o seu pensamento a novas para-
só poderia acontecer no seu término, provocou a                    gens até então ainda não contempladas.
inversão do rumo de seu pensamento: de busca e
conquista do sentido de ser, ele transformou-se em                 IHU On-Line – Como avalia a importância e
acolhida de sua verdade como dom. Esta inversão                    o impacto de Heidegger na Filosofia?
ou conversão do pensar heideggeriano inaugura                      João Augusto Mac Dowell – Há certamente
uma nova fase de sua trajetória espiritual.                        consenso entre os entendidos em colocar Heideg-
                                                                   ger, ao lado de Wittgenstein20 e talvez algum outro
Filosofia como hermenêutica                                        mais, em lugar de absoluto destaque na galeria dos
da realidade                                                       filósofos do século XX. Com efeito, quer inspiran-
                                                                   do-se nele, quer rejeitando-o mais ou menos radi-
     Paradoxalmente, mesmo que os resultados
                                                                   calmente, ninguém que pretenda pensar o mundo
da investigação nele desenvolvida tenham sido

20   Ludwig Wittgenstein (1889-1951): filósofo analítico austríaco (Nota da IHU On-Line).


                                                              16
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO



de hoje pode deixar de confrontar-se com a sua                       difícil citar o nome de um pensador significativo
obra. É verdade que a sua influência durante muito                   dentro da tradição da filosofia continental que não
tempo esteve restrita praticamente à chamada filo-                   tenha sentido o impacto da reflexão heideggeria-
sofia continental21, permanecendo relativamente                      na. Aliás, a sua irradiação extrapolou o campo da
alheios às suas idéias, seja os pensadores de ten-                   filosofia, afetando, por exemplo, a psicologia,
dência marxista, seja as correntes filosóficas analíti-              com Binswanger28 e Medard Boss29, e a teologia
cas ou pragmatistas do mundo anglo-saxônico.                         cristã tanto evangélica como católica, com figuras
      Depois de inspirar, em parte em função de                      como R. Bultmann, do lado evangélico, e K. Rah-
mal-entendidos, a filosofia existencialista do Sar-                  ner, do católico.
tre22 de O Ser e o Nada, bem como a tentativa
de superação da Ontologia de E. Lévinas23, sem                       IHU On-Line – E, em nossos dias, perdura a
falar em seus discípulos como H. Jonas24 e H.                        sua influência?
Arendt25, o pensamento heideggeriano se traduziu                     João Augusto Mac Dowell – Heidegger não fez
na corrente hermenêutica, representada por H G.                      propriamente escola. Seu pensamento assistemá-
Gadamer26 e, até certo ponto, por P. Ricoeur27. É                    tico não se presta a transmissões padronizadas.

21 Analíticos e Continentais. São Leopoldo: Unisinos, 2002
22 Jean-Paul Sartre (1905-1980): filósofo existencialista francês. Escreveu obras teóricas, romances, peças teatrais e contos. Seu
   primeiro romance foi A Náusea (1938), e seu principal trabalho filosófico é O Ser e o Nada (1943). Sartre define o
   existencialismo, em seu ensaio O existencialismo é um humanismo, como a doutrina na qual, para o homem, “a existência
   precede a essência”. Na Crítica da razão dialética (1964), Sartre apresenta suas teorias políticas e sociológicas. Aplicou suas
   teorias psicanalíticas nas biografias Baudelaire (1947) e Saint Genet (1953). As palavras (1963) é a primeira parte de sua
   autobiografia. Em 1964, foi escolhido para o prêmio Nobel de literatura, que recusou. (Nota da IHU On-Line)
23 Emmanuel Lévinas: filósofo e comentador talmúdico, nasceu em 1906, na Lituânia, e faleceu em 1995, na França. Desde

   1930, era naturalizado francês. Foi aluno de Husserl e conheceu Heidegger, cuja obra Ser e Tempo, de 1927, o influenciou
   muito. “A ética precede a ontologia” é uma frase que caracteriza o pensamento de Lévinas. Ele é autor do livro que o consagrou
   Totalité et infini. Essai sur l’extériorité que foi traduzido para o português com o titulo Totalidade e Infinito. Lisboa:
   Edições 70, 2000. No Brasil, a Editora Perspectiva, publicou Quatro leituras talmúdicas, em 2003, e a Editora Vozes, De
   Deus que vem a idéia, em 2002. (Nota da IHU On-Line)
24 Hans Jonas (1902-1993): filósofo alemão, naturalizado norte-americano, um dos primeiros pensadores a refletir sobre as novas

   abordagens éticas do progresso tecnocientífico. A sua obra principal intitula-se: Das Prinzip Verantwortung. Versuch
   einer Ethik für die technologische Zivilisation, 1979. (Nota da IHU On-Line)
25 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e socióloga alemã, de origem judaica, nasceu em Hannover. Foi influenciada por Husserl,

   Heidegger e Karl Yaspers. Em conseqüência das perseguições nazistas, em 1941, partiu para os EUA, onde escreveu grande parte
   das suas obras. Lecionou nas principais universidades americanas. Propôs, em uma distinção inusitada, que os termos labor,
   trabalho e ação fossem entendidos como diferentes formas de atividades fundamentais do ser humano, sendo aquele vinculado
   às necessidades biológicas, o intermediário ao artificialismo da vida moderna e este às relações entre os homens sem a mediação
   das coisas ou da matéria. Sua filosofia assenta numa crítica à sociedade de massas e à sua tendência para atomizar os indivíduos.
   Preconiza um regresso a uma concepção política separada da esfera econômica, tendo como modelo de inspiração a antiga
   cidade grega. Entre suas obras, citamos: Eichmann em Jerusalém – Uma reportagem sobre a banalidade do mal. Lisboa:
   Tenacitas. 2004; O Sistema Totalitário. Lisboa: Publicações Dom Quixote.1978; O Conceito de Amor em Santo
   Agostinho. Lisboa: Instituto Piaget; A Vida do Espírito. v.I. Pensar. Lisboa: Instituto Piaget; Sobre a Revolução. Lisboa:
   Relógio D`Água; Compreensão Política e o Futuro e Outros Ensaios. Lisboa: Relógio D’Água (edição da Perspectiva,
   2002). Sobre Arendt, confira o número 168 da IHU On-Line, de 12 de dezembro de 2005, sob o título Hannah Arendt, Simone
   Weil e Edith Stein. Três mulheres que marcaram o século XX. (Nota da IHU On-Line)
26 Hans-Georg Gadamer: filósofo alemão, autor do importante livro Verdade e método. Petrópolis: Vozes, 1997, faleceu no dia

   13 de março de 2002, aos 102 anos. Por essa razão, dedicamos a ele a matéria de capa da IHU On-Line número 9, de 18 de
   março de 2002. (Nota da IHU On-Line)
27 Paul Ricoeur (1913-2005): filósofo francês. Sobre ele, conferir um artigo intitulado Imaginar a paz ou sonhá-la?, publicado na

   49ª edição da IHU On-Line, de 24 de fevereiro de 2003, e uma entrevista na 50ª edição, de 10 de março de 2003. A edição
   142, de 23 de maio de 2005, publicou a editoria Memória sobre Ricoeur, em função de seu falecimento. (Nota da IHU
   On-Line)
28 Ludwig Binswanger (1881-1966): filósofo suíço considerado o fundador da psicologia existencial. (Nota da IHU On-Line)

29 Medard Boss (1903-1990): psicanalista e psiquiatra suíço que desenvolveu uma forma de psicoterapia chamada análise do

   Dasein, largamente influenciada na filosofia fenomenológico-existencial de seu amigo e mentor, Martin Heidegger. (Nota da
   IHU On-Line)


                                                                17
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO



No entanto, os desafios que ele lançou continuam                   zadas por R. Carnap34 ou por Nietzsche ou ainda
a repercutir em todas as faixas do espectro filosófi-              por Marx35. Estes autores, com base em pressu-
co, numa proposta integradora, as linhas herme-                    postos certamente diversos, rejeitam simples-
nêutica e analítico-pragmática, inspiradas nos                     mente a Metafísica, como um tipo de pensamen-
dois maiores mestres do século XX, Heidegger e                     to ilusório e incapaz de revelar a verdade do
Wittgenstein, de um lado com K.-O. Apel30, e, do                   mundo. Para Heidegger, porém, que classifica,
outro, com R. Rorty31. Entretanto, é sobretudo o                   aliás, o pensamento desses filósofos como ainda
pensamento pós-moderno de Lyotard32, J. Derri-                     enredado no dualismo metafísico, o fim da Meta-
da33, G. Vattimo e tantos outros, que não pode ser                 física constitui o acabamento de um processo his-
entendido senão à luz da reflexão heideggeriana                    tórico. Trata-se de uma etapa do pensamento
sobre o destino da Metafísica e sobre o mundo                      ocidental, que possui sua grandeza própria, mas
moderno. Sua busca do fundo sem fundo do pen-                      que hoje já exauriu suas possibilidades. A Metafí-
sar, por um lado, e sua crítica do subjetivismo da                 sica, tendo cumprido até o fim o seu destino, abre
razão instrumental moderna, por outro, deram                       uma nova possibilidade de pensar e compreen-
azo ao surgimento do pensamento débil e da ra-                     der o real no seu todo. Pensar o fim da Metafísica
zão fragmentada, que caracterizam as obras da-                     significa entender a essência do mundo moder-
queles filósofos.                                                  no, caracterizado pelo império da tecnociência,
                                                                   na qual o modelo metafísico do pensar chega às
IHU On-Line – O fim da Metafísica anuncia-                         suas últimas conseqüências.
do por Heidegger ajuda a aprofundar a crise
religiosa das sociedades pós-modernas?
João Augusto Mac Dowell – Para responder à                         Metafísica, estrutura da filosofia ocidental
sua pergunta será necessário esclarecer o que sig-                       Metafísica, segundo Heidegger, não é apenas
nifica para Heidegger o fim da Metafísica. De                      uma das disciplinas filosóficas, ao lado da lógica,
fato, esta expressão entrou no jargão filosófico e,                da ética, da antropologia filosófica e da filosofia
como tal, foi banalizada numa série de acepções                    da natureza. Constitui antes a própria estrutura da
superficiais e confusas. O que Heidegger deno-                     filosofia ocidental desde Platão. A idéia heidegge-
mina “superação da Metafísica” não se identifica                   riana de Metafísica pode ser caracterizada, creio,
com as expressões idênticas ou equivalentes utili-                 por três elementos. Um deles é do dualismo platô-

30 Karl-Otto Apel (1922): filósofo alemão que combinou as tradições filosóficas analítica e continental. É autor do livro
   Transformação da Filosofia V.1. São Paulo: Loyola, 2000. (Nota da IHU On-Line)
31 Richard Rorty: filósofo pragmatista estadunidense. Sua principal obra é Filosofia e o Espelho da Natureza. (Nota da IHU

   On-Line)
32 Jean-François Lyotard (1924-1998): filósofo francês, autor de uma filosofia do desejo e significado representante do

   pós-modernismo. Escreveu, entre outros, A fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 1954, O inumano: considerações sobre
   o tempo. Lisboa: Estampa, 1990, Heidegger e ‘os judeus’. Lisboa: Instituto Piaget, 1999 e A condição pós-moderna. 8.
   ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 2004. (Nota da IHU On-Line)
33 Jacques Derrida (1930-2004): filósofo francês, criador do método chamado desconstrução. Seu trabalho é associado, com

   freqüência, ao pós-estruturalismo e ao pós-modernismo. Entre as principais influências de Derrida encontram-se Sigmund
   Freud e Martin Heidegger. Entre sua extensa produção, figuram os livros Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973;
   L’Ethique du don, (1992), Demeure, Maurice Blanchot (1998), Voiles avec Hélène Cixous (1998), Donner la mort
   (1999). Dedicamos a Derrida a editoria Memória da IHU On-Line edição 119, de 18 de outubro de 2004 (Nota da IHU
   On-Line).
34 Rudolf Carnap (1891-1970): filósofo alemão que trabalhou na Europa Central antes de 1935 e nos Estados Unidos após esse

   período. Foi um dos principais membros do Círculo de Viena e um eminente defensor do positivismo lógico. (Nota da IHU
   On-Line)
35 Karl Heinrich Marx (1818–1883): filósofo, cientista social, economista, historiador e revolucionário alemão, um dos pensadores

   que exerceram maior influência sobre o pensamento social e sobre os destinos da humanidade no século XX. Marx foi estudado
   no Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da Economia. A palestra A Utopia de um novo paradigma para a
   economia foi proferida pela Prof.ª Dr.ª Leda Maria Paulani, em 23 de junho de 2005. O Caderno IHU Idéias, edição número
   41, teve como tema A (anti)filosofia de Karl Marx, com artigo de autoria da mesma professora. (Nota da IHU On-Line)


                                                              18
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO



nico, vigente sob formas diversas em todo o pen-           perceber, em um nada de sentido. Entretanto,
samento ocidental, que se estabelece entre o mun-          diante da crise do que há de mais próprio no ser
do sensível e o mundo inteligível, isto é, entre as        humano, quando todas as possibilidades do
coisas individuais e mutáveis de nossa experiência         pensar metafísico se esgotaram, surge também a
imediata, situadas no espaço e no tempo, e a sua           oportunidade de um novo pensar. Não se trata
essência, como idéias universais e eternas, que            da negação da técnica nem da fuga do mundo
constituem a verdadeira realidade.                         da técnica, antes de procurar um caminho para
      Outro traço determinante da Metafísica é o           o pensar neste contexto inexorável.
privilégio do conhecente, radicalizado no subjeti-               Este novo pensar, para o qual devemos nos
vismo moderno, mas vigente já, segundo Heideg-             dispor, segundo Heidegger, na sobriedade pró-
ger, na metafísica clássica, de determinar o ser do        pria da acolhida de um dom, já não será metafísi-
ente, enquanto depende do juízo ou julgamento              co, nem tampouco antimetafísico e reducionista,
do sujeito a sua verdade. A distinção entre ente e         como o cientificismo positivista ou o individualis-
ser é vista do sujeito, em função de seu movimen-          mo relativista. Ele terá de descartar, contudo, as
to de transcendência sobre o ente para o ser. É            três características do pensamento metafísico aci-
constitutiva da Metafísica esta transcendência as-         ma descritas. Desde Ser e Tempo, Heidegger
censional, na qual o ente é captado no seu ser e           apontava a necessidade de suplantar a oposição
representado na sua verdade. Enfim, o tipo meta-           secundária sensível/inteligível, ao desvendar a
físico de pensar tem um caráter onto-teológico,            unidade originária da existência humana numa
enquanto, embora se exercendo no âmbito da di-             temporalidade existencial. Correspondentemen-
ferença ontológica entre ser e ente, não a pensa,          te, o próprio ser, como horizonte último do pen-
ou seja, não interroga o sentido de ser, antes fun-        sar, não se situa no plano do imutável e eterno,
damenta o ente no seu todo e na sua diversidade            mas implica uma historicidade constitutiva. É
na unidade do ente primeiro, absoluto e infinito,          nesta perspectiva que a Metafísica, com seu
identificado com o Deus cristão.                           modo próprio de pensar e compreender a reali-
                                                           dade, constitui uma etapa na história do ser.
                                                           Entretanto, a diferença ontológica já não se esta-
Tecnociência, expressão final                              belece mediante a transcendência do espírito hu-
da Metafísica                                              mano sobre o ente em direção ao ser. Pelo con-
      A tecnociência moderna constitui para Hei-           trário, a conversão ou vira-volta do itinerário hei-
degger, como já disse, a expressão final e a ple-          deggeriano, como superação da Metafísica, equi-
na realização do destino da Metafísica. Nela o             vale à percepção de que é o próprio ser que toma
ente não é apenas re-presentado como ob-jeto               a iniciativa de se revelar, abrindo para o pensar
do conhecimento, mas é também re-criado de                 um horizonte de compreensão. Isso significa a
acordo com os interesses e objetivos humanos               exclusão filosófica de qualquer pensar represen-
como pro-jeto da vontade de poder. Nessas                  tativo e objetivante. Trata-se antes de acolher
condições, as coisas do mundo se transformam               como dom a manifestação do ser que torna os
em meros recursos, sem consistência própria,               entes presentes ao pensar. Daí também se segue
no interior de um sistema de controle, que cons-           o questionamento da estrutura onto-teológica da
titui a essência da técnica. Entretanto, na sua            Metafísica.
pretensão de tudo controlar, o ser humano aca-                   Essa caracterização de toda a história da Me-
ba sendo controlado pela própria técnica. Ele já           tafísica foi violentamente contestada por autores,
não é capaz de pensar o ente e muito menos o               que não aceitam que sejam assim rotulados deter-
ser como tal, envolvendo sua existência, sem o             minados pensadores, como, por exemplo, Tomás




