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12 Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015
Dafiana do Socorro Soares Vicente Carlos e Erenildo João Carlos
A RT I G O SA RT I G O S
13Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015
Especulações sobre a moral em Kant e algumas implicações para as Ciências das Religiões
11
ESPECULAÇÕES SOBRE A MORAL EM
KANT E ALGUMAS IMPLICAÇÕES PARA
AS CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES
Dafiana do Socorro Soares Vicente Carlos
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da Universidade
Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: daffyanna@gmail.com
Erenildo João Carlos
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor do Departamento
de Fundamentação da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPB.
E-mail: erenildojc@hotmail.com
14 Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015
R E S U M O
O texto discute a questão da moral em Kant a partir da obra Os fundamentos
da metafísica dos costumes (1785). Pressupondo o entendimento kantiano
de que a sede da dignidade da pessoa humana se encontraria, precisamen-
te, situada na capacidade de todo sujeito racional agir autonomamente em
conformidade com a lei. Neste sentido, buscamos entender o argumento
kantiano, que transitou de uma razão prática, assentada na adequação en-
tre meios e fins, cujo fundamento estaria no conjunto de necessidades,
apetites e inclinações humanas, para um outro, baseado no “por dever”,
cuja razão de ser se encontraria no exercício autônomo e livre do sujeito
racional. Além disso, o texto ressalta algumas implicações de suas ideias
sobre o agir moral para o campo das Ciências das Religiões.
PA L AV R A S - C H AV E
Razão prática. Moralidade. Ciências das Religiões. Filosofia do direito.
Ética.
1 . I N T RO D U Ç Ã O
A questão religiosa tem sido objeto de investigação em
várias áreas da produção de saber. A filosofia e a teologia, por
exemplo, têm problematizado o fenômeno religioso a partir
da especulação lógico-argumentativa, baseada na reflexão exe-
gética de textos sagrados, ou na interpretação hermenêutica
15Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015
Especulações sobre a moral em Kant e algumas implicações para as Ciências das Religiões
das marcas arqueológicas deixadas ao longo da trajetória hu-
mana na Terra. Isso demonstra que o estudo sistemático da
religião não é algo recente.
Uma das problemáticas, envolvendo a definição de “re-
ligião”, reside no fato de que o termo, emergido em um con-
texto cultural e histórico bem específico, encontra-se carregado
de várias possibilidades semânticas no mundo ocidental.
Sabe-se que, desde a antiguidade, alguns significados fo-
ram vinculados à marca do significante “religião”, a exemplo da
palavra religio1
, comumente associada à ideia de Cultus deorum
e religare. O primeiro significado recorre a ideia de “culto aos
deuses”, “cultivo” ou “adoração”. Diferentemente, o segundo
ressalta o sentido do “[...] ligar de novo, ligar de volta, levar de
volta [...]”. Segundo Hock (2010, p. 18), a concepção religare
foi adotada por teólogos cristãos, a exemplo de Santo Agosti-
nho2
, que entendia a religião como mediação entre o homem e
Deus, tendo o papel de reconciliar e “ligar de volta” a alma que
se afastou de Deus.
Com o advento da Modernidade, a questão religiosa
foi – e tem sido – objeto da preocupação das ditas Ciências
Humanas e Sociais, a exemplo da Filosofia, da Antropologia,
da História, da Sociologia e, mais especificamente, das Ciên-
cias das Religiões, que abordam o fenômeno religioso à luz do
entendimento de que a noção de sagrado tem delineado con-
cepções de mundo, modos de vida peculiares, afetando, assim,
a organização das sociedades3
.
No campo da Sociologia, por exemplo, Berger (1985)
na tentativa de conceituar o termo Religião recorre aos soció-
logos Durkheim, Karl Marx, Weber e Luckmann. Durkheim
(1989) analisa os fenômenos religiosos a partir da dicotomia
sagrado/profano, em que a religião é entendida como um “fa-
to social”. Nesse sentido, a religião aparece na sociedade como
portadora de símbolos, ritos e crenças, comuns a uma coletivi-
dade. Assim, pode-se dizer que a religião é a possibilidade de
os indivíduos se organizarem coletivamente.
Marx (1975) entendia que a religião é uma realidade his-
tórica dependente do desenvolvimento das condições materiais
1
Para Hock (2010), esse termo foi definido por Cicero (106-43 a. C).
2
Hock (2010) assinala o período de Santo Agostinho entre 354-430.
3
Para maior aprofundamento, ver Eliade (2010, p. 185-206).
16 Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015
Dafiana do Socorro Soares Vicente Carlos e Erenildo João Carlos
de vida e da consciência dos indivíduos. Em seu Manuscritos
econômico-filosóficos, Marx (1975, p. 77) afirmou que o ho-
mem faz a religião; a religião não faz o homem. “[...] O homem
não é um ser abstrato, fora do mundo. O homem é o mundo
do homem, o Estado, a sociedade [...]”.
Para Weber (1999), a religião é mais do que um sistema
de crenças, é uma espécie particular do agir coletivo. É depo-
sitária de significados culturais, que permitem interpretar a
vida, construir uma identidade e dominar o próprio ambiente,
tanto individual quanto coletivo. Seu clássico estudo sobre a
relação entre o espírito do protestantismo e o desenvolvimento
do capitalismo foi uma investigação emblemática das pesqui-
sas realizadas no âmbito da Sociologia.
Por fim, Berger e Luckmann (2005) assinala que reli-
gião é a capacidade de o organismo humano transcender sua
natureza biológica por meio da construção de universos de
significado objetivos, que obrigam moralmente e que tudo
abarca. Com esse entendimento, a religião pode ser vista não
somente como um fenômeno social, mas também como um
fenômeno, por excelência, antropológico. Uma espécie de au-
totranscedência simbólica.
Na Antropologia, os estudos de Mircea Eliade (2010) têm
contribuído significativamente para o alargamento e aprofun-
damento do entendimento da problemática do sagrado, en-
quanto acontecimento humano. Nesse sentido, a religião, seus
deuses, narrativas e ritos seriam representações imaginárias
coletivas das condições de existência dos povos.
Na Filosofia, o que seria a religião para Kant? Parece-nos
algo mais afeito à concepção teológica do mundo, algo vincu-
lado à esfera do mundo não sensível. O fato é que, em virtude
da semelhança da conduta social do religioso e da moral, exis-
te nos escritos kantianos a possibilidade de entender a religião
para além da metafísica, associada à liberdade e decisão huma-
na. Influenciado por David Hume, Kant libertou-se da ilusão
da metafísica e da dogmática, de modo que suas investigações
sobre os fenômenos religiosos se distanciou dos fenômenos
resultantes da ação humana, ou, mais precisamente, aproxi-
mando-se, assim, das questões próprias da moral.
Nesse sentido, o filósofo não se ocupava em investigar
tão somente o modo como o homem livre conhecia ou podia
conhecer as coisas ou a divindade, mas o que ele fazia, realizava
17Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015
Especulações sobre a moral em Kant e algumas implicações para as Ciências das Religiões
consigo, como o outro e a sociedade, tendo em vista alcançar
a felicidade ou, em outros termos, o bem supremo. Quanto a
isso, na obra A religião nos limites da simples razão, Kant
(2008b, p. 11) assinala que:
[...] A Moral, enquanto fundada no conceito do homem como
um ser livre que, justamente por isso, se vincula a si mesmo pela
razão a leis incondicionadas, não precisa nem da ideia de outro
ser acima do homem para conhecer o seu dever, nem de outro
móbil diferente da própria lei para o observar. Pelo menos é
culpa sua se nele se encontra uma tal necessidade a que por
nada mais se pode então prestar auxílio; porque o que não pro-
cede dele mesmo e da sua liberdade não faculta compensação
alguma para a deficiência da sua moralidade. Por conseguinte,
a Moral, em prol de si própria (tanto objectivamente, no tocan-
te ao querer, como subjectivamente, no que diz respeito ao po-
der), de nenhum modo precisa da religião, mas basta-se a si
própria em virtude da razão pura prática [...].
Diante do exposto, entendemos que a religião é um
acontecimento humano, isso porque tudo aquilo que não é
natureza é produto da atividade humana. Considerando essa
perspectiva e os pressupostos anteriores, o texto em tela visa
refletir sobre a moral em Kant e suas implicações para as Ciên-
cias das Religiões. Para tanto, organiza-se em três pontos. O
primeiro discorre um pouco sobre a vida e os escritos do filó-
sofo, tendo em vista situarmos seus textos no contexto de sua
história de vida. O segundo reflete sobre a questão da moral
em Kant, organizada em três tópicos, a saber: da razão comum
ao conhecimento filosófico; da filosofia moral popular à meta-
física dos costumes e, por fim; da metafísica dos costumes à
crítica da razão prática pura. O último ponto apresenta algu-
mas considerações sobre a implicação das ideias kantianas da
moral, no campo das Ciências das Religiões.
2 . K A N T E S E U S E S C R I TO S
Kant foi um dos filósofos que mais influenciaram o pen-
samento moderno. Nasceu em Königsberg, em 22 de abril de
1724, onde viveu por toda sua vida. Foi professor da Universi-
dade de Königsberg durante mais de 40 anos e se aprofundou
18 Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015
Dafiana do Socorro Soares Vicente Carlos e Erenildo João Carlos
na filosofia de Gottfried Wilhelm Leibniz e Christian Wolff4
.
Segundo Thonnard (1968, p. 624), graças à influência desses
filósofos, Kant (1991, p. VIII) “[...] apostava firmemente no
valor objetivo da razão, mas sem ter justificado esse valor a si
próprio; é dogmatista racionalista [...]”.
