Abandono histórico ameaça patrimônio colonial em Vassouras-RJ
1. Sábado, 3 de dezembro de 2011 O GLOBO CIÊNCIA l
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. HISTÓRIA
Abandono histórico
Chico Otavio
chico@oglobo.com.br
Q
uando chegam as nuvens
grossas, prenunciando
temporal, a noite é de in-
sônia para Isabel Rocha, a
responsável técnica do
Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan) em Vas-
souras, no Vale do Paraíba flumi-
Sem conservação, casario colonial de Vassouras pode desaparecer
nense. Ela já sabe que, a cada agua- Fotos de Custódio Coimbra
ceiro, é menos um telhado, um for-
ro ou uma parede no casario da ci-
dade. Aos poucos, a natureza vai
varrendo do mapa uma das mais
valiosas relíquias do Brasil Impé-
rio: a malha urbana da capital do
ciclo do café e moradia dos barões
que comandaram a economia do
país por meio século.
Vassouras foi o primeiro centro
histórico do século XIX tombado
no país, em 1958 (antes mesmo de
Petrópolis). Paradoxalmente, a ci-
dade vive hoje uma corrida contra
o tempo para não ver esse acervo
transformado em pó. Na quarta-fei-
ra, o Ministério Público Federal
promoverá audiência pública na ci-
dade (às 17h, no auditório do Sesc)
para cobrar a responsabilidade de
cada agente público envolvido na
questão, do Ministério da Cultura à
prefeitura local.
— Há certa timidez e falta de ar-
ticulação na luta para preservar
um dos mais importantes períodos
da história do Estado, quando o
Vale do Paraíba esteve no centro
da vida nacional — lamenta o his-
toriador Ricardo Salles, autor de “E
o vale era o escravo — Vassouras,
século XIX. Senhores e escravos no
coração do Império”.
Ou, nas palavras do procurador
da República Rodrigo Lines, res-
ponsável pela abertura de quatro
inquéritos civis públicos sobre o
problema:
— O abandono é total.
“
Tapumes escondem O SOLAR DO BARÃO de Vassouras: a principal casa do centro histórico, símbolo do poder durante o ciclo do café, está completamente abandonada
o acervo destruído
l Tapumes e escoras são os únicos
vestígios do poder público nos ca-
sarões arruinados. Na entrada do
centro histórico, o Solar do Barão
de Vassouras desponta como sím- Há certa timidez e falta de articulação
bolo deste desamparo. Vencida pe-
las infiltrações, uma parede desa- na luta para preservar um dos mais
bou em 2007, levando junto toda a
ala social do casarão erguido em importantes períodos da História do
1848, em forma de “U”, para abri-
gar a família do barão Francisco Jo-
estado, quando o Vale do Paraíba esteve
sé Teixeira Leite (1804-1884), uma no centro da vida nacional.
das mais influentes do sul flumi-
nense no Segundo Reinado. Ricardo Salles, historiador
Numa época em que cidades co-
mo Vassouras mereciam as mesmas
atenções e paparicos de-
dicados à Corte, o Solar
era, ao mesmo tempo, re-
sidência e centro de po-
der. Foi ali que os acionis-
tas da Estrada de Ferro D.
Pedro II assinaram o con- O ASILO Barão do Amparo, o antigo hospital: verba extra para mantê-lo de pé
trato de construção da
ferrovia. Conta-se que o
Barão de Vassouras teria
dado socos na mesa, exi-
gindo que uma mudança
no traçado fizesse o trem
Vassouras está no PAC das
passar pela cidade.
— O Barão de Vassou- cidades históricas
ras representa a segunda
das três gerações das fa-
mílias produtoras de café.
Mas verbas federais nunca chegaram
Antes, vieram os desbra-
vadores, que desmataram l No ano passado, Vassouras des do mundo — informou.
