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3. ARTES / ENTREVISTA, CRÍTICA
João Salaviza e
Renée Nader
Messora
Wýhwy e Patrpro
fazem cinema
Mudou de cidade, de país, de
continente, de cinema e de vida.
Ele, o '"menino prodígio" do
cinema português, vencedor de
uma Palma de Ouro e de um Urso
de Ouro pelas suas
curtas-metragens, atravessou
oceanos para chegar a
Kraholândia, a terra dos índios
krahó, no estado de Tocantins, no
interior norte do Brasil, na
companhia dela, brasileira, sua
mulher e correalizadora do filme
21 / 41< ANTERIOR SEGUINTE >
20 / 40
distinguido com o Prémio
Especial do Júri da secção Un
Certain Regard, em Cannes e que
amanhã, quinta-feira, 14, se
estreia em Portugal. Falamos com
os dois, sobre o filme e não só
MANUEL HALPERN
Esta é a história de Wýhwy e Patpro,
realizadores de cinema, ele português, ela
brasileira, que casaram e foram viver para
terra dos índios Krahô, na Aldeia de Pedra
Branca, para serem felizes para sempre.
Conheceram-se anos antes, em Buenos
Aires, onde ambos frequentaram a escola
de cinema. João Salaviza, o nome branco
de Wýhwy, tornou-se o primeiro
português a ganhar uma Palma de Ouro,
no Festival de Cannes, com a curta Arena.
A que se seguiu um Urso de Ouro em
Berlim, por Rafa. Renée Nader Messora,
nome branco de Patpro, habituou-se
trabalhar, como diretora de fotografia e
assistente de realização, nos filmes dos
outros, incluindo a primeira longa de
J ã M t h t d 2015 R é
21 / 41< ANTERIOR SEGUINTE >
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4. 2↗
DESTAQUE26 de agosto a 8 de setembro de 2020 JORNALDELETRAS.PT
O pulsar da terra Maus Hábitos Olhares, gestos, matérias e
vivências telúricas trabalhados por artistas de diferentes
gerações em Da Terra e da Serra: cinco formas de retratar o
pulsar da terra sob um céu serrano, que se
inaugura a 11 de setembro, no Maus Hábitos,
espaço de intervenção cultural, no Porto.
É uma exposição que junta escultura em
madeira, cerâmica, desenho, texto e vídeo,
de José de Almeida, Alice Geirinhas, Maria Lino, Pedro Saraiva
e Tânia Dinis. A curadoria e o desenho expositivo são de Daniel
Moreira e Rita Castro Neves. Integrada no ciclo Outros Portos,
da Associação Saco Azul, fica até 11 de outubro.
António Olaio, Salomé Lamas, Rita Azevedo Gomes, Nuno Cera e
Renata Ferrás são alguns dos artistas que participam no Fuso, Anual
de Videoarte Internacional de Lisboa, que decorre de 27 a 30. Um
festival que, ao longo de uma década de existência, se tornou uma
referência no universo da imagem em movimento, que este ano
será totalmente online, por força da crise pandémica. Ao todo serão
exibidas 47 obras, contemporâneas e históricas, algumas raramente
vistas, de criadores de vários países. E, diariamente, haverá con-
versas e debate sobre o tema genérico : "Diversidade. Adversidade".
Além das sessões da competição, cujo vídeo vencedor será
adquirido para a Coleção EDP, ao longo das quatro noites
são apresentadas as escolhas de sete curadores internacio-
nais : Rosa Spaliviero (Senegal), Lori Zippay (EUA), Antoni
Gaeta (Itália), Bojana Piškur (Eslovénia), Cristiana
Tejo (Portugal), Tanya Barson (Inglaterra), e Greg de Cuir Jr. (EUA) .
Como já é habitual, mostrar-se-ão também trabalhos dos alunos do
Ar.Co. Uma edição drasticamente diferente “mas que, como adian-
ta ao JL Jean-François Chougnet, diretor artístico do Fuso, “mostra
que a arte resiste a todas as adversidades”.
JL : É o ‘estado da videoarte’ que o Fuso
pretende mostrar?
Jean-François Chougnet: O Fuso tem
procurado não se limitar a uma estética
particular. E sempre deu lugar a diferen-
tes países e línguas: o Brasil e os países
africanos de língua portuguesa, mas não
só. Desta vez, teremos uma sessão vinda
dos Balcãs, da Eslovénia, com curadoria
de Bojana Piškur. Da mesma forma, sem-
pre demos lugar ao cinema experimental.
Porquê a temática escolhida para esta edição, "Diversidade.
Adversidade"? Reflete as condições do momento?
Refletir sobre as nossas sociedades e as maneiras como nos rela-
cionamos com o planeta e com as incontáveis formas de vida que
nele habitam vem ao encontro do conceito pensado para o Fuso
2020, antes mesmo do aparecimento da Covid-19. E que continua
a fazer-se urgente. Diversidade significa pluralidade, diferencia-
ção, e este ano celebra-se o 15.° aniversário da Convenção sobre a
Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da
UNESCO.
O que se procurou com o convite a vários curadores?
O desafio dos curadores internacionais é, precisamente, refletir
sobre essas questões contemporâneas. Apresentamos, por exemplo,
o programa de Tanya Barson, com três filmes, dois peruanos e um
mexicano, e o "The Message is the Medium", do curador Greg de
Cuir Jr, uma interseção entre música hip-hop e vídeos musicais.
Que mais destaca no que poderemos ver?
Gostaria de destacar um programa dedicado a Jorge Queiroz, dois
vídeos de 1999, June 1972 e Shoe; e a seleção Corpos fricções /
ficções: O futuro é mulher?, da curadora Cristiana Tejo.
Como foi a recetividade dos artistas portugueses?
Mais do que nunca, o Open Call deste ano revelou – no difícil con-
texto da pandemia – a diversidade das práticas da vídeoarte feita
em Portugal e/ou por artistas portugueses. Foram submetidos 176
projetos e o programa final é de 17 obras.
Quais as expectativas em relação a esta edição online?
O formato de transmissão é drasticamente diferente e obviamente
ansiamos pela convivialidade das sessões ao ar livre, mas a edição
2020 mostra que a arte resiste a todas as adversidades. J M.L.N.
Jean-François Chougnet
Videoarte e diversidade
CINEMA JAPONÊS NO
MUSEU DO ORIENTE
"Sozinhos Juntos", uma mos-
tra de cinema japonês con-
temporâneo, decorre a partir
de 28 até 19 de setembro, às
sextas e sábados, às 18 e 30,
no Museu do Oriente, em
Lisboa. Serão exibidos quatro
filmes, realizados entre
2015 e 2019, pelos cineastas
Yuya Ishii, Yukiko Mishima,
Ryosuke Hashiguchi e Ichiro
Kita, que refletem sobre o
universo das relações huma-
nas e familiares na sociedade
nipónica atual. O ciclo assi-
nala os 160 anos das relações
diplomáticas entre Portugal e
o Japão. "As relações huma-
nas – românticas, familiares,
sociais e profissionais - sob o
signo da melancolia, são o fio
condutor dos quatro filmes
contemporâneos", explica o
museu.
BIENAL DE HUMOR
EM PENELA
Mais de uma centena de
retratos caricaturados de
António Arnaud, médico e
poeta, considerado o ‘pai’ do
Serviço Nacional de Saúde,
numa secção integrada na VI
Bienal de Humor Luís d’Oli-
veira Guimarães, em Penela,
que começa a 5 de setembro.
Sob o tema Rir da e com a
Saúde, o certame apresenta,
ao todo, 480 trabalhos de
cartoonistas e caricaturis-
tas de 74 países dos cinco
continentes, em exposições
em vários espaços do conce-
lho. Também haverá visitas
virtuais, sessões e conver-
sas com os artistas, com
transmissão online. Trazer
o mundo a Penela pelos
olhos críticos dos humoristas
é o grande objetivo deste
iniciativa.
HOMENAGEM
A PEDRO LIMA
Uma homenagem a Pedro
Lima, falecido em junho
passado, terá lugar a 6 de
setembro, às 17, na sala
Bernardo Sassetti, do S.
Luiz Teatro Municipal, em
Lisboa. A iniciativa partiu de
Jorge Silva Melo e contará
com a participação de Paulo
Dentinho, Nuno Artur Silva,
Manuel Cavaco, Luís Filipe
Borges, Sofia Monteiro
Grilo e Rodrigo Francisco,
que vão recordar o ator e
amigo. Numa evocação,
haverá ainda leituras de
Sou o Vento, de Jon Fosse,
pelos atores Rúben Gomes e
Manuel Wiborg, este último
que contracenou com Pedro
Lima, na estreia desta peça
do dramaturgo norueguês,
no mesmo palco, em 2008.
Entrada livre.
NOVA CRIAÇÃO DE
MARLENE FREITAS
Mal – Embriaguez Divina é
a nova criação de Marlene
Monteiro Freitas, coreógrafa
e bailarina, distinguida com
o Leão de Prata na Bienal de
Veneza 2018, com estreia
de 24 a 26 de setembro, na
Culturgest. O espetáculo
será depois apresentado em
outubro, a 29 e 30, no Rivoli,
Teatro Municipal do Porto,
no âmbito de um ciclo de
dez dias em torno da obra
da artista cabo-verdiana a
viver em Portugal. Além de
espetáculos, haverá filmes,
conferências e workshops,
num programa com curadoria
de Alexandra Balona. "O
nosso Mal passar-se-á numa
tribuna, onde um coro, numa
tonalidade prenunciadora de
melancolia, é assaltado por
visões", descreve Marlene.
›B R E V E E N C O N T R O ‹
5. DESTAQUE↗
326 de agosto a 8 de setembro de 2020 JORNALDELETRAS.PT
Mais área, espaços reorganizados e
um novo discurso museológico. Após
ano e meio de obras e reestruturação,
a Casa Fernando Pessoa volta a abrir
as porta na sexta-feira, 28. Não é uma
reabertura qualquer, das muitas que
a pandemia tem suscitado depois de
meses de quarentena. É uma nova vida
para a instituição que salvaguarda o
legado do grande poeta português.
"Memória, criação literária, leitura e
morada" são as palavras chave da nova
exposição de longa duração que dará
a conhecer a vida e obra de Fernando
Pessoa. Mas as mudanças serão visíveis
logo à chegada. A Casa terá nova
entrada, acessível a qualquer visitante,
o auditório no piso térreo e a biblioteca
do poeta, classificada como Tesouro
Nacional, no percurso expositivo, com
as adequadas condições de conser-
vação.
Esta nova disposição é o resultado
de um projeto museográfico de-
senvolvido pelo Gabinete de Design
GBNT, a partir de uma proposta do
curador Paulo Pires do Vale. A remo-
delação do edifício tem assinatura
do atelier José Adrião Arquitetos. Ao
longo de todo o processo, coorde-
nado pela EGEAC e pela diretora da
Casa Fernando Pessoa, Clara Riso,
foram consultados investigadores
especializados em Fernando Pessoa e
familiares do escritor.
"Pessoa escreveu aqui: à máquina
ou à mão em qualquer pedaço
de papel que tivesse, a admirável
criação dos heterónimos faz dele um
escritor de exceção. Pessoa leu aqui:
a sua biblioteca pessoal pode ser
agora vista na exposição – os livros
que mais releu e anotou, as dedi-
Casa Fernando Pessoa reabre,
valorizada e para “nova vida”
catórias dos seus amigos escritores.
Pessoa viveu aqui: no 1º andar direito
desta Casa, Pessoa viveu com a
família durante mais de 15 de anos",
escreve, em nota de apresentação
do renovado espaço, Clara Riso.
"Morada, memória, leitura. A Casa
Fernando Pessoa é um lugar de lite-
ratura." Valorizando o seu espólio, a
nova reorganização dará visibilidade
a documentos vários e objetos que
pertenceram ao escritor. A partir
de cada peça contar-se-á a vida
de Pessoa, desde o nascimento, em
Lisboa, em 1888, até à sua morte, em
1935, passando pelas suas mais de 16
moradas e pelos anos de juventude
na África do Sul.
Na área das artes plásticas, que
constitui um importante núcleo do
acervo, Almada Negreiros e Júlio
Pomar são dois dos muitos artistas em
exposição. No último século, Pessoa
atraiu diversos artistas, que exploraram
quer a sua figura, quer o seu enigma.
Através destas obras de arte também
será possível dar a ver o "drama em
gente" pessoano, com trabalhos, textos
e informações sobre cada heterónimo.