No contexto do século XVII, em que Kant estava inseri-
do, duas ciências hegemônicas apresentavam-se como conheci-
mento válido e irrefutável, a saber: a Matemática e a Física.
Vale assinalar, que, na contramão da Matemática e da Física, o
pensamento metafísico, que circulava na época, visava dar res-
postas para “[...] os problemas da realidade última [...]” (KANT,
1991, p. VIII). Contudo não havia unanimidade entre os estu-
diosos de que a metafísica fosse capaz de oferecer respostas
plausíveis às problemáticas e às indagações dos filósofos.
Foi mediante a leitura dos escritos de David Hume (2001)
que Kant se libertou da ilusão metafísica, despertando-se do
sono dogmático. Nessa ocasião, conforme destaca Thonnard
(1968, p. 624), o filósofo da modernidade já havia “[...] aban-
donado o idealismo radical de Leibniz para aceitar a existência
dos corpos e o espaço absoluto de Newton [...]”. A partir des-
sa nova perspectiva filosófica, Kant postula a tese central de
sua filosofia de que o conhecimento é produto da atividade
humana. Aqui, o papel da experiência ganhava destaque no
pensamento filosófico kantiano.
Do ponto de vista filosófico, a vida intelectual de Kant
foi marcada por vários trabalhos, fruto das suas profundas re-
flexões sobre o conhecimento, a moral, o direito, a religião e a
estética. Nenhum desses campos escaparam de sua análise crí-
tica. Dentre suas produções, as que se destacaram foram: a
História geral da natureza e teoria do céu (1755), a Crítica da
razão pura (1781), Os fundamentos da metafísica dos costu-
mes (1785), a Crítica da razão prática (1788) e a Crítica da
faculdade do julgar (1790). Em comum, todas essas obras par-
tem do pressuposto de que o conhecimento humano, as for-
mas e os limites das faculdades cognitivas do homem come-
çam com a experiência, mas não derivam dela.
Das obras elencadas aqui, refletiremos sobre a moral a
partir das contribuições de Kant em Os fundamentos da metafí-
sica dos costumes (1785), em que o autor estabelece as condições
4
Era a filosofia reinante que os seus mestres da universidade lhe ensinaram.
19Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015
Especulações sobre a moral em Kant e algumas implicações para as Ciências das Religiões
de possibilidade de uma Lei Moral Universal, a qual teria a
função de conduzir a ação do homem emancipado que mani-
festa sua autonomia a partir da razão pura prática, que se iden-
tifica com as condições, a priori, de sua vontade.
3 . A Q U E S T Ã O DA M O R A L
E M K A N T
Considerando o que foi exposto anteriormente, pode-se
verificar que Kant teve uma vida muito produtiva do ponto de
vista das ideias. Seu legado se faz presente na história do pen-
samento ocidental, sobretudo no campo da Filosofia, em par-
ticular, e das Ciências Humanas e Sociais, em geral.
No que tange especificamente à questão da moral, esco-
lhemos discutir o assunto a partir de seu livro Fundamentação
da metafísica dos costumes e outros escritos (2008a), tanto pela
possibilidade de fácil aquisição desse livro, para os leitores lei-
gos em Kant, quanto pela riqueza de enunciados, teses e argu-
mentos que ele contém. Não obstante, saibamos que a questão
sobre a moral está presente em outros escritos, a exemplo do
livro intitulado Doutrina do direito.
A ordem de reflexão e análise que empreendemos em-
pregou a estratégia analítica de percorrer o argumento realiza-
do por Kant. De modo que, seguindo-o, alcançássemos o en-
tendimento das ideias e dos conceitos que ele utilizou para
tecer sua posição sobre a questão da moral. Ao optarmos por
esse caminho, consideramos importante organizar nosso per-
curso analítico a partir da própria estrutura contida no texto
de Kant e do uso de alguns fragmentos de seu discurso. Em
função desse procedimento, passamos a apresentar os achados
de nossa incursão.
3 . 1 DA R A Z Ã O C O M U M AO
C O N H E C I M E N TO F I LO S Ó F I C O –
S E N S I B I L I DA D E E R A Z Ã O
Na primeira seção, intitulada “Transição do conhecimen-
to moral da razão comum para o conhecimento filosófico”,
20 Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015
Dafiana do Socorro Soares Vicente Carlos e Erenildo João Carlos
nota-se que Kant desenvolveu, inicialmente, uma reflexão so-
bre a moral (o valor moral ou moralidade) a partir do entendi-
mento vulgar, cotidiano e existencial, passando, gradativamen-
te, para uma concepção elaborada a partir do prisma filosófico.
Ou seja, construiu um argumento que transitou de uma razão
prática, assentada na adequação entre meios e fins, cujo fun-
damento estaria no conjunto de necessidades, apetites e inclina-
ções humanas, para outra, baseada no dever, cuja razão de ser
se encontraria no respeito à lei, uma espécie de virtude própria
do ser racional.
Nesse percurso introdutório de seu livro, Kant apresen-
tou uma série de conceitos e de argumentos que, aos poucos,
vão esclarecendo seu próprio entendimento sobre o significa-
do da moral, como um campo de possibilidades racionais para
o exercício do agir do ser humano com relação a si mesmo e
aos outros. Um aspecto interessante do modo como proble-
matizou a questão moral se encontra no esforço que fez para
encontrar na noção vulgar o valor próprio daquilo que faz
com que uma determinada ação possa ser considerada moral,
isto é, seus princípios e legalidades essenciais. Como assinala
Kant (2008a, p. 37):
[...] Assim, pois, chegamos ao princípio do conhecimento mo-
ral da razão humana vulgar, princípio esse que a razão vulgar na
verdade não concebe abstratamente em uma forma geral, mas o
mantém sempre realmente diante dos olhos e dele se serve
como padrão para seus juízos [...].
Daí o porquê de ter se dedicado, de um lado, a escrever
sobre o que não deveria ser identificado como uma prática
moral, a exemplo das ações humanas que objetivam, como
fim, a preservação da vida, a eliminação ou redução do sofri-
mento e o cultivo da saúde; o acúmulo de riqueza, a honra, o
prestígio e o status quo; a filantropia, a caridade, a virtude e a
sabedoria. Em resumo, estaria fora do espectro da moralidade
todo agir humano orientado por princípios inspirados na bus-
ca da felicidade, da realização dos prazeres, do atendimento de
necessidades naturais ou culturais, definidos subjetiva e ime-
diatamente pelo indivíduo, tendo em vista atender suas incli-
nações, seus apetites, instintos, desejos e interesses pela aquisi-
ção de certas coisas, objetos, situações e posições agregadas ao
21Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015
Especulações sobre a moral em Kant e algumas implicações para as Ciências das Religiões
mundo empírico da sensibilidade e da experiência. Como ele
mesmo afirmara:
[...] Assim, o valor moral da ação não reside no efeito que dela
se espera; também não reside em qualquer princípio da ação
que precise tomar seu fundamento determinante neste efeito
esperado [...] (KANT, 2008a, p. 28).
De outro, ter se concentrado em abstrair do conheci-
mento vulgar de moral os elementos próprios da razão moral,
a fim de estabelecer, a partir deles, as condições necessárias ao
entendimento correto da moral, em uma perspectiva filosófica
e metafísica, a saber, da moralidade enquanto campo de prin-
cípioseleisobjetivaseuniversais,abstratasegerais,orientadoras
da vontade livre e consciente de todos os homens, totalmente
distintas das máximas subjetivas fundadas no mundo da sensi-
bilidade e da necessidade.
Nesse sentido, um aspecto primário da noção de moral
se encontra no fato de que o agir tem de ter sua origem no
próprio sujeito da ação, isto é, em sua vontade racional. Não
seria moral, portanto, toda espécie de ação realizada por um
impulso ou uma motivação exterior à decisão racional e cons-
ciente do ser humano, seja ela provocada pela necessidade im-
posta pelas determinações do mundo natural, seja ela suscitada
pelas condições sociopolíticas da cultura em que vive o indiví-
duo, a ponto de fazê-lo agir em função de práticas de controle,
de dominação, de manipulação, exercidas por meio dos dispo-
sitivos ideológicos do convencimento, de violência física e
simbólica, ou do uso da força da palavra, do afeto ou do me-
do. Nenhuma dessas modalidades de ação se enquadraria na
categoria de um agir moral. Sobre a questão da vontade, expli-
ca Kant (2008a, p. 22, grifo nosso):
[...] Todavia, nessa ideia do valor absoluto da simples vontade há,
sem que se leve em conta a utilidade para a sua avaliação, algo
de tão estranho que, por mais que esteja perfeitamente confor-
me a razão comum, pode suscitar a suspeita de que, no fundo,
talvez não haja mais do que alguma ilusão de imaginação pro-
duzida por um falso entusiasmo, e de que a natureza tenha sido
mal compreendida em seu intuito ao nos conceder a razão por
governante da vontade [...].
22 Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015
Dafiana do Socorro Soares Vicente Carlos e Erenildo João Carlos
Parece-nos que outro elemento identificado por Kant,
como constituinte da moral, se encontra no agir prático da
razão vulgar que obedece a regras que prescrevem a escolha
dos meios mais adequados para os fins desejados. A adoção e a
realização desse princípio como parâmetro orientador da ação,
tendo em vista a eficiência da conquista ou do acesso ao objeto
desejado, contém em germe a noção do dever, isto é, do res-
peito à lei, uma das condições necessárias à existência do valor
moral. Por conseguinte, esclarece Kant (2008a, p. 27):
[...] Uma ação praticada por dever tem o seu valor moral não no
propósito que por meio dela se quer alcançar, mas na máxima
que a determina, não depende, pois, da realidade do objeto da
ação, mas meramente do princípio do querer segundo o qual a
ação foi praticada [...].