                                                      19
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO



de Aquino36. Sem envolver-me aqui mais a fundo                         ção já superada, para ele, entre sensível e inteligí-
nesta discussão, basta dizer que, a meu ver, ela                       vel. Tomando os termos no sentido tradicional,
decorre de um mal-entendido. Com efeito, desde                         pode-se dizer, com aparente paradoxo, que o seu
Aristóteles, a transcendência metafísica aponta                        pensar é um pensar da essência, e não da existên-
numa dupla direção, por um lado, para o ente em                        cia. Ser, para Heidegger, não significa existir,
geral, isto é, o ente como ente (dimensão ontoló-                      como o fato de estar aí no mundo, mas sim o hori-
gica), por outro, para o fundamento último do                          zonte determinante do pensar, a iluminação e não
ente (dimensão teológica). Portanto, a Metafísica                      o iluminado. Ele recusa, portanto, passar, median-
tem inegavelmente um caráter onto-teológico. O                         te o raciocínio, do ente que é experienciado a seu
que pode ser questionado e discutido é o juízo de                      fundamento metafísico, inacessível à experiên-
Heidegger a este respeito, ou seja, a afirmação da                     cia, a um ente supremo, que seria a razão suficien-
fundamentação do ente de nossa experiência em                          te do que existe. Tal é a dimensão teológica da
um ente primeiro, própria da Metafísica, como on-                      Metafísica, um procedimento de caráter ôntico,
toteológica, não é uma interpretação filosofica-                       que a leva a esquecer a questão decisiva do status
mente adequada da realidade.                                           do próprio ser.
                                                                             Com efeito, o novo pensar heideggeriano
                                                                       não pergunta pelo “porquê”. Esta pergunta só
Um pensar da essência,                                                 tem sentido no âmbito das relações entre os entes
e não da existência                                                    intramundanos. Procurar justificar o ente no seu
      A posição heideggeriana decorre de vários                        todo, determinar a sua razão suficiente, alcançar o
pressupostos. O primeiro é a sua concepção da fi-                      seu fundamento, foi a pretensão desmesurada da
losofia como determinação do ser ou “essência”                         razão metafísica. O todo, no seu mistério, não
do ente e, em última análise, do sentido de ser                        pode ser abarcado pela razão humana, essencial-
como tal. Embora rejeite, a certa altura, pelos mo-                    mente limitada. O autêntico pensar é o que se si-
tivos já dados, a Ontologia, como autêntico pen-                       tua modestamente diante do fundo sem fundo do
sar do ser, a sua investigação tem certamente um                       ser e, em vez de tentar dominá-lo, acolhe na grati-
caráter “ontológico” (próprio do ser do ente), em                      dão as suas manifestações. Uma vez que a revela-
oposição ao que chama de “ôntico” (próprio do                          ção da verdade depende propriamente da iniciati-
ente). Compreender o ente é compreender o seu                          va do próprio ser, neste momento da crise do pen-
ser e não explicá-lo por outro ente, como fazem as                     samento metafísico, só resta ao ser humano
ciências positivas. Em virtude da adoção do méto-                      dispor-se por uma expectativa serena a acolher a
do fenomenológico, ele só focaliza o eidos, a casa                     eventual comunicação de um novo pensar.
formal no sentido aristotélico, desprezando toda
consideração da causa eficiente.
                                                                       Heidegger e a questão de Deus
      Para ele, a filosofia só pode levar em conside-
ração aquilo que pode ser descrito fenomenologi-                            Só depois deste amplo rodeio, será possível
camente, isto é, que se manifesta implícita ou ex-                     abordar diretamente sua pergunta sobre a religião
plicitamente e pode ser experienciado, dando ao                        no pensamento de Heidegger e sobre as conse-
termo experiência o significado radical de presen-                     qüências da superação heideggeriana da Metafísi-
ça ao pensamento, independentemente da distin-                         ca com relação à crise religiosa contemporânea.


36   Tomás de Aquino (1227-1274): frade dominicano e teólogo italiano, santo da Igreja. Um de seus maiores méritos foi introduzir
     o aristotelismo na escolástica anterior. A partir de São Tomás, a Igreja tem uma teologia (fundada na revelação) e uma filosofia
     (baseada no exercício da razão humana) que se fundem numa síntese definitiva: fé e razão. Nascido numa família nobre,
     estudou Filosofia em Nápoles e depois foi para Paris, onde se dedicou ao ensino e ao estudo de questões filosóficas e
     teológicas. Seus interesses não se restringiam à religião e filosofia, mas também à alquimia, tendo publicado uma importante
     obra alquímica chamada Aurora Consurgens. Sua obra mais famosa e importante é a Suma Teológica. (Nota da IHU
     On-Line)


                                                                  20
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO



Em primeiro lugar, diga-se de passagem, que os              deu (aconteceu, houve) naquele tempo”. Portan-
termos religião e experiência religiosa não são             to, ser, como se dá, implica algo comunicativo,
bem vistos por ele, que os considera eivados do             algo de doação. É próprio do ser dar que pensar.
subjetivismo moderno. Valoriza, ao invés, a expe-           Ele constitui a clareira em cujo âmbito as coisas
riência do sagrado e do divino, como constitutiva           vêm ao nosso encontro como sendo, isto é, na sua
da existência humana. A questão de Deus em Hei-             verdade e sentido.
degger é extremamente complexa e tem sido mui-
to discutida. Só poderei acenar aqui para alguns
aspectos mais importantes. Como já disse, ele re-           Concepção de existência
jeita a linguagem metafísica sobre Deus, isto é,            no último Heidegger
não aceita o tipo de pensamento que pretende de-                  Apesar de distinguir absolutamente entre o
monstrar a existência de Deus como fundamento               ser e os entes, Heidegger lhe atribui uma espécie
último da realidade, nem reconhece no Deus do               de atuação, que suporia uma consistência entitati-
teísmo metafísico um Deus que possa ser objeto              va e até um caráter pessoal. Para ele, como já ex-
de culto e de adoração. Por isso mesmo, enquanto            pliquei, é o ser que determina com suas iniciativas
um novo pensar não se consolidar, é mais sensato            de manifestar-se ou ocultar-se o destino e a histó-
calar-se diante do mistério do que querer falar de          ria do pensar. O verdadeiro pensar é aquele que,
Deus.                                                       longe de arvorar-se em senhor da verdade, aco-
      Na verdade, segundo Heidegger, só é possí-            lhe-a com gratidão como uma graça e favor do
vel falar autenticamente de algo à medida que se            ser. É evidente a semelhança dessa linguagem
manifesta, ou seja, que é experienciado pelo pen-           com a que exprime na bíblia a relação entre Deus
samento. Ora, o mundo da técnica, criado à ima-             e a liberdade humana na revelação dos seus de-
gem e semelhança do homem e de seus interesses,             sígnios como história da salvação. Em todo o
já não revela a presença de um Deus. Trata-se de            caso, mesmo prescindindo da relação para com
um mundo dessacralizado, que impede o acesso                um Deus transcendente e criador, tem muito de
autêntico ao divino. Estas observações indicam              cristã a concepção da existência do último Hei-
claramente que, para ele, o divino, embora oculto           degger, como aceitação serena e agradecida do
pelo pensar representativo da modernidade, per-             dom do ser como expressão suprema da liberdade
tence essencialmente ao horizonte existencial do            como abertura à verdade.
ser humano. Ele inclui expressamente esta dimen-                  Será que por trás do ser haveria que divisar
são no quarteto, constitutivo do mundo, que en-             um Deus, concebido não tanto como a causa efi-
volve a existência humana: céu, terra, deuses e             ciente do mundo empírico, quanto como a fonte
mortais. E a célebre entrevista que deu à revista           do sentido, aquele que, ao comunicar o ser como
Der Spiegel por ocasião de seus 80 anos, para ser           verdade, desperta o pensar como liberdade? A
publicada apenas depois de sua morte, como seu              sintaxe do “dar-se” como “haver” em alemão é
testamento espiritual, contém a afirmação enig-             distinta da portuguesa, enquanto atribui gramati-
mática, mas decisiva: “Só um Deus pode sal-                 calmente ao sujeito impessoal “es” o dom do ser
var-nos”. A questão é saber de que Deus se trata            qual objeto direto. Poder-se-ia identificar neste
aqui e qual é sua relação com o ser. É certo que o          “es” o mistério frontal do qual flui o ser como o
ser, central no pensamento de Heidegger, não é              horizonte histórico da existência humana? Hei-
Deus. O ser, aliás, não é, porque só do ente se             degger não faz tal identificação. Mas esta reserva
pode dizer que é. E o ser não é um ente, aquilo             não decorreria, quem sabe, da convicção de que
que é. Por isso, Heidegger prefere dizer: há ser (es        com isso ultrapassaria os limites do puro filosofar?
gibt Sein). Ora, o equivalente de “haver” em ale-           É possível. Em todo o caso, há também na sua
mão se traduz literalmente em português por                 obra indícios que vão em sentido contrário, ou
“dar-se”, que pode significar também algo como              seja, no sentido da concepção de um divino ima-
“haver”, “acontecer”, em frases como: “Isso se              nente ao cosmo, próxima à experiência do sagra-


                                                       21
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO



do própria da antiga religião da Grécia. A expres-                    gância enfatuada qualquer tentativa de chegar a
são “deuses” como uma das dimensões do mun-                           Deus, seja pela demonstração racional, seja pelo
do, que já mencionei, entre outras considerações,                     sentimento religioso. Nem por isso propugna Hei-
pode levar a tal interpretação. Nesse caso, o ser                     degger uma atitude de mera passividade e resigna-
planaria sobre o mundo humano tal qual a “moi-                        ção diante da crise atual. Trata-se de assumir a ta-
ra” da mitologia grega, como o que determina, em                      refa de vigiar e proteger a verdade do ser, região
última análise, o destino dos deuses e dos mortais.                   onde será possível experienciar o sagrado e pensar
                                                                      sua essência, desde que ele volte a manifestar-se.

Niilismo e “morte de Deus”                                            IHU On-Line – De que forma o senhor inter-
      É possível que Heidegger tenha deixado, afi-                    preta a decisão de Heidegger de filiar-se ao
nal, sem resposta a questão sobre o tipo de divino                    nacional-socialismo, tendo em vista que
ao qual ele se refere. Qualquer que seja, porém, a                    quase foi padre e pediu um funeral religioso?
sua posição a esse respeito, é certo que o divino                     João Augusto Mac Dowell – No tempo de sua
faz parte de sua visão da realidade. O seu pensa-                     adesão ao nacional-socialismo, Heidegger já havia
mento sobre o fim da Metafísica, bem entendido,                       rompido os laços com a Igreja Católica. Não creio
longe de contribuir para o agravamento da crise                       que este episódio, já debatido à saciedade, possa
religiosa contemporânea, permite encará-la com a                      ser explicado, num ou noutro sentido, em função
maior lucidez. Por um lado, a “morte de Deus”,                        das atitudes religiosas de Heidegger. Em todo o
característica da cultura moderna, não equivale a                     caso, ele constitui uma mancha indelével na bio-
um atestado da inexistência de Deus, segundo sua                      grafia do filósofo. Mais grave, sob o ponto de vista
interpretação da afirmação de Nietzsche, mas tão                      ético, que a filiação, por um breve período, ao
somente à percepção de que o Deus da Metafísica                       partido nazista – que poderia ter suas atenuantes –
perdeu todo o seu vigor, já não é capaz de dar                        foi talvez sua recusa até o fim de exprimir sua mea
sentido ao mundo contemporâneo. Por outro                             culpa por tal gesto. Nem por isso se justifica a ten-
lado, ele tacharia certamente de superficiais e ab-                   tativa de, com base nesse fato, querer desqualifi-
solutamente incapazes de superar o niilismo atual,                    car o seu pensamento. Naturalmente, passos des-
resultante da “morte de Deus”, as manifestações                       ta envergadura têm muito a ver com a mentalida-
de ressurgimento religioso dos últimos decênios.                      de da pessoa, os valores que a norteiam. Foram as
Esta religiosidade individualista, voltada para a                     esperanças de um ressurgimento do povo alemão,
satisfação afetiva do sujeito, constitui uma mera                     após as trágicas experiências da derrota na Pri-
atitude reativa diante do racionalismo moderno,                       meira Guerra Mundial e do desastre da República
que, por isso mesmo, no seu irracionalismo per-                       de Weimar, e mais ainda sua visão de uma revita-
manece atrelada ao mesmo esquema de pensa-                            lização da cultura ocidental com base em raízes
mento. Como disse há pouco, para Heidegger, só                        autênticas, que ele projetou ingenuamente sobre a
à medida que o divino se manifesta pode estabe-                       figura esquálida de Hitler37. No entanto, este erro
lecer-se um autêntico ser-para-Deus. Apenas ele                       fatal de julgamento, logo corrigido, a respeito do
pode tomar a iniciativa de revelar-se, cabendo ao                     eventual executor de tais ideais não comprova
ser humano tão somente acolher com atenção a                          qualquer afinidade entre seu pensamento e a ideo-
comunicação divina. Destarte, nesta época de                          logia nacional-socialista. São, portanto, deplorá-
ocultamento da divindade, não passaria de arro-


37   Adolf Hitler (1889-1945): ditador alemão, líder do Partido Nazista. Suas teses racistas e anti-semitas, bem como seus objetivos
     para a Alemanha ficaram patentes no seu livro de 1924, Mein Kampf (Minha Luta). No período da sua ditadura, os judeus e
     outros grupos minoritários considerados “indesejados”, como ciganos e negros, foram perseguidos e exterminados no que se
     convencionou chamar de Holocausto. Cometeu o suicídio no seu Quartel-General (o Führerbunker) em Berlim, com o Exército
     Soviético a poucos quarteirões de distância. A edição 145 da IHU On-Line, de 13 de junho de 2005, comentou na editoria
     Filme da Semana, o filme dirigido por Oliver Hirschbiegel, A Queda – as últimas horas de Hitler. (Nota da IHU On-Line)


                                                                 22
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão augusto mac dowell-william richardson-rafael haddock-lobo-écio elvis pisetta
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão augusto mac dowell-william richardson-rafael haddock-lobo-écio elvis pisetta
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão augusto mac dowell-william richardson-rafael haddock-lobo-écio elvis pisetta
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão augusto mac dowell-william richardson-rafael haddock-lobo-écio elvis pisetta
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão augusto mac dowell-william richardson-rafael haddock-lobo-écio elvis pisetta
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão augusto mac dowell-william richardson-rafael haddock-lobo-écio elvis pisetta
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão augusto mac dowell-william richardson-rafael haddock-lobo-écio elvis pisetta
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão augusto mac dowell-william richardson-rafael haddock-lobo-écio elvis pisetta
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão augusto mac dowell-william richardson-rafael haddock-lobo-écio elvis pisetta
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão augusto mac dowell-william richardson-rafael haddock-lobo-écio elvis pisetta
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão augusto mac dowell-william richardson-rafael haddock-lobo-écio elvis pisetta
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão augusto mac dowell-william richardson-rafael haddock-lobo-écio elvis pisetta
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão augusto mac dowell-william richardson-rafael haddock-lobo-écio elvis pisetta
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão augusto mac dowell-william richardson-rafael haddock-lobo-écio elvis pisetta
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão augusto mac dowell-william richardson-rafael haddock-lobo-écio elvis pisetta
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão augusto mac dowell-william richardson-rafael haddock-lobo-écio elvis pisetta
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão augusto mac dowell-william richardson-rafael haddock-lobo-écio elvis pisetta
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão augusto mac dowell-william richardson-rafael haddock-lobo-écio elvis pisetta

