Paulo é vítima de fake news e o primeiro culto num domingo
Oscar wilde
1. OSCAR WILDE: A ESTÉTICA
DA ESFINGE
publicado por Fábio Pinheiro
Jorge Luís Borges dizia que um homem só morre efetivamente, depois que o
último homem que o conheceu morre também. Mutatis mutandis, Wilde
conheceu a eternidade pela permanência e vivacidade de suas obras; na
literatura inglesa e na literatura mundial, tem ele seguramente, o seu público
perene.
“Sonhei que pertencia, somente por um dia, da França, a real nobreza. De
pronto, acordei assustado... trechos da famosa Marselhesa” Santiago
Badariotti
(I)
Há dois meses, na caixa de entrada do e-mail, recebi uma mensagem sem
assunto. No corpo da mensagem, uma notícia difícil de se lidar: “oscar wilde
morreu”. Aquele que escreveu Salomé, A Mulher sem Importância, A Alma do
Homem sob o Socialismo, estava debaixo da terra, possivelmente reclamando
dos adornos fúnebres: “Esse não é o azul de Poussin, diabos!”. Para mim, não
importava que Wilde já não estivesse entre nós há 116 anos, a surpresa é de
origem mais significativa: o espectro do esteta irlandês estaria de fato
sepultado em nosso tempo presente?
Sua fortuna crítica responde com uma negativa. Concordo. Wilde, ainda que
conhecido tanto quanto Shakespeare no mundo anglófono, fora sujeito à uma
série incontável de indisposições críticas (na falta de um termo melhor). Para
alguns destes, sua obra só estaria à salvo do esquecimento geral, em função
do escândalo que o condenou, ou que esta não passaria de mera cópia de
produções já muito difundidas à época. A figura controvertida de Wilde enseja
até os dias atuais impressões diversas. No obituário feito pelo New York
Times, por exemplo, de lauda inteira, algumas palavras-chaves acerca da vida
e obra de Wilde se destacam: brilhantismo, excêntrico, sensível, astuto, irônico,
polêmico, malicioso e grande poeta. Certamente, o elemento do paradoxo salta
aos olhos; as questões suscitadas por sua arte e por sua vida emprestam a sua
obra um quê de atrevimento e sagacidade.
Por meio de um inescrupuloso apud de minha parte – que J. G. Merquior não
leia isso-, da psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, Jorge Luís
Borges dizia que um homem só morre efetivamente, depois que o último
homem que o conheceu morre também. Mutatis mutandis, Wilde conheceu a
eternidade pela permanência e vivacidade de suas obras; na literatura da
Inglaterra e na literatura mundial, tem ele seguramente, o seu público perene.
Nas palavras de M. Yourcenar, autora de A Obra ao Negro: “os voluptuosos
também têm o seu senso de eterno”. O texto esboçará uma discussão
brevíssima em torno da produção wildeana, e de sua trajetória.
2. (II)
Oscar Fingal O’Flahertie Wills Wilde nasceu em Dublin, na Irlanda, a 16 de
outubro em 1854. Com educação na prestigiosa Trinity College dublinense,
Wilde formou-se com dupla distinção em Oxford (a saber: a primeira,
em Debates Clássicos, e a segunda, no estudo de Humanidades). Ainda em
Oxford, Wilde conheceu as principais ideias que lhe serviriam de orientador
moral para sua produção e estilo de vida. Entre as influências mais destacáveis
dessa época, a de John Ruskin e sua doutrina moral do belo, figura como a
principal. Adotando a filosofia da “arte pela arte”, Wilde vestiu a roupa do dândi,
amante do alto estetismo e, durante quase toda a vida, seguiu à risca seus
princípios.
Ainda na faculdade, Wilde produziu peças e poemas razoavelmente exitosos,
angariando elogios e sarcasmos críticos. Em 1884, casou com Constance
Lloyd, filha de Horace Lloyd, conselheiro da Rainha, que também se inclinava
para os mesmos gostos estéticos do marido (como sua preferência pelo uso de
trajes pré-rafaelitas). Já tendo conhecimento do que produziam os decadentes
franceses, em especialBaudelaire, Wilde orientou seus escritos para um clima
soturno, envoltos de uma sombra cruel e triste. O Retrato de Dorian Gray,
lançado em 1891, é uma das mais belas e perturbadoras fábulas sobre a
lascividade e dissimulação humana: “dê-se uma máscara a um homem e ele
dir-nos-á a verdade”. O tema do homossexualismo já se mostrava uma tônica
nas obras anteriores de Wilde, todavia, é em Dorian Gray que a tinta revela
contornos mais claros.
Wilde aparentava ser, antes de tudo, um bissexual, e durante algum tempo
parece não ter tido consciência disso. Seu romance de toda a vida, com
o Lorde Alfred Douglas – Bosie-, coincidiu com o período mais fértil da
produção de Oscar, assim como de sua escalada no meio aristocrático.