A leitura desta seção, permite-nos, por fim, considerar
que o conceito de valor moral para Kant, além de ser constituí-
do por uma vontade conscientemente guiada pelo respeito à
lei, deverá também agregar uma lei com validade universal,
isto é, que possa servir de princípio orientador da ação de
todos os homens em geral. Supera, assim, o horizonte de uma
razão prática, isto é, uma vontade humana, inspirada no pa-
râmetro de uma máxima determinada como norte, conduto-
ra tão somente de uma ação exclusivamente egoísta, subjetiva
e individual, em função de princípios que servem a um só
tempo para mim e para todos. Com efeito, assinala Kant
(2008a, p. 29):
[...] Como tenho subtraído a vontade de todos os estímulos que
pudessem afastá-la do cumprimento de uma lei, nada mais resta
a não ser a legalidade universal das ações em geral, essa que deve
ser o único princípio da vontade, isto é: devo agir sempre de
modo que possa querer também que minha máxima se conver-
ta em lei universal [...].
Pelo exposto, esperamos ter compreendido e explicitado,
a um só tempo, o percurso argumentativo de Kant, no sentido
de analisar a questão moral a partir da sensibilidade e da expe-
riência, fundamentos do senso comum, e seu entendimento do
agir moral, proporcionado pela reflexão filosófica sobre o as-
sunto a partir do critério da razão e da especulação crítica.
23Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015
Especulações sobre a moral em Kant e algumas implicações para as Ciências das Religiões
3 . 2 DA F I LO S O F I A M O R A L P O P U L A R
À M E TA F Í S I C A D O S CO S T U M E S –
D I G N I DA D E E AU TO N O M I A
Para resolver o problema de um juízo moral capaz de
mover o indivíduo para agir, seja consigo mesmo ou com o
outro, a partir de princípios universais, de modo que fosse
capaz de, a um só tempo, superar os apetites e as inclinações
imediatos e circunstanciais, o agir moral motivado pelo medo
e pela tradição, vinculados à sensibilidade, à subjetividade dos
interesses singulares de cada sujeito ou da tutela das institui-
ções5
, Kant deslocou sua reflexão da esfera filosófico-especula-
tiva da moral para o campo da metafísica dos costumes.
Nesse lugar, a razão filosófica seria capaz de adentrar
naquilo que é próprio ao agir adequadamente moral, isto é, na
“[...] relação de uma vontade consigo mesma enquanto essa
vontade se determina tão somente pela razão [...]” (KANT,
2008a, p. 57). Em outras palavras, a metafísica dos costumes
possibilitaria analisar a razão prática (vontade) “[...] como
uma faculdade de se determinar a si mesma agindo em confor-
midade com a representação de certas leis [...]” (KANT, 2008a,
p. 57-58).
Em sua reflexão, Kant distinguiu as coisas das pessoas,
assinalando que as coisas são o que são em função do valor
relativo que têm, resultante de serem meios acionados para se
alcançar determinados fins subjetivos. Diferentemente, as pes-
soas seriam, em si mesmas, a fonte de um valor objetivo, a
saber, “[...] algo que não pode ser empregado como simples
meio [...]” (KANT, 2008a, p. 59). Por terem em si seu próprio
fim, “[...] fins objetivos, isto é, coisas cuja existência é, em si
mesma, um fim, e um fim tal que em seu lugar não se pode
pôr nenhum outro em seu lugar [...]” (KANT, 2008a, p. 59),
haveria nesse fim “[...] um princípio prático supremo para a
razão [...]”. Como ele mesmo argumenta:
[...] Se pois existirem um princípio prático supremo e um impe-
rativo categórico no que diz respeito à vontade humana, deverão
5
Sobre Iluminismo, indico a leitura de Kant (1990).
24 Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015
Dafiana do Socorro Soares Vicente Carlos e Erenildo João Carlos
ser tais que, da representação daquilo que é necessariamente um
fim para todos porque é fim em si mesmo, continua um princí-
pio objetivo da vontade, que possa, por consequência, servir de
lei prática universal [...] (KANT, 2008a, p. 59).
Ora, ao determinar a humanidade e a consciência desse
fato como a máxima fundamental do agir moral, Kant resolvia
a questão teórica da possibilidade da ação humana ser regida
por um princípio universal, isso porque essa concepção incluía
uma série de três elementos essenciais à existência da morali-
dade na perspectiva da metafísica dos costumes, a saber: a uni-
versalidade (todos os homens são, em si, fins e não meios, in-
distintamente), a objetividade do princípio (o sentido deste
gênero de ação não tem seu fundamento na dimensão subjeti-
va marcada pelos apetites e inclinações da sensibilidade huma-
na) e, por fim, a razão como condição suprema do agir moral
(a ação realizada pelo ser racional é, a um só tempo, particular
e universal). Tal visão pode ser enunciada sinteticamente da
seguinte maneira:
[...] Age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em
tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simul-
taneamente como fim e nunca simplesmente como meio [...]
(KANT, 2008a, p. 59).
Decorrente dessa especulação metafísica, resulta o enten-
dimento de que a sede da dignidade do ser humano se encontra-
ria precisamente situada na capacidade de todo sujeito racional
agir autonomamente em conformidade com a lei. Dignidade,
a priori, determinada pela condição racional de todo ser huma-
no reconhecer-se como possuidor de razão, como sendo onto-
logicamente uma pessoa, e como capaz de orientar sua vontade
a partir de princípios universais. Nessa ótica, a moralidade seria
uma espécie de síntese de várias determinações da razão práti-
ca. Nas palavras de Kant (2008a, p. 65):
[...] Ora, a moralidade é a única condição que pode fazer de um
ser racional um fim em si mesmo, pois só por ela lhe é possível
ser membro legislador do reino dos fins. Por isso, a moralidade
e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas
coisas providas de dignidade [...].
25Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015
Especulações sobre a moral em Kant e algumas implicações para as Ciências das Religiões
Nota-se, portanto, que o ponto de vista kantiano aponta
para uma moralidade constituída pela combinação entre razão
e autonomia, humanidade e dignidade. De modo que, de um
lado, a autonomia é descrita como “[...] o fundamento da dig-
nidade da natureza humana e de toda a natureza racional [...]”
(KANT, 2008a, p. 66), de outro, é vista como “[...] a relação
das ações com a autonomia da vontade, isto é, com a possível
legislação universal por meio de suas máximas [...]” (KANT,
2008a, p. 70). Ao fim e ao cabo, Kant (2008a, p. 70) dizia:
[...] toda dignidade da humanidade consiste precisamente nesta
capacidade de ser legislador universal, se bem que sob a con-
dição de estar ao mesmo tempo submetido a essa mesma legis-
lação [...].
Com efeito, fica relativamente evidente o entendimento
daargumentaçãoempreendidaporKantacercadapossibilidade
de o agir moral ser orientado por princípios universais, isto é,
imperativos categóricos, sintetizados na lei objetiva da vontade
que age tendo em vista o homem como um fim em si, causa
suprema inclusive da ressignificação e revalorização de todas as
possíveis ações hipotéticas.
3 . 3 DA M E TA F Í S I C A D O S C O S T U M E S
À C R Í T I C A DA R A Z Ã O P R Á T I C A
P U R A – VO N TA D E E L I B E R DA D E
Na terceira seção, designada “Transição da metafísica
dos costumes para a crítica da razão pura”, Kant retoma e situa
criticamente as premissas sobre a moral, desenvolvidas nas se-
ções anteriores. Conferindo, assim, centralidade ao binômio
vontade-liberdade, como as propriedades constitutivas da ra-
zão prática.
A noção de razão prática é composta por dois predica-
dos essenciais, a saber, o da consciência (razão) e o da prática
(vontade). Enquanto sujeito consciente, o “eu” do ser humano
somente poderia ser constituído pela faculdade da razão, co-
mo explicita Kant (2008a, p. 84):
26 Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015
Dafiana do Socorro Soares Vicente Carlos e Erenildo João Carlos
[...] Ora o homem encontra realmente em si mesmo uma facul-
dade pela qual se distingue de todas as outras coisas e até de si
mesmo, à medida que é afetado por objetos; esta faculdade é a
razão [Vernunft] [...].
Enquanto sujeito de vontade, o “eu” humano somente
poderia ter uma razão que fosse eminente prática, isto é, que
possuísse “[...] causalidade em relação aos seus objetos [...]”
(KANT, 2008a, p. 81) e fosse livre. De modo que a “[...] liber-
dade seria a propriedade dessa causalidade, pela qual ela pode
ser eficiente [...]” (KANT, 2008a, p. 79).
Ao pressupor assim o ser em si do “eu” humano, a aná-
lise kantiana do conteúdo específico da liberdade conclui que
a liberdade humana se realizaria efetivamente tão-somente por
meio da autonomia, identificada como “[...] a propriedade da
vontade de ser lei de si mesma [...]” (KANT, 2008a, p. 79). Tal
pressuposição seria necessária à especulação da razão prática
pura, no caso de se pensar o ser humano como “[...] um ser
racional e consciente de sua causalidade a respeito das ações,
isto é, dotado de vontade [...]” (KANT, 2008a, p. 81). Em
outras palavras, Kant (2008a, p. 85) afirma:
[...] Como ser racional e, portanto, pertencente ao mundo inte-
ligível, o homem não pode jamais intuir a causalidade de sua
própria vontade senão sob a ideia de liberdade, pois a indepen-
dênciadascausasdeterminantesdomundosensível(independên-
cia que a razão tem sempre que se atribuir) é a liberdade [...].
