O documento descreve a experiência da autora vivendo em Bogotá, Colômbia por seis anos e como isso a ajudou a entender mais profundamente suas raízes latino-americanas e brasileiras. Ela fala da rica cena cultural da cidade, especialmente cinema, literatura e música. Também reflete sobre como a mistura de culturas colombiana e brasileira em seu sangue, por meio de sua mãe colombiana e pai brasileiro, a influenciou profundamente como artista.
Bogotá e Bahia: a formação cultural da artista entre Colômbia e Brasil
1. convidado
Colunista
O
34 • REVISTA O GLOBO• 25 DE MARÇO DE 2012
Divulgação
Ava Rocha*
No compasso de Bogotá e Bahia
Santa Fé de Bogotá. Minha lembrança desta americana. Lembro que criamos uma revista
‘‘
cidade está entranhada no corpo. Lá me fiz mais chamada “Regeneracción”, com xerox e paixão,
brasileira e mais latinoamericana. Pude en- uma publicação de contracultura.
tender minhas raízes para além de um Brasil Porque a Colômbia é banhada pelo Pacífico e
que, até então, ao menos para mim, era como pelo Atlântico. Tem o Caribe e faz fronteira com
um mundo à parte. Quando terminava a aula, a Venezuela, o Equador, o Brasil. Tem o Ama-
aqui no Rio, meus amigos iam para a praia, e eu zonas. É um país que culturalmente se as-
corria para o cinema. Desde pequena, fre- semelha muito ao Brasil. É prioritariamente
quentava sozinha as salas, mas em Bogotá, na mestiço, tendo uma cultura indígena determi-
Colômbia, encontrei companheiros que me nante, uma cultura africana contagiante e a
acompanhavam ávidos ao cinema. Falo de quan- cultura europeia assídua. Cali é terra da salsa,
Tenho no sangue do tinha 15 anos, e eram de duas a três sessões
diárias nas diversas salas, onde eram pro-
berço do ritmo na América do Sul. Cartagena é a
terra da champeta, ritmo que nasce do encontro
toda essa jetados filmes importantes da história do ci-
nema e onde havia debates interessantíssimos
com a música moderna africana. Lá está a Cidade
Perdida, San Agustin, o Rio das Sete Cores, a
sobre o que era projetado. Vi a obra completa de Cordilheira, os centros místicos dos chibchas, a
grande mistura cineastas como Godard, Tarkovsky, Buñuel, Ei- folha de coca, o Yagé, a paixão pelo futebol.
senstein, Antonioni, Wim Wenders, além de ter Há de tudo na Colômbia e foi lá, entre as
que se deu no contato direto com o cinema latinoamericano
de Santiago Alvarez, Titón ou Sanjinés. Tudo era
suas contradições, que comecei a me formar
como “uma artista”, como se diz. Foi per-
‘‘
encontro amoroso
de minha mãe,
Paula Gaitán, e de
meu pai,
Glauber Rocha.
Isso corre
em mim
contagiante na estada de seis anos na cidade.
Desvendando Bogotá, eu me sentia uma guer-
rilheira da cultura. Não só de bombas e guerras
vive o país. A situação política impregna para o
bem o pensar artístico e cultural da cidade.
Bogotá poderia ser comparada, em suas devidas
proporções, a uma Bahia dos anos 60. As artes
plásticas e a literatura sempre foram espe-
cialmente fortes na Colômbia, com autores que
fizeram história, como o meu avô, o poeta Jorge
Gaitán Durán, de quem musiquei o poema “Sé
que estoy vivo” e gravei no meu primeiro disco.
Quando vivia lá, ainda não tinha a música como
algo claro para mim, mas já escutava a cantora
colombiana Toto la Momposina e adorava Cha-
vela Vargas, Victor Parra e Charly García. Com
correndo suas ruas, dançando seus ritmos,
provando seus sabores, sofrendo suas dores,
vivendo intensas aventuras, que me apaixonei
pela América do Sul, pela América Latina e
mais ainda pelo Brasil. Sou o resultado desse
encontro entre Bahia e Bogotá, entre Brasil e
Colômbia. Tenho no sangue toda essa grande
mistura que se deu no encontro amoroso de
minha mãe, Paula Gaitán, e de meu pai,
Glauber Rocha. Isso corre em mim. No meu
cinema, na minha voz, no meu canto, na minha
poesia, no meu interesse de vida, na minha
arte, em tudo no meu mundo.
Infelizmente, há outros destaques para o
país, mas a verdade é que a Colômbia, com
toda a sua beleza, é uma grande ferida aberta,
uma câmera fotográfica na mão, era rodeada por um mártir da nossa realidade. Recomendo um
poetas, cineastas, pintores, atores e músicos, mergulho profundo nas veias abertas da Co-
que no seu agir cotidiano queriam reconstruir lômbia, onde correm rios coloridos, lagoas
suas identidades, opondo-se à forte influência douradas e uma cultura milenar.
*AvaRochaécantora,compositoraelançouoCD“Diurno”,comabandaAVA