Lapidador inveterado dos bens de Wilde, Bosie mostrou-se desde o começo de
sua relação, alguém pouco confiável e indolente. O pai de Alfred, o Lorde
Queensberry, mantinha um vínculo conturbado com o filho; sabendo de seu
envolvimento com o conhecido dramaturgo, intimou que Wilde afastasse-se de
Bosie, com a ameaça de mover uma ação por injúria.
O espírito contestador de Wilde não se curvou às pressões do velho lorde.
Levado à julgamento, o autor de O Marido Ideal vislumbra os primeiros
desabamentos de sua carreira; desgraçado pela condenação por indecência
grave, a dois anos de trabalho forçado no cárcere de Wabdsworth, Wilde
definha velozmente e testemunha sua decadência e esquecimento. Ainda que
se correspondesse com seus amigos – Bosie, seu mais frequente destinatário,
nunca o respondeu enquanto estava preso-, sofreu intensamente com o
isolamento e o estilo de vida impiedoso da prisão. Ali, Wilde escreveu suas
últimas e mais tocantes obras: o poema Balada do Cárcere de Reading e De
Profundis, um comovente e agonizante livro epistolar.
3. (III)
Em O Artista na Prisão, um precioso ensaio de Albert Camus sobre Wilde, o
autor de O Homem Revoltado estabelece dois períodos significativos da
produção do dândi: o primeiro, denominado de “solar”, diz respeito à vida
estetizada – efêmera e hedonista- e aristocrática levada por Oscar, elaborada
em uma primeira fase artística, enquanto o segundo, intitulado “lunar”,
corresponderia ao aprofundamento filosófico da visão de mundo wildeana; a
saber: com sua prisão, Wilde rejeita os ornamentos e enfeites pueris de sua
escrita (uma projeção clara da antiga vida que queria apagar) que antes
orientavam suas preocupações literárias, e que tanto seus pares estetas
estimavam. Wilde, com o passar do tempo, não se contenta apenas com o
lugar de apurado taxinomista da sociedade britânica, mas de um notável
entomologista. A linguagem de alabastro, entretanto, não se modifica. É
preciso ainda, saber “brincar graciosamente com a palavras”, mas
redirecionando essa virtuose sintática para um plano mais subterrâneo da
condição humana.
Para Camus, Wilde teria se afastado da pertinência do real para viver sob os
holofotes de uma beleza fugaz. Oscar teria desprezado a seriedade do mundo
e a si mesmo em função de seu ideal de arte. O máximo do regozijo que
conhecia era o de se vestir com as roupas da moda e exageradas, expilando
seus aforismos espirituosos (ver alguns deles no apêndice) e frequentando os
jantares refinados e os salões londrinos. Talvez a infância paupérrima de
Camus, na velha Argélia colonial, tenha lhe estimulado a formação de um
espírito anti-burguês e crítico das afetações e superficialidades da elite (esta
hipótese parece menos polêmica e mais aceitável que a primeira). Wilde, como
na hilária esquete dos Monty Python, bajulava e atacava a aristocracia
britânica, suas idiossincrasias e chistes. A relação de morde-e-assopra com a
elite da sociedade inglesa durou cerca de uma década, período no qual Wilde
era reconhecido como um prodigioso gênio e inestimável entertainment.
A sua consagração se fez ainda em vida, diferentemente de tantos outros
brilhantes autores que têm suas obras reconhecidas e seus nomes
consagrados somente depois de sua morte. A criação da obra O retrato de
Dorian Gray foi um marco desde o início. Nela, nas camadas abismais,
encontramos o grande devaneio de um homem em luta com seu próprio fim,
tirando dentro de si a morte e o amor; e que secretamente, flui o inesgotável e
ardente simbolismo narcisista – pela ótica da psicanálise clássica, Gray rejeita
violentamente os vínculos e as dependências, direcionando a libido a si
mesmo, tendo como resultado a formação de um narciso de morte; uma pulsão
de self-destruction avassaladora e inevitável-, dando vazão às paixões
aniquiladoras. Desvio: Freud, claramente, foi um mestre na conversão do
eudemonismo no hedonismo; um outro texto, em que lêssemos Wilde
juntamente com Freud, seria bastante empolgante e profícuo. Sem promessas,
aguardemos. Fim do desvio.
O livro, portanto, poderia parecer um ataque à doutrina do estetismo do próprio
Wilde, que a “arte pela arte” conduz indubitavelmente à “sensação pela
4. sensação”; que a busca pela satisfação da própria sensibilidade traria a
provável felicidade no crime (espero que o spoiler não incomode). Lembremos
do conselho de Liêvin à Anna Karenina: “é um erro misturar a felicidade com
satisfação”. Wilde, à seu modo, também cultivava essa intuição, ainda que a
luxúria lhe trouxesse até ali, mais conforto e completude. Fundamentalmente,
Wilde operava, da maneira mais elevada, uma dissecação e provocação da
sociedade, e uma revisão radical de sua ética. Conhecendo todos os segredos,
conseguia derrubar todas as máscaras.