Um desdobramento desse modo de entender seria a
compreensão de que o ser humano ao se reconhecer como ser
racional, ou seja, “[...] considerar-se a si mesmo como inteli-
gência [...]”, deveria, necessariamente, “[...] considerar as leis
domundointeligívelcomoimperativos[...]easaçõesconformes
a esse princípio como deveres [...]” (KANT, 2008a, p. 85-86),
agindo, assim, a partir da “[...] ideia de liberdade, isto é, da
independência em relação a causas determinantes do mundo
sensível” (KANT, 2008a, p. 87). Em outros termos, diz Kant
(2008a, p. 90):
[...] A causalidade dessas ações reside nele como inteligência e
nas leis dos efeitos e ações segundo princípios de um mundo
27Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015
Especulações sobre a moral em Kant e algumas implicações para as Ciências das Religiões
inteligível, do qual nada mais sabe senão que neste mundo só
dá a lei a razão, e isso o faz a razão pura, independente da sen-
sibilidade [...].
Portanto, observa-se que a transição feita por Kant no
decurso de sua argumentação sobre a questão da moralidade
deságua na defesa intransigente de que o caráter eminentemen-
te puro da razão prática se encontraria na superação de uma
vontade orientada pelas máximas originadas no mundo da sen-
sibilidade, no mundo empírico, que, concretamente, se efeti-
varia no ato de desejar e satisfazer o querer sensível por meio da
busca e da conquista dos objetos da inclinação e do apetite, que
constituem a subjetividade específica de cada ser humano. Li-
vre das determinações do mundo sensível, o agir humano não
teria seu motor fora de si, mas em si, ou seja, na razão prática.
Assim, concluímos, afirmando com Kant (2008a, p. 93):
[...] pressupondo a liberdade da vontade de uma inteligência, a
consequência necessária é a autonomia dessa vontade como a con-
dição formal, sob a qual tão-somente pode ser determinada [...].
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: IMPLICAÇÕES
DA NOÇÃO DE MORAL KANTIANA PARA
AS CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES
A reflexão e análise que empreendemos sobre a noção de
moralidade em Kant, a partir de seu livro Fundamentação da
metafísica dos costumes e outros escritos, permitiu que chegásse-
mos a algumas conclusões acerca das contribuições de seu le-
gado para as Ciências das Religiões, haja vista, como o próprio
título deste texto enuncia, nosso intuito principal de conhecer
algumas ideias de Kant sobre a moral residiria em poder, a
partir dele, entender um pouco mais o objeto das investiga-
ções realizadas no campo das Ciências das Religiões.
Nesse sentido, os achados obtidos, mediante a escavação
do livro kantiano analisado, possibilitaram elementos que nos
permitem concordar com a ideia de que Kant, ao conceber a
razão humana como princípio motor de sua vontade, consolida
28 Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015
Dafiana do Socorro Soares Vicente Carlos e Erenildo João Carlos
a visão, compartilhada por vários estudiosos das Ciências Hu-
manas, Sociais e das Religiões, de que a cultura é o produto da
atividade humana, isto é, de que a razão prática humana se efe-
tiva no campo moral, técnico e simbólico. De modo que, com
Kant, podemos, sim, justificar e explicar o discurso de que o
mundo humano é o resultado da própria atividade humana.
Assim sendo, não seria diferente o entendimento da exis-
tência da religião no seio da história. Ou seja, a religião, assim
como outros elementos que integram a cultura, seria também
o produto da atividade humana, de sua prática, de sua capacida-
de criativa. Tal possibilidade indica que o objeto de estudo das
Ciências das Religiões seria constituído por um conjunto de
produções culturais feitas pelo ser humano, que conservam
características próprias do modo como o ser humano tem pra-
ticado sua relação com a natureza e com os outros seres huma-
nos. Tais produtos seriam as crenças, os valores, os significa-
dos, as práticas e os ritos, concepções que funcionariam como
máximas e/ou leis agrupadas em torno da designação “religio-
sa”, cabendo, portanto, às Ciências das Religiões investigar, a
partir de parâmetros científicos, esse fenômeno humano.
É significativa para a determinação dos estudos das Ciên-
cias das Religiões, a diferenciação estabelecida na reflexão kan-
tiana entre o mundo sensível ou, mais especificamente, o campo
da sensibilidade, constituído pela natureza e suas causalidades,
ou seja, suas leis, necessidades e determinações naturais; e o
mundo da razão, a exemplo do mundo moral. Essa diferença
corrobora não somente a existência de cada um desses mundos,
mas também conserva suas especificidades e propriedades, as
quais funcionam como divisores de águas entre eles: aquele,
independente da razão e da vontade; e este, resultado delas,
portanto, da prática, da autonomia e da liberdade humana. Se-
gundo Kant (2008a, p. 84-85), essa distinção é uma das fun-
ções da razão:
[...] A razão, de modo diverso, mostra sob o nome das ideias
uma espontaneidade tão pura que por ela excede em muito
tudo o que a sensibilidade possa fornecer ao entendimento; e
mostra a sua mais elevada função na distinção que estabelece
entre mundo sensível e mundo inteligível, assinalando assim os
limites ao próprio entendimento [...].
29Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015
Especulações sobre a moral em Kant e algumas implicações para as Ciências das Religiões
A relevância dessa diferenciação se encontra em, pelo
menos, dois aspectos: o primeiro consiste no fato de que o
objeto de investigação das Ciências das Religiões não se situa,
de um lado, no mundo sensível, físico e empírico da natureza,
de suas determinações e causalidades; de outro, que não se
reduz ao campo da moralidade, isto é, das práticas e seus efei-
tos, realizadas no campo do exercício autônomo e livre da ação
consciente. Isto porque o fenômeno religioso também se dife-
rencia do moral, muito embora possa resguardar elementos
afins. Tal diferenciação pode ser identificada na seguinte afir-
mação de Kant, acerca de sua rejeição do uso da noção de
vontade divina como parâmetro de entendimento da noção
moral. Explicita o filósofo:
[...] o conceito ontológico da perfeição é melhor do que o con-
ceito teológico que faz derivar a moralidade de uma vontade
divina infinitamente perfeita, e isso só porque não podemos
intuir a perfeição da vontade divina, mas porque apenas a po-
demos derivar de nossos conceitos dos quais a moralidade é o
mais nobre [...] (KANT, 2008a, p. 73).
Parece-nos, portanto, que assim como o conceito teoló-
gico de vontade divina não serve para definir o conceito de
moralidade em Kant, também não serve para definir o objeto
específico dos estudos e investigações das Ciências das Reli-
giões, isso porque, assim como o agir moral, o agir religioso
é um modo de existência da razão prática humana. Contra-
riamente, e de forma similar às determinações naturais, as de-
terminações divinas são exteriores ao campo do agir propria-
mente humano.
Portanto, a nosso ver, o pensamento kantiano a um só
tempo consolida o objeto das Ciências das Religiões como um
acontecimento ou fenômeno da ordem da cultura, portanto
do mundo dos homens, assim como possibilita uma linha de
argumentação fundamentada que rejeita veementemente as
máximas e/ou princípios teológicos como parâmetros e/ou re-
gras a serem utilizadas na prática do exercício das pesquisas e
das investigações científicas empreendidas no âmbito das
Ciências das Religiões.
30 Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015
Dafiana do Socorro Soares Vicente Carlos e Erenildo João Carlos
SPECULATION ABOUT THE KANT
MORAL AND SOME IMPLICATIONS
TO RELIGIOUS SCIENCE
A B S T R AC T
The paper discusses the issue of morality in Kant from the book The foun-
dations of the metaphysics of morals (1785). Assuming the Kantian under-
standing that the headquarters of the dignity of the human person would
be found, precisely situated in the ability of every rational being’s autono-
mously act in accordance with the law. In that sense, we seek to under-
stand the Kantian argument, witch transitioned from a practical reason;
reason seated in, to fit between means and ends, which foundation would
be in the range of needs, human appetites and human inclinations, for
each other, based on “duty”, which reason would be found on autono-
mous and free exercise from the rational being. In addition, the paper
highlights some implications of its ideas about moral action for the field
of Religious Science.
K E Y WO R D S
Practical reason. Morality. Religious Science. Philosophy of law. Ethics.
R E F E R Ê N C I A S
BERGER, P. L. Definições sociológicas da religião.
In: BERGER, P. L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria
sociológica da religião. São Paulo: Editora Paulus, 1985.
BERGER, P. L.; LUCKMANN, T. A construção social da
realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 25. ed.
Petrópolis: Vozes, 2005.
DURKHEIM, É. As formas elementares de vida religiosa: o
sistema totêmico na Austrália. Tradução de Pereira Neto. São
Paulo: Paulinas, 1989.
31Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015
Especulações sobre a moral em Kant e algumas implicações para as Ciências das Religiões
ELIADE, M. A religião dos indo-europeus e os deuses.
In: ELIADE, M. Histórias das crenças e das ideias religiosas: da
idade da pedra aos mistérios de Elêusis. Rio de Janeiro:
Zahar, 2010. p. 185-206. v. I
HOCK, K. Introdução à ciência da religião. São Paulo:
Edições Loyola, 2010.
HUME, D. Tratado da natureza humana. Tradução Déborah
Danowski. São Paulo: Unesp; Imprensa Oficial do Estado,
2001.
KANT, I. Resposta à pergunta: o que é Iluminismo?
Tradução Artur Morão. In: KANT, I. A paz perpétua e outros
opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1990.