Como o poeta, a nova Casa Fernando
Pessoa será múltipla. A ela 'voltare-
mos', em próxima edição. J
Casa Fernando Pessoa Recriação artística do Dia Triunfal
Impulso, uma coreografia de Daniel Cardoso, pelo Quorum
Ballet, que celebra 15 anos, irá abrir, a 17 de setembro, no
Auditório Municipal António Silva, no Cacém, o Mosca-
rium, Festival de Artes Performativas que decorrerá até 27.
Além de um concerto de Surma, nos jardins do Palácio
de Queluz, a 20, num programa com propostas de dança,
música e teatro, haverá espetáculos do Trincheira Teatro,
Visões Úteis, Teatro do Silêncio, Companhia Mascarenhas
Martins, Musgo Produção Cultural e Teatro Efémero.
O Teatromosca, que promove o festival, que na edição
deste ano propõe sobretudo produções portuguesas,
irá apresentar Estúdio: Flores, numa coprodução com
o Centro Dramático Rural, de Madrid, e, para os mais
novos, O Macaco do Rabo Cortado, duas novas criações
para assistir ao vivo e também online.
Em novembro, a companhia irá estrear Ned Kelly, uma
criação de Pedro Alves, diretor artístico, Paulo Castro
e Paulo Furtado / The Legendary Tigerman, numa co-
produção com o Teatro Municipal S. Luiz e a companhia
australiana Stone/Castro. J
Festival Moscarium
de regresso
Concerto para
Bernardo Sassetti
Bernardo Sassetti, que este ano teria feito 50 anos, a
24 de junho, é homenageado com um concerto a 5 de
setembro, às 18 e 30, no Anfiteatro Colina de Camões,
nos jardins da Quinta das Lágrimas, em Coimbra.
Participam Camané, o trompetista João Moreira e o trio
do baterista Paulo Bandeira, com João Paulo Esteves da
Silva, piano, e Bernardo Moreira, contrabaixo, amigos
e músicos que tocaram muitas vezes com o pianista e
compositor, um dos nomes de referência do jazz e da
música contemporânea portuguesa, falecido em maio
de 2012, aos 41 anos.
O concerto que celebra o 50.º aniversário de nas-
cimento de Sassetti, no auditório ao ar livre, palco que
inaugurou em 2008, num dueto com Mário Laginha –
uma atuação que daria a Suite Lágrimas –, e onde regres-
saria noutros momentos, é promovido pela Associação
Cultural Quebra-Costas, pela Fundação Inês de Castro e
pela Câmara Municipal de Coimbra. Estava previsto para
o 12.º Festival das Artes, que não se realizou por causa da
crise pandémica. J
N
unca fui um incondicional, ou pelo menos um
entusiasta, de "abaixo assinados", seja qual for o
nome que se lhes dê. No entanto reconheço que
muitas vezes são a melhor forma, se não a única
viável, de grupos de cidadãos tomarem uma
posição pública comum face a certas questões,
situações, problemas. Assim não só subscrevi bastantes, embora
tenha talvez recusado subscrever outros tantos, como promovi qua-
tro ou cinco. Lembro-me bem de três, até porque encontrei umas
folhas com assinaturas a eles respeitantes - de Ferreira de Castro a
Sophia. Dois são do tempo da ditadura - um em defesa da liberdade
de imprensa, outro de apoio de jornalistas e escritores à luta dos
estudantes de Coimbra, em 1969; o terceiro é já posterior a 1974, a
favor da concessão de direitos políticos aos brasileiros em Portugal
igual aos dos concedidos aos portugueses no Brasil.
Repito que, porém, não sou um incondicional, ou pelo menos
um entusiasta, incondicional, de "abaixo assinados". Antes do 25
de Abril eles eram, porém, em geral a única maneira de cidadãos
tomarem posição pública conjunta em defesa da(s) liberdade(s),
em protesto contra a prepotência do poder, etc. Mas, em meu
juízo, o serem vantajosos ou inconvenientes dependia da avalia-
ção concreta das circunstâncias. Ou seja: pelo lado positivo, o seu
efetivo impacto de intervenção, mobilização, influência; pelo lado
negativo as consequências quer para os signatários na sua esfera
pessoal, que podiam incluir a prisão, quer para o próprio combate
à ditadura, por poderem prejudicar outras formas de luta e chamar
a atenção policial para cidadãos que a desenvolviam, com mais
eficácia, em planos diferentes. Após o 25 de Abril, sendo jornalista
e tendo ao meu alcance meios para exprimir o que penso, entendo
que em princípio não se justifica estar a fazê-lo de outra forma. A
isso acrescendo haver muitas vezes coisas de que nesses documen-
tos divirjo, sem prejuízo de estar de acordo com o seu objetivo.
Deve- se, porém, reconhecer e sublinhar que esse continua a
ser amiúde, na prática, o meio mais expedito, se não o único viá-
vel, para cidadãos, em conjunto, assumirem uma atitude e toma-
rem uma posição. Cujo peso e significado dependem fundamen-
talmente do conteúdo do documento, indissociável da qualidade
da sua razão e escrita; e da qualidade dos seus signatários, sejam
eles poucos ou muitos - mas sendo muitos, de qualidade, é óbvio
que aquele peso e significado aumenta. Como aumenta quando os
subscritores, nos casos em que tal tem relevância, são de diversas
nações, gerações, orientações ideológicas, políticas, religiosas,
estéticas, etc.
ORA, TODAS ESTAS QUALIDADES se reúnem na espécie de abai-
xo-assinado que é a “carta aberta dos escritores de língua portu-
guesa contra o racismo, a xenofobia e o populismo e em defesa de
uma cultura e de uma sociedade livres, plurais e inclusivas” - que
publicamos, na íntegra, na p. 34, com a indicação de alguns dos
seus subscritores, sendo a totalidade deles revelada no site do JL.
Trata-se, de facto, de um documento importante e extremamente
representativo do pensamento e da posição dos escritores da nossa
língua sobre questões graves, tentações e perigos que cada vez mais
voltam a ameaçar as nossas sociedades. E que constituem práticas
ou manifestações de chocante desumanidade, de total desrespeito
pelos outros, de flagrante violação dos Direitos Humanos e da sim-
ples decência. Que na "carta aberta" se denunciam.
Mas, mais e essencial, nela se chama a atenção para a respon-
sabilidade de quem tem "o poder da palavra": "Não podemos olhar
para o lado nem continuar calados, sob pena de emudecermos".
Como se impõe fazendo-se um apelo não só aos escritores, artistas
e intelectuais mas a todos - todos repito -, "a que se distanciem de
projetos e movimentos antidemocráticos e ajudem na conscien-
cialização das novas gerações para a urgência dos valores huma-
nistas". Apelo, pois, à indispensável intervenção/ação de quem
aos diversos níveis tem esse dever - até porque, "como sempre nos
mostrou a História, quem adormece em democracia acorda em
ditadura."J
Uma ‘carta-aberta’
a favor do humano
COMENTÁRIO
José Carlos de Vasconcelos
6. 4↗
TEMA 26 de agosto a 8 de setembro de 2020 JORNALDELETRAS.PT
EDITORAS, LIVRARIAS E FEIRAS
É
LUÍSBARRA
Três meses depois do calendário habitual, as duas maiores feiras do livro, centrais no ano editorial, vão mesmo realizar-se,
já a partir de amanhã, 27, em Lisboa, e de sexta-feira, 28, no Porto. Até 13 de setembro, será uma oportunidade de venda
e celebração do livro, quando o sector atravessa uma das suas maiores crises de sempre, com quebras brutais de receitas
durante a quarentena, não compensadas a partir do desconfinamento. O futuro surge aos olhos de todos com mais dúvidas
do que certezas e neste contexto o JL antecipa o que se pode esperar de ambas, noticiando as suas linhas gerais e adaptações
às exigências sanitárias. Fazemos ainda a radiografia aos desafios que editoras e livrarias atravessam, ouvindo alguns dos
seus responsáveis, além de entrevistar o presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, João Alvim, e ter o
testemunho de Vasco Teixeira, administrador e porta-voz do maior grupo nacional do sector, a Porto Editora
As incertezas do mundo do livro
É com muita expectativa e algu-
ma ansiedade que o meio editorial
aguarda pelas duas mais impor-
tantes feiras do livro do país, que
arrancam já amanhã, quinta-feira,
27, em Lisboa, no Parque Eduardo
VII, e no dia seguinte, sexta-fei-
ra, 28, no Porto, nos Jardins do
Palácio de Cristal. O sector tem sido
fortemente abalado pela pande-
mia, quer no período mais duro,
na quarentena, quer na fase que
agora vivemos, de desconfinamen-
to. Para o presidente da direção da
Associação Portuguesa de Editores e
Livreiros (APEL), João Alvim, o mo-
mento é de dúvida, mas também de
confiança. “Acredito na capacidade
de o sector apresentar soluções e
encontrar ideias para ultrapassar
os problemas”, afirma ao JL (ver
entrevista em caixa). Para Vasco
Teixeira, administrador, porta
voz e diretor editorial do Grupo
Porto Editora, assistimos a "uma
das maiores crises que o sector
atravessa" (ver texto em caixa), pelo
que é preciso arregaçar as man-
gas. Nas livrarias, o cenário não é
melhor. Como ponto de contacto
com os leitores, é nelas que reside
grande parte da estabilidade de
todo o sector. Algumas já revelaram
as suas dificuldades, outras tentam
reinventar-se.
Em todas as áreas, a palavra
mais recorrente é “incerteza”. Não
se sabendo o evoluir da pande-
mia, nem a sua duração, nem até
os efeitos de uma vacina desco-
berta rapidamente, os planos de
cada editora têm sido refeitos, as
novidades adiadas, o futuro posto
em suspenso. No entanto, como
sublinha João Alvim, “é preciso
mostrar que a vida continua e
que é possível continuar a fazer,
embora de maneira diferente, o
trabalho de sempre”. A Feira do
Livro de Lisboa será, nesse sentido,
um momento marcante.
A FEIRA NO 'NOVO NORMAL'
“Se pensarmos que já todos veem
com normalidade o uso de másca-
ras e a higienização frequente das
mãos, a próxima Feira do Livro de
Lisboa não será muito diferente”,
garante Bruno Pires Pacheco, secre-
tário-geral da APEL e responsável
pela organização do certame lis-
boeta (a do Porto é organizada pela
autarquia). A comemoração dos 90
anos da feira já não terá a pompa e
circunstância prevista, mas ainda
assim não faltarão motivos para
celebrar aquele que é “o momento
do ano em que mais intensamente
se promove o livro e a leitura”.
Em todas as medidas que foram
tomadas, em articulação com a
Direção Geral de Saúde, a preocu-
pação da APEL foi transmitir “uma
ideia de segurança”. E muitos cená-
rios estão previstos. Se a lotação for
atingida, as entradas serão controla-
das, embora esse cenário seja pouco
provável. “Com as suas característi-
cas únicas, a Feira do Livro de Lisboa
é, por si só, um espaço seguro, ao ar
livre e com uma folgada distribuição
de pavilhões”, assegura Bruno Pires
Pacheco. Ainda assim, foram criados
mais auditórios, no topo do parque,
depois dos pavilhões, para desblo-
quear as zonas de passagem. As
sessões de autógrafos mais concorri-
das, que também terão as suas regras
de distanciamento, realizar-se-ão
nas praças a meio das alamedas, para
que as filas possam estender-se sem
obstáculos.
Estes cuidados tiveram os seus
efeitos. Sem saber qual a reação dos
leitores e habituais visitantes, pelo
menos os editores já responderam
positivamente. “Em relação ao ano
passado, apenas se regista uma
quebra de 5% nos inscritos. De 323
pavilhões, passámos para 309”,
informa o secretário-geral da APEL.
Ao nível das chancelas editoriais
representadas, a descida andará pelo
mesmo valor. Mais significativa será
a redução das iniciativas paralelas,
como lançamentos, debates ou
workshops, que com regras mais
apertadas andarão à volta das nove
centenas, menos metade do verifi-
cado no ano passado.