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

ASSISTÊNCIA DE ENFERMAGEM - ANAMNESE E EXAME CLÍNICO E FÍSICO.pdf
 ASSISTÊNCIA DE ENFERMAGEM - ANAMNESE E EXAME CLÍNICO E FÍSICO.pdf ASSISTÊNCIA DE ENFERMAGEM - ANAMNESE E EXAME CLÍNICO E FÍSICO.pdf
ASSISTÊNCIA DE ENFERMAGEM - ANAMNESE E EXAME CLÍNICO E FÍSICO.pdfCASA
 
Doação de Orgãos e Transplante
Doação de Orgãos e TransplanteDoação de Orgãos e Transplante
Doação de Orgãos e TransplanteJuninho Almeida
 
Assistência de Enfermagem nas feridas tumorais
Assistência de Enfermagem nas feridas tumoraisAssistência de Enfermagem nas feridas tumorais
Assistência de Enfermagem nas feridas tumoraisVivi Medeiros
 
Desmistificando a Doação e o Transplante de Medula Óssea
Desmistificando a Doação e o Transplante de Medula ÓsseaDesmistificando a Doação e o Transplante de Medula Óssea
Desmistificando a Doação e o Transplante de Medula ÓsseaRodrigo Bruno
 
prescrição Hospitalar
prescrição Hospitalarprescrição Hospitalar
prescrição HospitalarRenato Abdoral
 
Preparação do leito ferida, exsudados e desbridamento ELCOS VII jornadas AEES...
Preparação do leito ferida, exsudados e desbridamento ELCOS VII jornadas AEES...Preparação do leito ferida, exsudados e desbridamento ELCOS VII jornadas AEES...
Preparação do leito ferida, exsudados e desbridamento ELCOS VII jornadas AEES...Elcos&Ulcus - Sociedade Feridas
 
Cuidados com feridas
Cuidados com feridasCuidados com feridas
Cuidados com feridasRodrigo Abreu
 

Mais procurados (9)

Feridas neoplásicas
Feridas neoplásicasFeridas neoplásicas
Feridas neoplásicas
 
ASSISTÊNCIA DE ENFERMAGEM - ANAMNESE E EXAME CLÍNICO E FÍSICO.pdf
 ASSISTÊNCIA DE ENFERMAGEM - ANAMNESE E EXAME CLÍNICO E FÍSICO.pdf ASSISTÊNCIA DE ENFERMAGEM - ANAMNESE E EXAME CLÍNICO E FÍSICO.pdf
ASSISTÊNCIA DE ENFERMAGEM - ANAMNESE E EXAME CLÍNICO E FÍSICO.pdf
 
Doação de Orgãos e Transplante
Doação de Orgãos e TransplanteDoação de Orgãos e Transplante
Doação de Orgãos e Transplante
 
Assistência de Enfermagem nas feridas tumorais
Assistência de Enfermagem nas feridas tumoraisAssistência de Enfermagem nas feridas tumorais
Assistência de Enfermagem nas feridas tumorais
 
Eutanasia y Bioética
Eutanasia y Bioética Eutanasia y Bioética
Eutanasia y Bioética
 
Desmistificando a Doação e o Transplante de Medula Óssea
Desmistificando a Doação e o Transplante de Medula ÓsseaDesmistificando a Doação e o Transplante de Medula Óssea
Desmistificando a Doação e o Transplante de Medula Óssea
 
prescrição Hospitalar
prescrição Hospitalarprescrição Hospitalar
prescrição Hospitalar
 
Preparação do leito ferida, exsudados e desbridamento ELCOS VII jornadas AEES...
Preparação do leito ferida, exsudados e desbridamento ELCOS VII jornadas AEES...Preparação do leito ferida, exsudados e desbridamento ELCOS VII jornadas AEES...
Preparação do leito ferida, exsudados e desbridamento ELCOS VII jornadas AEES...
 
Cuidados com feridas
Cuidados com feridasCuidados com feridas
Cuidados com feridas
 

Semelhante a Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão augusto mac dowell-william richardson-rafael haddock-lobo-écio elvis pisetta

Imaginário e ciênciaImaginário e ciência: novas perspectivas do conhecimento ...
Imaginário e ciênciaImaginário e ciência: novas perspectivas do conhecimento ...Imaginário e ciênciaImaginário e ciência: novas perspectivas do conhecimento ...
Imaginário e ciênciaImaginário e ciência: novas perspectivas do conhecimento ...Marta Caregnato
 
Filosofia em Tempos Difíceis
Filosofia em Tempos DifíceisFilosofia em Tempos Difíceis
Filosofia em Tempos DifíceisJorge Barbosa
 
Cap 16 Os Seguidores e os Críticos de Kant
Cap 16   Os Seguidores e os Críticos de KantCap 16   Os Seguidores e os Críticos de Kant
Cap 16 Os Seguidores e os Críticos de KantJosé Ferreira Júnior
 
Mito e ciencia 14 tp
Mito e ciencia 14 tpMito e ciencia 14 tp
Mito e ciencia 14 tpalemisturini
 
feyerabend ciencia um monstro episte.ppt
feyerabend ciencia um monstro episte.pptfeyerabend ciencia um monstro episte.ppt
feyerabend ciencia um monstro episte.pptingrid985017
 
O avanço do conhecimento científico e o pensamento complexo
O avanço do conhecimento científico e o pensamento complexoO avanço do conhecimento científico e o pensamento complexo
O avanço do conhecimento científico e o pensamento complexoFernando Alcoforado
 
ATIVIDADE DE FILOSOFIA 2.docx
ATIVIDADE DE FILOSOFIA  2.docxATIVIDADE DE FILOSOFIA  2.docx
ATIVIDADE DE FILOSOFIA 2.docxElieidw
 
Informação e o ser
Informação e o serInformação e o ser
Informação e o serRob Ashtoffen
 
Racionalismo, empirismo e iluminismo giorgia 23 mp
Racionalismo, empirismo e iluminismo giorgia 23 mpRacionalismo, empirismo e iluminismo giorgia 23 mp
Racionalismo, empirismo e iluminismo giorgia 23 mpalemisturini
 
Atitude filosofica e abordagem do direito (aula prática)
Atitude filosofica e abordagem do direito (aula prática)Atitude filosofica e abordagem do direito (aula prática)
Atitude filosofica e abordagem do direito (aula prática)Joao Carlos
 
Para que filosofia do direito
Para que filosofia do direitoPara que filosofia do direito
Para que filosofia do direitoJoao Carlos
 
Apostila de Filosofia
Apostila de FilosofiaApostila de Filosofia
Apostila de FilosofiaLuci Bonini
 
Hfc aula introdução ao existencialismo
Hfc aula introdução ao existencialismoHfc aula introdução ao existencialismo
Hfc aula introdução ao existencialismoLuiz
 

Semelhante a Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão augusto mac dowell-william richardson-rafael haddock-lobo-écio elvis pisetta (20)

Imaginário e ciênciaImaginário e ciência: novas perspectivas do conhecimento ...
Imaginário e ciênciaImaginário e ciência: novas perspectivas do conhecimento ...Imaginário e ciênciaImaginário e ciência: novas perspectivas do conhecimento ...
Imaginário e ciênciaImaginário e ciência: novas perspectivas do conhecimento ...
 
Filosofia em Tempos Difíceis
Filosofia em Tempos DifíceisFilosofia em Tempos Difíceis
Filosofia em Tempos Difíceis
 
Gaio%202
Gaio%202Gaio%202
Gaio%202
 
Cap 16 Os Seguidores e os Críticos de Kant
Cap 16   Os Seguidores e os Críticos de KantCap 16   Os Seguidores e os Críticos de Kant
Cap 16 Os Seguidores e os Críticos de Kant
 
Concepções filosoficas-s
Concepções filosoficas-sConcepções filosoficas-s
Concepções filosoficas-s
 
Mito e ciencia 14 tp
Mito e ciencia 14 tpMito e ciencia 14 tp
Mito e ciencia 14 tp
 
O que é filosofia
O que é filosofiaO que é filosofia
O que é filosofia
 
feyerabend ciencia um monstro episte.ppt
feyerabend ciencia um monstro episte.pptfeyerabend ciencia um monstro episte.ppt
feyerabend ciencia um monstro episte.ppt
 
Capítulo 3
Capítulo 3Capítulo 3
Capítulo 3
 
O avanço do conhecimento científico e o pensamento complexo
O avanço do conhecimento científico e o pensamento complexoO avanço do conhecimento científico e o pensamento complexo
O avanço do conhecimento científico e o pensamento complexo
 
Aula 1 filosofia
Aula 1 filosofiaAula 1 filosofia
Aula 1 filosofia
 
ATIVIDADE DE FILOSOFIA 2.docx
ATIVIDADE DE FILOSOFIA  2.docxATIVIDADE DE FILOSOFIA  2.docx
ATIVIDADE DE FILOSOFIA 2.docx
 
Fenomenologia e a psicologia
Fenomenologia e a psicologiaFenomenologia e a psicologia
Fenomenologia e a psicologia
 
Informação e o ser
Informação e o serInformação e o ser
Informação e o ser
 
Racionalismo, empirismo e iluminismo giorgia 23 mp
Racionalismo, empirismo e iluminismo giorgia 23 mpRacionalismo, empirismo e iluminismo giorgia 23 mp
Racionalismo, empirismo e iluminismo giorgia 23 mp
 
Atitude filosofica e abordagem do direito (aula prática)
Atitude filosofica e abordagem do direito (aula prática)Atitude filosofica e abordagem do direito (aula prática)
Atitude filosofica e abordagem do direito (aula prática)
 
Para que Filosofia do Direito?
Para que Filosofia do Direito?Para que Filosofia do Direito?
Para que Filosofia do Direito?
 
Para que filosofia do direito
Para que filosofia do direitoPara que filosofia do direito
Para que filosofia do direito
 
Apostila de Filosofia
Apostila de FilosofiaApostila de Filosofia
Apostila de Filosofia
 
Hfc aula introdução ao existencialismo
Hfc aula introdução ao existencialismoHfc aula introdução ao existencialismo
Hfc aula introdução ao existencialismo
 

Mais de Érika Renata

Fenomenológica existencial do uso de drogas
Fenomenológica existencial do uso de drogasFenomenológica existencial do uso de drogas
Fenomenológica existencial do uso de drogasÉrika Renata
 
Psicoterapia existencial Camon
Psicoterapia existencial CamonPsicoterapia existencial Camon
Psicoterapia existencial CamonÉrika Renata
 
Abuso de cannabis em pacientes com transtornos
Abuso de cannabis em pacientes com transtornosAbuso de cannabis em pacientes com transtornos
Abuso de cannabis em pacientes com transtornosÉrika Renata
 
Rehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demais
Rehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demaisRehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demais
Rehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demaisÉrika Renata
 
Rehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencial
Rehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencialRehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencial
Rehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencialÉrika Renata
 
Rehfeld, a. acerca das generosas curvas da espera
Rehfeld, a. acerca das generosas curvas da esperaRehfeld, a. acerca das generosas curvas da espera
Rehfeld, a. acerca das generosas curvas da esperaÉrika Renata
 
Rehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencial
Rehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencialRehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencial
Rehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencialÉrika Renata
 
Rehfeld, a. à angústia
Rehfeld, a. à angústiaRehfeld, a. à angústia
Rehfeld, a. à angústiaÉrika Renata
 
Psicoterapia fenomenologica existencial
Psicoterapia fenomenologica existencialPsicoterapia fenomenologica existencial
Psicoterapia fenomenologica existencialÉrika Renata
 
Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...
Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...
Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...Érika Renata
 
Nascimento, c.l. a centralidade da epoché na fenomenologia husserliana
Nascimento, c.l. a centralidade da epoché na fenomenologia husserlianaNascimento, c.l. a centralidade da epoché na fenomenologia husserliana
Nascimento, c.l. a centralidade da epoché na fenomenologia husserlianaÉrika Renata
 
Moreira, virginia. possíveis contribuições de husserl e heidegger para a clín...
Moreira, virginia. possíveis contribuições de husserl e heidegger para a clín...Moreira, virginia. possíveis contribuições de husserl e heidegger para a clín...
Moreira, virginia. possíveis contribuições de husserl e heidegger para a clín...Érika Renata
 
Mattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heidegger
Mattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heideggerMattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heidegger
Mattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heideggerÉrika Renata
 
Marçal, j.c. existência e _verdade_ em martin heidegger
Marçal, j.c.  existência  e _verdade_ em martin heideggerMarçal, j.c.  existência  e _verdade_ em martin heidegger
Marçal, j.c. existência e _verdade_ em martin heideggerÉrika Renata
 
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeutica
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeuticaJardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeutica
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeuticaÉrika Renata
 
Heidegger, m. o que é isto a filosofia
Heidegger, m. o que é isto   a filosofiaHeidegger, m. o que é isto   a filosofia
Heidegger, m. o que é isto a filosofiaÉrika Renata
 
Heidegger, m. a questao da tecnica
Heidegger, m. a questao da tecnicaHeidegger, m. a questao da tecnica
Heidegger, m. a questao da tecnicaÉrika Renata
 
Giovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencial
Giovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencialGiovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencial
Giovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencialÉrika Renata
 
Giovanetti. o sagrado na psicoterapia
Giovanetti. o sagrado na psicoterapiaGiovanetti. o sagrado na psicoterapia
Giovanetti. o sagrado na psicoterapiaÉrika Renata
 
Freire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswanger
Freire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswangerFreire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswanger
Freire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswangerÉrika Renata
 

Mais de Érika Renata (20)

Fenomenológica existencial do uso de drogas
Fenomenológica existencial do uso de drogasFenomenológica existencial do uso de drogas
Fenomenológica existencial do uso de drogas
 
Psicoterapia existencial Camon
Psicoterapia existencial CamonPsicoterapia existencial Camon
Psicoterapia existencial Camon
 
Abuso de cannabis em pacientes com transtornos
Abuso de cannabis em pacientes com transtornosAbuso de cannabis em pacientes com transtornos
Abuso de cannabis em pacientes com transtornos
 
Rehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demais
Rehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demaisRehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demais
Rehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demais
 
Rehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencial
Rehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencialRehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencial
Rehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencial
 
Rehfeld, a. acerca das generosas curvas da espera
Rehfeld, a. acerca das generosas curvas da esperaRehfeld, a. acerca das generosas curvas da espera
Rehfeld, a. acerca das generosas curvas da espera
 
Rehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencial
Rehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencialRehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencial
Rehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencial
 
Rehfeld, a. à angústia
Rehfeld, a. à angústiaRehfeld, a. à angústia
Rehfeld, a. à angústia
 
Psicoterapia fenomenologica existencial
Psicoterapia fenomenologica existencialPsicoterapia fenomenologica existencial
Psicoterapia fenomenologica existencial
 
Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...
Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...
Pereira, m.e.c. sobre os fundamentos da psicoterapia de base analitico existe...
 
Nascimento, c.l. a centralidade da epoché na fenomenologia husserliana
Nascimento, c.l. a centralidade da epoché na fenomenologia husserlianaNascimento, c.l. a centralidade da epoché na fenomenologia husserliana
Nascimento, c.l. a centralidade da epoché na fenomenologia husserliana
 
Moreira, virginia. possíveis contribuições de husserl e heidegger para a clín...
Moreira, virginia. possíveis contribuições de husserl e heidegger para a clín...Moreira, virginia. possíveis contribuições de husserl e heidegger para a clín...
Moreira, virginia. possíveis contribuições de husserl e heidegger para a clín...
 
Mattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heidegger
Mattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heideggerMattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heidegger
Mattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heidegger
 
Marçal, j.c. existência e _verdade_ em martin heidegger
Marçal, j.c.  existência  e _verdade_ em martin heideggerMarçal, j.c.  existência  e _verdade_ em martin heidegger
Marçal, j.c. existência e _verdade_ em martin heidegger
 
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeutica
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeuticaJardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeutica
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeutica
 
Heidegger, m. o que é isto a filosofia
Heidegger, m. o que é isto   a filosofiaHeidegger, m. o que é isto   a filosofia
Heidegger, m. o que é isto a filosofia
 
Heidegger, m. a questao da tecnica
Heidegger, m. a questao da tecnicaHeidegger, m. a questao da tecnica
Heidegger, m. a questao da tecnica
 
Giovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencial
Giovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencialGiovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencial
Giovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencial
 
Giovanetti. o sagrado na psicoterapia
Giovanetti. o sagrado na psicoterapiaGiovanetti. o sagrado na psicoterapia
Giovanetti. o sagrado na psicoterapia
 
Freire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswanger
Freire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswangerFreire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswanger
Freire, j.c. o lugar do outro na daseinsanalise de binswanger
 

Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão augusto mac dowell-william richardson-rafael haddock-lobo-écio elvis pisetta