KANT, I. Crítica da razão pura. Tradução Valério Rohden
e Udo Baldur Moosburger. 4. ed. São Paulo: Nova Cultura,
1991. (Os Pensadores).
KANT, I. Os fundamentos da metafísica dos costumes. Lisboa:
Edições 70, 2007. (Textos Filosóficos, 7).
KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros
escritos. Tradução Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin
Claret, 2008a.
KANT, I. A religião nos limites da simples razão. Tradução
Artur Morão. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008b.
(Textos Clássicos de Filosofia).
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. Lisboa: Edições 70,
1975.
THONNARD, A. A. Compêndio de história de Filosofia.
Porto: Imprimatur, 1968.
WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo.
Tradução Irene de Q. F. Szmrecsanyi e Tomas J. M. K.
Szmrecsanyi. 13. ed. São Paulo: Pioneira, 1999. (Biblioteca
Pioneira de Ciências Sociais – Sociologia).
Recebido em outubro de 2014.
Aprovado em março de 2015.

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Especulações sobre a moral em Kant e implicações para as CR

  • 1. 12 Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015 Dafiana do Socorro Soares Vicente Carlos e Erenildo João Carlos A RT I G O SA RT I G O S
  • 2. 13Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015 Especulações sobre a moral em Kant e algumas implicações para as Ciências das Religiões 11 ESPECULAÇÕES SOBRE A MORAL EM KANT E ALGUMAS IMPLICAÇÕES PARA AS CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES Dafiana do Socorro Soares Vicente Carlos Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: daffyanna@gmail.com Erenildo João Carlos Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor do Departamento de Fundamentação da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPB. E-mail: erenildojc@hotmail.com
  • 3. 14 Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015 R E S U M O O texto discute a questão da moral em Kant a partir da obra Os fundamentos da metafísica dos costumes (1785). Pressupondo o entendimento kantiano de que a sede da dignidade da pessoa humana se encontraria, precisamen- te, situada na capacidade de todo sujeito racional agir autonomamente em conformidade com a lei. Neste sentido, buscamos entender o argumento kantiano, que transitou de uma razão prática, assentada na adequação en- tre meios e fins, cujo fundamento estaria no conjunto de necessidades, apetites e inclinações humanas, para um outro, baseado no “por dever”, cuja razão de ser se encontraria no exercício autônomo e livre do sujeito racional. Além disso, o texto ressalta algumas implicações de suas ideias sobre o agir moral para o campo das Ciências das Religiões. PA L AV R A S - C H AV E Razão prática. Moralidade. Ciências das Religiões. Filosofia do direito. Ética. 1 . I N T RO D U Ç Ã O A questão religiosa tem sido objeto de investigação em várias áreas da produção de saber. A filosofia e a teologia, por exemplo, têm problematizado o fenômeno religioso a partir da especulação lógico-argumentativa, baseada na reflexão exe- gética de textos sagrados, ou na interpretação hermenêutica
  • 4. 15Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015 Especulações sobre a moral em Kant e algumas implicações para as Ciências das Religiões das marcas arqueológicas deixadas ao longo da trajetória hu- mana na Terra. Isso demonstra que o estudo sistemático da religião não é algo recente. Uma das problemáticas, envolvendo a definição de “re- ligião”, reside no fato de que o termo, emergido em um con- texto cultural e histórico bem específico, encontra-se carregado de várias possibilidades semânticas no mundo ocidental. Sabe-se que, desde a antiguidade, alguns significados fo- ram vinculados à marca do significante “religião”, a exemplo da palavra religio1 , comumente associada à ideia de Cultus deorum e religare. O primeiro significado recorre a ideia de “culto aos deuses”, “cultivo” ou “adoração”. Diferentemente, o segundo ressalta o sentido do “[...] ligar de novo, ligar de volta, levar de volta [...]”. Segundo Hock (2010, p. 18), a concepção religare foi adotada por teólogos cristãos, a exemplo de Santo Agosti- nho2 , que entendia a religião como mediação entre o homem e Deus, tendo o papel de reconciliar e “ligar de volta” a alma que se afastou de Deus. Com o advento da Modernidade, a questão religiosa foi – e tem sido – objeto da preocupação das ditas Ciências Humanas e Sociais, a exemplo da Filosofia, da Antropologia, da História, da Sociologia e, mais especificamente, das Ciên- cias das Religiões, que abordam o fenômeno religioso à luz do entendimento de que a noção de sagrado tem delineado con- cepções de mundo, modos de vida peculiares, afetando, assim, a organização das sociedades3 . No campo da Sociologia, por exemplo, Berger (1985) na tentativa de conceituar o termo Religião recorre aos soció- logos Durkheim, Karl Marx, Weber e Luckmann. Durkheim (1989) analisa os fenômenos religiosos a partir da dicotomia sagrado/profano, em que a religião é entendida como um “fa- to social”. Nesse sentido, a religião aparece na sociedade como portadora de símbolos, ritos e crenças, comuns a uma coletivi- dade. Assim, pode-se dizer que a religião é a possibilidade de os indivíduos se organizarem coletivamente. Marx (1975) entendia que a religião é uma realidade his- tórica dependente do desenvolvimento das condições materiais 1 Para Hock (2010), esse termo foi definido por Cicero (106-43 a. C). 2 Hock (2010) assinala o período de Santo Agostinho entre 354-430. 3 Para maior aprofundamento, ver Eliade (2010, p. 185-206).
  • 5. 16 Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015 Dafiana do Socorro Soares Vicente Carlos e Erenildo João Carlos de vida e da consciência dos indivíduos. Em seu Manuscritos econômico-filosóficos, Marx (1975, p. 77) afirmou que o ho- mem faz a religião; a religião não faz o homem. “[...] O homem não é um ser abstrato, fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade [...]”. Para Weber (1999), a religião é mais do que um sistema de crenças, é uma espécie particular do agir coletivo. É depo- sitária de significados culturais, que permitem interpretar a vida, construir uma identidade e dominar o próprio ambiente, tanto individual quanto coletivo. Seu clássico estudo sobre a relação entre o espírito do protestantismo e o desenvolvimento do capitalismo foi uma investigação emblemática das pesqui- sas realizadas no âmbito da Sociologia. Por fim, Berger e Luckmann (2005) assinala que reli- gião é a capacidade de o organismo humano transcender sua natureza biológica por meio da construção de universos de significado objetivos, que obrigam moralmente e que tudo abarca. Com esse entendimento, a religião pode ser vista não somente como um fenômeno social, mas também como um fenômeno, por excelência, antropológico. Uma espécie de au- totranscedência simbólica. Na Antropologia, os estudos de Mircea Eliade (2010) têm contribuído significativamente para o alargamento e aprofun- damento do entendimento da problemática do sagrado, en- quanto acontecimento humano. Nesse sentido, a religião, seus deuses, narrativas e ritos seriam representações imaginárias coletivas das condições de existência dos povos. Na Filosofia, o que seria a religião para Kant? Parece-nos algo mais afeito à concepção teológica do mundo, algo vincu- lado à esfera do mundo não sensível. O fato é que, em virtude da semelhança da conduta social do religioso e da moral, exis- te nos escritos kantianos a possibilidade de entender a religião para além da metafísica, associada à liberdade e decisão huma- na. Influenciado por David Hume, Kant libertou-se da ilusão da metafísica e da dogmática, de modo que suas investigações sobre os fenômenos religiosos se distanciou dos fenômenos resultantes da ação humana, ou, mais precisamente, aproxi- mando-se, assim, das questões próprias da moral. Nesse sentido, o filósofo não se ocupava em investigar tão somente o modo como o homem livre conhecia ou podia conhecer as coisas ou a divindade, mas o que ele fazia, realizava
  • 6. 17Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015 Especulações sobre a moral em Kant e algumas implicações para as Ciências das Religiões consigo, como o outro e a sociedade, tendo em vista alcançar a felicidade ou, em outros termos, o bem supremo. Quanto a isso, na obra A religião nos limites da simples razão, Kant (2008b, p. 11) assinala que: [...] A Moral, enquanto fundada no conceito do homem como um ser livre que, justamente por isso, se vincula a si mesmo pela razão a leis incondicionadas, não precisa nem da ideia de outro ser acima do homem para conhecer o seu dever, nem de outro móbil diferente da própria lei para o observar. Pelo menos é culpa sua se nele se encontra uma tal necessidade a que por nada mais se pode então prestar auxílio; porque o que não pro- cede dele mesmo e da sua liberdade não faculta compensação alguma para a deficiência da sua moralidade. Por conseguinte, a Moral, em prol de si própria (tanto objectivamente, no tocan- te ao querer, como subjectivamente, no que diz respeito ao po- der), de nenhum modo precisa da religião, mas basta-se a si própria em virtude da razão pura prática [...]. Diante do exposto, entendemos que a religião é um acontecimento humano, isso porque tudo aquilo que não é natureza é produto da atividade humana. Considerando essa perspectiva e os pressupostos anteriores, o texto em tela visa refletir sobre a moral em Kant e suas implicações para as Ciên- cias das Religiões. Para tanto, organiza-se em três pontos. O primeiro discorre um pouco sobre a vida e os escritos do filó- sofo, tendo em vista situarmos seus textos no contexto de sua história de vida. O segundo reflete sobre a questão da moral em Kant, organizada em três tópicos, a saber: da razão comum ao conhecimento filosófico; da filosofia moral popular à meta- física dos costumes e, por fim; da metafísica dos costumes à crítica da razão prática pura. O último ponto apresenta algu- mas considerações sobre a implicação das ideias kantianas da moral, no campo das Ciências das Religiões. 2 . K A N T E S E U S E S C R I TO S Kant foi um dos filósofos que mais influenciaram o pen- samento moderno. Nasceu em Königsberg, em 22 de abril de 1724, onde viveu por toda sua vida. Foi professor da Universi- dade de Königsberg durante mais de 40 anos e se aprofundou
  • 7. 18 Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015 Dafiana do Socorro Soares Vicente Carlos e Erenildo João Carlos na filosofia de Gottfried Wilhelm Leibniz e Christian Wolff4 . Segundo Thonnard (1968, p. 624), graças à influência desses filósofos, Kant (1991, p. VIII) “[...] apostava firmemente no valor objetivo da razão, mas sem ter justificado esse valor a si próprio; é dogmatista racionalista [...]”. No contexto do século XVII, em que Kant estava inseri- do, duas ciências hegemônicas apresentavam-se como conheci- mento válido e irrefutável, a saber: a Matemática e a Física. Vale assinalar, que, na contramão da Matemática e da Física, o pensamento metafísico, que circulava na época, visava dar res- postas para “[...] os problemas da realidade última [...]” (KANT, 1991, p. VIII). Contudo não havia unanimidade entre os estu- diosos de que a metafísica fosse capaz de oferecer respostas plausíveis às problemáticas e às indagações dos filósofos. Foi mediante a leitura dos escritos de David Hume (2001) que Kant se libertou da ilusão metafísica, despertando-se do sono dogmático. Nessa ocasião, conforme destaca Thonnard (1968, p. 624), o filósofo da modernidade já havia “[...] aban- donado o idealismo radical de Leibniz para aceitar a existência dos corpos e o espaço absoluto de Newton [...]”. A partir des- sa nova perspectiva filosófica, Kant postula a tese central de sua filosofia de que o conhecimento é produto da atividade humana. Aqui, o papel da experiência ganhava destaque no pensamento filosófico kantiano. Do ponto de vista filosófico, a vida intelectual de Kant foi marcada por vários trabalhos, fruto das suas profundas re- flexões sobre o conhecimento, a moral, o direito, a religião e a estética. Nenhum desses campos escaparam de sua análise crí- tica. Dentre suas produções, as que se destacaram foram: a História geral da natureza e teoria do céu (1755), a Crítica da razão pura (1781), Os fundamentos da metafísica dos costu- mes (1785), a Crítica da razão prática (1788) e a Crítica da faculdade do julgar (1790). Em comum, todas essas obras par- tem do pressuposto de que o conhecimento humano, as for- mas e os limites das faculdades cognitivas do homem come- çam com a experiência, mas não derivam dela. Das obras elencadas aqui, refletiremos sobre a moral a partir das contribuições de Kant em Os fundamentos da metafí- sica dos costumes (1785), em que o autor estabelece as condições 4 Era a filosofia reinante que os seus mestres da universidade lhe ensinaram.