para o plantio. A segunda festejou a inclusão do municí- O Ministério Público Federal
geração ergueu as cidades pio no Programa de Aceleração não pretende esperar. O procura-
da região. Dom Pedro II vi- do Crescimento (PAC) das cida- dor da República Rodrigo Lines
via por ali. Os barões pra- A PAREDE QUE SOBROU do casarão da família Avelino: dado como perdido pelo Iphan des históricas. O Iphan chegou instaurou quatro inquéritos civis
ticamente não frequenta- a promover uma oficina na cida- públicos, um para cada imóvel em
vam a capital. Só a terceira geração, — Além de alegar que não tinha A situação do asilo aquece o ba- de, com representantes da so- situação crítica: o Solar Barão de
a dos seus filhos, passou a visitar a condições financeiras para assu- te-boca que facilita o avanço da ciedade civil organizada, de Vassouras, o Asilo Barão do Am-
Corte com regularidade — explicou mir a obra, a Irmandade Santa Casa destruição: o Iphan diz que a res- agentes culturais a ONGs, e da paro, o antigo Paço Municipal e a
o professor Ricardo Salles. da Misericórdia de Vassouras, pro- ponsabilidade é do proprietário; o prefeitura para discutir priori- Casa das 14 Janelas — casarão do
Visto de fora, cercado por tapu- prietária do asilo, não pagava as proprietário alega não ter dinheiro dades, mas nada aconteceu. século XIX em estilo neoclássico.
mes, o casarão parece íntegro. Por contas de luz — disse Isabel Ro- para proteger um bem da socieda- — O convênio do PAC é a — A princípio, cabe ao pro-
dentro, o quadro é desolador. O te- cha, do Iphan de Vassouras. de; a Prefeitura diz que o orçamen- grande esperança, mas governo prietário cuidar da conserva-
lhado, o forro de tábua corrida e as to só chega para as despesas bási- federal não libera o recursos. ção do bem. Porém, quando is-
paredes de divisão interna pratica-
mente sumiram, junto com as pin- Irmandade não cas, como saúde e educação. E o
Ministério Público entende que ca-
Não temos nem a informação
do valor a ser investido — disse
so não ocorre e há um risco imi-
nente de dano irreparável, a lei
turas decorativas. Sem escoras, o
que resta do palacete pode vir pagava nem a luz da um tem a sua parcela de culpa
pelo quadro desolador.
o prefeito da cidade, Renan Vi-
nicius de Oliveira.
é clara: o poder público tem de
assumir a sua responsabilidade
abaixo a qualquer momento. A pre- Seja como for, a audiência de quar- O professor Ricardo Salles, — afirmou Rodrigo.
feitura chegou a desapropriar o l Apesar de reiterados alertas des- ta-feira pode ser a última chance pa- do Departamento de História da O prefeito Renan disse que,
imóvel, mas a Justiça considerou o de 2002, a irmandade não tomou ra salvar os casarões. Um deles, con- UFF, disse que a liberação dos além da audiência pública em
ato irregular e mandou devolvê-lo providências para evitar o desaba- tudo, ficará de fora. Reduzido às pa- recursos deve estar presa a um sua cidade, pediu à Câmara dos
ao verdadeiro proprietário, que o mento. Fez apenas obras que des- redes externas, o Palacete do Barão processo burocrático, razão pe- Deputados que promova outro
prefeito Renan Vinícius de Oliveira caracterizaram a construção origi- do Amparo, no alto de uma colina, é la qual defende que o Iphan e encontro com o mesmo objeti-
confessa não saber quem é. nal. Cinco anos depois, quando as dado como perdido pelo Iphan. Os Instituto Estadual do Patrimô- vo em Brasília, para convencer
Mais acima, outra construção ti- rachaduras avançavam pelas pare- proprietários, da família Avelino, não nio Cultural (Inepac), do gover- as autoridades federais de que
ra o sono da equipe do Iphan: o des, o Ministério Público estadual chegam a um consenso sobre o des- no fluminense, abram os cofres a situação é crítica:
Asilo Barão do Amparo, antigo determinou a evacuação do pré- tino do que restou. Há quem diga que para salvar os casarões. — Dependemos do governo
hospital da cidade, que só conti- dio, alegando haver risco para os o desejo inconfesso dos herdeiros é — Além disso, o governo pre- federal. Por isso, encaminhei
nua de pé porque o instituto, pres- idosos que ali viviam. O pior viria lotear o terreno e vender tudo. n cisa incentivar a participação expediente para Congresso.
sionado pelo Ministério Público, no ano seguinte. Durante o carna- da iniciativa privada, a exemplo Não vou eximir a prefeitura de
destinou este ano recursos emer- val, um misterioso incêndio consu- O GLOBO NA INTERNET do que ocorre na recuperação responsabilidade, mas a arreca-
genciais para escorar o prédio, er- miu parte do casarão. Desde en- GALERIA Veja mais imagens da do patrimônio de outras cida- dação é baixa, não sobra.
guido entre 1848 e 1853. tão, o asilo ficou abandonado. destruição dos casarões de Vassouras .