  • 1. A superação da metafísica e o fim das verdades eternas Entrevista com Ernildo Stein Há trinta anos morria o autor de Sein und Munster e Wüppertal, todas na Alemanha. Atual- Zeit (Ser e tempo), publicada em 1927, ou seja, mente, leciona no Departamento de Filosofia da há quase oitenta anos. Martin Heidegger foi, nas PUCRS. palavras do Prof. Dr. Ernildo Stein, “o pensador Stein publicou dezenas de livros, entre eles de vulto que, na filosofia, problematizou de modo Seminário sobre a verdade: lições introdu- mais profundo a modernidade", pois, segundo tórias para a leitura do parágrafo 44 de Ser Ernildo Stein, “com a modernidade, surgiu a e tempo. Petrópolis: Vozes, 1993; A caminho questão da subjetividade e com isso a questão do de uma fundamentação pós-metafísica. Por- método. O ser humano está livre das amarras da to Alegre: Edipucrs, 1997; Diferença e metafísi- tradição e da história passada, para traçar o seu ca. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000; Compreen- caminho e os seus projetos". Assim, “passa a con- são e finitude. Ijuí: Unijuí, 2001; Introdução siderar a natureza e os recursos do Planeta como ao pensamento de Martin Heidegger. Porto transformáveis e manipuláveis sem limite. Heideg- Alegre: Edipucrs, 2002; Mundo Vivido: Das vi- ger vê nisso o surgimento de uma espécie de com- cissitudes e dos usos de um conceito da fe- pulsão para a transformação. Ele costuma chamar nomenologia. Porto Alegre: Edipucrs, 2004; a irresistível tendência de o ser humano transfor- Seis estudos sobre Ser e Tempo. 3. ed. Petró- mar tudo de dispositivo (Gestell)". Dessa forma, polis: Vozes, 2005. Confira a seguir, na íntegra, a Heidegger, ainda na primeira metade do século entrevista com o filósofo. XX, levanta “o problema daquilo que hoje deno- minamos globalização". IHU On-Line – Quais são os aspectos mais Em entrevista exclusiva por e-mail para a atuais na filosofia heideggeriana? Qual é a IHU On-Line, em 19 de junho de 2006, o filósofo importância de Heidegger como um intér- Ernildo Stein destacou que, já no final dos anos prete da pós-modernidade? 1930, a filosofia de Heidegger problematizava o Ernildo Stein – O filósofo é, sem dúvida, o pen- que hoje entendemos por globalização. Além dis- sador de vulto que, na filosofia, problematizou de so, continua Stein, esse filósofo “libertou o ser hu- modo mais profundo a modernidade. Até que mano como ser no mundo de qualquer amarra ponto suas idéias sempre acertaram é uma outra metafísica, deixando como tarefa sua, a instaura- questão. Não podemos, no entanto, negar a im- ção da verdade.” E completa: “Estamos sós no portância de sua teoria de que, com a moderni- Planeta e nele somos um acontecimento que se es- dade, surgiu a questão da subjetividade e com panta consigo mesmo.” isso a questão do método. O ser humano está li- Graduado em Filosofia e bacharel em Direito vre das amarras da tradição e da história passa- pela UFRGS, Stein é doutor em Filosofia pela mes- da, para traçar o seu caminho e os seus projetos. ma instituição com a tese Compreensão e finitude Por isso, passa a considerar a natureza e os recur- – estrutura e movimento da interrogação Heideg- sos do Planeta como transformáveis e manipulá- geriana. Cursou pós-doutorado nas universidades veis sem limite. Heidegger vê nisso o surgimento de Erlangen, Heidelberg, Freiburg, Frankfurt, de uma espécie de compulsão para a transforma- 4
  • 2. CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO ção. Ele costuma chamar a irresistível tendência Ernildo Stein – Heidegger fala em fim da meta- de o ser humano transformar tudo de dispositivo física como superação dos limites impostos em (Gestell). Foi assim que ele previu o que chama nome de teorias que se dizem filosóficas, mas de europeização do mundo, a lógica e o cálculo não tratam das condições de possibilidade do co- se disseminando implacavelmente pelo Planeta, nhecimento, simplesmente falam de coisas e ob- arrasando as culturas locais com o progresso. jetos. A superação da metafísica não significa o Com isso, o filósofo levanta, já no fim dos anos fim da metafísica. Kant1 mesmo dizia que sempre 1930, o problema daquilo que hoje denomina- respiraremos o “ar impuro” da metafísica e “te- mos globalização. mos uma mancha podre” que nos faz operar com A filosofia não deve ser avaliada por sua atua- conceitos independentes da realidade. Heideg- lidade, mas pela capacidade de ela, nos diversos ger concordaria com Kant, caso a afirmação dele filósofos, pensar os fundamentos que podem, de não fosse uma pretensão de salvar o que não certo modo, reger o comportamento dos seres hu- pode ser salvo em sua teoria do conhecimento. manos, fazendo uso de sua liberdade. A filosofia Para Heidegger o fim da metafísica significa ape- não compete com a ciência na descoberta de no- nas que estamos livres do comando de outros vos objetos. Ela pensa a moldura ou o âmbito nos mundos não-humanos. Estamos sós no Planeta e quais as ciências descobrem e situam seus objetos. nele somos um acontecimento que se espanta A filosofia não se volta contra a ciência, mas tem consigo mesmo. um timing mais longo, porque não está submetida às urgências de transformação da realidade. IHU On-Line – O que o senhor quer dizer Talvez convenha dizer que Heidegger, final- com uma fundamentação pós-metafísica? mente, sem nenhuma inibição, libertou o ser hu- Ernildo Stein – Assim como vivemos a chamada mano como ser no mundo de qualquer amarra pós-modernidade e nela identificamos a fragmen- metafísica, deixando como tarefa sua, a instaura- tação de toda a unidade entre ciência, arte e reli- ção da verdade. Heidegger declara que não há gião, assim temos que reconhecer que, se ainda verdades absolutas ou literalmente “não há verda- procuramos razões que não sejam as razões da des eternas”. A verdade só existe porque o ser hu- ciência, essas não são mais razões ou fundamen- mano opera com ela. É por isso que se inverte a tos metafísicos. O pós-metafísico é um mundo relação medieval entre teologia e antropologia. sem fundamentos absolutos. Quem dá a moldura Não há Deus sem o ser humano, pois somente ele, na qual se dá o acontecer daquilo que revela os li- o ser humano, abre o espaço para o problema de mites da objetivação da ciência é o modo de o ho- Deus e assim deixa acontecer o que pode ser ex- mem ser no mundo que a filosofia pode descrever presso em enunciados que tratam da possibilidade como sentido. de Deus. IHU On-Line – Como o conceito de angústia IHU On-Line – O que implica o fim da meta- é tratado por Heidegger em Ser e Tempo? física sugerido por Heidegger? Como enten- Ernildo Stein – Heidegger, quando cria conceitos der esse argumento hoje? não os apresenta como prontos. É próprio da feno- 1 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussiano, considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna, representante do Iluminismo, indiscutivelmente um dos seus pensadores mais influentes da filosofia. Kant teve um grande impacto no Romantismo alemão e nas filosofias idealistas do século XIX, tendo esta faceta idealista sido um ponto de partida para Hegel. Kant estabeleceu uma distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si (que chamou noumenon), isto é, entre o que nos aparece e o que existiria em si mesmo. A coisa-em-si (noumenon) não poderia, segundo Kant, ser objeto de conhecimento científico, como até então pretendera a metafísica clássica. A ciência se restringiria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria constituída pelas formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias do entendimento. A IHU On-Line número 93, de 22 de março de 2004, dedicou sua matéria de capa à vida e à obra do pensador. Também sobre Kant foi publicado em 2005 o Cadernos IHU em formação número 2, intitulado Emmanuel Kant – Razão, liberdade, lógica e ética. Os Cadernos IHU em formação estão disponíveis para download na página www.unisinos.br/ihu do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. (Nota da IHU On-Line) 5
  • 3. CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO menologia ir atrás dos indícios formais que podem precisa do conceito de ser, Deus não precisa do localizar traços comuns que podem ser converti- ser, não faz ontologia, Deus não filosofa.” dos em conceitos e, no caso, em existenciais. A fi- losofia não carrega consigo só uma cesta de con- IHU On-Line – Quais são suas objeções em ceitos lógicos prontos. Depende do filósofo a ca- relação à leitura que Padre Vaz realiza de pacidade de descobrir sinais que podem nos levar Heidegger? a novos conceitos, por exemplo, sobre o ser hu- Ernildo Stein – Lima Vaz2 fez seu tema o diag- mano. É assim que a angústia é descrita como a nóstico sintomático de Heidegger sobre o niilis- súbita percepção do ser humano de que ele é fini- mo em que mergulhamos com a metafísica to, isto é, de que está jogado entre um ainda não, onto-teológica. Isso porque nela o fundamento é o futuro e o não mais, o passado. A angústia que convertido em objeto e Deus é definido como um disso resulta é o que mantém o ser humano, hu- único expediente de causa de si mesmo. O filóso- mano. O que ele poderá fazer é tentar fugir dessa fo brasileiro não concorda inteiramente com o angústia, fugindo de si mesmo e divertindo-se diagnóstico do filósofo alemão, mas é com base numa “brincadeira” com os objetos, no instante nesse diagnóstico que ele vê a possibilidade de presente. De todo o modo, porém, a angústia apa- colocar os problemas verdadeiros nas duas ma- recerá de repente e, de modo implacável, remete- trizes de inteligibilidade: a natureza e a cultura. rá o ser humano contra o futuro e contra o passa- São elas que, no futuro, mudarão totalmente, a do e sem resultado. não ser que o ser humano seja capaz de manter uma identidade, a transformação que a técnica IHU On-Line – De que forma se apresenta a produz nessas duas matrizes. E essa identidade é compreensão e a finitude nesse filósofo? O a pergunta pela vida boa. Como posso ser feliz, que elas podem ensinar à contemporanei- como assumo volume e importância como ser dade? biológico e passageiro, que significa viver sua Ernildo Stein – Heidegger não aceita outra vida? Em todo o caso, Lima Vaz encontrou mais transcendência que a transcendência finita. Com- razões em Heidegger, no seu questionamento ra- preensão é essa transcendência, por isso ela é fini- dical, do que em Hegel3, cuja maquinaria dialéti- ta. No entanto, o filósofo quer, com isso, dizer que ca nada mói, nada resolve, porque seu motor, com a filosofia não consegue o ser humano pu- Deus (ou a sociedade sem classes, ou a História), xar-se pelos cabelos do banhado. Isso quer dizer é conceito vazio. Deus está morto, diz Hegel, e é que o ser humano pensa tudo enquanto é e, pelo comovedora a frase no penúltimo capitulo da Fe- fato de ser, nos permite chegar às coisas. Como nomenologia do espírito: “E esse é o sentimen- diz literalmente “tão finito é o ser humano que ele to doloroso da consciência infeliz de que Deus 2 Pe. Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-2002): filósofo e padre jesuíta, autor de importante obra filosófica. A IHU On-Line número 19, de 27 de maio de 2002, dedicou sua matéria de capa à vida e à obra de Lima Vaz. A referida edição teve como título Sábio, humanista e cristão. Sobre ele também pode ser consultado na IHU On-Line número 140, de 9 de maio de 2005, um artigo em que comenta a obra de Teilhard de Chardin. A revista Síntese. Revista de Filosofia, n. 102, jan.-abr. 2005, p. 5-24, publica o artigo Um Depoimento sobre o Padre Vaz, de Paulo Eduardo Arantes, professor do Departamento de Filosofia da USP, que merece ser lido e consultado com atenção. Celebrando a memória do Padre Vaz, a edição 142, de 23 de maio de 2005, publicou a editoria Memória. Consulte nesta edição um comentário sobre a sua contribuição para a discussão ética no Brasil. (Nota da IHU On-Line) 3 Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo alemão, um dos pensadores mais influentes dos tempos recentes. Como Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, Hegel tentou desenvolver um sistema filosófico no qual estivessem integradas todas as contribuições de seus principais predecessores. Sua primeira obra, A fenomenologia do espírito, tornou-se a favorita dos hegelianos da Europa continental no séc. XX. Nesse livro, Hegel considerava uma variedade tão grande de concepções quanto os diversos estados da mente, e encarava-as como estágios no desenvolvimento do espírito em direção a uma maior maturidade. Sua segunda obra, A Ciência da Lógica, tenta fazer uma análise sistemática dos conceitos. Sua Enciclopédia das ciências filosóficas contém todo o seu sistema de uma forma condensada. O último livro de Hegel foi A filosofia do direito. Depois de sua morte, seus alunos publicaram suas conferências sobre filosofia da história, da religião e da arte e história da filosofia, usando principalmente suas anotações. (Nota da IHU On-Line) 6
  • 4. CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO morreu”. Apesar de Hegel falar do Deus da Sex- pela frente e, a partir daí, o regime pôs um de seus ta-feira Santa, Nietzsche4 o toma a sério e proclama agentes para supervisionar as suas aulas. O filósofo “Deus está morto”. Isso que se estendeu como um foi ingênuo porque desconhecia as ciências huma- lema na entrada do projeto da modernidade. Lima nas da sociologia, da política, da economia e pen- Vaz procura defender contra as críticas de Heideg- sava, contudo, poder diagnosticar o futuro de um ger uma ontologia teológica que possa sustentar, regime. Quem olha com atenção para a capa do como uma espécie de realismo, os enunciados da meu livro Diferença e Metafísica. Porto Alegre: teologia e da religião. Nisso os dois filósofos se dis- Edipucrs, 2000 vê que ela é feita com uma carta tanciam e está com os estudiosos ver quem tem ra- inédita de Heidegger que está em minhas mãos, zão nos seus argumentos que aqui não podem ser em que ele se defende dizendo: “Ide a Munique e apresentados de maneira completa. perguntai ao Pe. Karl Rahner5 que assistiu às mi- nhas aulas de 34 a 36, para verem a crítica que se IHU On-Line – Qual o significado que pode ousava contra o biologismo, o racismo do nacio- ter o fato de Heidegger aceitar o cargo de rei- nal-socialismo”. É verdade que os filósofos não fo- tor em plena Alemanha nazista? ram feitos para serem heróis da resistência, Platão6 Ernildo Stein – O filósofo fez um juízo equivoca- que o diga, preso pelo tirano de Siracusa a cujo re- do sobre o regime que estava começando, pensan- gime tinha aderido. E mesmo Aristóteles7 não esca- do que aceitando a reitoria, teria condições de criar pou do problema, indo asilar-se na sua fazenda de a nova universidade que substituiria a universidade Eubéia, para que os gregos não praticassem um dos mandarins. Ao ver que caíra na armadilha, de- segundo crime contra Sócrates8. mitiu-se no décimo mês dos quatro anos que tinha 4 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo alemão, conhecido por seus polêmicos conceitos “além-do-homem”, transvaloração dos valores, niilismo, vontade de poder e eterno retorno. Entre suas obras figuram como as mais importantes: Assim Falou Zaratustra. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998; O Anticristo. Lisboa: Guimarães, 1916; A Genealogia da Moral. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2004. Escreveu até 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso que nunca o abandonou, até o dia de sua morte. A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da edição número 127 da IHU On-Line, de 13 de dezembro de 2004. Sobre o filósofo alemão, conferir ainda a entrevista exclusiva realizada pela IHU On-Line edição 175, de 10 de abril de 2006, com o jesuíta cubano Emilio Brito, docente na Universidade de Louvain-La-Neuve, intitulada Nietzsche e Paulo. (Nota da IHU On-Line) 5 Karl Rahner (1904-2004): importante teólogo católico do século XX, ingressou na Companhia de Jesus em 1922. Doutorou-se em Filosofia e em Teologia. Foi perito do Concílio Vaticano II e professor na Universidade de Münster. A sua obra teológica compõe-se de mais de 4 mil títulos. Suas obras principias são: Geist in Welt (O Espírito no mundo), 1939, Hörer des Wortes (Ouvinte da Palavra), 1941, Schrifften zur Theologie (Escritos de Teologia), 16 volumes escritos entre 1954 e 1984, Grundkurs des Glaubens (Curso Fundamental da Fé), 1976. Em 2004, celebramos seu centenário de nascimento. A Unisinos dedicou à sua memória o Simpósio Internacional O Lugar da Teologia na Universidade do século XXI, realizado de 24 a 27 de maio daquele ano. A IHU On-Line n.º 90, de 1º de março de 2004, publicou um artigo de Rosino Gibellini sobre Rahner; e a n.º 94, de 29 de março de 2004, uma entrevista de J. Moltmann, analisando o pensamento de Rahner. No dia 28 de abril de 2004, no evento Abrindo o Livro, Érico Hammes, teólogo e professor da PUCRS, apresentou o livro Curso Fundamental da Fé, uma das principais obras de Karl Rahner. A entrevista com o prof. Érico Hammes pode ser conferida na IHU On-Line n.º 98, de 26 de abril de 2004. Ainda sobre Rahner, publicamos uma entrevista com H. Vorgrimler na IHU On-Line n.º 97, de 19 de abril de 2004, sob o título Karl Rahner: teólogo do Concílio Vaticano nascido há 100 anos. A edição número 102 da IHU On-Line de 24 de maio de 2004 dedicou a matéria de capa à memória do centenário de nascimento de Karl Rahner. Os Cadernos Teologia Pública n. 5 de 2004 publicaram o artigo Conceito e Missão da Teologia em Karl Rahner, de autoria do Prof. Dr. Érico João Hammes. (Nota da IHU On-Line) 6 Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense. Criador de sistemas filosóficos influentes até hoje, como a Teoria das Idéias e a Dialética. Discípulo de Sócrates, Platão foi mestre de Aristóteles. Entre suas obras, destacam-se A República e o Fédon. (Nota da IHU On-Line) 7 Aristóteles de Estagira (384 a C. – 322 a. C.): filósofo grego, um dos maiores pensadores de todos os tempos. Suas reflexões filosóficas – por um lado originais e por outro reformuladoras da tradição grega — acabaram por configurar um modo de pensar que se estendeu por séculos. Prestou inigualáveis contribuições para o pensamento humano, destacando-se: ética, política, física, metafísica, lógica, psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia, história natural e outras áreas de conhecimento. É considerado, por muitos, o filósofo que mais influenciou o pensamento ocidental. (Nota da IHU On-Line) 8 Sócrates (470 a. C. – 399 a. C.): filósofo ateniense e um dos mais importantes ícones da tradição filosófica ocidental. (Nota da IHU On-Line) 7