  • 8. 19Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015 Especulações sobre a moral em Kant e algumas implicações para as Ciências das Religiões de possibilidade de uma Lei Moral Universal, a qual teria a função de conduzir a ação do homem emancipado que mani- festa sua autonomia a partir da razão pura prática, que se iden- tifica com as condições, a priori, de sua vontade. 3 . A Q U E S T Ã O DA M O R A L E M K A N T Considerando o que foi exposto anteriormente, pode-se verificar que Kant teve uma vida muito produtiva do ponto de vista das ideias. Seu legado se faz presente na história do pen- samento ocidental, sobretudo no campo da Filosofia, em par- ticular, e das Ciências Humanas e Sociais, em geral. No que tange especificamente à questão da moral, esco- lhemos discutir o assunto a partir de seu livro Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos (2008a), tanto pela possibilidade de fácil aquisição desse livro, para os leitores lei- gos em Kant, quanto pela riqueza de enunciados, teses e argu- mentos que ele contém. Não obstante, saibamos que a questão sobre a moral está presente em outros escritos, a exemplo do livro intitulado Doutrina do direito. A ordem de reflexão e análise que empreendemos em- pregou a estratégia analítica de percorrer o argumento realiza- do por Kant. De modo que, seguindo-o, alcançássemos o en- tendimento das ideias e dos conceitos que ele utilizou para tecer sua posição sobre a questão da moral. Ao optarmos por esse caminho, consideramos importante organizar nosso per- curso analítico a partir da própria estrutura contida no texto de Kant e do uso de alguns fragmentos de seu discurso. Em função desse procedimento, passamos a apresentar os achados de nossa incursão. 3 . 1 DA R A Z Ã O C O M U M AO C O N H E C I M E N TO F I LO S Ó F I C O – S E N S I B I L I DA D E E R A Z Ã O Na primeira seção, intitulada “Transição do conhecimen- to moral da razão comum para o conhecimento filosófico”,
  • 9. 20 Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015 Dafiana do Socorro Soares Vicente Carlos e Erenildo João Carlos nota-se que Kant desenvolveu, inicialmente, uma reflexão so- bre a moral (o valor moral ou moralidade) a partir do entendi- mento vulgar, cotidiano e existencial, passando, gradativamen- te, para uma concepção elaborada a partir do prisma filosófico. Ou seja, construiu um argumento que transitou de uma razão prática, assentada na adequação entre meios e fins, cujo fun- damento estaria no conjunto de necessidades, apetites e inclina- ções humanas, para outra, baseada no dever, cuja razão de ser se encontraria no respeito à lei, uma espécie de virtude própria do ser racional. Nesse percurso introdutório de seu livro, Kant apresen- tou uma série de conceitos e de argumentos que, aos poucos, vão esclarecendo seu próprio entendimento sobre o significa- do da moral, como um campo de possibilidades racionais para o exercício do agir do ser humano com relação a si mesmo e aos outros. Um aspecto interessante do modo como proble- matizou a questão moral se encontra no esforço que fez para encontrar na noção vulgar o valor próprio daquilo que faz com que uma determinada ação possa ser considerada moral, isto é, seus princípios e legalidades essenciais. Como assinala Kant (2008a, p. 37): [...] Assim, pois, chegamos ao princípio do conhecimento mo- ral da razão humana vulgar, princípio esse que a razão vulgar na verdade não concebe abstratamente em uma forma geral, mas o mantém sempre realmente diante dos olhos e dele se serve como padrão para seus juízos [...]. Daí o porquê de ter se dedicado, de um lado, a escrever sobre o que não deveria ser identificado como uma prática moral, a exemplo das ações humanas que objetivam, como fim, a preservação da vida, a eliminação ou redução do sofri- mento e o cultivo da saúde; o acúmulo de riqueza, a honra, o prestígio e o status quo; a filantropia, a caridade, a virtude e a sabedoria. Em resumo, estaria fora do espectro da moralidade todo agir humano orientado por princípios inspirados na bus- ca da felicidade, da realização dos prazeres, do atendimento de necessidades naturais ou culturais, definidos subjetiva e ime- diatamente pelo indivíduo, tendo em vista atender suas incli- nações, seus apetites, instintos, desejos e interesses pela aquisi- ção de certas coisas, objetos, situações e posições agregadas ao
  • 10. 21Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015 Especulações sobre a moral em Kant e algumas implicações para as Ciências das Religiões mundo empírico da sensibilidade e da experiência. Como ele mesmo afirmara: [...] Assim, o valor moral da ação não reside no efeito que dela se espera; também não reside em qualquer princípio da ação que precise tomar seu fundamento determinante neste efeito esperado [...] (KANT, 2008a, p. 28). De outro, ter se concentrado em abstrair do conheci- mento vulgar de moral os elementos próprios da razão moral, a fim de estabelecer, a partir deles, as condições necessárias ao entendimento correto da moral, em uma perspectiva filosófica e metafísica, a saber, da moralidade enquanto campo de prin- cípioseleisobjetivaseuniversais,abstratasegerais,orientadoras da vontade livre e consciente de todos os homens, totalmente distintas das máximas subjetivas fundadas no mundo da sensi- bilidade e da necessidade. Nesse sentido, um aspecto primário da noção de moral se encontra no fato de que o agir tem de ter sua origem no próprio sujeito da ação, isto é, em sua vontade racional. Não seria moral, portanto, toda espécie de ação realizada por um impulso ou uma motivação exterior à decisão racional e cons- ciente do ser humano, seja ela provocada pela necessidade im- posta pelas determinações do mundo natural, seja ela suscitada pelas condições sociopolíticas da cultura em que vive o indiví- duo, a ponto de fazê-lo agir em função de práticas de controle, de dominação, de manipulação, exercidas por meio dos dispo- sitivos ideológicos do convencimento, de violência física e simbólica, ou do uso da força da palavra, do afeto ou do me- do. Nenhuma dessas modalidades de ação se enquadraria na categoria de um agir moral. Sobre a questão da vontade, expli- ca Kant (2008a, p. 22, grifo nosso): [...] Todavia, nessa ideia do valor absoluto da simples vontade há, sem que se leve em conta a utilidade para a sua avaliação, algo de tão estranho que, por mais que esteja perfeitamente confor- me a razão comum, pode suscitar a suspeita de que, no fundo, talvez não haja mais do que alguma ilusão de imaginação pro- duzida por um falso entusiasmo, e de que a natureza tenha sido mal compreendida em seu intuito ao nos conceder a razão por governante da vontade [...].