(IV)
Nos majestosos teatros londrinos, o público idolatrava suas peças como a um
totem. É esse Wilde que será lançado para uma prisão escura e saburrenta,
sofrendo de insônia, passando fome e sem os calorosos aplausos que até
então recebera. As pessoas cujas vidas ele ajudara a construir esqueceram-no;
o amante fugiu no primeiro sinal de falência, a esposa manteve-o a distância, e
morreu sem saber o paradeiro dos filhos. Homossexual e falido, Wilde
encarnava dois dos mais desprezados grupos sociais da época. Arthur
Koestler, autor de O Zero e o Infinito, dizia que os escritos de um autor só
tornar-se-iam relevantes, caso o mesmo tivesse passado por uma experiência
de cárcere e isolamento. Koestler (o irascível, nas palavras de George
Steiner), decerto, não teve conhecimento da produção do nossoGraciliano –
pobre Arthur-, mas quanto à Wilde, a posição parece jogar luzes acerca de seu
derradeiro período. Entretanto, já é hora de concluir.
Oscar Wilde permanece, sem sombra de dúvidas, a despertar o interesse
contínuo do público por sua produção. Na imortalidade de suas peças,
revividas com êxito exemplar nos últimos tempos (no cinema, sugiro duas
interessantes produções: a cinebiografia Wilde, de 1997, dirigido por Brian
Gilbert; e Salomé, de 2011, documentário dirigido por Al Pacino); assim como
de suas obras não teatrais, encontrando uma recepção calorosa em um novo
século imantado por uma diferente sensibilidade estética. Como personagem
histórico e literário, o lugar de Wilde é único. Sem ele, não podemos
compreender o Movimento Estético de 1880, e nem o Decadente de 1890. Sua
obra, como ele tanto ansiava, subsistiu: “E lágrimas alheias por ele encherão/ A
urna da piedade há muito violada/Pois os que prantearem serão proscritos/E
proscritos sempre pranteiam” (ELLMANN, 1989, 507)
Após os 3 anos e meio de sua libertação, Wilde morreu, aos 46 anos, a 30 de
novembro de 1900, no pequeno Hotel d’Alsace, em Paris. De todos os
obituários que lhe foram dedicados, talvez se incomodasse mesmo com o que
recebi em minha caixa de mensagens, o póstumo, escrito pelo meu antigo
professor, admirador obcecado do irlandês: “oscar wilde morreu” Seco,
rigoroso, urgente; quase brutal, como quem anuncia uma tragédia, mas em
silêncio. Entretanto, pensando em como Wilde tentou escapar do mundo no fim
de sua vida, imagino que ele chegasse a apreciar até a minúscula no nome.
Ou, elegantemente, pedisse: “Inclua ao menos um adjetivo, filho.”
5. Epílogo
Em uma cadeira na faculdade, tive que entregar um ensaio sobre um tema
qualquer ligado à literatura. Optei por tratar de Wilde, especificamente De
Profundis, a sua mais sorumbática obra; um notável réquiem epistolar. O
trabalho, que poderia ser feito em grupo, foi dividido com outra pessoa. Tive
sorte: Era a menina mais inteligente da sala. E sim, a mais bonita. Tiramos dez
no fim das contas. Se bem que, àquela altura, para nós, a nota era o que
menos importava. Já tínhamos ganhado um para o outro. Obrigado, Wilde. Fim
da anedota lírica e do texto.
Apêndice
Publicado pela editora Sextante, o livro "Oscar Wilde para inquietos" traz uma
reunião de máximas escritas pelo dândi irlandês. Ao todo, são incluídas 99
frases. Destacarei aqui algumas delas:
1- Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe.
2- Seja você mesmo. Todas as outras personalidades já têm dono.
3- O mais terrível não é termos nosso coração partido (pois corações foram
feitos para ser partidos), mas transformar nossos corações em pedra.
4- Como não foi genial, não teve inimigos.
5- Trabalho é aquilo que as pessoas fazem quando não têm nada para fazer.
7- Há coisas que são preciosas justamente porque duram pouco.
8- É muito difícil não ser injusto com quem amamos.
9- O que nos absolve é a confissão, não o padre.
10- A alma nasce velha e se torna jovem. Eis a comédia da vida. O corpo
nasce jovem e se torna velho. Eis a tragédia da alma.
Sugestão de Leituras:
1- WILDE, Oscar. Obra Completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2003.
2- ELLMANN, Richard. Oscar Wilde. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
3- CAMUS, Albert. A Inteligência e o Cadafalso. São Paulo: Record,1998.
4- YOURCENAR, Marguerite. Notas à Margem do Tempo. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1988.
5- ROUDINESCO, Elisabeth. Sigmund Freud: Na sua época e em nosso
tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
7- RUSKIN, John. A Economia Política da Arte. São Paulo: Record, 2004.