  • 5. CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO O silêncio do filósofo sobre o gesto de que ele se competência, não tem autoridade como filóso- confessou a Jaspers9 que “se sentia envergonhado fo. São outros campos de conhecimento que de- do passo dado”, deve-se à convicção de que uma vem compreender o nazismo. Entretanto, Heideg- confissão pública não tinha sentido porque não ger situou, na exacerbação do dispositivo da técni- apagaria nada. Para um filósofo como Heidegger, ca, a compulsão dos nazistas de produzir a morte em cujo pensamento Deus depende do homem, industrializada. Por mais distantes que estejamos não há ninguém para repor algo que possa do nazismo, não é a parafernália da técnica atual resultar de qualquer arrependimento. que retira de cada ser humano o direito de morrer a sua morte. Morte é hoje, no dispositivo da técni- IHU On-Line – O nazismo é uma anomalia ca, apenas uma questão de higiene pública. ou uma radicalização da razão moderna? Ernildo Stein – O nazismo é um totalitarismo IHU On-Line – Quais seriam as influências nascido das incertezas e dos irracionalismos dos do cristianismo em Heidegger? E ele influ- anos 20 de nosso século. Assim como outros tota- enciou, de alguma forma, o pensamento litarismos. Tão nefasto quanto foi, não deixa de cristão? ser uma espécie de banalidade do mal, mas uma Ernildo Stein – Certamente temos várias corren- obra humana, uma obra com autores determina- tes teológicas que incorporaram as categorias da dos que se orientaram nas mais primitivas idéias analítica existencial de Ser e Tempo. Bultmann11 sobre a relação dos seres humanos em sociedade. é um dos grandes exemplos de diálogo com Hei- O nazismo é, em última análise, um resultado da degger, mas há muitos teólogos e correntes teoló- suspensão da lei, para que o tirano pudesse fazer gicas que levam de contrabando elementos do dis- dela o que bem entendesse, pois era a sua lei. curso heideggeriano. Apenas não têm coragem de Agamben10 bem vê nos campos de detenção que levá-lo às últimas conseqüências. Heidegger teve rodeiam a Europa com uma coroa de desespera- formação cristã, estudou Teologia e Filosofia católi- dos, novos campos de concentração, em que a lei cas, dialogou muitíssimo com os pensadores evan- está suspensa. Isso produz a “inexistência” de to- gélicos, para chegar à conclusão de que a filosofia dos os refugiados porque estão juridicamente nus. não pode oferecer aval para nenhuma religião. Ao pé da letra diz o filósofo: “Uma filosofia cristã é um IHU On-Line – Como o pensamento heideg- ferro de madeira, uma roda quadrada”. geriano explica o paradigma da técnica leva- do às últimas conseqüências pelos nazistas? Ernildo Stein – Heidegger certamente não é um intérprete do nazismo. Mesmo que para isso tives- 9 Karl Theodor Jaspers (1883-1969): filósofo e psiquiatra alemão. Ensinou Filosofia em Heidelberg desde 1921 e em Basiléia a partir de 1948. Fez o doutoramento em medicina, tendo inicialmente se dedicado à psicologia. É também conhecido como um dos principais representantes do existencialismo. (Nota da IHU On-Line) 10 Giorgio Agamben (1942): filósofo italiano. É professor da Facoltà di Design e arti della IUAV (Veneza), onde ensina Estética, e do College International de Philosophie de Paris. Formado em Direito, foi professor da Università di Macerata, Università di Verona e da New York University, cargo ao qual renunciou em protesto à política do governo norte-americano. Sua produção centra-se nas relações entre filosofia, literatura, poesia e fundamentalmente, política. Entre suas principais obras, estão Il linguaggio e la morte (Einaudi, 1982), La formula della creazione (Quodlibet, 1993), escrito com Giles Deleuze, Homo Sacer (Einaudi, 1993/ Homo sacer - O poder soberano e a vida nua – UFMG), Que le resta di Auschwitz, (Bollati Boringhieri, 1998) e Stato di Eccezione (Bollati Boringhieri, 2003). (Nota da IHU On-Line) 11 Rudolf Karl Bultmann (1884-1976): teólogo luterano alemão nascido em Wiefelstede, Oldenburg, que propôs uma interpretação do Novo Testamento da Bíblia apoiada em conceitos de uma filosofia existencialista. Iniciou como professor sobre sua especialidade, o Novo Testamento (1916), em Breslau, Giessen e Marburg. Nessa cidade, tomou contato com Martin Heidegger e a filosofia existencialista, que influenciou seu pensamento posterior. Morreu em Marburg, então Alemanha Ocidental. Seu primeiro livro foi Jesus (1926) e sua mais famosa obra foi Das Evangelium des Johannes (1941). Na edição 114, de 6 de setembro de 2004, publicamos na editoria Teologia Pública um debate sobre a obra Teologia do Novo Testamento, com a participação de Nélio Schneider e Johan Konings. (Nota da IHU On-Line) 8
  • 6. O nazismo e o “erro” filosófico de Heidegger Entrevista com Gianni Vattimo “Heidegger nunca enunciou, mas acredito o encontramos quando temos a força para proje- que ele deveria aceitar: lembrar o ser (para tentar tar..., e a terceira saiu na edição 161, de 24 de ou- sair da metafísica) significa somente lembrá-lo tubro de 2005, quando recebeu pessoalmente a como já-sempre tendo ido embora; como Deus IHU On-Line, em Porto Alegre, no dia 18 de ou- que se mostra a Moisés somente de costas. Portan- tubro daquele ano, às vésperas de proferir sua to, pensar o ser não é uma experiência de presen- conferência no evento Metamorfoses da cultura ça cheia, de verdade luminosa; se levarmos em contemporânea. Nessa oportunidade, ele falou consideração que, para Heidegger, a metafísica sobre O pós-moderno é uma reivindicação de (esquecimento do ser) é a história do ser, então o multiplicidade de visão de mundo. Dele também ser tem uma história que é sempre de diminuição, publicamos uma entrevista na 121ª edição, de 1º de esquecimento, de ´fraqueza´...” A afirmação é de novembro de 2004, sob o título Garzantina di de Gianni Vattimo, filósofo italiano, que mais uma filosofia, um artigo na edição 53, de 31 de março vez nos brinda com uma instigante entrevista, so- de 2003 sob o título A guerra pelos direitos huma- bre Martin Heidegger, nos seus trinta anos de fale- nos? e outro no número 80, de 20 de outubro de cimento e quase oitenta anos da sua obra funda- 2003, sob o título Democracia, killer da metafísica. mental Sein und Zeit. “Acredito que Heidegger A editoria Livro da Semana, na edição 149, de 1º começou o seu ‘erro’ nazista quando deixou de de agosto de 2005, abordou a obra The future of meditar sobre São Paulo e começou a mitificar religion, escrita por Vattimo, Richard Rorty e Hölderlin”, é outra contundente afirmação do filó- Santiago Zabala. sofo do pensamento fraco. “Autenticidade signifi- Vattimo nasceu em Turim, em cuja universi- ca co-responder à chamada do ser; mas o ser as- dade se formou em Filosofia e na qual ministra au- sim entendido é também a própria comunidade, a las até hoje. Cursou uma especialização na Uni- sociedade na qual se vive etc. Também por isso He- versidade de Heidelberg (Alemanha) e teve algu- idegger se empenhou com Hitler, errando. Mas de- mas passagens por universidades americanas vemos pensar que naqueles anos Lukacs e Bloch como professor visitante. Foi deputado no Parla- estavam com Stalin, Giovanni Gentile, com Musso- mento Europeu, integrando várias comissões, lini...”. As afirmações são do filósofo italiano Gianni como as de cultura, educação e justiça, entre ou- Vattimo, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, tras. Estudioso do pensamento de Nietzsche, Hei- em 3 de julho de 2006, explicando as relações en- degger e Gadamer, Vattimo é conhecido como o tre o filósofo Martin Heidegger e o nazismo. mentor do “pensamento fraco”. De sua produção Essa é a quarta entrevista exclusiva que Vatti- intelectual, destacamos, Credere di Credere. mo concede à IHU On-Line. A primeira foi publi- Milano: Garzanti, 1996 (traduzido para o portu- cada na 88ª edição, de 15 de dezembro de 2003 guês), Dopo la cristianità. Per um cristiane- sob o título O cristianismo é a religião do pós-mo- simo non religioso. Milano:Garzanti, 2002 derno, a segunda na 128ª edição, de 20 de de- (traduzido para o português), O fim da moder- zembro de 2004 sob o título Deus é projeto, e nós nidade: niilismo e hermenêutica na cultura 9
  • 7. CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO pós-moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996; nos “dribla” porque é o anúncio de um paradigma Introdução a Heidegger. Lisboa: Instituto Pia- “outro”, não é uma experiência de unidade do su- get, 1998. jeito, mas, ao contrário, exatamente uma expe- riência de “desorientação”). IHU On-Line – Como Heidegger ajuda a en- tender o enfraquecimento das estruturas do IHU On-Line – Como explica a aproximação ser na pós-modernidade? de Heidegger ao nazismo? É uma derivação Gianni Vattimo – A concepção da diferença on- de seu pensamento filosófico? tológica – que Heidegger começa a desenvolver Gianni Vattimo – De certa forma sim, foi um em Ser e Tempo significa que o ser não deve se “erro” filosófico. Heidegger acreditou que fosse confundir com o ente, com alguma “coisa” pre- possível reconstruir uma situação histórica análo- sente. E, como se sabe, Heidegger pensa que ga àquela da Grécia pré-clássica, na qual, erran- identificar o ser com o ente é um “esquecimento” do, porque esquecia a diferença ontológica, pen- do ser. Agora, pode-se “lembrar” o ser? O que, sou que o ser pudesse “dar-se” de modo não-me- porém, significaria fazê-lo “presente” diante dos tafísico. Mas era um erro, antes de tudo filosófico. olhos da nossa mente, portanto, reduzi-lo nova- mente a um “ente”. Além disso: Heidegger, nos IHU On-Line – O próprio nazismo deve ser seus escritos sobre Nietzsche, escreve que a meta- entendido como uma anormalidade na His- física é a história do ser. Eu tiro disso tudo a se- tória ou como uma radicalização da racio- guinte conclusão: Heidegger nunca enunciou, nalidade moderna? mas acredito que ele deveria aceitar: lembrar o ser Gianni Vattimo – Heidegger o entendeu como (para tentar sair da metafísica) significa somente uma radicalização da racionalidade moderna. lembrá-lo como já-sempre tendo ido embora; Pensando que esta racionalidade fosse o auge do como Deus que se mostra a Moisés somente de esquecimento do ser, não a podia aceitar. De ou- costas. Portanto, pensar o ser não é uma expe- tro modo, o extremo da metafísica devia também riência de presença cheia, de verdade luminosa; ser o seu fim. “Onde está o perigo, cresce também se levarmos em consideração que, para Heideg- o que salva” (Hölderlin13). Portanto, posição am- ger a metafísica (esquecimento do ser) é a história bígua; um pouco como o capitalismo para Marx: é do ser, então o ser tem uma história que é sempre o pior do pior, mas é também a condição que pre- de diminuição, de esquecimento, de “fraqueza”... para a revolução do proletariado... IHU On-Line – Qual é o lugar da verdade e IHU On-Line – O paradigma da técnica pode da unidade do sujeito no pensamento de auxiliar a compreender as bases desse e de Heidegger? qualquer outro totalitarismo? Gianni Vattimo – Verdade, para Heidegger, é Gianni Vattimo – A resposta está implícita na também aquela secundária das proposições “ver- precedente. Certo, como diz em Identität und dadeiras”, que correspondem a critérios dados Differenz, a possibilidade de sair da metafísica com a abertura do ser no qual somos sempre arre- em direção a um novo evento do ser está também messados. Mas a verdade “primeira” é esta aber- ligada ao fato de que no Gestell, no mundo técni- tura (algo semelhante aos paradigmas dos quais co-totalitário, homem e mundo não têm mais os fala Kuhn12). A relação com esta verdade primária caracteres de sujeito e objeto. Mas que caracteres (por exemplo, na experiência da obra de arte, que terão? 12 Thomas Kuhn (1922-1996): físico norte-americano, cujo trabalho incidiu sobre história e filosofia da ciência, tornando-se um marco importante no estudo do processo que leva ao desenvolvimento científico. Sua obra mais conhecida é A estrutura das revoluções científicas. 7. ed. Säo Paulo: Perspectiva, 2003. (Nota da IHU On-Line) 13 Johann Christian Friedrich Hölderlin (1770-1843): poeta lírico alemão. (Nota da IHU On-Line) 10
  • 8. CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO IHU On-Line – Se o ente está lançado no ponto de vista de Deus. E, portanto, nunca bom- mundo, como entender sua responsabilida- bardear o Iraque em nome do verdadeiro direito de individual e política? humano. Gianni Vattimo – Acredito que o Heidegger dos anos 1930, aquele depois da Kehre, se deu IHU On-Line – Se pudéssemos trazê-lo ao conta de que a autenticidade da qual falava Ser presente, como Heidegger dialogaria com o e Tempo não é algo que se possa procurar “sozi- “pensamento fraco” de Gianni Vattimo? nho”. Autenticidade significa co-responder à Gianni Vattimo – Teria que adotá-lo como seu chamada do ser; mas o ser assim entendido é filho, embora um pouco extravagante. Fora de também a própria comunidade, a sociedade na brincadeira: se Heidegger visse o que acontece qual se vive etc. Também, por isso, Heidegger se hoje por causa do fundamentalismo, da pretensão empenhou com Hitler, errando. Devemos pen- de ser “correto” (Bush acredita de verdade, como sar, porém, que naqueles anos Lukacs14 e Bloch15 os nazistas, no Gott mit uns, Deus está conosco; e estavam com Stalin16, Giovanni Gentile17, com age exatamente como eles), enfraqueceria muito Mussolini18 etc. as próprias posições... IHU On-Line – Por que Heidegger afirmou IHU On-Line – Que relações podem ser esta- que era impossível ultrapassar o niilismo? belecidas com o pensamento cristão e o hei- Como entender a esperança num mundo deggeriano? Há aí uma influência mútua? niilista? Gianni Vattimo – Certo, se pensarmos em um Gianni Vattimo – Como foi dito acima, o ser texto como a Introdução à Fenomenologia da nunca pode dar-se como ente. A esperança do nii- Religião, de 1920, nos daremos conta de que al- lismo é de que, reduzindo a imponência, a pe- guns, ou talvez todos os conceitos fundamentais remptoriedade, o peso do ente, do real (paixões, que Heidegger desenvolveu após, em Ser e Tem- instinto de sobrevivência, violência recíproca) o po (por exemplo, a autenticidade, a metafísica ser se dê como das Gering, o mínimo, o pequeno, etc.) estão já todos na sua leitura das cartas de São do qual falava Vorträge und Asufsätze. Paulo. Acredito que Heidegger começou o seu “erro” nazista - que durou somente alguns anos - IHU On-Line – O ser-para-a-morte (Sein-zum- quando deixou de meditar sobre São Paulo e co- Tode) não é um conceito muito pessimista meçou a mitificar Hölderlin. Entretanto, o seu para classificar o ser humano? pensamento permanece profundamente cristão; e Gianni Vattimo – De maneira nenhuma. Signifi- também, a propósito de influência “mútua”, os ca somente aceitar o próprio fim e historicidade, cristãos de hoje deveriam elegê-lo a verdadeiro sentindo-se empenhados para responder a uma mestre, deixando de lado os tantos resíduos de chamada que vem de outros mortais, e não pen- metafísica escolar que ainda dominam o ensino sar nunca que atingimos já a verdade “objetiva”, o nos seminários. 14 Lukács György (1885-1971): mais conhecido como Georg Lukács, filósofo húngaro. Em sua trajetória filosófica procurou refazer o percurso da filosofia clássica alemã, inicialmente como crítico influenciado por Kant, depois Hegel e, finalmente, aderindo ao marxismo. (Nota da IHU On-Line) 15 Ernst Bloch (1885-1977): filósofo alemão marxista heterodoxo, que construiu vasta obra que ressalta o papel da utopia na história do homem. Seu livro O Princípio Esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, foi destacado na editoria Livro da Semana da 151ª edição da revista IHU On-Line, de 15 de agosto de 2005, com a realização de duas entrevistas sobre a obra: uma com o tradutor do livro, Nélio Schneider, e outra com o professor da UFRGS, Edson Sousa. (Nota da IHU On-Line) 16 Josef Stalin (1878-1953): ditador soviético, responsável pelo stalinismo. (Nota da IHU On-Line) 17 Giovanni Gentile (1875-1944): filósofo italiano. (Nota da IHU On-Line) 18 Benito Amilcare Andrea Mussolini (1883-1945): jornalista e político italino, governou a Itália com poderes ditatoriais entre 1922 e 1943, autodenominando-se Il Duce, que significa em italiano “o condutor”. (Nota da IHU On-Line) 11
  • 9. Heidegger e a influência do cristianismo Entrevista com Emmanuel Carneiro Leão “Sem o cristianismo, na sua origem e prove- sor com grande atenção para as dificuldades e os niência, não se compreende o pensamento de He- problemas dos seus alunos. A segunda grande idegger”, pondera o Prof. Dr. Emmanuel Carneiro lembrança e impressão que tenho é que a impor- tância do ensino de Heidegger era promover a ca- Leão, em entrevista por telefone à IHU On-Line, pacidade de pensamento dos alunos. Ele não em 3 de julho de 2006, refletindo a influência do queria ensinar respostas, problemas, perguntas, cristianismo em Heidegger e vice-versa. Carneiro doutrinas, mas desenvolver a capacidade própria Leão menciona também a presença das idéias hei- de pensar de cada aluno, porque a posição que deggerianas em Bultmann, Bruckner, Lackner e ele passava era que todo o homem tem uma con- Rahner e conta algumas de suas lembranças como tribuição a dar à vida do pensamento, de manei- aluno de um dos filósofos mais discutidos e estu- ras diferentes, com graus diferentes, com qualida- dados da atualidade. de diferente, deixando transparecer que essa con- Doutor pela Universidade de Roma, Itália, e tribuição é fundamental para o desenvolvimento licenciado em Filosofia pela Universidade de Fri- da capacidade de pensar de todos. burgo, Alemanha, onde foi aluno de Heidegger, Carneiro Leão regressou ao Brasil em meados da IHU On-Line – Qual é a grande contribuição década de 1960. Desde então, dedica-se ao ma- gistério na condição de professor titular da Univer- da filosofia de Heidegger? sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na qual Emmanuel Carneiro Leão – A principal contri- leciona até hoje. É um dos principais divulgadores buição da obra de Heidegger e o grande mérito é do pensamento heideggeriano no Brasil, tendo promover esse aprofundamento do pensamento. traduzido para o português alguns livros do filóso- Pensar não é ficar apenas nas relações já dadas, encontradas, mas aprofundar, com base no que é fo alemão. É autor de, entre outros, Aprendendo dado, até a proveniência, a origem, a fonte de a pensar. Petrópolis: Vozes, 1991. Leia o que o onde elas são oriundas. professor pensa sobre o assunto. IHU On-Line – Quais são as principais dife- IHU On-Line – Quais são suas principais renças entre a fenomenologia de Heidegger lembranças como aluno de Heidegger? e a de Husserl? Emmanuel Carneiro Leão – Minha primeira Emmanuel Carneiro Leão – Podemos dizer lembrança é que a atividade de ensino e acadêmi- que a fenomenologia de Husserl19 se constrói por ca de Heidegger para com seus alunos, com os es- meio da intencionalidade da consciência. Isso sig- tudantes, aqueles que escutavam suas palestras, nifica que há uma diferença entre fenômeno e fe- era de um cuidado todo especial. Era um profes- 19 Edmund Husserl (1859-1938): filósofo alemão, principal representante do movimento fenomenológico. Marx e Nietzsche, até então ignorados, influenciaram profundamente Husserl, que era um crítico do idealismo kantiano. Husserl apresenta como idéia fundamental de seu antipsicologismo a “intencionalidade da consciência”, desenvolvendo conceitos como o da intuição eidética e epoché. Pragmático, Husserl teve como discípulos Martin Heidegger, Sartre e outros. (Nota da IHU On-Line) 12