“A avaliar pelo número de ISBN
pedidos nos últimos meses, também
é de esperar, como acontece todos os
anos, muitas novidades e lança-
mentos”, adianta Bruno Pacheco,
que não esquece a importância da
feira para as editoras. “Ao nível da
concentração de vendas num curto
espaço de tempo, é claramente
o momento mais importante do
ano, a par do Natal”, acrescenta. A
grande incógnita, para o sector, é
saber se este esforço terá reflexos em
quem compra. As datas escolhidas,
também para o Porto, tiveram em
conta muitos fatores. “É um final do
mês, antes do início do ano escolar e
num momento em que ainda se vive
A palavra mais
recorrente é
“incerteza”. Os planos
das editoras têm sido
refeitos, as novidades
adiadas, o futuro posto
em suspenso. As Feiras
do Livro de Lisboa e
Porto são momentos
marcantes
Feira do Livro de LIsboa Apenas com as alterações decorrentes da crise sanitária
LUÍS RICARDO DUARTE
7. TEMA↗
526 de agosto a 8 de setembro de 2020 JORNALDELETRAS.PT
EDITORAS, LIVRARIAS E FEIRAS
D.R.
um certo ambiente de férias, para
quem este ano as pôde tirar”, de-
talha o organizador. “Antecipamos
que possa haver uma quebra nos
visitantes, mas também acreditamos
que os leitores fiéis não vão mudar
os seus hábitos”. Sem alterações
nos horários, nem na hora h, que
oferece descontos de 50%, os dados
estão prestes a ser lançados.
HOMENAGENS NO PORTO
Com um figurino diferente, a Feira
do Livro do Porto também se pre-
para para uma nova edição, com
120 pavilhões a animar os Jardins
do Palácio de Cristal, pavilhões
de 80 entidades, entre editoras,
livrarias, alfarrabistas, distri-
buidores, etc. “No novo capítulo
de arranque da vida cultural na
cidade, estão asseguradas todas as
medidas de higiene e distancia-
mento necessárias, que decerto
não inibirão a Feira do Livro de
continuar a ser um evento marcan-
te para a cidade do Porto, onde
à partilha de conhecimento se
associam momentos de celebração
e alegria”, nota a organização, que
também beneficiará das condições
favoráveis de um espaço ao ar livre,
com o alargamento do evento até à
Casa do Roseiral, e das precauções
já instituídas, nomeadamente o uso
de gel desinfetante e controlo das
entradas para um máximo de 3500
pessoas em simultâneo.
Este ano, a iniciativa portuense
tem como sugestivo mote o título
do mais recente livro de Andreia
C. Faria, “Alegria para o fim do
mundo”. A poetisa Leonor de
Almeida (1909–1983) e a cientis-
ta Maria de Sousa, recentemente
falecida, são as duas personalidades
homenageadas, numa edição que
terá uma forte presença “do poder
da palavra no feminino” e que
procurará “a valorização da língua
portuguesa e dos poetas, escritores
e artistas, nomeadamente dos que
trabalham no Porto ou a partir da
cidade”. “Vamos tentar redesco-
brir uma poeta que foi remetida
para uma certa invisibilidade no
contexto literário português”,
salienta Rui Moreira, presidente
da Câmara Municipal do Porto.
Simbolicamente, a poeta terá o seu
nome gravado na Alameda das Tílias
dos Jardins do Palácio de Cristal. O
autarca destaca ainda a a evocação
da “extraordinária imunologista e
cientista, que também nos deixou
um legado na poesia”.
A estes dois eixos da programa-
ção, coordenada por Nuno Faria,
diretor do Museu da Cidade, junta-
-se um leque muito variado de ati-
vidades, como conversas, sessões
de cinema, oficinas e espetáculos.
Uma das novidades deste ano são
os concertos ao pôr do sol e o ciclo
de debates no Pavilhão Rosa Mota,
que também acolherá uma sessão
especial das Quintas de Leitura.
No ciclo de poesia, salienta-se a
leitura de 30 mulheres poetas.
E nas rubricas Lições e Debates,
com curadoria de Anabela Mota
Ribeiro e José Eduardo Agualusa,
vão estar em foco, em intervenções
de Gonçalo M. Tavares, Richard
Zimler ou Sobrinho Simões, várias
heroínas da literatura mundial.
A fechar, um concerto de Mário
Laginha e Pedro Burmester. “A di-
versificação de espaço e a progra-
mação de atividades simultâneas é
uma das preocupações centrais da
Feira do Livro do Porto”, sublinha
Rui Moreira, que não esquece o
incentivo que deve ser dado a um
sector muito “penalizado pela pan-
demia”.
QUEBRAS NAS VENDAS
As quebras não são só em Portugal,
mas em toda a Europa. Segundo os
últimos dados revelados pela Gfk, a
queda na venda de livros nos últi-
mos meses é uma tendência geral.
As dificuldades da quarentena e do
desconfinamento são comuns, mas
isso não quer dizer que os resul-
tados sejam semelhantes. Se em
Itália o recuo é de 10%, em França
sobe para 15 e em Espanha para 18.
O resultado, no nosso país, é ainda
pior: cerca de 25%. Se se tiver
em mente que antes do surto de
Covid-19 registava-se um cresci-
mento positivo em Portugal, ainda
que de um só ponto percentual, fa-
cilmente se percebe as dificuldades
por que passam muitas editoras.
"O confinamento e o encerra-
mento de muitas lojas resultaram
na quebra abrupta das vendas em
quase dois terços em Portugal,
sendo que o consumo online foi
insuficiente para compensar estas
perdas”, conclui o estudo. “Ainda
assim, as vendas de livros subiram
significativamente após o alívio
das restrições no mundo inteiro e
a possibilidade de comprar livros
em lojas físicas novamente.” O
exemplo mais notável é o de Itália,
que apesar de fortemente atacado
pela crise sanitária já regista um
aumento do volume de vendas
quando comparado com o mesmo
período do ano passado. Ainda se-
gundo a Gfk, os livros que melhor
desempenho tiveram foram os da
área da educação ou conheci-
mento, assim como os de ficção e
infantojuvenis. Registou-se ainda
um incremento do livro eletrónico.
Cenário ainda mais radical foi o
vivido nos meses de março e abril,
quando as quebras em Portugal
chegaram aos 80%, com muitas
livrarias fechadas. “Atravessamos
a mais grave crise de sempre da
edição portuguesa”, nota Francisco
Vale. Além das perdas já registadas,
o fundador e diretor da Relógio
d'Água tem chamado a atenção
para o período de incerteza que
pode prologar-se até 2022. “É
difícil saber como será a paisa-
gem editorial depois desta batalha
contra a atual pandemia. Tudo de-
penderá das escolhas e da atenção
dos leitores. Só eles podem impedir
que a crise desemboque na perda
de diversidade e imaginação, que
resultaria da falência de editores e
livreiros independentes.”
A par do recurso ao lay-off to-
tal ou parcial, a principal estratégia
das editoras foi a reformulação
do seu plano editorial. O grupo
20/20 Editora, de que fazem parte
as chancelas Elsinore e Cavalo de
Ferro, já apresentou argumen-
tos de peso, com um novo título
da Prémio Nobel de Literatura
Olga Tokarczuk, Outrora e Outros
Tempos, e o mais recente romance
de Bernardino Evaristo, Rapariga,
Mulher, Outra, vencedor da edição
de 2019 do Man Booker Prize.
Apesar destas apostas, o grupo
também anunciou o adiamento
de uma parte significativa dos
lançamentos previstos, mais de 150
em todas as chancelas. A Tinta-da-
China conseguiu reformular a pá-
gina da editora na Internet e, dessa
forma, incrementar as vendas
diretas. Adiou igualmente diversos
lançamentos, que agora começam
a chegar às livrarias, com desta-
que para novos livros de Matilde
Campilho, Teresa Veiga e Filipe
Melo. Também na Leya e na Porto
Editora a retoma se tem feito com
vários autores nacionais, que, caso
haja condições, estarão presentes
nas feiras de Lisboa e do Porto.
A LUTA DAS LIVRARIAS
Foi de uma casa histórica de Lisboa
que surgiu o apelo mais dramático
e aquele que melhor descreve a luta
dos últimos meses. A Barata, da
Avenida de Roma, livraria funda-
da em 1957 e que teve um papel
importante na divulgação de livros
proibidos durante o Estado Novo,
É difícil saber como
será a paisagem
editorial depois desta
batalha contra a
atual pandemia. Tudo
dependerá das escolhas
e da atenção dos
leitores. Só eles podem
impedir que a crise
desemboque na perda
de diversidade
e imaginação
Francisco Vale
Feira do Livro do Porto Uma edição ainda mais alargada
Superar a dura realidade
VASCO TEIXEIRA
Esta crise afetou todo o setor e a Porto Editora não ficou imune. As nossas ven-
das tiveram uma quebra enorme e continuam muito abaixo do que seria normal.
Não há qualquer registo de um período tão negativo como este, nem ao longo
dos quase dez anos da crise que o setor teve a partir de 2009. Agora, estamos
focados em recuperar, pouco a pouco, retomando o nosso ritmo editorial e a
nossa dinâmica, mas isso só será efetivamente possível se todo o sector, com
especial atenção para as livrarias e o público, retomar a atividade normal.
Infelizmente, creio que já tivemos provas mais do que suficientes de que não po-
demos contar com o Ministério da Cultura. É um problema crónico: os orçamen-
tos para a área da cultura são invariavelmente baixos e o sector do livro, apesar
de ser a indústria criativa que mais contribui para o PIB, é a que menos apoios
recebe. E nem um contexto tão excecional como o que vivemos alterou o cená-
rio. Apesar de todas as notícias que mostraram a dura realidade que se abateu
sobre o sector, de todas as diligências da Associação Portuguesa de Editores e
Livreiros, que incluíram propostas muito válidas, as “medidas de apoio” anuncia-
das pelo Ministério da Cultura resumem-se a uma verba irrisória, especialmente
tendo em consideração os muitos milhões de euros que
se perderam com esta pandemia.
Este contexto é muito preocupante sobretudo no que diz
respeito às livrarias, um tecido empresarial tradicional-
mente frágil num país que não tem uma política forte e
estruturada dedicada à promoção do livro e da leitura.
Todavia, o retalho livreiro é muitíssimo impor-
tante para sustentar uma estratégia nacional de
posicionar Portugal como um país virado para o
Conhecimento. Ignorar esta realidade levará ao
fecho de centenas de livrarias, tornando ainda mais
difícil a retoma de todo o sector.
Vasco Teixeira
LUÍSBARRA
8. 26 de agosto a 8 de setembro de 2020 JORNALDELETRAS.PT6↗
TEMAEDITORAS, LIVRARIAS E FEIRAS
tornou pública a situação difícil
em que se encontra, resultado de
dois meses, entre março e maio, de
quebra quase total de atividade. A
“falta de liquidez” estrangulou o
negócio.
Depois de muita reflexão, a
decisão da gerência, partilhada por
Elsa Barata, filha do fundador, e
pelo seu marido, José Rodrigues,
foi tornar pública a mensagem que
nos últimos tempos tem vindo a ser
reconhecida entre profissionais do
sector. A crise só agora começou.
“É muito importante e urgente
alertar as consciências. Todos dize-
mos que o pós-covid-19 vai reor-
ganizar as nossas vidas, sobretudo
as das empresas. Mas para isso são
necessários apoios e condições”,
adianta José Rodrigues. No caso
da Barata também não pode ser
esquecido, salienta o livreiro, o
trabalho de 63 anos construído
com e para a comunidade.
Se os apoios estatais e camarário
demoram a chegar, os livreiros não
perderam tempo. Deram continui-
dade às “iniciativas criativas" que
desenvolveram durante a qua-
rentena e alargaram a atividade on-
-line. “Ao longo do período de con-
finamento todos percebemos que
não é possível o real viver separado
do virtual. Tem de ser um projeto
único”, defende José Rodrigues.
“Também faz sentido que as
empresas se renovem e abram
novos ciclos, mas com tantas e tão
incertas mudanças as empresas
não podem estar sozinhas”.
Neste momento, a gerência da
Livraria Barata está a desenvol-
ver um modelo de reciprocidade,
com contornos semelhantes ao do
crowdfunding, para reforçar ainda
mais a ligação entre livraria e leitor.
“A ideia que preside ao modelo é os
clientes fazerem um investimento
num projeto, que será divulgado,
e recuperarem esse investimento
em produtos culturais ao longo de
um período temporal de um ou dois
anos”, descreve. “Queremos que
seja uma solução boa para todos”. E
continuar a divulgar e a promover o
livro e a leitura.
