O documento faz várias referências a obras de arte famosas, comparando descrições e cenas no texto a elementos encontrados nos quadros. Os personagens são comparados a figuras em pinturas de artistas como Bosch, Matisse, Picasso, Modigliani e outros, destacando a influência da arte visual na narrativa.
2. “Chorou na noite de fim de ano de
1970, porque dias depois tinha que
partir para a guerra. Dessa
experiência tirou os ensinamentos
mais terríveis, mas também algumas
das melhores coisas da sua vida: a
descoberta da amizade e a
aprendizagem da solidariedade.” (In,
Conversas com António Lobo Antunes,María Luisa Blanco, Lisboa, Dom
Quixote, 2002, p.47)
3. “É esquisito falar-lhe disto enquanto lhe
toco os seios, lhe percorro o ventre,
procuro com os dedos a junção húmida
das coxas onde realmente o mundo
começa(...)” (C.J.187)
5. “O restaurante do Jardim,(...) encontrava-
se ordinariamente repleto,(...), de grupos
excursionistas e de mães impacientes, que
afastavam com os garfos balões à deriva
como sorrisos distraídos, a arrastarem
pontas de guita atrás de si, tal as noivas
volantes de Chagall a bainha dos vestidos”
(C.J.10)
7. “Por essa época, eu alimentava a
esperança insensata de rodopiar um dia
espirais graciosas em torno das hipérboles
majestáticas do professor preto, vestido de
botas brancas e calças cor-de-rosa,
deslizando no ruído de roldanas com que
sempre imaginei o voo difícil dos anjos de
Giotto, a espanejarem nos seus céus
bíblicos numa inocência de cordéis.” (C.J.13)
8.
9. “Em Elvas, à ilharga de um aspirante
gordo e inseguro como um pudim flan na
borda de um prato, desejei evaporar-me
nas muralhas da cidade à maneira dos
violinistas de Chagall no azul espesso da
tela, batendo as desajeitadas asas de cotão
das minhas mangas militares...” (C.J.21)
11. “...mais meia garrafa e cuidar-nos-íamos
Vermeer, tão hábeis como ele para
traduzir, através da simplicidade
doméstica de um gesto, a tocante e
inexprimível amargura da nossa
condição.” (C.J.32)
13. “...no meio de um círculo cubatas
aparentemente desertas, no silêncio carregado
de ruído que África tem quando se cala, e
dezenas de larvas informes principiavam a
surgir, manquejando, arrastando-se, trotando,
dos arbustos, das árvores, das palhotas, dos
contornos indecisos das sombras, larvas de
Bosch de todas as idades em cujos ombros se
agitavam, como penas, franjas de farrapos,
avançando para mim à maneira dos sapos
monstruosos dos pesadelos das crianças, a
estenderem os cotos ulcerados para os frascos
15. “Você, por exemplo, que oferece o
ar asséptico competente e sem caspa
das secretárias de administração,
era capaz de respirar dentro de um
quadro de Bosch, sufocada de
demónios, de lagartas, de gnomos
nascidos de cascas de ovo, de
gelatinosas órbitas assustadas?”
(C.J.62, 63)
17. “...sob o olhar indiferente de mulheres de
dentes serrados em triângulo, acocoradas
na cama no alheamento de perfil de certos
retratos de Picasso, em cuja curva dos
lábios flutuam Guernicas desdenhosas.”
(C.J.49)
20. “Talvez o tipo da mesa ao lado, que o
décimo Carvalho Ribeiro Ferreira inclina
dezassete graus para bombordo na rigidez
de andor de uma torre de Pisa de casaco
de veludo à beira de queda catastrófica,
seja Amadeo Modigliani a procurar no
fundo do cálice um rosto assassinado de
mulher,...” (C.J.53)
22. “...de quando em quando e by
appointment of Her Majesty the Queen, o
reflexo do génio, e sobre as nossas
cabeças ungidas tombam as línguas de
fogo de Johnny Espírito Santo Walker:
Utrillo, que amarrotava postais ilustrados
enquanto pintava...” (C.J.54)
28. “O furriel enfermeiro, a quem a vista
do sangue enjoava, ficava à porta da
sala de operações improvisada, dobrado
como um canivete, a vomitar num
banco o feijão do almoço, e eu, tenso de
raiva, imaginava a satisfação da família
se lhe fosse dado observar, em conjunto
e de chapéu de aba larga como na
Lição de Anatomia de Rembrandt, o
médico competente e responsável que
desejavam que eu fosse,...” (C.J.55)
30. “...ver os reformados do dominó na
eterna postura dos jogadores de
cartas de Cézanne, e sentir que se
deixou irremediavelmente de
pertencer a esse mundo nítido e
directo onde as coisas possuem
consistência de coisas, sem
subterfúgios nem subentendidos...”