  • 11. 22 Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015 Dafiana do Socorro Soares Vicente Carlos e Erenildo João Carlos Parece-nos que outro elemento identificado por Kant, como constituinte da moral, se encontra no agir prático da razão vulgar que obedece a regras que prescrevem a escolha dos meios mais adequados para os fins desejados. A adoção e a realização desse princípio como parâmetro orientador da ação, tendo em vista a eficiência da conquista ou do acesso ao objeto desejado, contém em germe a noção do dever, isto é, do res- peito à lei, uma das condições necessárias à existência do valor moral. Por conseguinte, esclarece Kant (2008a, p. 27): [...] Uma ação praticada por dever tem o seu valor moral não no propósito que por meio dela se quer alcançar, mas na máxima que a determina, não depende, pois, da realidade do objeto da ação, mas meramente do princípio do querer segundo o qual a ação foi praticada [...]. A leitura desta seção, permite-nos, por fim, considerar que o conceito de valor moral para Kant, além de ser constituí- do por uma vontade conscientemente guiada pelo respeito à lei, deverá também agregar uma lei com validade universal, isto é, que possa servir de princípio orientador da ação de todos os homens em geral. Supera, assim, o horizonte de uma razão prática, isto é, uma vontade humana, inspirada no pa- râmetro de uma máxima determinada como norte, conduto- ra tão somente de uma ação exclusivamente egoísta, subjetiva e individual, em função de princípios que servem a um só tempo para mim e para todos. Com efeito, assinala Kant (2008a, p. 29): [...] Como tenho subtraído a vontade de todos os estímulos que pudessem afastá-la do cumprimento de uma lei, nada mais resta a não ser a legalidade universal das ações em geral, essa que deve ser o único princípio da vontade, isto é: devo agir sempre de modo que possa querer também que minha máxima se conver- ta em lei universal [...]. Pelo exposto, esperamos ter compreendido e explicitado, a um só tempo, o percurso argumentativo de Kant, no sentido de analisar a questão moral a partir da sensibilidade e da expe- riência, fundamentos do senso comum, e seu entendimento do agir moral, proporcionado pela reflexão filosófica sobre o as- sunto a partir do critério da razão e da especulação crítica.
  • 12. 23Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015 Especulações sobre a moral em Kant e algumas implicações para as Ciências das Religiões 3 . 2 DA F I LO S O F I A M O R A L P O P U L A R À M E TA F Í S I C A D O S CO S T U M E S – D I G N I DA D E E AU TO N O M I A Para resolver o problema de um juízo moral capaz de mover o indivíduo para agir, seja consigo mesmo ou com o outro, a partir de princípios universais, de modo que fosse capaz de, a um só tempo, superar os apetites e as inclinações imediatos e circunstanciais, o agir moral motivado pelo medo e pela tradição, vinculados à sensibilidade, à subjetividade dos interesses singulares de cada sujeito ou da tutela das institui- ções5 , Kant deslocou sua reflexão da esfera filosófico-especula- tiva da moral para o campo da metafísica dos costumes. Nesse lugar, a razão filosófica seria capaz de adentrar naquilo que é próprio ao agir adequadamente moral, isto é, na “[...] relação de uma vontade consigo mesma enquanto essa vontade se determina tão somente pela razão [...]” (KANT, 2008a, p. 57). Em outras palavras, a metafísica dos costumes possibilitaria analisar a razão prática (vontade) “[...] como uma faculdade de se determinar a si mesma agindo em confor- midade com a representação de certas leis [...]” (KANT, 2008a, p. 57-58). Em sua reflexão, Kant distinguiu as coisas das pessoas, assinalando que as coisas são o que são em função do valor relativo que têm, resultante de serem meios acionados para se alcançar determinados fins subjetivos. Diferentemente, as pes- soas seriam, em si mesmas, a fonte de um valor objetivo, a saber, “[...] algo que não pode ser empregado como simples meio [...]” (KANT, 2008a, p. 59). Por terem em si seu próprio fim, “[...] fins objetivos, isto é, coisas cuja existência é, em si mesma, um fim, e um fim tal que em seu lugar não se pode pôr nenhum outro em seu lugar [...]” (KANT, 2008a, p. 59), haveria nesse fim “[...] um princípio prático supremo para a razão [...]”. Como ele mesmo argumenta: [...] Se pois existirem um princípio prático supremo e um impe- rativo categórico no que diz respeito à vontade humana, deverão 5 Sobre Iluminismo, indico a leitura de Kant (1990).
  • 13. 24 Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015 Dafiana do Socorro Soares Vicente Carlos e Erenildo João Carlos ser tais que, da representação daquilo que é necessariamente um fim para todos porque é fim em si mesmo, continua um princí- pio objetivo da vontade, que possa, por consequência, servir de lei prática universal [...] (KANT, 2008a, p. 59). Ora, ao determinar a humanidade e a consciência desse fato como a máxima fundamental do agir moral, Kant resolvia a questão teórica da possibilidade da ação humana ser regida por um princípio universal, isso porque essa concepção incluía uma série de três elementos essenciais à existência da morali- dade na perspectiva da metafísica dos costumes, a saber: a uni- versalidade (todos os homens são, em si, fins e não meios, in- distintamente), a objetividade do princípio (o sentido deste gênero de ação não tem seu fundamento na dimensão subjeti- va marcada pelos apetites e inclinações da sensibilidade huma- na) e, por fim, a razão como condição suprema do agir moral (a ação realizada pelo ser racional é, a um só tempo, particular e universal). Tal visão pode ser enunciada sinteticamente da seguinte maneira: [...] Age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simul- taneamente como fim e nunca simplesmente como meio [...] (KANT, 2008a, p. 59). Decorrente dessa especulação metafísica, resulta o enten- dimento de que a sede da dignidade do ser humano se encontra- ria precisamente situada na capacidade de todo sujeito racional agir autonomamente em conformidade com a lei. Dignidade, a priori, determinada pela condição racional de todo ser huma- no reconhecer-se como possuidor de razão, como sendo onto- logicamente uma pessoa, e como capaz de orientar sua vontade a partir de princípios universais. Nessa ótica, a moralidade seria uma espécie de síntese de várias determinações da razão práti- ca. Nas palavras de Kant (2008a, p. 65): [...] Ora, a moralidade é a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmo, pois só por ela lhe é possível ser membro legislador do reino dos fins. Por isso, a moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas providas de dignidade [...].
  • 14. 25Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015 Especulações sobre a moral em Kant e algumas implicações para as Ciências das Religiões Nota-se, portanto, que o ponto de vista kantiano aponta para uma moralidade constituída pela combinação entre razão e autonomia, humanidade e dignidade. De modo que, de um lado, a autonomia é descrita como “[...] o fundamento da dig- nidade da natureza humana e de toda a natureza racional [...]” (KANT, 2008a, p. 66), de outro, é vista como “[...] a relação das ações com a autonomia da vontade, isto é, com a possível legislação universal por meio de suas máximas [...]” (KANT, 2008a, p. 70). Ao fim e ao cabo, Kant (2008a, p. 70) dizia: [...] toda dignidade da humanidade consiste precisamente nesta capacidade de ser legislador universal, se bem que sob a con- dição de estar ao mesmo tempo submetido a essa mesma legis- lação [...]. Com efeito, fica relativamente evidente o entendimento daargumentaçãoempreendidaporKantacercadapossibilidade de o agir moral ser orientado por princípios universais, isto é, imperativos categóricos, sintetizados na lei objetiva da vontade que age tendo em vista o homem como um fim em si, causa suprema inclusive da ressignificação e revalorização de todas as possíveis ações hipotéticas. 3 . 3 DA M E TA F Í S I C A D O S C O S T U M E S À C R Í T I C A DA R A Z Ã O P R Á T I C A P U R A – VO N TA D E E L I B E R DA D E Na terceira seção, designada “Transição da metafísica dos costumes para a crítica da razão pura”, Kant retoma e situa criticamente as premissas sobre a moral, desenvolvidas nas se- ções anteriores. Conferindo, assim, centralidade ao binômio vontade-liberdade, como as propriedades constitutivas da ra- zão prática. A noção de razão prática é composta por dois predica- dos essenciais, a saber, o da consciência (razão) e o da prática (vontade). Enquanto sujeito consciente, o “eu” do ser humano somente poderia ser constituído pela faculdade da razão, co- mo explicita Kant (2008a, p. 84):
  • 15. 26 Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015 Dafiana do Socorro Soares Vicente Carlos e Erenildo João Carlos [...] Ora o homem encontra realmente em si mesmo uma facul- dade pela qual se distingue de todas as outras coisas e até de si mesmo, à medida que é afetado por objetos; esta faculdade é a razão [Vernunft] [...]. Enquanto sujeito de vontade, o “eu” humano somente poderia ter uma razão que fosse eminente prática, isto é, que possuísse “[...] causalidade em relação aos seus objetos [...]” (KANT, 2008a, p. 81) e fosse livre. De modo que a “[...] liber- dade seria a propriedade dessa causalidade, pela qual ela pode ser eficiente [...]” (KANT, 2008a, p. 79). Ao pressupor assim o ser em si do “eu” humano, a aná- lise kantiana do conteúdo específico da liberdade conclui que a liberdade humana se realizaria efetivamente tão-somente por meio da autonomia, identificada como “[...] a propriedade da vontade de ser lei de si mesma [...]” (KANT, 2008a, p. 79). Tal pressuposição seria necessária à especulação da razão prática pura, no caso de se pensar o ser humano como “[...] um ser racional e consciente de sua causalidade a respeito das ações, isto é, dotado de vontade [...]” (KANT, 2008a, p. 81). Em outras palavras, Kant (2008a, p. 85) afirma: [...] Como ser racional e, portanto, pertencente ao mundo inte- ligível, o homem não pode jamais intuir a causalidade de sua própria vontade senão sob a ideia de liberdade, pois a indepen- dênciadascausasdeterminantesdomundosensível(independên- cia que a razão tem sempre que se atribuir) é a liberdade [...]. Um desdobramento desse modo de entender seria a compreensão de que o ser humano ao se reconhecer como ser racional, ou seja, “[...] considerar-se a si mesmo como inteli- gência [...]”, deveria, necessariamente, “[...] considerar as leis domundointeligívelcomoimperativos[...]easaçõesconformes a esse princípio como deveres [...]” (KANT, 2008a, p. 85-86), agindo, assim, a partir da “[...] ideia de liberdade, isto é, da independência em relação a causas determinantes do mundo sensível” (KANT, 2008a, p. 87). Em outros termos, diz Kant (2008a, p. 90): [...] A causalidade dessas ações reside nele como inteligência e nas leis dos efeitos e ações segundo princípios de um mundo