  • 10. CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO nomenologia e o que faz a intermediação entre para poder abrir caminho e libertar a experiência essa diferença é a intencionalidade dessa cons- para o originário. ciência. Sem consciência, não há fenomenologia, para Husserl. Para Heidegger, já não é dessa for- IHU On-Line – De que maneira podemos ma. Ele acredita que a fenomenologia é o próprio compreender a afirmação do filósofo de que fenômeno. É por causa da fenomenologia do fe- “chegamos muito tarde para os deuses e nômeno que há consciência e intencionalidade. O muito cedo para o ser”? Dasein, a presença, o modo de ser do homem, Emmanuel Carneiro Leão – A nossa tradição não é intermediário entre o fenômeno e a fenome- entende a realidade como sendo o resultado não nologia, mas é o lugar onde o fenômeno mostra de uma atividade de sentido ou de criação, de um que ele já é a fenomenologia. princípio absoluto. Com a modernidade não te- mos mais essa consciência e essa necessidade, por IHU On-Line – Como Heidegger dialoga isso, somos modernos à medida que perdemos com a tradição filosófica? Quais são suas essa necessidade. Isso significa que chegamos tar- principais influências e quais são os rompi- de para os deuses, no entanto, com a modernida- mentos que propõe? de, para conseguir-se isso houve uma mudança Emmanuel Carneiro Leão – Heidegger tem nos padrões de relacionamento do homem euro- uma formação religiosa, cristã, escolástica e, pela peu ocidental, que é a respeito de quem estamos escolástica, ele encontra a filosofia grega. Como a falando. Essa mudança aconteceu porque o ho- filosofia grega, mediada pela escolástica é a filoso- mem de agora não quer mais receber, como o ho- fia clássica, o que significa Platão e Aristóteles, mem religioso de antes, os parâmetros e os pa- Heidegger procura suas fontes, de onde provêm drões e princípios de como ele tem que viver. Ele esses pensadores. Por isso, a principal influência quer, ele mesmo, assumir a construção de sua cul- para o pensamento pré-socrático. Para se com- tura, sua sociedade, sua vida, seu pensamento, preender o pensamento clássico é indispensável seu conhecimento. O homem moderno é aquele ter uma experiência do que constitui a contribui- que quer transformar a realidade e não apenas ção dos pré-socráticos. Com essa recuperação dos aceitá-la como ela é. A perda dessa perspectiva de pré-socráticos, que é uma tradição alemã desde aceitação leva consigo também uma experiência Nietzsche, sobretudo, mas também de Hegel, em- de criação, o que significa que, para sermos cria- bora este esteja mais ao lado de Aristóteles, o que dores, não temos que nos deixar sufocar pela for- leva a um movimento não de retorno e recupera- ma de conhecimento transformadora da realida- ção das fontes da cultura, da história, do pensa- de. Por isso, chegamos cedo demais para essa ex- mento, da ciência, da arte. Isso é a grande influên- periência de doação criadora do real. cia que sofre o pensamento de Heidegger, um pensamento cuja originalidade é a sua origem. IHU On-Line – Há em Heidegger influências do cristianismo? E no cristianismo vieses IHU On-Line – Em quais aspectos Heideg- heideggerianos? ger influencia o desconstrutivismo e por Emmanuel Carneiro Leão – Sim, sem dúvida quê? há influências recíprocas. Heidegger queria fazer Emmanuel Carneiro Leão – Sua influência se curso de teologia cristã. Toda a atividade de leitu- dá porque, para se chegar a essa fonte de origina- ra e interpretação da realidade que Heidegger riedade do pensamento pré-socrático, há uma ne- propõe é resultado do que ele aprendeu da inter- cessidade de desvincular-se, desvencilhar-se das pretação e na leitura da chamada hermenêutica respostas já dadas, dos padrões de pensamento e bíblica. Sem o cristianismo, na sua origem e pro- conhecimento já estabelecidos até aqui. Então é veniência, não se compreende o pensamento de preciso se desconstruir o que se constitui a tradi- Heidegger. No cristianismo católico e no evangéli- ção do pensamento, do conhecimento e da arte co, além de várias outras orientações, a influência 13
  • 11. CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO de Heidegger foi fundamental nesse século. As ta. Sem dúvida, ele achava, inicialmente, que o chamadas correntes evangélicas da teologia dialé- movimento do Partido Nacional Socialista trazia tica, teologia da morte de Deus, exegética, todas uma resposta para a situação de crise em que se elas têm grande presença e influência heideggeria- encontrava a Alemanha depois da Primeira Guer- nas. Em Bultmann, isso também pode ser notado, ra Mundial. No entanto, a seguir, ele se convenceu assim como em Bruckner, Lackner e Rahner. Esses de que estava enganado, de que o nazismo não pensadores querem ler tanto a bíblia como a tradi- trazia nenhuma proposta de libertação, de promo- ção cristã sob a perspectiva do pensamento de in- ção para a Alemanha, pelo contrário, trouxe a terpretação de Heidegger. destruição. Entretanto, isso só foi perceptível com o tempo. Inicialmente, como todos os alemães IHU On-Line – Como o senhor avalia as rela- que estavam em crise depois da Primeira Guerra ções entre Heidegger e o advento do nazismo.? Mundial, Heidegger viu nesse movimento político Emmanuel Carneiro Leão – Heidegger foi rei- de restauração uma saída, porém a saída que o tor da Universidade de Friburgo no período nazis- nazismo trouxe foi aprofundar a desgraça. 14
  • 12. A busca pelo sentido do ser Entrevista com João Augusto Mac Dowell Uma obra original e profunda, comparada à João Augusto Mac Dowell – Com este título Fenomenologia do Espírito, de Hegel. Esses Ontologia Fundamental, Heidegger designa o proje- são alguns dos méritos de Ser e Tempo, conside- to de refundamentação da Metafísica desenvolvido rada a obra-prima de Heidegger. “Transformando parcialmente e de maneira, afinal de contas aporéti- o método fenomenológico, herdado de seu mestre ca, em sua obra mestra Ser e Tempo. Este projeto Husserl, em uma hermenêutica da própria reali- se origina da preocupação que anima o jovem Hei- dade, ele não só questiona as categorias com que degger de restaurar a Metafísica como pensamento vinham sendo interpretados o ser humano e o de uma transcendência real, transcendência rejeita- ente no seu conjunto desde o início do pensamen- da pelas correntes filosóficas dominantes, especial- to ocidental, mas também abre novos horizontes mente na Alemanha, no início do século XIX, o cien- imensamente fecundos para a compreensão de tificismo positivista e o neokantismo, limitado a uma sua historicidade constitutiva”. A avaliação é do fi- transcendência meramente lógica. Tendo recebido lósofo João Augusto Mac Dowell SJ, reitor da Fa- sua primeira formação, também filosófica, num am- culdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), an- biente católico, ele pretendia com este projeto fazer tigo Centro de Estudos Superiores da Companhia valer a visão do mundo própria da cultura cristã, de Jesus (CES), em Belo Horizonte. Por e-mail, embora sobre novas bases, compatíveis com os ele concedeu entrevista à IHU On-Line, contri- princípios da filosofia moderna, em particular, to- buindo para o debate sobre Heidegger no ano em mando como ponto de partida a imanência do su- que se completam 30 anos de sua morte. jeito humano. Aliás, o pensar de Heidegger, ao lon- Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filo- go de todo o seu percurso, foi um pensar compro- sofia Nossa Senhora Medianeira e em Teologia pela metido, como tentativa de compreender o seu pró- Philosophische Theologische Hochschule Sankt Ge- prio tempo e de apontar caminhos para superar as orgen, na Alemanha, Mac Dowell é mestre em Teo- limitações do mundo moderno. logia pela mesma instituição. É doutor em Filosofia Entretanto, à medida que foi desenvolvendo pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG), na o seu projeto nos dez anos que precederam a pu- Itália, com a tese A gênese da ontologia fundamental blicação de Ser e Tempo (1927), Heidegger des- de Martin Heidegger. O trabalho foi publicado pela cobriu que a Ontologia Fundamental não poderia editora Herder, de São Paulo, em 1970, e chegou à consistir na restauração da Metafísica, mesmo que segunda edição em 1993 pela Loyola. Escreveu, sobre novas bases, e sim na elaboração da ques- ainda, Religião também se aprende. 3. ed. São tão do sentido de ser, questão, segundo ele, es- Paulo: Santuário, 2003 e organizou Saber filosófi- quecida por toda a tradição filosófica do Ocidente co, história e transcendência. Homenagem ao desde Platão. Com efeito, a Metafísica, como pen- Padre Henrique Cláudio de Lima Vaz, SJ, em samento do ente como ente, determina o ser ou seu 80ª aniversário. São Paulo: Loyola, 2002. essência de cada ente e do ente em geral, quando pergunta: Que é (este) ente? Mas não perguntou IHU On-Line – Qual é a gênese da ontologia jamais: Que é ser?, ou melhor: Por que há ser e fundamental de Heidegger? não simplesmente nada? Em vez disso, para en- 15
  • 13. CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO tender a existência do ente, ela remete a outro superados pelo próprio Heidegger, Ser e Tem- ente e, finalmente, ao ente supremo (Deus), como po, mesmo assim, pode ser considerada sua princípio e fundamento de toda a realidade. obra-prima. Por um lado, há autores – não é o meu caso – que seguem Heidegger até Ser e IHU On-Line – Por que Ser e Tempo é consi- Tempo, mas recusam como divagação mítica derada sua obra mestra? ou poética, destituída de significado filosófico, o João Augusto Mac Dowell – Trata-se de um seu pensamento ulterior. Por outro lado, as publi- marco na história da filosofia semelhante, a meu cações subseqüentes do filósofo ou são relativa- ver, por exemplo, à Fenomenologia do Espírito mente breves, conferências as mais das vezes, di- de Hegel. Sua importância reside, em primeiro lu- vulgadas isoladamente ou reunidas em volumes gar, na sua profunda originalidade. Heidegger pro- de cunho mais ou menos homogêneo, ou consis- põe uma nova perspectiva global, que ele chama tem na transcrição de cursos, que, por sua própria “existencial”, para a compreensão do ser humano natureza, possuem um caráter mais difuso. Apesar e aplica-a com admirável rigor ao longo de toda a de consignarem passos decisivos no caminho do obra. Transformando o método fenomenológico, pensar de Heidegger, estas obras, cada uma de herdado de seu mestre Husserl, em uma herme- per si, não alcançam a radicalidade inventiva e a nêutica da própria realidade, ele não só questiona imponência arquitetural de Ser e Tempo. Na ver- as categorias com que vinham sendo interpretados dade, é a própria índole meditativa do novo pen- o ser humano e o ente no seu conjunto desde o iní- sar inaugurado com a mencionada “conversão” cio do pensamento ocidental, mas também abre ou “vira-volta”, que impede o filósofo de estrutu- novos horizontes imensamente fecundos para a rar suas idéias à maneira relativamente analítica e compreensão de sua historicidade constitutiva. So- orgânica daquela produção magistral. O que aci- mente pouco a pouco, porém, os intérpretes do fi- ma de tudo, todavia, determina a primazia de Ser lósofo compreenderam que as brilhantes descober- e Tempo é que as intuições fundamentais dessa tas da Analítica Existencial sobre o ser do homem obra, o filosofar entendido como hermenêutica da constituíam apenas o primeiro passo na elaboração realidade, a compreensão existencial do ser hu- da questão do sentido de ser, verdadeiro alvo da mano, a idéia de ser-no-mundo com todas a suas investigação heideggeriana. Entretanto, esta em- implicações, a contraposição entre a temporalida- preitada, assumida em Ser e Tempo, levou-o a de existencial e a temporalidade cronológica e psi- convencer-se de que a verdade do ser não poderia cológica, a concepção da verdade como manifes- ser autenticamente desvendada a partir do movi- tação e o “des-ocultamento” do ente e, enfim, o mento de transcendência do ser humano em busca primado da questão do ser, permanecem válidas de seu sentido. Esta constatação, que não tornou ao longo de toda a obra heideggeriana e são elas supérfluo o caminho percorrido até então, já que que vão conduzir o seu pensamento a novas para- só poderia acontecer no seu término, provocou a gens até então ainda não contempladas. inversão do rumo de seu pensamento: de busca e conquista do sentido de ser, ele transformou-se em IHU On-Line – Como avalia a importância e acolhida de sua verdade como dom. Esta inversão o impacto de Heidegger na Filosofia? ou conversão do pensar heideggeriano inaugura João Augusto Mac Dowell – Há certamente uma nova fase de sua trajetória espiritual. consenso entre os entendidos em colocar Heideg- ger, ao lado de Wittgenstein20 e talvez algum outro Filosofia como hermenêutica mais, em lugar de absoluto destaque na galeria dos da realidade filósofos do século XX. Com efeito, quer inspiran- do-se nele, quer rejeitando-o mais ou menos radi- Paradoxalmente, mesmo que os resultados calmente, ninguém que pretenda pensar o mundo da investigação nele desenvolvida tenham sido 20 Ludwig Wittgenstein (1889-1951): filósofo analítico austríaco (Nota da IHU On-Line). 16
  • 14. CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO de hoje pode deixar de confrontar-se com a sua difícil citar o nome de um pensador significativo obra. É verdade que a sua influência durante muito dentro da tradição da filosofia continental que não tempo esteve restrita praticamente à chamada filo- tenha sentido o impacto da reflexão heideggeria- sofia continental21, permanecendo relativamente na. Aliás, a sua irradiação extrapolou o campo da alheios às suas idéias, seja os pensadores de ten- filosofia, afetando, por exemplo, a psicologia, dência marxista, seja as correntes filosóficas analíti- com Binswanger28 e Medard Boss29, e a teologia cas ou pragmatistas do mundo anglo-saxônico. cristã tanto evangélica como católica, com figuras Depois de inspirar, em parte em função de como R. Bultmann, do lado evangélico, e K. Rah- mal-entendidos, a filosofia existencialista do Sar- ner, do católico. tre22 de O Ser e o Nada, bem como a tentativa de superação da Ontologia de E. Lévinas23, sem IHU On-Line – E, em nossos dias, perdura a falar em seus discípulos como H. Jonas24 e H. sua influência? Arendt25, o pensamento heideggeriano se traduziu João Augusto Mac Dowell – Heidegger não fez na corrente hermenêutica, representada por H G. propriamente escola. Seu pensamento assistemá- Gadamer26 e, até certo ponto, por P. Ricoeur27. É tico não se presta a transmissões padronizadas. 21 Analíticos e Continentais. São Leopoldo: Unisinos, 2002 22 Jean-Paul Sartre (1905-1980): filósofo existencialista francês. Escreveu obras teóricas, romances, peças teatrais e contos. Seu primeiro romance foi A Náusea (1938), e seu principal trabalho filosófico é O Ser e o Nada (1943). Sartre define o existencialismo, em seu ensaio O existencialismo é um humanismo, como a doutrina na qual, para o homem, “a existência precede a essência”. Na Crítica da razão dialética (1964), Sartre apresenta suas teorias políticas e sociológicas. Aplicou suas teorias psicanalíticas nas biografias Baudelaire (1947) e Saint Genet (1953). As palavras (1963) é a primeira parte de sua autobiografia. Em 1964, foi escolhido para o prêmio Nobel de literatura, que recusou. (Nota da IHU On-Line) 23 Emmanuel Lévinas: filósofo e comentador talmúdico, nasceu em 1906, na Lituânia, e faleceu em 1995, na França. Desde 1930, era naturalizado francês. Foi aluno de Husserl e conheceu Heidegger, cuja obra Ser e Tempo, de 1927, o influenciou muito. “A ética precede a ontologia” é uma frase que caracteriza o pensamento de Lévinas. Ele é autor do livro que o consagrou Totalité et infini. Essai sur l’extériorité que foi traduzido para o português com o titulo Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2000. No Brasil, a Editora Perspectiva, publicou Quatro leituras talmúdicas, em 2003, e a Editora Vozes, De Deus que vem a idéia, em 2002. (Nota da IHU On-Line) 24 Hans Jonas (1902-1993): filósofo alemão, naturalizado norte-americano, um dos primeiros pensadores a refletir sobre as novas abordagens éticas do progresso tecnocientífico. A sua obra principal intitula-se: Das Prinzip Verantwortung. Versuch einer Ethik für die technologische Zivilisation, 1979. (Nota da IHU On-Line) 25 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e socióloga alemã, de origem judaica, nasceu em Hannover. Foi influenciada por Husserl, Heidegger e Karl Yaspers. Em conseqüência das perseguições nazistas, em 1941, partiu para os EUA, onde escreveu grande parte das suas obras. Lecionou nas principais universidades americanas. Propôs, em uma distinção inusitada, que os termos labor, trabalho e ação fossem entendidos como diferentes formas de atividades fundamentais do ser humano, sendo aquele vinculado às necessidades biológicas, o intermediário ao artificialismo da vida moderna e este às relações entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria. Sua filosofia assenta numa crítica à sociedade de massas e à sua tendência para atomizar os indivíduos. Preconiza um regresso a uma concepção política separada da esfera econômica, tendo como modelo de inspiração a antiga cidade grega. Entre suas obras, citamos: Eichmann em Jerusalém – Uma reportagem sobre a banalidade do mal. Lisboa: Tenacitas. 2004; O Sistema Totalitário. Lisboa: Publicações Dom Quixote.1978; O Conceito de Amor em Santo Agostinho. Lisboa: Instituto Piaget; A Vida do Espírito. v.I. Pensar. Lisboa: Instituto Piaget; Sobre a Revolução. Lisboa: Relógio D`Água; Compreensão Política e o Futuro e Outros Ensaios. Lisboa: Relógio D’Água (edição da Perspectiva, 2002). Sobre Arendt, confira o número 168 da IHU On-Line, de 12 de dezembro de 2005, sob o título Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Três mulheres que marcaram o século XX. (Nota da IHU On-Line) 26 Hans-Georg Gadamer: filósofo alemão, autor do importante livro Verdade e método. Petrópolis: Vozes, 1997, faleceu no dia 13 de março de 2002, aos 102 anos. Por essa razão, dedicamos a ele a matéria de capa da IHU On-Line número 9, de 18 de março de 2002. (Nota da IHU On-Line) 27 Paul Ricoeur (1913-2005): filósofo francês. Sobre ele, conferir um artigo intitulado Imaginar a paz ou sonhá-la?, publicado na 49ª edição da IHU On-Line, de 24 de fevereiro de 2003, e uma entrevista na 50ª edição, de 10 de março de 2003. A edição 142, de 23 de maio de 2005, publicou a editoria Memória sobre Ricoeur, em função de seu falecimento. (Nota da IHU On-Line) 28 Ludwig Binswanger (1881-1966): filósofo suíço considerado o fundador da psicologia existencial. (Nota da IHU On-Line) 29 Medard Boss (1903-1990): psicanalista e psiquiatra suíço que desenvolveu uma forma de psicoterapia chamada análise do Dasein, largamente influenciada na filosofia fenomenológico-existencial de seu amigo e mentor, Martin Heidegger. (Nota da IHU On-Line) 17