Ainda é difícil saber que livra-
rias enfrentam maiores dificulda-
des, mas o espírito de entreajuda
já começou. Durante a quarentena
foi criada a Rede de Livrarias
Independentes (RELI), uma asso-
ciação livre de apoio mútuo, que
integra estabelecimentos de todo
o país, nenhum com ligação a ca-
deias dos grandes grupos editoriais
e livreiros. “Procuramos uma coor-
denação de esforços para enfrentar
a crise no mercado livreiro, que
vem comprometendo a existência
de pequenas livrarias em todo o
país, intervindo junto da sociedade
e dos poderes públicos”, informa
a organização. “Acreditamos que
as livrarias têm um papel funda-
mental na coesão cultural de uma
sociedade, e na criação de um pen-
samento crítico e livre, contribuin-
do para a educação, a informação
e o entretenimento dos cidadãos.”
Em tempo de incertezas, a união
fará certamente a força. J
É entre a incerteza e o otimismo que o presi-
dente da Associação Portuguesa de Editores e
Livreiros, João Alvim - 65 anos, que foi adminis-
trador do Círculo de Leitores e depois do grupo
Bertrand/Círculo, que integra hoje o universo do
grupo Porto Editora -, encara as dificuldades que
o sector atravessa neste momento. Recordando as
lições do passado recente, antevê uma recupe-
ração longa, mas segura. “O sector, na verdade,
sobrevive por si próprio, sem ajudas especiais”,
afirma nesta entrevista ao JL. A capacidade de
resistência está na “criatividade”.
Jornal de Letras: Quais as suas expectativas para a
edição deste ano da Feira do Livro de Lisboa?
João Alvim: Não é fácil responder, porque há uma
dose de incerteza muito grande. No entanto, a fei-
ra em si mantém os seus atrativos. Tomámos uma
série de medidas que irão garantir a segurança de
todos, até porque excetuando os fins de semanas
nunca se verificam grandes enchentes. O que an-
tevejo é uma edição com os seus clientes habituais,
que vão comprar livros, conhecer as novidades
editoriais e procurar obras de fundo de catálogo.
Provavelmente, teremos menos visitantes que vão
mais pelo passeio. Admito uma frequência menor
em termos totais, mas tudo vai correr bem.
Não realizar a feira era impensável?
Sim. O espaço é enorme, com uma enorme ca-
pacidade. O rácio depessoas que por norma vão
à feira está muito longe do decretado por lei. É
completamente diferente de uma iniciativa num
espaço pequeno e fechado. O Parque Eduardo VII
é espaçoso, o que nos dá muita confiança.
É um ato de resistência?
Claro. E sobretudo um sinal de que se pode viver
continuando a fazer as mesmas coisas desde que
haja precaução. Nesta feira, as condições estão re-
unidas, o que pode não acontecer em outras ativi-
dades, com diferentes especificidades. É preciso
reforçar a mensagem: a vida continua. Os novos
lançamentos vão aparecer, os autores vão estar lá,
de outra forma, mas presentes. Tudo isto é muito
importante para o sector, porque é a altura do ano
em que verdadeiramente e com mais força se pro-
move o livro e os autores. Não é só a questão de se
vender mais ou menos, é toda a animação que se
realiza em torno do livro. E os editores precisam
de mostrar o trabalho que desenvolvem.
A feira realiza-se num contexto de quebra de
vendas muito forte. Será a edição deste ano
ainda mais importante?
Só no fim descobriremos. Mas a atividade comer-
cial do livro enfrenta, na verdade, três problemas,
o que explica que, quando comparado com outros
países, Portugal apresente a maior quebra na
venda delivros da Europa. No acumulado do ano,
regista-se uma quebra de 25 por centro. É um
cenário muito violento.
Que razões identifica?
Em primeiro lugar, temos uma população leitora
com níveis muitos baixos, e isso faz imediata-
mente a diferença. Ao fecharem-se em casa, as
pessoas encontraram em Portugal menos razões
para comprar livros. Há uma franja significativa
da população que tem uma frequência de leitura
muito irregular. Em segundo, temos o problema
do rendimento das famílias que também está
afetado. Ao contrário do que acontecia até ao surto
de Covid-19, o volume de poupança aumentou,
seguramente por causa do nível de incerteza do
futuro. Mesmo com apoios, preferem não gastar,
o que é compreensível. Em terceiro, também
identificamos como obstáculo o número de pes-
soas nas livrarias. Uma cliente por cada 20 metros
torna a missão quase impossível. E este é um rácio
terrível, sobretudo quando posto lado a lado com
o da restauração, que tem muito mais gente por
metro quadrado. Se os restaurantes tiveram uma
quebra de 50 por cento, a das livrarias é muito
superior. Entram três pessoas numa livraria,
quem fica à porta provavelmente deixa a compra
para outra altura. Tudo isto torna o cenário muito
complicado.
E que balanço faz dos apoios do Ministério da
Cultura?
A ministra da Cultura empurrou-nos para o
Ministério da Economia, que tomou medidas
gerais para as atividades comerciais do país. Essa
foi a primeira constatação. A segunda é que as
medidas tomadas não têm qualquer relevância
para os efeitos da pandemia no meio editorial.
Têm sido medidas pontuais e esporádicas, que
podem ser importantes para muito poucos
editores e livreiros, mas sem expressão para os
problemas gerais.
Não houve uma estratégia global para o sector?
Rigorosamente nenhuma. O Ministério da
Cultura passou completamente ao lado do assun-
to. Definiu apoios que tinham muitos limites e
condicionantes e não tenho a certeza que todos já
tenham sido concretizados.
Além da atual, o sector (como o país) atravessou
recentemente outra crise, durante os anos da
troika. Como irão reagir as editoras?
O início do programa de ajustamento da troika
resultou imediatamente numa quebra igual-
mente violenta. Também andou pelos 25%,
como agora. Essa quebra arrastou-se no tempo,
durante três, quatro anos. Mas houve uma
medida muito corajosa do então secretário
de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier:
a revisão da lei do preço fixo, que trouxe a
estabilidade à atividade. E foi essa estabilidade
que permitiu um crescimento continuado. Não
se voltou a níveis do passado, mas o cenário
melhorou muito, com uma recuperação real
entre 2015 e 2018.
E agora?
Voltamos a descer um degrau. E o que podemos
esperar? Se olharmos para a experiência passada
e com as características que a situação tem neste
momento, ao que se passou em 2011 teremos
de adicionar uma expectativa económica muito
fraca e o medo associado às questões de saúde.
Antecipamos uma retração do consumo, sem
sabermos quando terão os leitores nova folga
financeira. Até é possível que volte mais rápido do
que pensamos, mas as pessoas estão cautelosas.
Antevejo, por isso, uma recuperação lenta.
Chegará ao ponto de pôr em causa a sobrevivên-
cia de editoras e livrarias?
O sector, na verdade, sobrevive por si próprio,
sem ajudas especiais. Ao longo dos anos tem
ultrapassado muitos obstáculos, o que atesta da
capacidade de reconversão e criatividade. Não
sei até onde os editores e livreiros vão conseguir
ir, porque já vi pessoas muito aflitas e a dizer que
não sabem se chegam até ao Natal. Mas uma coisa
é certa: todos me dizem que vão lutar. É uma
atitude muito típica de quem se move sobretudo
pela paixão pelo livro.
Se a sua primeira palavra foi incerteza, a última
será otimismo?
Acredito na nossa capacidadepara apresentar
soluções e encontrarideias para ultrapassar os
problemas, por maiores que sejam. Por isso, sim,
apesar de tudo e de todas as dificuldades, estou
otimista. J
João Alvim
Confiança na capacidade do sector
Temosultrapassadomuitos
obstáculos,oqueatestaanossa
capacidadedereconversãoe
criatividade.Nãoseiatéonde
conseguiremosir,mastodosme
dizemquevãolutar
João Alvim No encontro que teve com o Presidente da República para partilhar as preocupações do sector
9. ↗
726 de agosto a 8 de setembro de 2020 JORNALDELETRAS.PT
www.imprensanacional.pt
www.incm.pt
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A língua portuguesa encontra-se no restrito grupo que pode reivindicar o estatuto de língua global. O valor de uma língua
não se reduz apenas ao número de falantes mas integra outras dimensões como indicadores económicos e de influência
ou de dispersão geográfica de cada comunidade linguística. A Língua Portuguesa como Ativo Global, último volume da coleção
«O Essencial Sobre», identifica o património comum da CPLP — Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e as suas
vantagens, quer nas relações bilaterais, quer na cena mundial, numa edição da Imprensa Nacional.
10. 8↗
LETRAS 26 de agosto a 8 de setembro de 2020 JORNALDELETRAS.PT
KAIOELIAS
O Livro do Deslembramento, dentro de dias nas livrarias, marca o seu regresso ao romance, oito anos depois deOs
Transparentes, que lhe valeu o Prémio José Saramago. É também uma nova viagem à Luanda dos anos 80, a da sua infância
e juventude, que tanto material tem dado à sua literatura. Em episódios curtos e interligados, o escritor angolano, o mais
destacado e internacional da sua geração, compõe um retrato individual mas também coletivo de um crescimento
que passa da inocência e da partilha familiar para o entendimento da complexidade do mundo a partir do momento
em que testemunha, na primeira pessoa, a violência da guerra. Um romance tocante e intenso, terno e muitas vezes mágico
que celebra ainda 20 anos de percurso literário, contados desde a publicação de Actu sanguíneue que o autor assinala
com a abertura de uma sua livraria e editora, em Luanda. Entrevista e pré-publicação
Ondjaki
O direito a reinventar a memória
Foi na infância que descobriu a von-
tade de imaginar e contar histórias.
Lembra-se de responder aos pedidos
de redação do ensino primário com
gosto, com consciência até de que
estava a extravasar a simples des-
crição da realidade e a levar a pena
para o campo da efabulação. É esse
poder mágico de fazer de um pe-
queno episódio uma grande história
que encontramos em muitas obras
de Ondjaki, particularmente em o
livro do deslembramento, o seu novo
romance, esta semana nas livrarias,
com a chancela da Caminho. É uma
revisitação das suas memórias de in-
fância, da escola primária ao reatar
da Guerra Civil Angolana em 1992,
que tem como centro a família, a de
sangue e a dos afetos.
Nascido em 1977, Ondjaki,
durante um largo período cronis-
ta regular do JL, celebra este ano
duas décadas de percurso literário.
Estreou-se, em 2000, na poesia,
com Actu Sanguíneu, mas desde en-
tão tem publicado contos, novelas,
romances e infantojuvenil. Além
de O Livro do Deslembramento, uma
edição da Caminho, sai agora, na
Alfaguara, o volume para crianças
A Estória do Sol e do Rinoceronte,
com ilustrações da colombiana
Catalina Vásquez. Entre os vários
prémios que recebeu, destaque-
-se o Camilo Castelo Branco, da
APE, para os da minha rua, o Jabuti
para AvóDezanove e o Segredo do
Soviético e o José Saramago para
Os Transparentes. Há dois anos
regressou a Luanda, depois de uma
prolongada 'temporada' no Rio de
Janeiro, e está empenhado em con-
tribuir para o aumento dos índices
de leitura do seu país. Sem perder
tempo, fundou uma livraria e uma
editora. Para Ondjaki, a Literatura
continua a ser o território de todos
os sonhos.
Jornal de Letras: Diz-se muitas
vezes que "recordar é viver". A frase
ajusta-se muito bem ao seu livro...
Ondjaki: [risos] Recordar é um
direito, um direito de nos lembrar-
mos de outra maneira. Acredito que
é possível reconstruir a memória ou
o passado, até a maneira como nos
lembramos das coisas. E acho isso
muito bonito.
Reconstruir em que sentido?
Não no sentido de tornar falso. É
um outro modo de lembrar. Pode
parecer que estamos a alterar o
passado, mas na verdade estamos a
reconstruir o presente, a refazer a
nossa relação com a memória. Gosto
desta ideia de me reconciliar com
tudo o que vivi, não porque houve
um problema, mas porque estou a
confrontar-me com quem sou neste
momento.
A certa altura do livro alguém
diz e pergunta: “Se calhar nada
é tão verdade; acontece só. Mais:
lembramos o que podemos lembrar,
o que inventámos de lembrar, ou o
que lembramos para poder saber
viver?”
Pois, é isso: para saber viver é
preciso negociar. Em psicologia
fala-se muito do negociar com os
fantasmas, também com a infância
ou a sexualidade. É, no fundo, uma
negociação com o passado, o que fa-
zemos constantemente. Mas apenas
porque também estamos sistemati-
camente a tentar lidar com o nosso
presente, como o que somos hoje.