(C.J.62)
32. “Deve ter uma gravura de Vieira da
Silva, na parede do quarto e o
retrato do cineasta sem talento, com
quem mantém uma relação
desiludida, à cabeceira, deve
acordar de manhã com torpor de
crisálida titubeante...” (C.J.68)
34. “...Olhos flutuando à deriva acima
dos cognacs, olhos acusando os
próprios rostos defuntos, desertos e
sem nuvens como os dos quadros
de Magritte(...) mulheres e homens
em cuja desilusão defensiva e
maligna me recuso a reconhecer a
imagem fragmentária da minha
própria derrota...” (C.J. 74)
36. “Deixe-me pagar a conta.(...) e tome-me
pelo jovem tecnocrata ideal português
79, inteligência tipo Expresso, isto é,
mundana, superficial e inofensiva,
cultura género Cadernos Dom Quixote,
ou seja, prolixa, esquisita e fininha,
opção política Fox-Trot, Pedras d’El-
Rei e Casa da Comida, uma gravura de
Pomar, uma escultura de Cutileiro e um
gramofone de campânula no
apartamento.” (C.J.89)
38. “...mas existe também, sabe como é,
essa claridade difusa, volátil,
omnipresente, apaixonada, comum
aos quadros de Matisse e às tardes
de Lisboa, que como o pó de África
atravessa as frinchas, as janelas
cerradas, os intervalos moles que
separam uns dos outros os botões
da camisa,...” (C.J.90)
40. “...o excesso de luz do aeroporto
impedia-me de me confrontar nos
vidros com a minha silhueta
hesitante,(...), com a gravata que as
muitas horas de avião haviam
decerto desviado a bissectriz dos
colarinhos, transformando-a num
trapo mole como os relógios de
Dali, com as rugas que se
acumulam em torno das
pálpebras...” (C.J.95)
42. “A voz feminina, vinda de nenhum
lado, que anuncia em três línguas a
partida dos aviões, flutuava,
imaterial, por sobre a minha
cabeça, idêntica a uma nuvem de
Delvaux, até se dissolver a pouco e
pouco numa espuma de sílabas...”
(C.J.97)
44. “...esta cidade absurda, (...) onde os
objectos vogam suspensos na luz
como nos quadros de Matisse,
obrigava-me a tropeçar de quarto
em quarto à maneira de uma
borboleta entontecida, passando
uma palma mole pela lixa repelente
da barba.” (C.J.148)
46. “...é como se essa melancólica proeza
me justificasse a existência, como se
sentar-me aqui, noite após noite, diante
do espelho, a observar no vidro os
vincos amarelos das olheiras e as rugas
que em torno da boca se multiplicam
numa teia misteriosa, idêntica à que
cobre de leve os quadros de Leonardo,
me assegurasse que ao fim de tantos
anos de deixar-te permaneço vivo...”
(C.J.170)
48. “Conheci-te numa manhã de
sábado, Sofia, e a tua gargalhada
de prisioneira livre, harmoniosa e
estranha como o voo dos corvos que
Van Gogh pintara antes de se matar
no meio do trigo e do sol, tocou-me
como um gesto de irreprimível
ternura me toca se me sinto mais
só...” (C.J.172,173)
50. “E os andares iluminados, (...),
fazem-me sentir irremediavelmente
de fora de milhares de pequenos
universos confortáveis, em que me
seria grato incluir, num canto de
sofá, diante de uma reprodução de
Miró, a minha solidão
envergonhada de cão tímido, a
arquear constantemente o dorso de
falsas zangas submissas.” (C.J.225)