O documento descreve a trajetória de Marco Aurélio Marcondes como militante do cinema no Brasil, desde os tempos de cineclubista na década de 1970 até seus projetos mais recentes de distribuição de filmes e do MovieMobz, um circuito de exibição alternativa on demand. Ele sempre lutou por tornar o cinema mais acessível ao público e por afirmar o cinema nacional.
1. Domingo, 4 de dezembro de 2011 O GLOBO RIO ●
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PERFIL • MARCO AURÉLIO MARCONDES, Exibidor e distribuidor de cinema
“
Fotos de Arnaldo Bloch
Na igreja metade
dos convidados
usava sandálias e
bolsas a tiracolo.
Outra metade era
uma galera da
pesada, Almirante
Rademaker, Delfim
Netto... Foi muito
gozado
O eterno ‘homem-cineclube’
Dos circuitos paralelos ao cinema ‘on demand’, a trajetória de um militante dos filmes
“
Arnaldo Bloch — A gente era comunista bares, destacando-se em per- achou que ia sair preso do ca- na Flor”, arrumando problema
arnaldol@oglobo.com.br mas, ao mesmo tempo, gostava formances extremas como su- samento. Um desbunde. com os partidários mais puris-
‘D
de cinema, de ver “Blow Up”, bir na frágil superfície de uma Oriundo da turma do Leme, tas do cinema de autor.
ia quinze de no- cinco, seis vezes de enfiada. mesinha do Bracarense para o jornalista Artur Xexeo, que — Aquilo era um pacto com
vembro é uma da- Então, o caminho foi esse ati- discursar na ocasião do nasci- já foi cineclubista, retrata Mar- a ditadura, éramos cooptados,
ta bem estranha vismo de bairro, rodando as mento de uma neta. condes como integrante de e eu ainda pertencia ao PCB. Se
para marcar entre- embaixadas francesa, america- O cineclube funcionava no A gente era uma espécie exótica dentro da era assim, que fosse, ao menos,
vista”, argumentei, mas Marco na, italiana, tcheca, russa, anexo da igreja, depois do sa- fauna cinematográfica: pela afirmação do cinema na-
Aurélio Marcondes, 61 anos, quem tivesse rolos de filmes. lão paroquial, e se valia da bên- comunista mas, ao — Ele gosta não tanto de ci- cional de grande público.
um dos mais obstinados ho- Esse impulso depois se multi- ção de Monsenhor Vidal, ainda nema, de filmes, mas da expe-
mesmo tempo,
mens de cinema do Brasil, in-
sistiu: a cidade estava vazia,
plicou, com o Macunaíma, o
Leme, e ganhou o Brasil.
vivo hoje. O momento funda-
dor foi o do batizado, numa se- gostava de cinema,
riência cinematográfica, de li-
dar com cinema. Tiete de Lenin,
ideal para uma viagenzinha
bergmaniana à Tijuca, onde fi-
Diante da igreja, fechada e
deserta no feriado, ele acende
ção plenária em 1973.
— A votação foi acalorada, de ver ‘Blow Up’,
Não está longe da verdade:
Marcondes se diz entusiasta Dahl e Kroc
ca a Igreja São Francisco Xa- um cigarro e põe os óculos es- estávamos entre Glauber Ro- das estreias, da reação do pú-
vier, sede, nos anos 70, do Ci- curos, preocupado com um cha e Leila Diniz, morta no ano cinco, seis vezes blico, dos meandros que levam ● Depois, com o fim da estatal,
neclube Glauber Rocha — are-
na que o então estudante de
tersol invisível; ou, quem sabe,
para reproduzir o figurino que,
anterior. Glauber, por sua vez,
tinha acabado de dar a famosa
de enfiada a fita às salas, do sentido gre-
gário do cinema, da viabiliza-
passou ao circuito privado e
namorou as majors, o que foi
sociologia do Grajaú, filiado ao boêmio, pé-de-valsa, exibe nos entrevista para o Zuenir Ven- ção de ideias e de formatos que visto como incoerente e lhe
Partido Comunista Brasileiro, tura na “Visão”, dizendo que Ele tira os óculos, acende lhe deem sobrevida. rendeu novas críticas.