Se calhar, algum dia, um qualquer
polícia da verdade vai lembrar-me
que já contei determinado episódio
de outra forma e que agora estou a
mentir. Para mim, podemos lembrar
assim ou assado, quem sabe até com
a ideia de que há linhas paralelas do
tempo e que cada lembrança altera o
que já aconteceu. Mas isto nada mais
é do que um direito. Se as crianças
deviam ter o direito à felicidade, os
adultos deviam ter o direito a lem-
brarem-se do que quiserem, como
quiserem, desde que isso não afete
o outro.
Saber o que é verdade e o que é
inventado nestas histórias é, assim,
uma pergunta perfeitamente
dispensável?
Muito dispensável. É a pergunta
mais fácil, que todos fazemos uns
aos outros e seguramente a questão
mais recorrente no mundo da litera-
tura, sobretudo quando estamos na
fronteira entre a ficção e a realidade.
É uma pergunta quase feia, porque
não é o mais importante. O que
interessa numa história é como a
contamos e como a recebemos. Se o
que está lá dentro é verídico ou não é
um pequeno detalhe.
O Livro do Deslembramento
assinala, também, os seus 20 anos
de vida literária. Pode dizer-se que
essa vontade de recontar o passado
é uma das características mais fortes
do seu percurso?
Quero crer que sim, pelo menos até
agora. Claro que há outros aspetos
e outras escritas, nomeadamente a
poesia e o infantil. Nem tudo se re-
sume à recordação dos anos 80, mais
presente na prosa e sobretudo nos
romances. O Livro do Deslembramento
talvez perfaça uma espécie de
tetralogia, juntamente com Bom
Dia, Camaradas, Os da Minha Rua e
É preciso continuar a
falar sobre a guerra,
sobre todas as guerras
que nós, angolanos,
atravessámos e
andámos a fazer.
A colonial, claro,
a da ocupação da África
do Sul, a que dividiu o
país de norte a sul, a de
92, até sobre o fim da
guerra civil
Ondjaki "A memória povoa e provoca o presente"
LUÍS RICARDO DUARTE
F
11. LETRAS↗
926 de agosto a 8 de setembro de 2020 JORNALDELETRAS.PT
ENTREVISTA
AvóDezanove e o Segredo do Soviético.
Não há como negá-lo: há um lugar
especial para o Passado / Luanda /
Anos 80 e continuará a haver. Tenho
pelo menos dois outros projetos, o
que não quer dizer que seja autofic-
ção ou de contornos biográficos. Mas,
lá está, é possível falar do presente e
lembrar os anos 80.
Essa constância temática explica-
se com o muito material que tem?
Fica-se com a ideia que viveu ou
testemunhou uma infinidade de
histórias.
A memória povoa e provoca o
presente, mas o fundamental é
perceber se o material que surge
é ou não literário. Essa é a grande
questão. Pode um episódio ou uma
história virar literatura?
Como tem essa certeza?
É uma decisão entre o pessoal e o
editorial, já no sentido de formar um
livro. Tenho leitores de confiança,
como o meu editor, e vou perce-
bendo o que pode funcionar. Há em
tudo uma tentativa de ir compondo
um puzzle. Porque Luanda também
o é. Porque a vida real também o é.
As peças vão-se encaixando. Por
exemplo, de início não sabia qual o
formato a dar a este livro. Poderia
ser que seja um livro de contos
ou um romance contado de outra
maneira.
Escrever este livro era um projeto
antigo ou surgiu agora?
Comecei a escrever este livro há
muito tempo, por volta de 2008,
mais ou menos quando estava a
acabar os transparentes. O que leva
tempo na escrita é a revisão. E, como
disse, o formato era uma dúvida.
Sabia alguns conteúdos e onde o
livro ia acabar, nos episódios de
1992, nos anos da guerra. Perceber
qual a melhor forma de falar desses
dias também é um processo lento.
A guerra é um fenómeno pessoal e
intransmissível. Temos de respeitar o
modo como cada um viveu a guerra.
A presença da guerra no fim do
livro dá-lhe um clímax muito
forte, como se encerrasse um ciclo,
como se marcasse o fim da idade da
inocência.
Foi assim que a vivi, como o fim de
qualquer coisa. Aliás, um ano e meio
depois deu-se a minha primeira
saída para estudar fora do país. Foi
um marco. Desde 1975 que não havia
combates daquela dimensão em
Luanda. Ninguém ficou indiferente.
Foram quatro ou cinco dias muito
intensos. Um grande susto para a
população de Luanda, que até então
convivia com a guerra à distância, ao
contrário de muitas outras regiões.
Foi a guerra em cada passeio, cada
rua, cada família.
Ao dar-lhe uma perspetiva familiar
está também a sugerir que há muitas
formas de abordar a guerra, que
ainda há muito para contar?
Sim, literariamente e em outras
artes. Tenho falado com fotógrafos,
artistas plásticos e realizadores sobre
como é que a minha/nossa geração
deve refletir ou abordar essa guerra
específica de 1992. Tema difícil.
Aparentemente é um assunto de que
toda a gente fala, até com alguma le-
veza, mas depois quando se começa
a falar mais a sério as dificuldades
surgem. Temos estado a pensar
nisso e no que cada um, na sua arte,
pode fazer para espelhar e refletir
os efeitos pessoais e coletivos desse
momento tão marcante. E, claro, te-
mos a consciência de que falta fazer
muita coisa.
Qual a principal dificuldade que
encontra?
Bem, falo de acordo com a minha
memória, tinha 14, 15 anos. Já na
altura não deveria ter sido uma
surpresa, mas num certo sentido
foi. Talvez tenha sido inocência
de criança, acreditar que não iria
acontecer, embora se sentisse uma
grande tensão no ar. E é aqui que
entram os lados pessoais de cada
um. Onde estavas, quem eram os
teus familiares (eu estava com os
meus tios), que ameaças, reais ou
teóricas, sentiste ou sofreste. A
guerra desconstrói a organização
social, a lógica e também a moral.
Traz muitas surpresas, normalmen-
te desagradáveis.
Imagino que a dificuldade em
partilhar essa guerra, qualquer
guerra, esteja na variedade de
experiências. É possível encontrar
um denominador comum?
O denominador comum é ape-
nas cronológico. A experiência
do Huambo foi diferente da de
Benguela e da de Luanda. A guerra
também trouxe e exacerbou
fantasmas étnicos, e Luanda é um
lugar de misturas. Como algumas
etnias estavam ligadas a deter-
minados partidos e fações, essas
explique essa maior precisão,
que também sinto. Foi por isso
que passei tantos anos a corrigir,
porque a maior parte dos capítu-
los eram mais extensos. Não é ter
medo que seja grande. O problema
é quando um livro de 600 páginas
precisa apenas de 200. Procuro
a medida justa, fugir do falar por
falar, escrever por escrever.
Nota-se, aliás, uma arte muito
própria de contar histórias, próxima
da tradição oral.
Aí eu diria que há uma maneira
urbana de contar histórias em
Luanda. Tem o seu timing, os seus
silêncios, as suas vírgulas, as suas
cervejas e o retomar da narração.
Tento trazer isso para a minha
forma de grafar as histórias, esse
mundo oral, com as limitações,
mas também as vantagens que o
registo escrito tem.
Essa arte passa por esticar ao
máximo a tensão ou o mistério à
volta do que se conta?
Essa é a grande ferramenta da narra-
tiva, não sei se escrita, mas segura-
mente da oral. É pegar na tensão e na
surpresa mas também no silêncio e no
encantamento. Contar tem que ver
com um certo domínio, com saber
dosear o encantamento. Não se deve
passar logo tudo. Nós que já sabemos
a história até podemos estar encan-
tados, mas é preciso respeitar o ritmo
de quem recebe. Isso, em Luanda, é
feito através da bebida alcoólica, o que
também é bonito. E quem não bebe,
pode perguntar-se? Não é preciso
beber, basta entrar no ritmo.
É também uma provocação ao
leitor?
Esse é o ponto central do livro:
pensar até onde se pode levar uma
pequena história que é, afinal,
quase sobre nada. Se me pergun-
tares o que se passa ali, em muitas
das histórias, eu teria de dizer que
é um conjunto de pessoas à volta
de uma mesa a fazer qualquer coi-
sa. E na verdade o mais importante
neste livro são as pessoas.
As da sua família?
Sim, ou as da minha rua 2. São a
minha família de sangue e de afetos.
Todos com muitas histórias para
contar.
Há muito a partilha da casa e da
comida, não no sentido da quantida-
de, mas da ideia de a hora da refeição
ser feita de encontros, celebrações
e trocas.
Essa partilha de histórias à refeição
está de alguma forma ligada à sua
capacidade de as contar e recontar?
Acredito que essa é uma caracte-
rística comum a muitos escritores.
O Saramago terá certamente sabido
transformar coisas da sua família
e dos seus avós em literatura. Há
pessoas que fazem melhor, outros
com mais dificuldade. Mas há uma
oportunidade em cada família, em
cada cidade, em cada situação de
se fazer literatura. Também é pre-
ciso descobrir o veículo certo, se se
aconteceu a quem fez a guerra até
esse momento? Qual o papel dos
desmobilizados? Qual o lugar da
memória coletiva da guerra? Não
vejo outro caminho que não seja o
de falar. E falar pela arte é um bom
caminho. Ou melhor, a arte deve
provocar. Quando for o lança-
mento deste livro aqui em Luanda
acredito que vai suscitar debate.
Isso interessa-me, falar na boa,
não na perspetiva da culpa.
A guerra termina um percurso
que começa na primária. Houve
a preocupação de compor um
percurso?
Houve. Na verdade, a estrutura é
muito parecida com a do livro os da
minha rua. Mas se aí os relatos são
curtos e independentes entre si,
numa divisão quase estanque, aqui
não. Apesar de formalmente serem
episódios separados, quis deixar
um lastro, um fio condutor que vai
atravessando as histórias até ao fim.
Parece que é uma coisa no início e
sinto que no fim vai para outra dire-
ção. Mas cada leitor fará a sua leitura.
Não estará este livro próximo dos
romances de formação, aqueles que
revelam ao narrador a complexidade
do mundo?
Não sei. O que me surpreendeu foi
ter saído este formato para estas
histórias. Na escrita há propriamente
novidade. Reconhece-se como mi-
nha, com um ou outro toque parti-
cular, às vezes gráfico ou formal, que
me leva para uma zona que me deixa
confortável. São as minúsculas, a
pouca pontuação.
Sente-se na sua escrita mais recente
uma procura da precisão...
Não procurei nada, apenas enxugar
as frases e as palavras, o que talvez
Se as crianças
deviam ter o direito à
felicidade, os adultos
deviam ter o direito
a lembrarem-se do
que quiserem, como
quiserem, desde que
isso não afete o outro
Escrita "Pensar até onde se pode levar uma pequena história que é, afinal, quase sobre nada"
etnias começaram a ser perse-
guidas. Entrou-se numa lógica de
guerra civil total. Lembro-me dos
anúncios oficiais da rádio a apelar à
não perseguição. Mas uma coisa é
o apelo, outra é o comportamento
instintivo de pessoas em fúria, em
guerra, em necessidade, em estado
de susto.
Acredita numa dimensão de catarse
individual e coletiva, que ao abordar
estes temas a literatura está a unir e
não a separar?
Totalmente. E esse é o meu cami-
nho. É preciso continuar a falar so-
bre a guerra, sobre todas as guerras
que nós, angolanos, atravessámos e
andámos a fazer. A colonial, claro,
a da ocupação da África do Sul, a
que dividiu o país de norte a sul,
a de 92, até sobre o fim da guerra
civil, que foi abrupto. No dia em
que Jonas Savimbi morreu a guerra
acabou: 22 de fevereiro de 2002. À
noite já não havia guerra em todo
o território nacional. Também isso
deixa muitas perguntas. Era só essa
pessoa que fazia a guerra? O que
KAIOELIAS
12. 26 de agosto a 8 de setembro de 2020 JORNALDELETRAS.PT10↗
LETRASENTREVISTA
KAIOELIAS
Ondjaki
PRÉ-PUBLICAÇÃO
O livro do
deslembramento
era uma manhã bonita com andorinhas na casa da tia Iracema
mas eu estava triste
nos últimos dias falaram-me muito sobre a escola, para eu não ter medo, mas as coisas
do medo não desfuncionam só assim com modos de falar.