  • 15. CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO No entanto, os desafios que ele lançou continuam zadas por R. Carnap34 ou por Nietzsche ou ainda a repercutir em todas as faixas do espectro filosófi- por Marx35. Estes autores, com base em pressu- co, numa proposta integradora, as linhas herme- postos certamente diversos, rejeitam simples- nêutica e analítico-pragmática, inspiradas nos mente a Metafísica, como um tipo de pensamen- dois maiores mestres do século XX, Heidegger e to ilusório e incapaz de revelar a verdade do Wittgenstein, de um lado com K.-O. Apel30, e, do mundo. Para Heidegger, porém, que classifica, outro, com R. Rorty31. Entretanto, é sobretudo o aliás, o pensamento desses filósofos como ainda pensamento pós-moderno de Lyotard32, J. Derri- enredado no dualismo metafísico, o fim da Meta- da33, G. Vattimo e tantos outros, que não pode ser física constitui o acabamento de um processo his- entendido senão à luz da reflexão heideggeriana tórico. Trata-se de uma etapa do pensamento sobre o destino da Metafísica e sobre o mundo ocidental, que possui sua grandeza própria, mas moderno. Sua busca do fundo sem fundo do pen- que hoje já exauriu suas possibilidades. A Metafí- sar, por um lado, e sua crítica do subjetivismo da sica, tendo cumprido até o fim o seu destino, abre razão instrumental moderna, por outro, deram uma nova possibilidade de pensar e compreen- azo ao surgimento do pensamento débil e da ra- der o real no seu todo. Pensar o fim da Metafísica zão fragmentada, que caracterizam as obras da- significa entender a essência do mundo moder- queles filósofos. no, caracterizado pelo império da tecnociência, na qual o modelo metafísico do pensar chega às IHU On-Line – O fim da Metafísica anuncia- suas últimas conseqüências. do por Heidegger ajuda a aprofundar a crise religiosa das sociedades pós-modernas? João Augusto Mac Dowell – Para responder à Metafísica, estrutura da filosofia ocidental sua pergunta será necessário esclarecer o que sig- Metafísica, segundo Heidegger, não é apenas nifica para Heidegger o fim da Metafísica. De uma das disciplinas filosóficas, ao lado da lógica, fato, esta expressão entrou no jargão filosófico e, da ética, da antropologia filosófica e da filosofia como tal, foi banalizada numa série de acepções da natureza. Constitui antes a própria estrutura da superficiais e confusas. O que Heidegger deno- filosofia ocidental desde Platão. A idéia heidegge- mina “superação da Metafísica” não se identifica riana de Metafísica pode ser caracterizada, creio, com as expressões idênticas ou equivalentes utili- por três elementos. Um deles é do dualismo platô- 30 Karl-Otto Apel (1922): filósofo alemão que combinou as tradições filosóficas analítica e continental. É autor do livro Transformação da Filosofia V.1. São Paulo: Loyola, 2000. (Nota da IHU On-Line) 31 Richard Rorty: filósofo pragmatista estadunidense. Sua principal obra é Filosofia e o Espelho da Natureza. (Nota da IHU On-Line) 32 Jean-François Lyotard (1924-1998): filósofo francês, autor de uma filosofia do desejo e significado representante do pós-modernismo. Escreveu, entre outros, A fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 1954, O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Estampa, 1990, Heidegger e ‘os judeus’. Lisboa: Instituto Piaget, 1999 e A condição pós-moderna. 8. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 2004. (Nota da IHU On-Line) 33 Jacques Derrida (1930-2004): filósofo francês, criador do método chamado desconstrução. Seu trabalho é associado, com freqüência, ao pós-estruturalismo e ao pós-modernismo. Entre as principais influências de Derrida encontram-se Sigmund Freud e Martin Heidegger. Entre sua extensa produção, figuram os livros Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973; L’Ethique du don, (1992), Demeure, Maurice Blanchot (1998), Voiles avec Hélène Cixous (1998), Donner la mort (1999). Dedicamos a Derrida a editoria Memória da IHU On-Line edição 119, de 18 de outubro de 2004 (Nota da IHU On-Line). 34 Rudolf Carnap (1891-1970): filósofo alemão que trabalhou na Europa Central antes de 1935 e nos Estados Unidos após esse período. Foi um dos principais membros do Círculo de Viena e um eminente defensor do positivismo lógico. (Nota da IHU On-Line) 35 Karl Heinrich Marx (1818–1883): filósofo, cientista social, economista, historiador e revolucionário alemão, um dos pensadores que exerceram maior influência sobre o pensamento social e sobre os destinos da humanidade no século XX. Marx foi estudado no Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da Economia. A palestra A Utopia de um novo paradigma para a economia foi proferida pela Prof.ª Dr.ª Leda Maria Paulani, em 23 de junho de 2005. O Caderno IHU Idéias, edição número 41, teve como tema A (anti)filosofia de Karl Marx, com artigo de autoria da mesma professora. (Nota da IHU On-Line) 18
  • 16. CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO nico, vigente sob formas diversas em todo o pen- perceber, em um nada de sentido. Entretanto, samento ocidental, que se estabelece entre o mun- diante da crise do que há de mais próprio no ser do sensível e o mundo inteligível, isto é, entre as humano, quando todas as possibilidades do coisas individuais e mutáveis de nossa experiência pensar metafísico se esgotaram, surge também a imediata, situadas no espaço e no tempo, e a sua oportunidade de um novo pensar. Não se trata essência, como idéias universais e eternas, que da negação da técnica nem da fuga do mundo constituem a verdadeira realidade. da técnica, antes de procurar um caminho para Outro traço determinante da Metafísica é o o pensar neste contexto inexorável. privilégio do conhecente, radicalizado no subjeti- Este novo pensar, para o qual devemos nos vismo moderno, mas vigente já, segundo Heideg- dispor, segundo Heidegger, na sobriedade pró- ger, na metafísica clássica, de determinar o ser do pria da acolhida de um dom, já não será metafísi- ente, enquanto depende do juízo ou julgamento co, nem tampouco antimetafísico e reducionista, do sujeito a sua verdade. A distinção entre ente e como o cientificismo positivista ou o individualis- ser é vista do sujeito, em função de seu movimen- mo relativista. Ele terá de descartar, contudo, as to de transcendência sobre o ente para o ser. É três características do pensamento metafísico aci- constitutiva da Metafísica esta transcendência as- ma descritas. Desde Ser e Tempo, Heidegger censional, na qual o ente é captado no seu ser e apontava a necessidade de suplantar a oposição representado na sua verdade. Enfim, o tipo meta- secundária sensível/inteligível, ao desvendar a físico de pensar tem um caráter onto-teológico, unidade originária da existência humana numa enquanto, embora se exercendo no âmbito da di- temporalidade existencial. Correspondentemen- ferença ontológica entre ser e ente, não a pensa, te, o próprio ser, como horizonte último do pen- ou seja, não interroga o sentido de ser, antes fun- sar, não se situa no plano do imutável e eterno, damenta o ente no seu todo e na sua diversidade mas implica uma historicidade constitutiva. É na unidade do ente primeiro, absoluto e infinito, nesta perspectiva que a Metafísica, com seu identificado com o Deus cristão. modo próprio de pensar e compreender a reali- dade, constitui uma etapa na história do ser. Entretanto, a diferença ontológica já não se esta- Tecnociência, expressão final belece mediante a transcendência do espírito hu- da Metafísica mano sobre o ente em direção ao ser. Pelo con- A tecnociência moderna constitui para Hei- trário, a conversão ou vira-volta do itinerário hei- degger, como já disse, a expressão final e a ple- deggeriano, como superação da Metafísica, equi- na realização do destino da Metafísica. Nela o vale à percepção de que é o próprio ser que toma ente não é apenas re-presentado como ob-jeto a iniciativa de se revelar, abrindo para o pensar do conhecimento, mas é também re-criado de um horizonte de compreensão. Isso significa a acordo com os interesses e objetivos humanos exclusão filosófica de qualquer pensar represen- como pro-jeto da vontade de poder. Nessas tativo e objetivante. Trata-se antes de acolher condições, as coisas do mundo se transformam como dom a manifestação do ser que torna os em meros recursos, sem consistência própria, entes presentes ao pensar. Daí também se segue no interior de um sistema de controle, que cons- o questionamento da estrutura onto-teológica da titui a essência da técnica. Entretanto, na sua Metafísica. pretensão de tudo controlar, o ser humano aca- Essa caracterização de toda a história da Me- ba sendo controlado pela própria técnica. Ele já tafísica foi violentamente contestada por autores, não é capaz de pensar o ente e muito menos o que não aceitam que sejam assim rotulados deter- ser como tal, envolvendo sua existência, sem o minados pensadores, como, por exemplo, Tomás 19
  • 17. CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO de Aquino36. Sem envolver-me aqui mais a fundo ção já superada, para ele, entre sensível e inteligí- nesta discussão, basta dizer que, a meu ver, ela vel. Tomando os termos no sentido tradicional, decorre de um mal-entendido. Com efeito, desde pode-se dizer, com aparente paradoxo, que o seu Aristóteles, a transcendência metafísica aponta pensar é um pensar da essência, e não da existên- numa dupla direção, por um lado, para o ente em cia. Ser, para Heidegger, não significa existir, geral, isto é, o ente como ente (dimensão ontoló- como o fato de estar aí no mundo, mas sim o hori- gica), por outro, para o fundamento último do zonte determinante do pensar, a iluminação e não ente (dimensão teológica). Portanto, a Metafísica o iluminado. Ele recusa, portanto, passar, median- tem inegavelmente um caráter onto-teológico. O te o raciocínio, do ente que é experienciado a seu que pode ser questionado e discutido é o juízo de fundamento metafísico, inacessível à experiên- Heidegger a este respeito, ou seja, a afirmação da cia, a um ente supremo, que seria a razão suficien- fundamentação do ente de nossa experiência em te do que existe. Tal é a dimensão teológica da um ente primeiro, própria da Metafísica, como on- Metafísica, um procedimento de caráter ôntico, toteológica, não é uma interpretação filosofica- que a leva a esquecer a questão decisiva do status mente adequada da realidade. do próprio ser. Com efeito, o novo pensar heideggeriano não pergunta pelo “porquê”. Esta pergunta só Um pensar da essência, tem sentido no âmbito das relações entre os entes e não da existência intramundanos. Procurar justificar o ente no seu A posição heideggeriana decorre de vários todo, determinar a sua razão suficiente, alcançar o pressupostos. O primeiro é a sua concepção da fi- seu fundamento, foi a pretensão desmesurada da losofia como determinação do ser ou “essência” razão metafísica. O todo, no seu mistério, não do ente e, em última análise, do sentido de ser pode ser abarcado pela razão humana, essencial- como tal. Embora rejeite, a certa altura, pelos mo- mente limitada. O autêntico pensar é o que se si- tivos já dados, a Ontologia, como autêntico pen- tua modestamente diante do fundo sem fundo do sar do ser, a sua investigação tem certamente um ser e, em vez de tentar dominá-lo, acolhe na grati- caráter “ontológico” (próprio do ser do ente), em dão as suas manifestações. Uma vez que a revela- oposição ao que chama de “ôntico” (próprio do ção da verdade depende propriamente da iniciati- ente). Compreender o ente é compreender o seu va do próprio ser, neste momento da crise do pen- ser e não explicá-lo por outro ente, como fazem as samento metafísico, só resta ao ser humano ciências positivas. Em virtude da adoção do méto- dispor-se por uma expectativa serena a acolher a do fenomenológico, ele só focaliza o eidos, a casa eventual comunicação de um novo pensar. formal no sentido aristotélico, desprezando toda consideração da causa eficiente. Heidegger e a questão de Deus Para ele, a filosofia só pode levar em conside- ração aquilo que pode ser descrito fenomenologi- Só depois deste amplo rodeio, será possível camente, isto é, que se manifesta implícita ou ex- abordar diretamente sua pergunta sobre a religião plicitamente e pode ser experienciado, dando ao no pensamento de Heidegger e sobre as conse- termo experiência o significado radical de presen- qüências da superação heideggeriana da Metafísi- ça ao pensamento, independentemente da distin- ca com relação à crise religiosa contemporânea. 36 Tomás de Aquino (1227-1274): frade dominicano e teólogo italiano, santo da Igreja. Um de seus maiores méritos foi introduzir o aristotelismo na escolástica anterior. A partir de São Tomás, a Igreja tem uma teologia (fundada na revelação) e uma filosofia (baseada no exercício da razão humana) que se fundem numa síntese definitiva: fé e razão. Nascido numa família nobre, estudou Filosofia em Nápoles e depois foi para Paris, onde se dedicou ao ensino e ao estudo de questões filosóficas e teológicas. Seus interesses não se restringiam à religião e filosofia, mas também à alquimia, tendo publicado uma importante obra alquímica chamada Aurora Consurgens. Sua obra mais famosa e importante é a Suma Teológica. (Nota da IHU On-Line) 20
  • 18. CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO Em primeiro lugar, diga-se de passagem, que os deu (aconteceu, houve) naquele tempo”. Portan- termos religião e experiência religiosa não são to, ser, como se dá, implica algo comunicativo, bem vistos por ele, que os considera eivados do algo de doação. É próprio do ser dar que pensar. subjetivismo moderno. Valoriza, ao invés, a expe- Ele constitui a clareira em cujo âmbito as coisas riência do sagrado e do divino, como constitutiva vêm ao nosso encontro como sendo, isto é, na sua da existência humana. A questão de Deus em Hei- verdade e sentido. degger é extremamente complexa e tem sido mui- to discutida. Só poderei acenar aqui para alguns aspectos mais importantes. Como já disse, ele re- Concepção de existência jeita a linguagem metafísica sobre Deus, isto é, no último Heidegger não aceita o tipo de pensamento que pretende de- Apesar de distinguir absolutamente entre o monstrar a existência de Deus como fundamento ser e os entes, Heidegger lhe atribui uma espécie último da realidade, nem reconhece no Deus do de atuação, que suporia uma consistência entitati- teísmo metafísico um Deus que possa ser objeto va e até um caráter pessoal. Para ele, como já ex- de culto e de adoração. Por isso mesmo, enquanto pliquei, é o ser que determina com suas iniciativas um novo pensar não se consolidar, é mais sensato de manifestar-se ou ocultar-se o destino e a histó- calar-se diante do mistério do que querer falar de ria do pensar. O verdadeiro pensar é aquele que, Deus. longe de arvorar-se em senhor da verdade, aco- Na verdade, segundo Heidegger, só é possí- lhe-a com gratidão como uma graça e favor do vel falar autenticamente de algo à medida que se ser. É evidente a semelhança dessa linguagem manifesta, ou seja, que é experienciado pelo pen- com a que exprime na bíblia a relação entre Deus samento. Ora, o mundo da técnica, criado à ima- e a liberdade humana na revelação dos seus de- gem e semelhança do homem e de seus interesses, sígnios como história da salvação. Em todo o já não revela a presença de um Deus. Trata-se de caso, mesmo prescindindo da relação para com um mundo dessacralizado, que impede o acesso um Deus transcendente e criador, tem muito de autêntico ao divino. Estas observações indicam cristã a concepção da existência do último Hei- claramente que, para ele, o divino, embora oculto degger, como aceitação serena e agradecida do pelo pensar representativo da modernidade, per- dom do ser como expressão suprema da liberdade tence essencialmente ao horizonte existencial do como abertura à verdade. ser humano. Ele inclui expressamente esta dimen- Será que por trás do ser haveria que divisar são no quarteto, constitutivo do mundo, que en- um Deus, concebido não tanto como a causa efi- volve a existência humana: céu, terra, deuses e ciente do mundo empírico, quanto como a fonte mortais. E a célebre entrevista que deu à revista do sentido, aquele que, ao comunicar o ser como Der Spiegel por ocasião de seus 80 anos, para ser verdade, desperta o pensar como liberdade? A publicada apenas depois de sua morte, como seu sintaxe do “dar-se” como “haver” em alemão é testamento espiritual, contém a afirmação enig- distinta da portuguesa, enquanto atribui gramati- mática, mas decisiva: “Só um Deus pode sal- calmente ao sujeito impessoal “es” o dom do ser var-nos”. A questão é saber de que Deus se trata qual objeto direto. Poder-se-ia identificar neste aqui e qual é sua relação com o ser. É certo que o “es” o mistério frontal do qual flui o ser como o ser, central no pensamento de Heidegger, não é horizonte histórico da existência humana? Hei- Deus. O ser, aliás, não é, porque só do ente se degger não faz tal identificação. Mas esta reserva pode dizer que é. E o ser não é um ente, aquilo não decorreria, quem sabe, da convicção de que que é. Por isso, Heidegger prefere dizer: há ser (es com isso ultrapassaria os limites do puro filosofar? gibt Sein). Ora, o equivalente de “haver” em ale- É possível. Em todo o caso, há também na sua mão se traduz literalmente em português por obra indícios que vão em sentido contrário, ou “dar-se”, que pode significar também algo como seja, no sentido da concepção de um divino ima- “haver”, “acontecer”, em frases como: “Isso se nente ao cosmo, próxima à experiência do sagra- 21
  • 19. CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO do própria da antiga religião da Grécia. A expres- gância enfatuada qualquer tentativa de chegar a são “deuses” como uma das dimensões do mun- Deus, seja pela demonstração racional, seja pelo do, que já mencionei, entre outras considerações, sentimento religioso. Nem por isso propugna Hei- pode levar a tal interpretação. Nesse caso, o ser degger uma atitude de mera passividade e resigna- planaria sobre o mundo humano tal qual a “moi- ção diante da crise atual. Trata-se de assumir a ta- ra” da mitologia grega, como o que determina, em refa de vigiar e proteger a verdade do ser, região última análise, o destino dos deuses e dos mortais. onde será possível experienciar o sagrado e pensar sua essência, desde que ele volte a manifestar-se. Niilismo e “morte de Deus” IHU On-Line – De que forma o senhor inter- É possível que Heidegger tenha deixado, afi- preta a decisão de Heidegger de filiar-se ao nal, sem resposta a questão sobre o tipo de divino nacional-socialismo, tendo em vista que ao qual ele se refere. Qualquer que seja, porém, a quase foi padre e pediu um funeral religioso? sua posição a esse respeito, é certo que o divino João Augusto Mac Dowell – No tempo de sua faz parte de sua visão da realidade. O seu pensa- adesão ao nacional-socialismo, Heidegger já havia mento sobre o fim da Metafísica, bem entendido, rompido os laços com a Igreja Católica. Não creio longe de contribuir para o agravamento da crise que este episódio, já debatido à saciedade, possa religiosa contemporânea, permite encará-la com a ser explicado, num ou noutro sentido, em função maior lucidez. Por um lado, a “morte de Deus”, das atitudes religiosas de Heidegger. Em todo o característica da cultura moderna, não equivale a caso, ele constitui uma mancha indelével na bio- um atestado da inexistência de Deus, segundo sua grafia do filósofo. Mais grave, sob o ponto de vista interpretação da afirmação de Nietzsche, mas tão ético, que a filiação, por um breve período, ao somente à percepção de que o Deus da Metafísica partido nazista – que poderia ter suas atenuantes – perdeu todo o seu vigor, já não é capaz de dar foi talvez sua recusa até o fim de exprimir sua mea sentido ao mundo contemporâneo. Por outro culpa por tal gesto. Nem por isso se justifica a ten- lado, ele tacharia certamente de superficiais e ab- tativa de, com base nesse fato, querer desqualifi- solutamente incapazes de superar o niilismo atual, car o seu pensamento. Naturalmente, passos des- resultante da “morte de Deus”, as manifestações ta envergadura têm muito a ver com a mentalida- de ressurgimento religioso dos últimos decênios. de da pessoa, os valores que a norteiam. Foram as Esta religiosidade individualista, voltada para a esperanças de um ressurgimento do povo alemão, satisfação afetiva do sujeito, constitui uma mera após as trágicas experiências da derrota na Pri- atitude reativa diante do racionalismo moderno, meira Guerra Mundial e do desastre da República que, por isso mesmo, no seu irracionalismo per- de Weimar, e mais ainda sua visão de uma revita- manece atrelada ao mesmo esquema de pensa- lização da cultura ocidental com base em raízes mento. Como disse há pouco, para Heidegger, só autênticas, que ele projetou ingenuamente sobre a à medida que o divino se manifesta pode estabe- figura esquálida de Hitler37. No entanto, este erro lecer-se um autêntico ser-para-Deus. Apenas ele fatal de julgamento, logo corrigido, a respeito do pode tomar a iniciativa de revelar-se, cabendo ao eventual executor de tais ideais não comprova ser humano tão somente acolher com atenção a qualquer afinidade entre seu pensamento e a ideo- comunicação divina. Destarte, nesta época de logia nacional-socialista. São, portanto, deplorá- ocultamento da divindade, não passaria de arro- 37 Adolf Hitler (1889-1945): ditador alemão, líder do Partido Nazista. Suas teses racistas e anti-semitas, bem como seus objetivos para a Alemanha ficaram patentes no seu livro de 1924, Mein Kampf (Minha Luta). No período da sua ditadura, os judeus e outros grupos minoritários considerados “indesejados”, como ciganos e negros, foram perseguidos e exterminados no que se convencionou chamar de Holocausto. Cometeu o suicídio no seu Quartel-General (o Führerbunker) em Berlim, com o Exército Soviético a poucos quarteirões de distância. A edição 145 da IHU On-Line, de 13 de junho de 2005, comentou na editoria Filme da Semana, o filme dirigido por Oliver Hirschbiegel, A Queda – as últimas horas de Hitler. (Nota da IHU On-Line) 22