escolhera para atuar. Darcy e Golbery eram os gê- mais um cigarro, “isso aqui era Desde o tempo do cineclube — Não vejo contradição al-
— Aqui era o Tijuquinha, lá, nios da raça. A menção a Gol- muito bom”, murmura, entre e das cinematecas — quando guma entre diversão e arte. Ao
o Metro, ali, o Esqui... — apon- bery o indispôs com a esquer- baforadas que apagam os assumiu a liderança do movi- contrário, o grande cinema
ta, no caminho, os locais onde da. Então, pedi a palavra e dis- olhos úmidos. mento de exibição paralela — nasce justamente de uniões fe-
ficavam as salas de rua nas se que a opinião dele nada ti- — Também me casei nessa até os dias de hoje, militou lizes entre essas duas pistas —
bandas da Saens Peña. nha a ver com o cinema. Ou paróquia com Lurdinha, que sempre por essa causa (com defende-se o homem que tem
melhor, tinha e não tinha a ver, nem queria igreja, era do par- passagem por uma trade com- como tríade sagrada de exem-
mas isso não interessava. Saí tido e éramos ateus. O pai dela pany quando o dinheiro ra- plos humanos figuras tão dese-
vitorioso da contenda! era da inteligência do Ministé- reou). Foi resistant na Embra- melhantes entre si quanto Le-
rio da Fazenda. Metade dos filme, ajudando a forjar uma nin, Gustavo Dahl e Ray Kroc,
convidados usava sandálias e estratégia nacionalista, popu- criador do McDonalds.
“
bolsas a tiracolo, a turma do lar, de lançamentos, na linha Recentemente, Marcondes
Instituto de Filosofia. Outra de “A dama do lotação” e “Do- distribuiu, de forma autônoma,
metade era uma galera da pe- sucessos como “Tropa de Elite
sada, Almirante Rademaker, II”. Nos últimos anos tem se de-
Delfim Netto. Foi muito goza- dicado a tocar uma ideia pio-
do. O padre, Bruno Trombeta, neira no Brasil, o MovieMobz,
da pastoral carcerária, fez um circuito de exibição alternativa
sermão dando bronca na ala on demand e eventualmente
que sentava à esquerda da na- online de filmes, óperas, musi-
ve, que por acaso era o pes- Não vejo cais, jogos de futebol e outros
soal da Direita, e o resto, na
nave direita, a Esquerda,
contradição entre eventos em salas de cinema.
Uma espécie de retorno do ve-
diversão e arte. Ao lho impulso cineclubístico nu-
ma convergência entre a inter-
contrário, o grande net e o cinemão.
cinema nasce — Esse é o futuro, tanto na
TV quanto nas salas: o cinema
justamente de customizado.
uniões felizes dessas Afastado há décadas do par-
tidão (anunciou-o num encon-
duas pistas tro com Luís Carlos Prestes
em que Taiguara tocou a Inter-
nacional Socialista) Marcon-
des não vê suas escolhas, plu-
rais, como movidas por ideo-
MARCO AURÉLIO logia, sequer idealismo.
— Tudo comigo, inclusive a
MARCONDES em ação política, sempre foi prag-
frente à igreja São mático e voltado para fazer o
cinema acontecer. Fui dos pri-
Francisco Xavier meiros caras da minha geração
onde uncionava o que se plugou na rede, quando
os computadores ainda eram
cineclube Glauber 286, no início dos anos 90. Meu
Rocha filho menor gosta de inventar
ideias e já registrei três delas,
embora ele ainda não tenha
visto “Cidadão Kane”. Ele disse
pro Padilha que tem um plot
para o “Tropa III”, mas que só
contaria se negociassem antes
o percentual...
Em casa, de onde saíramos
mais cedo para ir à Tijuca, telas
de TV de todos os tipos se es-
palham: planas, wide, quadra-
das, de tubo. Na sala, o filho,
acompanhado de dois amigos
gêmeos, assiste a algum block-
buster 5, a volta.
O prédio fica num apezão no
fundo da Paula Freitas, Copaca-
bana profunda. Embaixo, a ca-
minho do carro, ele mostra os
dois botequins mais importan-
tes do perímetro. De um deles
emerge a lendária Maria Gla-
dys, musa do cinema marginal,
de braços abertos, e vem aca-
riciar o amigo. Copacabana pa-
rece um estúdio. ■