– quem não vai à escola fica maluco
eu dizia à minha mãe
enquanto saía do banho na noite anterior
– e os malucos comem no contentor do lixo
a minha mãe me enxugava o corpo com as mãos da ternura dela, o meu pai era mais direto
a falar nesse assunto
– amanhã, depois do matabicho, vais à escola!
parece que as mães sabem umas coisas dos filhos que os pais não sabem, eu nunca tinha
ido à creche, berrava desde de manhã até ao fim da tarde, e a minha mãe não gostava de me
encontrar assim com os olhos vermelhos e inchados
até ao dia que a camarada diretora da creche pediu à minha mãe para não me levar mais lá
a minha creche foi na casa da tia Rosa, com a gaiola das rolas, o quintal cheio de cerveja e a
música do Roberto Carlos durante a tarde, mas a escola já era outra coisa
a minha mãe ficou a olhar para mim enquanto o meu pai falava
– é tão perto que podes ir sozinho
– se é tão perto, então podes me levar
ele disse que sim
nessa noite não gostei muito de ver a telenovela e só queria fazer muitas perguntas
– mas quantas horas é que fico lá?
a mana Tchi que já estava na escola há um ano ia respondendo a tudo assim a rir e a olhar para
a minha mãe antes de responder
– os meus amigos também vão estar nessa tal de sala de aula?
a minha mãe disse que achava que sim, que alguns da minha rua, da mesma idade, também
poderiam aparecer lá, de manhã
no dia seguinte o meu pai acordou-me para eu ir matabichar com ele, a minha mãe ficou lá em
cima a fazer outras coisas, cadavez eu ficava mais triste e com vontade de chorar, afinal já não
me apetecia nada ir à escola
– pai, mas todos mesmo que não vão à escola ficam malucos, ou só alguns poucos?
o meu pai apontou para o pão que eu quase não tinha comido ainda
– tens de ir à escola, filho, para aprenderes muitas coisas
ele tomava o leite dele quente com café a escurecer essa mistura bem cheirosa
olhei o abacateiro, que bonito: o corpo dele tinha uns desenhos que pareciam uns rios só
que sem água ou então pareciam as mãos enrugadinhas da avó Chica
o meu pai olhou as horas
– vamos?
vai de comboio ou de mota,
se se vai contar já ou mais tarde.
E a quem cabe contar? "Quem é
o escritor, o que se lembra, o que
escreve?", como se questiona no
livro?
Isso era coisa das minhas avós e da
tia Rosa, que não tinha a mínima
ideia de que eu viria a escrever. Mas
quando as outras crianças diziam
que eu era mentiroso, ela vinha em
minha defesa, dizendo que isso era
tudo menos uma coisa má. Se ele tem
uma história para contar, dizia, en-
tão há esperança. Depois eu canalizei
isso para a literatura, mas podia ter
sido para o cinema ou para a mentira
pura, que é o que muita gente aqui
faz: vive o dia a contar histórias.
E porquê o livro do
"deslembramento"?
Gosto da palavra deslembramento
porque não a compreendo. Será mais
fácil dizer que cada leitor decida o
que quer dizer, mas realmente ainda
não sei. No entanto, dá-me uma
sensação boa. Não é esquecer, não é
deslembrar totalmente. Acho que vai
mais pela via do alumbramento, do
deslumbramento. A palavra casou
bem com o livro e com o momento
da sua publicação.
Entretanto, tem publicado
vários livros infantojuvenis,
nomeadamente A Estória do Sol e do
Rinoceronte, recém-lançado pela
Alfaguara. Que lugar ocupa esta
escrita no seu percurso?
Um lugar de cada vez maior dedica-
ção e ternura. Entendo-o como uma
oficina mais cuidada, como se esti-
vesse a trabalhar em joalharia e em
todos os seus delicados pormenores.
Para mim, é mais instintivo escrever
um conto ou prosa. Mas a verdade é
que gosto cada vez mais de escrever
livros infantojuvenis. E vejo-me até
a migrar cada vez mais para essa
área. É muito duro passar oito anos
a editar, rever e a sofrer com um
romance ou um livro de prosa.
Haverá nos livros infantojuvenis
algum espírito de missão, de
conquista de novos leitores?
Claro. Se eu puder contribuir para
aumentar os níveis de leitura e do
interesse pela Literatura ficarei
muito contente. Faço-o consciente-
mente, incluindo agora no projeto da
livraria, que vai ter muitos progra-
mas vocacionados para as crianças.
É preciso mudar os hábitos de leitura
em Angola. Mas isso não tem de pas-
sar pelos meus livros. Se uma obra
minha estiver boa e se adaptar a esse
objetivo, contribuirei com todo o
gosto. Mas o importante é termos os
livros e a literatura infantil a mexer
com as crianças.
Como é que um escritor arranja
tempo para abrir uma livraria?
É um projeto meio kamikaze. Estou
muito entusiasmado. A abertura será
por estes dias. A livraria chama-se
Kiela.
Um quebra-cabeças?
É um dos jogos mais antigos da
humanidade, de pedrinhas e bura-
cos. Pode ser jogado na terra ou em
tabuleiro. Usava-se muito em todo
o continente africano nas grandes
negociações, às vezes até em guerras.
Quando não se chegava a uma con-
clusão, punham-se dois mais velhos,
um de cada lado, a jogar kiela.
Aceitava-se o vencedor, mas como o
jogo demorava muito, nos entretantos
falava-se, trocavam-se ideias. A nos-
sa simbologia é essa: perseverança.
Quer que as crianças sejam
“vencidas” pela literatura?
Quero que as crianças se permitam
demorar o suficiente para conhece-
rem o livro. Muitas vezes pergun-
tam-me: “O que se pode fazer para
o meu filho ler mais?” A primeira
coisa a fazer é deixá-lo passar mais
tempo com os livros, para que ele
possa rejeitar alguns e aceitar outros.
Tem tido apoios, incluindo de
Portugal?
De Portugal, gostava de sublinhar
que tivemos muitos apoios, mas
sempre ao nível pessoal. Contactei os
editores que conheço bem, da Porto
Editora, da Leya, da Tinta-da-China,
da Orfeu Negro, da Guerra e Paz, por
exemplo, e expliquei-lhes o projeto.
Pedi-lhes o maior desconto possível
para que os livros cheguem ao leitor
um bocadinho mais baratos. Temos
encargos muito grandes com a im-
portação. E se queremos promover a
leitura, os livros não podem ser muito
caros, sobretudo no contexto angola-
no. Mas Portugal não tem obrigação
de me apoiar. Quem tem é o governo
de Angola. Ainda estamos numa fase
de reconstrução, no entanto, o país
tem a obrigação de apoiar o sector
do livro, tal como tem obrigação
de apoiar as áreas da cultura e da
educação. Estamos todos ligados. Se
baixarem um pouco o preço do papel,
posso imprimir em gráficas angola-
nas, pois o livro não ficará tão caro.
O mesmo para as taxas aduaneiras.
Além de uma livraria, está a avançar
também com uma editora...
A editora, a Kacimbo, foi a minha
primeira ideia e, na verdade, o projeto
editorial é mais fácil de se sustentar.
Sempre quis ter uma editora e já
tenho projetos muito interessantes.
Alguns livros vão ter uma estrutura
de pré-compra, por parte do Estado
ou de privados, para fazer chegar aos
alunos gratuitamente. Não estou a
falar de manuais escolares, que não é
responsabilidade nossa, mas de fic-
ção, poesia, eventualmente exercícios
de pintura ou livres. Uma das apostas
principais é a integração numa rede
de editores africanos, que nasceu no
Afrolit Sans Frontieres Festival e por
iniciativa da Zukiswa Wanner. Assim,
os nossos livros vão sair em simultâ-
neo em português, inglês e francês,
assim como em outras línguas na-
cionais do Quénia e de Moçambique,
havendo ainda projetos para trabalhar
idiomas da Nigéria. Somos 15 ou 16
editores, ligados por uma ideia muito
bonita. Eram vizinhos que eu não
conhecia e agora estamos a colabo-
rar. A grande prioridade da editora é
trabalhar autores africanos. J
13. ↗
1126 de agosto a 8 de setembro de 2020 JORNALDELETRAS.PT
agostoAs nossas
sugestões
14. 26 de agosto a 8 de setembro de 2020 JORNALDELETRAS.PT12↗
LETRASFICÇÃO CIENTÍFICA
Muito antes de sabermos que viveríamos os últimos meses mergulhados num enredo de contornos futuristas e inesperados,
o ano de 2020 já tinha a marca da ficção científica, com a comemoração dos centenários de nascimento de dois grandes
nomes da literatura mundial cujas obras ultrapassaram os limites do género que praticavam. À evocação de Isaac Asimov
e de Ray Bradbury, o professor da Universidade de Coimbra, que tem estudado as ligações entre a química e a literatura,
acrescenta uma evocação de Boris Vian, também centenário, e as suas ligações a este universo
Isaac Asimov, Ray Bradbury e Boris Vian
Três centenários entre o científico
e o fantástico
ISAAC ASIMOV
ESCRITA COMPULSIVA
Isaac Asimov, nome inglês de Isaak Yudavich
Azimov, nasceu na Rússia, antiga União
Soviética, a 2 de janeiro de 1920, segundo
o próprio, e morreu em Brooklyn a 6 de
abril de 1992. Os dados parecem estar na
Wikipédia, mas olhemos para eles com mais
atenção.
Isaac descreve numa autobiografia (que
cobre os primeiros 30 anos de vida e publi-
cada em 1979), que queria inicialmente ser
médico e que se formou em ciências com um
major em química, em 1939. Fez ainda um
mestrado em química, insistindo muito com
os professores, nomeadamente com Urey,
prémio Nobel em 1934. Refere que adora-
va a química mas pensava ganhar a vida
a escrever, embora soubesse que por essa
altura muitos manuscritos fossem rejeitados.
A guerra apanhou-o e foi para a Marinha e só
se doutorou em 1948. Ao mesmo tempo que
fazia um pós-doc concorria a vários cargos,
mas é recusado em todos. Acabou num
inesperado lugar de professor de bioquími-
ca numa escola médica de Boston, ele que
desistiu de ser médico! Hoje, muitas pessoas
acham que ele era bioquímico e de facto
foi. Fez alguma investigação e ensinou essa
matéria. Mas o que gostava mais, diz, era de
ensinar, escrever e divulgar. É engraçado
que o seu primeiro livro famoso surja quando
consegue essa colocação e na contracapa
apareça a sua afiliação, o que o faz pensar em
demitir-se. Diz-lhe o presidente da escola
que se o livro era bom a escola não se impor-
ta de ficar associada a ele.
Muitos professores ensinam aquilo que
não aprenderam, como é óbvio. Tiveram
de estudar. As pessoas podem tornar-
-se especialistas se estudarem a sério.
Lavoisier não era formado em química,
mas sim em direito. Quando as coisas
correm mal gostamos de dizer que as pes-
soas eram de outra área. Thomas Midgley
Jr., ligado à gasolina com chumbo e aos
CFC, formou-se em mecânica e só depois
obteve um doutoramento em química.
Dirac era formado em engenharia antes
de se tornar o génio matemático e físico
que conhecemos. Em Portugal atual-
mente (não vou referir nomes) torce-se
o nariz a pessoas que ensinam uma coisa
e tiveram formação inicial noutra. São
raros os que têm lugares fora da sua área
inicial. Gostamos de referir o percurso de
Bento de Jesus Caraça, por exemplo, mas
quando as coisas correm mal lembramo-
-nos da formação inicial...
Gosto especialmente do conto sobre a
galinha dos ovos de ouro (Mistérios, Vega,
1990). É a mesma história, mas travestida
de ciência e tecnologia. Está muito bem
feita porque as pessoas quase acreditam.
A bioquímica é razoável, assim como
a física nuclear. Mas nunca vimos uma
galinha dos ovos de ouro e o investigador,
levando-a para o laboratório, desmon-
tando-a, mata-a e acaba com os ovos de
ouro.
São também muito famosos os seus
livros de contos sobre robôs. Mais ainda
as suas leis da robótica que como é sabido
têm mais de 70 anos. Hoje em dia, tempo
da inteligência artificial, de Internet das
coisas, e de Big Data e comunicação per-
manente, presentes de forma ubíqua, em
particular nos telemóveis, muitas das ati-
vidades são decididas pelos computadores
e feitas por máquinas. Os pilotos automá-
ticos deram lugar às aterragens condu-
zidas por máquinas. Os carros autóno-
mos comunicam como se fosse telepatia
entre condutores gentis. As profissões
e atividades transformam-se de forma
No romance de Asimov, um
robô aprende a perceber
o que as pessoas querem
ouvir, mas dá-se conta que
isso é muito complexo.