  • 16. 27Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015 Especulações sobre a moral em Kant e algumas implicações para as Ciências das Religiões inteligível, do qual nada mais sabe senão que neste mundo só dá a lei a razão, e isso o faz a razão pura, independente da sen- sibilidade [...]. Portanto, observa-se que a transição feita por Kant no decurso de sua argumentação sobre a questão da moralidade deságua na defesa intransigente de que o caráter eminentemen- te puro da razão prática se encontraria na superação de uma vontade orientada pelas máximas originadas no mundo da sen- sibilidade, no mundo empírico, que, concretamente, se efeti- varia no ato de desejar e satisfazer o querer sensível por meio da busca e da conquista dos objetos da inclinação e do apetite, que constituem a subjetividade específica de cada ser humano. Li- vre das determinações do mundo sensível, o agir humano não teria seu motor fora de si, mas em si, ou seja, na razão prática. Assim, concluímos, afirmando com Kant (2008a, p. 93): [...] pressupondo a liberdade da vontade de uma inteligência, a consequência necessária é a autonomia dessa vontade como a con- dição formal, sob a qual tão-somente pode ser determinada [...]. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: IMPLICAÇÕES DA NOÇÃO DE MORAL KANTIANA PARA AS CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES A reflexão e análise que empreendemos sobre a noção de moralidade em Kant, a partir de seu livro Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos, permitiu que chegásse- mos a algumas conclusões acerca das contribuições de seu le- gado para as Ciências das Religiões, haja vista, como o próprio título deste texto enuncia, nosso intuito principal de conhecer algumas ideias de Kant sobre a moral residiria em poder, a partir dele, entender um pouco mais o objeto das investiga- ções realizadas no campo das Ciências das Religiões. Nesse sentido, os achados obtidos, mediante a escavação do livro kantiano analisado, possibilitaram elementos que nos permitem concordar com a ideia de que Kant, ao conceber a razão humana como princípio motor de sua vontade, consolida
  • 17. 28 Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015 Dafiana do Socorro Soares Vicente Carlos e Erenildo João Carlos a visão, compartilhada por vários estudiosos das Ciências Hu- manas, Sociais e das Religiões, de que a cultura é o produto da atividade humana, isto é, de que a razão prática humana se efe- tiva no campo moral, técnico e simbólico. De modo que, com Kant, podemos, sim, justificar e explicar o discurso de que o mundo humano é o resultado da própria atividade humana. Assim sendo, não seria diferente o entendimento da exis- tência da religião no seio da história. Ou seja, a religião, assim como outros elementos que integram a cultura, seria também o produto da atividade humana, de sua prática, de sua capacida- de criativa. Tal possibilidade indica que o objeto de estudo das Ciências das Religiões seria constituído por um conjunto de produções culturais feitas pelo ser humano, que conservam características próprias do modo como o ser humano tem pra- ticado sua relação com a natureza e com os outros seres huma- nos. Tais produtos seriam as crenças, os valores, os significa- dos, as práticas e os ritos, concepções que funcionariam como máximas e/ou leis agrupadas em torno da designação “religio- sa”, cabendo, portanto, às Ciências das Religiões investigar, a partir de parâmetros científicos, esse fenômeno humano. É significativa para a determinação dos estudos das Ciên- cias das Religiões, a diferenciação estabelecida na reflexão kan- tiana entre o mundo sensível ou, mais especificamente, o campo da sensibilidade, constituído pela natureza e suas causalidades, ou seja, suas leis, necessidades e determinações naturais; e o mundo da razão, a exemplo do mundo moral. Essa diferença corrobora não somente a existência de cada um desses mundos, mas também conserva suas especificidades e propriedades, as quais funcionam como divisores de águas entre eles: aquele, independente da razão e da vontade; e este, resultado delas, portanto, da prática, da autonomia e da liberdade humana. Se- gundo Kant (2008a, p. 84-85), essa distinção é uma das fun- ções da razão: [...] A razão, de modo diverso, mostra sob o nome das ideias uma espontaneidade tão pura que por ela excede em muito tudo o que a sensibilidade possa fornecer ao entendimento; e mostra a sua mais elevada função na distinção que estabelece entre mundo sensível e mundo inteligível, assinalando assim os limites ao próprio entendimento [...].
  • 18. 29Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015 Especulações sobre a moral em Kant e algumas implicações para as Ciências das Religiões A relevância dessa diferenciação se encontra em, pelo menos, dois aspectos: o primeiro consiste no fato de que o objeto de investigação das Ciências das Religiões não se situa, de um lado, no mundo sensível, físico e empírico da natureza, de suas determinações e causalidades; de outro, que não se reduz ao campo da moralidade, isto é, das práticas e seus efei- tos, realizadas no campo do exercício autônomo e livre da ação consciente. Isto porque o fenômeno religioso também se dife- rencia do moral, muito embora possa resguardar elementos afins. Tal diferenciação pode ser identificada na seguinte afir- mação de Kant, acerca de sua rejeição do uso da noção de vontade divina como parâmetro de entendimento da noção moral. Explicita o filósofo: [...] o conceito ontológico da perfeição é melhor do que o con- ceito teológico que faz derivar a moralidade de uma vontade divina infinitamente perfeita, e isso só porque não podemos intuir a perfeição da vontade divina, mas porque apenas a po- demos derivar de nossos conceitos dos quais a moralidade é o mais nobre [...] (KANT, 2008a, p. 73). Parece-nos, portanto, que assim como o conceito teoló- gico de vontade divina não serve para definir o conceito de moralidade em Kant, também não serve para definir o objeto específico dos estudos e investigações das Ciências das Reli- giões, isso porque, assim como o agir moral, o agir religioso é um modo de existência da razão prática humana. Contra- riamente, e de forma similar às determinações naturais, as de- terminações divinas são exteriores ao campo do agir propria- mente humano. Portanto, a nosso ver, o pensamento kantiano a um só tempo consolida o objeto das Ciências das Religiões como um acontecimento ou fenômeno da ordem da cultura, portanto do mundo dos homens, assim como possibilita uma linha de argumentação fundamentada que rejeita veementemente as máximas e/ou princípios teológicos como parâmetros e/ou re- gras a serem utilizadas na prática do exercício das pesquisas e das investigações científicas empreendidas no âmbito das Ciências das Religiões.
  • 19. 30 Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015 Dafiana do Socorro Soares Vicente Carlos e Erenildo João Carlos SPECULATION ABOUT THE KANT MORAL AND SOME IMPLICATIONS TO RELIGIOUS SCIENCE A B S T R AC T The paper discusses the issue of morality in Kant from the book The foun- dations of the metaphysics of morals (1785). Assuming the Kantian under- standing that the headquarters of the dignity of the human person would be found, precisely situated in the ability of every rational being’s autono- mously act in accordance with the law. In that sense, we seek to under- stand the Kantian argument, witch transitioned from a practical reason; reason seated in, to fit between means and ends, which foundation would be in the range of needs, human appetites and human inclinations, for each other, based on “duty”, which reason would be found on autono- mous and free exercise from the rational being. In addition, the paper highlights some implications of its ideas about moral action for the field of Religious Science. K E Y WO R D S Practical reason. Morality. Religious Science. Philosophy of law. Ethics. R E F E R Ê N C I A S BERGER, P. L. Definições sociológicas da religião. In: BERGER, P. L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Editora Paulus, 1985. BERGER, P. L.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 25. ed. Petrópolis: Vozes, 2005. DURKHEIM, É. As formas elementares de vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. Tradução de Pereira Neto. São Paulo: Paulinas, 1989.
  • 20. 31Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 13-31, jan./jun. 2015 Especulações sobre a moral em Kant e algumas implicações para as Ciências das Religiões ELIADE, M. A religião dos indo-europeus e os deuses. In: ELIADE, M. Histórias das crenças e das ideias religiosas: da idade da pedra aos mistérios de Elêusis. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 185-206. v. I HOCK, K. Introdução à ciência da religião. São Paulo: Edições Loyola, 2010. HUME, D. Tratado da natureza humana. Tradução Déborah Danowski. São Paulo: Unesp; Imprensa Oficial do Estado, 2001. KANT, I. Resposta à pergunta: o que é Iluminismo? Tradução Artur Morão. In: KANT, I. A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1990. KANT, I. Crítica da razão pura. Tradução Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. 4. ed. São Paulo: Nova Cultura, 1991. (Os Pensadores). KANT, I. Os fundamentos da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 2007. (Textos Filosóficos, 7). KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Tradução Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2008a. KANT, I. A religião nos limites da simples razão. Tradução Artur Morão. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008b. (Textos Clássicos de Filosofia). MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1975. THONNARD, A. A. Compêndio de história de Filosofia. Porto: Imprimatur, 1968. WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução Irene de Q. F. Szmrecsanyi e Tomas J. M. K. Szmrecsanyi. 13. ed. São Paulo: Pioneira, 1999. (Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais – Sociologia). Recebido em outubro de 2014. Aprovado em março de 2015.