Então pede romances
e livros humanos que,
segundo ele, seriam muito
mais complexos do que os
livros de mecânica quântica
Eu, Robot Uma das adaptações cinematográficas mais famosas da obra de Asimov
SÉRGIO PAULO JORGE RODRIGUES
15. LETRAS↗
1326 de agosto a 8 de setembro de 2020 JORNALDELETRAS.PT
FICÇÃO CIENTÍFICA
imprevisível. Claro que temos as distopias
do controlo como 1984 e Admirável Mundo
Novo, mas não era isso que referia.
Referia-me ao conto do robot que
aprendeu a mentir. Esse conto é ad-
mirável por si só e, na minha opinião,
não precisa de sobrenatural. O robot lê
pensamentos, ninguém sabe como, mas
não era necessário explicitar que ele lia
mesmo pensamentos. Ler pensamentos é
interpretar os pensamentos, pensar o que
os outros pensam. E as máquinas podem
fazer isso muito bem. Podem aprender
a perceber os sentimentos e agir em
conformidade. Podem aprender a iden-
tificar padrões melhor que os humanos.
Voltando atrás, um robot aprende a per-
ceber o que as pessoas querem ouvir, mas
dá-se conta que de isso é muito complexo.
Então pede romances e livros humanos
que, segundo ele, seriam muito mais
complexos do que os livros de mecânica
quântica. O robot começa a perceber que
a psicóloga de robôs de meia idade está
apaixonada, que um cientista quer o lugar
do outro, e diz-lhes o que eles querem
ouvir. Assim, temos uma psicóloga que
se arranja e pinta e um cientista que é
arrogante com o chefe que se vai demi-
tir, o que surpreende por os robot nunca
mentirem. Confrontado com a contra-
dição, o robot não a consegue resolver e
autodestrói-se. Hoje não seria assim com
a lógica difusa, por exemplo.
Isaac Asimov morreu relativamen-
te novo, com 77 anos, e só começou a
publicar regularmente depois dos 30
anos. Mais de 400 dos seus cerca de
500 livros foram publicados depois
dos 50 anos. Tem uma produtividade
média de 11 livros por ano e atingirá a
sua produtividade máxima aos 69 anos
com quase 40 livros. A escola estava
tão contente por ter esse autor entre
os seus académicos que não lhe dava
aulas regulares.
Lançamentos portugueses mais recentes
›Isaac Asimov
FUNDAÇÃO
Saída de Emergência, 288 pp, 17,70 euros
›Isaac Asimov
FUNDAÇÃO E IMPÉRIO
Saída de Emergência, 288 pp, 17,70 euros
›Isaac Asimov
SEGUNDA FUNDAÇÃO
Saída de Emergência, 272 pp, 17,70 euros
RAY BRADBURY
NARRATIVAS
FANTÁSTICAS
Comemora-se também este ano o centená-
rio do nascimento de Ray Bradbury (1920-
2012). Em Jardins de Cristais – Química e
Literatura (Gradiva, 2014) escrevi que este
não era tanto um autor de ficção científica
mas mais um autor de narrativas fantásti-
cas. E dava como exemplo o conto As Maçãs
Douradas do Sol, no qual uma nave espacial
arrefecida a amoníaco vai recolher boca-
dos do Sol para usar como energia. O autor
apresenta para a nave uma temperatura de
milhares de graus negativos que viola a tem-
peratura zero (que é de -273,15ºC) colocando
este livro no domínio do fantástico, mas isso
2012), ou A ciência e os seus inimigos (Gradiva,
2017), de Carlos Fiolhais e David Marçal. Não
quero com isto dizer que não haja franjas,
complexidades e aspectos técnicos – sim há.
Mas é uma grande infelicidade haver erros tão
banais (como errar a tabuada) que nunca irão
mudar. São esses que deveremos evitar sob
pena de sermos enganados e não percebermos
o mundo em que vivemos.
Disse ainda, nesse livro, que Ray Bradbury
levantava outros problemas numéricos. Por
exemplo, no seu famoso Fahrenheit 451, tam-
bém datado de 1953, usa como título o suposto
valor da temperatura (em Farenheint) a que o
papel arde de forma espontânea (temperatura
de auto-ignição). Como é bem conhecido,
neste livro distópico os bombeiros não apagam
fogos, antes queimam livros, quaisquer livros,
pois estes foram proibidos. Disse que são mui-
tos os aspetos químicos que podem ser encon-
trados neste livro. E é verdade. Os processos
de combustão, os materiais incombustíveis de
que são feitas as casas, os antidepressivos e as
drogas, são alguns exemplos, mas salientava, e
ainda saliento, muito em particular a química
dos odores. Ao longo de todo o livro os cheiros
têm um papel importante nas suas relações
com as memórias, nomeadamente na tomada
de consciência do bombeiro e também na
perseguição deste realizada por um mastim
mecânico que usa o espectro do seu cheiro
para o detetar. Este cão não vai aparecer no
filme, talvez pelos aspetos técnicos, talvez por
não ser interessante em termos de imagem,
mas acaba por ser um elemento interessante
e muito atual a considerar. Na realidade os
odores e a sua relação com a memória desem-
penham um papel importante em boa parte
da literatura. Lembro apenas os cheiros que
marcam a vida de Fermina Daza em Amor nos
Tempos de Cólera, de Gabriel García Márquez e
o famoso bolo (uma madalena) que conduz o
narrador à sua infância de Em Busca o Tempo
Perdido, de Marcel Proust.
Fahrenheit 451 é muito conhecido e teve
várias versões em contos e livros até ao for-
mato final que agora conhecemos. Há várias
interpretações para a queima dos livros e isso
é, na minha opinião, a boa literatura – haver
várias possibilidades e caminhos. O próprio
Bradbury contribuiu para isso referido o
seu amor incondicional aos livros e como a
televisão os poderia destruir. Não foi isso que
aconteceu – nem a televisão, nem a inter-
net, que em 1953 não era conhecida, matou
os livros. Podería falar das suas Crónicas
Marcianas, do Homem Ilustrado, ou de
outras conhecidas obras. Mas não. Falo aqui
do amor de Bradbury à literatura e de um
problema que me intrigava e me fez voltar
ao Moby Dick, de Herman Melville. Por que
Fahrenheit 451 é muito
conhecido e teve várias
versões em contos e livros
até ao formato final que
agora conhecemos. Há
várias interpretações para
a queima dos livros e isso
é, na minha opinião, a boa
literatura – haver várias
possibilidades e caminhos
Fahrenheit 451 Um clássico da literatura de Bradbury imortalizado no cinema por François Truffaut
é interessante no que concerne à distinção
entre o que é possível e o que não é.
Toda a gente vê que as pessoas não voam
com pó mágico e bons pensamentos e não
temos dificuldade em chamar a isso fantasia.
Mas podemos não saber que a termodinâ-
mica não permite temperaturas tão baixas,
por exemplo. É por isso que uma verdadeira
cultura científica é tão necessária. Ajuda-nos
a distinguir a fantasia da realidade e nisso a
ganhar novos mundos, ou ajuda-nos a perce-
ber um argumento científico, ou a separar a
ciência da pseudociência - estou-me a lembrar
dos excelentes Pipocas com telemóvel (Gradiva
Patrocinador:
artistas convidados
FILIPE FEIJÃO
ILDA DAVID’
MANUEL ROSA
MARIA JOSÉ OLIVEIRA
TELMO SILVA
curadoria
LUÍSA SOARES DE OLIVEIRA
Cascais 2020land9 ª E D I Ç Ã O | Q U I N TA D O P I S Ã O | 1 8 J U L H O A 6 S E T E M B R O
16. 26 de agosto a 8 de setembro de 2020 JORNALDELETRAS.PT14↗
LETRASFICÇÃO CIENTÍFICA
razão Ray Bradbury disse e escreveu que a
personagem de Persee Fedallah arruinava a
obra? É verdade que este é referido de forma
enigmática por Melville apenas a partir do
capítulo 48 como um dos cinco fantasmas
que rodeavam o capitão Ahab mas ainda não
tenho uma resposta convincente.
Como jovem argumentista de Hollywood,
Ray Bradbury adaptou, também em 1953,
o Moby Dick para o filme do mesmo nome
de 1956 de John Huston, com Gregory Peck
a fazer de Ahab e com o sermão do padre
Mapple a ser realizado por Orson Wells. Uma
equipa fantástica como John Huston referiu.
Os efeitos especiais eram rudimentares para
os padrões de hoje e para dar uma cor pro-
funda ao filme foram sobrepostas a película a
cores e preto e branco (diz-me a wikipedia).
E, de facto, na cópia que tenho as imagens
são bastante escuras. Ray Bradbury tratou
de dizer a John Huston, o seu herói, que
Fedallah seria atirado borda fora e as suas
melhores deixas passariam para Ahab, com o
que John Huston concordou de imediato.
Em 1992, Ray Badbury publicou Green
Shadows: White Whale (que julgo não ter
sido traduzido para português), o qual trata
da sua ida à Irlanda e da escrita do guião de
Moby Dick. Começa com a chegada ao mundo
verde da Irlanda e um diálogo incrível com
um inspetor da alfandega sobre cultura, em
particular sobre literatura, sobre o Moby
Dick e Hamlet. Muito do livro são os seus
diálogos (verdadeiros ou inventados) com
personagens locais ou com John Huston,
enquanto escreve o guião do filme. Durante
esse tempo, fala, vive e sonha com a litera-
tura. Com Hemingway, Shaw, Chesterton e
Wells, entre outros, e ganhará um prémio, ele
que aparentemente era conhecido como um
Flash Gordon que punha toda a sua libido nos
foguetões. Mas adaptar o Moby Dick era o seu
sonho – conta – ele que amava a literatura
e leu o livro totalmente três vezes, algumas
partes cinco e outras pelo menos 20.
Escrevi em 2014 que um bom livro de
ficção científica, policial ou de literatura
fantástica, mas também de ciência, é aquele
que nos abre os olhos para enigmas para os
quais ainda não temos solução. Continua a
ser absolutamente verdade para mim.
› Ray Bradbury
UM CEMITÉRIO PARA LUNÁTICOS
Cavalo de Ferro, 320 pp, 20,99 euros
› Ray Bradbury
A MORTE É UM ACTO SOLITÁRIO
Cavalo de Ferro, 264 pp, 18,79 euros
› Ray Bradbury
FAHRENHEIT 451
Saída de Emergência, 208 pp, 16,60 euros
BORIS VIAN
OUTRAS DUNAS
Quando Duna, de Frank Herbert (1920-1986),
o livro de ficção científica mais lido de todos
os tempos, com pelo menos duas adaptações
para cinema, uma delas de David Lynch, foi
publicado, em 1965, Boris Vian (1920-1959)
tinha já morrido. Morreu com 39 anos, mas
deixou uma obra a descobrir. Eu, que fiz parte
da geração que lia os livros de Vian pelo seu
humor e provocações, nunca tinha pensado em
Boris Vian como um autor de ficção científica,
mas a enciclopédia de FC na internet disse-me
que sim – e eu verifiquei que era verdade. Em
Outono em Pequim, obra inclassificável de 1947,
que não se passa nem outono nem em Pequim,
onde o surrealismo se mistura com o humor,
tudo com um fundo de música que se sente
em toda obra, ou não fosse o autor também
músico, tem desertos, areia e dunas. Talvez não
seja classificado precisamente como sendo FC,
como A Erva Vermelha, por exemplo, mas po-
deria. Boris Vian era um polimata que traduziu
FC, escreveu usando os seus métodos e escreveu
ensaios, em particular um sobre a relação deste
género com o cinema. Também por isso merece
ser lembrado. Sofria de uma doença do coração,
o que fez com que fosse considerado inapto para
a guerra, desaconselhado de tocar saxofone e
acabasse por morrer de enfarte de miocárdio.
Há um número enormíssimo de livros sobre
FC. Tenho uma referência – já datada, é certo,
mas todas o são – para livros e outros materi-
ais de ficção científica, literatura fantástica e
horror. Parece ficção científica – um livro que
cataloga livros, que catalogam livros e aí por
diante – mas não é – existe mesmo! Refere até
um livro sobre a ficção científica recursiva, ou
seja FC que escreve sobre FC! Natália Correia,
sempre atenta, disse em 1981 que não era
uma literatura menor – e acredito que tinha
razão. Basta pensar nos autores que referi, mas
também em Ensaio sobre a Cegueira, de José
Saramago, por exemplo, agora muito citado.
Nesse livro referem, claro, H. G. Wells, Artur
C. Clark, Isaac Asimov, Ray Bradbury, Frank
Herbert, e muitos outros, mas não encontrei
Boris Vian, ele que terá dito que a FC “era o
ressurgimento da poesia épica.” Nem mais!
Também no Outono em Pequim há dunas,
como referi, mas primeiro falemos da Duna,
de Frank Herbert. Começo por dizer que não
gosto muito de Duna, nem de livros similares.
O que mais me aborrece, mas aceito que outros
adorem, é a existência de um mundo alternati-
vo num futuro que se passa a milhares de anos,
com viagens mais rápidas do que a luz e muitas
tecnologias para nós desconhecidas. Para mim,
o mais interessante está nas entrelinhas. As
pessoas continuarem a ser humanas, claro, e
serem até mais feudais e religiosas. Os compu-
tadores e robots, assim como todas as máquinas
que podem imitar o homem, estão proibidos!
Como é que isto é possível? O livro apresen-
ta uma solução: computadores humanos.
Paralelamente, há uma especiaria que só existe
no planeta Arakis onde quase não existe água e
por isso esta e o sangue (que como sabemos é
uma solução aquosa) são preciosos. E os nativos
usam fatos destiladores para não perderem
água. Claro que a narrativa tem falhas, mas é
plausível. Ou talvez não seja em 2020, mais
de 60 depois de ser escrito! Com a tecnologia
de hoje saberíamos qual a estrutura tridimen-
sional da especiaria que, de acordo com uma
enciclopédia sobre o livro, tem uma parte
parecida com a canela e outra parecida com a
hemoglobina. A milhares de anos de distância,
com viagens no espaço-tempo, mais rápidas
do que a luz – comandadas por computadores
humanos, é certo – continuam a não saber qual
é a estrutura da molécula mais importante e
central na civilização? Claro que podemos sus-
pender a nossa desconfiança, mas esta tive al-
guma dificuldade em engolir. Afora isso, vemos
claramente como Duna influenciou muita da
literatura de FC que se seguiu e, em particular,
os filmes conhecidos como Star Wars, estes que,
por outro lado, revolucionariam o consumismo.
E ao mesmo tempo tem sido visto como um li-
vro ecológico. Esse aparente paradoxo também
me fez pensar. Mas percebemos mais ou menos
porquê: a tecnologia é biológica. Na minha
opinião, o melhor do livro são as imagens que
acabaram por influenciar o cinema e a banda
desenhada de FC. Agora, em 2020, parecem
banais mas não eram, sendo que Duna pode ser
também um filme de franchising – na verdade
este é também uma saga com vários episódios.
Um conhecido cineasta, Martin Scorcese, disse,
e explicou mais tarde, que isso não era cinema
por já se saber o que irá acontecer, e sobretudo
como será feito. Ele referia-se aos filmes de
super-heróis e, em particular, aos filmes de
franchising, aos filmes de chave-na-mão, mas
acho que ele (ou nós) podermos estar a cair no
mesmo erro das pessoas que pensam que a lite-
ratura de FC é uma literatura menor. Pode ser,
sim, se for unilateral e banal, só para vender,
mas pode ser excelente se nos abrir os olhos, se
tiver vários caminhos possíveis, mesmo saben-
do nós a história, aliás como acontece nos mitos
gregos - toda a gente sabe, ou pode saber, o que
acontece a Édipo, por exemplo.
OOutonoemPequim foi escrito afinal no
outono e refere autocarros que se perdem nas
cidades e um deserto longínquo mas estranha-
mente, ou não, familiar, onde estes nos podem
levar por acaso. Rolls refere também AVisita
Maravilhosade Wells, a ViagemaoFimdaNoitede
Céline, a AlicenoPaísdasMaravilhas de Carroll,
OEstrangeiro de Camus e o TrópicodeCancer de
Miller. Mas, deixemos isso para os especialistas.
Este livro não tem medo de ser divertido, essa é
que é essa. O deserto estabelece a ligação entre
os dois livros mas a seriedade pomposa afasta
os dois autores. Como referi, Boris Vian tradu-
ziu para francês e escreveu sobre FC. Depois de
Jules Verne ser quase abandonado em França,
Boris Vian escreverá sobre FC e há um volume
compilando crónicas de cinema e FC. É neste que
recupera um artigo, escrito sob pseudónimo, em
1947, em que declara que o romance de anteci-
pação é agora chamado de FC. Neste também an-
tecipa como seria sua vida em 2000, ano em que
terá 80 anos, mas não, não foi bem assim. Boris
Vian não antecipou, como refere o cardiologista
Gilgenkrantz, os tratamentos cardíacos que se
seguiram, tendo morrido numa ambulância.
› Boris Vian
O OUTONO EM PEQUIM
Relógio d'Água, 272 pp, 18 euros
› Boris Vian
O ARRANCA CORAÇÕES
Relógio d'Água, 192 pp, 15 euros
› Boris Vian
A ERVA VERMELHA
Vega, 160 pp, 13,12 euros
Dune Imagem do filme de Denis Villeneuve, a estrear em 2020
Boris Vian era um polimata
que traduziu Ficção Científica,
escreveu usando os seus
métodos e tem vários ensaios,
em particular um sobre a
relação deste género com o
cinema. Também merece ser
lembrado por isso
17. ↗
1526 de agosto a 8 de setembro de 2020 JORNALDELETRAS.PT
LUGA R DE LI T ER AT U R A
Abrimos novas portas
A PA RT I R DE 29 DE AG O S T O
CASAFERNANDOPESSOA.PT
A
casa
é um lugar
para ser habitado.
A casa onde Fernando
Pessoa morou nos últimos
15 anos da sua vida fica em Lisboa,
no bairro de Campo de Ourique. Uma
casa tem um coração. Aqui estão os
livros que o escritor leu, objetos e papéis que
contam histórias. Os textos que Pessoa escreveu
estão nas entrelinhas deste lugar. Na Casa Fernando
Pessoa há uma nova exposição que junta peças sobre
quem foi este homem. Tem portas e pontes para entrar
no fascinante universo pessoano e descobrir todos os
nomes que Pessoa usou para assinar os seus textos,
as figuras imaginárias que criou, como era a vida nas
casas, ruas e cafés de Lisboa nos primeiros anos do
século XX. Reconhecemos algumas casas pela luz que
entra nas janelas ou pelas lombadas nas estantes.
Nesta Casa a biblioteca é especializada em poesia: há
livros sobre Pessoa, livros em vários línguas, diferentes
tamanhos, edições raras. As casas têm divisões e são
lugares de encontros. A Casa Fernando Pessoa tem um
novo auditório onde é fácil chegar para conversas sem
pressa. Há menos barreiras para entrar e circular na
Casa Fernando Pessoa: estamos agora num lugar mais
acessível e podemos receber melhor quem nos visita.
Casa pode ser um sítio para se passar muito tempo.
Esta Casa é um lugar seguro. Em setembro a entrada
na Casa é livre, contacte-nos para saber mais sobre
visitas em segurança. A Casa Fernando Pessoa vai
reabrir a porta das visitas: uma nova porta na mesma
morada. Estamos à sua espera. Sinta-se em casa.
design@atelier-do-ver
APOIO:
18. 26 de agosto a 8 de setembro de 2020 JORNALDELETRAS.PT16↗
LETRASLIVROS
OS DIAS DA PROSA
Miguel Real
PALAVRA DE POESIA
António Carlos Cortez
João de Melo
JOSÉCARLOSCARVALHO
RegressoaumCenárioCampestre,
o novo volume de poemas de Nuno
Júdice, é um conjunto denso, tenso, e
simultaneamente leve, livre de quais-
quer condicionamentos que viessem
de volumes anteriormente publicados.
Denso na procura de um modo
insinuante de dizer o cenário onde as
ficções acontecem, tenso porque não
há maneira de fugir a esse problema
(ou de fingir) que a poesia sempre
coloca a quem delafaz uma segunda
(ou primeira?) pele, a saber: pode a
vida poética nomear o maremagnum
das nossas íntimas contradições, das
nossas legítimas projecções? Livro
leve, isto é, de poemas que, na sua
estrutura narrativa, efabulatória, são
sempre assaltados por imagens de
certa evanescência, e outras vezes
imagens vindas da tradição poética
de que Nuno Júdice é um sapientíss-
simo glosador, subtil, mas insinuante
glosador. Leve, mas só porque por
detrás das cenas da escrita, Júdice
sabe dosear a informação cultural
com apontamentos, comentários,
que tornam o poema um objecto que
se lê com prazer, com atenção. Sem o
poema ser impositivo. Livro, pois, que
relemos e que, para quem há muito
siga o percurso desta obra, logo nos
apresenta uma das suas íntimas leis: o
poeta que é feito por estes poemas está
hoje na posse (já o estava em diversos
livros da sua poesia, especialmente
a partir de MeditaçãoSobreRuínas,
1994) de uma sageza que lhe permite,
livremente, de acordo com a sua dic-
ção pessoal e não parafraseável, dizer
exatamente o real que quer dizer do
modo que quer dizer. Esta conquista
permitiu a Nuno Júdice assegurar um
estilo, uma voz, um registo que não
encontramos em mais nenhum poeta
português. Apontarei três marcas,
ou dimensões, dessa voz única e que
neste novo livro nos ajudam a sondar
outros anteriormente editados.
Desde logo, a organização do livro.
Não é estratégia comum em Júdice a
divisão em secções, ou a disposição
dos seus poemas por subdivisões,
subcapítulos ou capítulos. É um
discurso a um tempo caudaloso e
meditativo (meditativo porque cau-
Os poemas chegam longe
›Nuno Júdice
REGRESSO A
UM CENÁRIO
CAMPESTRE
Dom Quixote, 104 pp,
11,90 euros
para o mundo que não se vê. Nesses/
comboios o tempo passa devagar,
como o/ passageiro que atrevessa a
carruagem à procura/ de alguém que
perdeu perdeu ao longo da sua vida,/
e poderia estar nalgum sítio, talvez no
bar, mas/ naquela viagem o bar ficou
fechado. [...]” (p.12). Substitua-se a
palavra “comboio”. Aposte-se na pa-
lavra “poema”. São esses os comboios
que Nuno Júdice apanha, isto é, o po-
ema é o comboio onde o sujeito entra
e sai, é nesse transporte (no tempo)
que o poeta pode procurar esse alguém
que perdeu, ou se perdeu. Procurar,
demandar um sentido, sabendo, como
disse António Ramos Rosa, que o
sentido do poema, da poesia, não está
em parte alguma, eis o que permite
que identifiquemos um segundo traço
caracterizador desta voz. Refiro-me a
essa dupla condição da escrita: efabu-
latória, ficcional.
Um poema que conta, mas que
canta e que, no cantar, mostra a
fulguração de certas ficções, o seu
brilho, por meio de cuja luz o poema
que conta se transforma em “trabalho
mental”. O que lemos na página é
ainda a clássica lição: poesia cosamen-
tale. Outro poema parece dizer-nos
dessa ambígua condição da palavra
que conta e canta depois de nascida
do processo do fingere. Leio “Trabalho
Mental” (p.51), poema onde o poeta
procura explicar o que conduz um
“espírito filosófico”, aí se ironizando
sobre uma das contradições ineren-
tes a todo o trabalho especulativo: se
pensar, especular (escrever poesia) é
“uma intuição racional”, certo é que o
filósofo, tal como o poeta, ao meterem
“as mãos da análise na terra dos pen-
samentos”, dificilmente – depois dum
dia de chuva – a esse filósofo e a esse
poeta, lhes será possível distinguir “o
abstrato do concreto”.
Nuno Júdice, neste como noutros
passos deste livro, repõe os dados da
lição de Caeiro, ou de uma certa tradi-
ção do pensamento poético ocidental
(do Romantismo alemão à anteriana
reflexão sobre a poesia como lugar
dum pensamento que sente e dum
sentimento que pensa, que Pessoa
aproveitou), à luz da qual o discurso
– marca do “espírito filosófico” - é
uma malha conceptual impossível
de romper, malha aprisionante e
que um poeta ciente desse cativeiro,
procura desfazer, ironizando, pondo
em perspetiva, relativizando, o peso
dessa tradição. Esse combate com a
rede vocabular de que se faz todo o ato
de linguagem – e supremamente o ato
de linguagem especializada que é a
poesia (e a filosofia, afinal tão inerente
ao estilo meditativo de Júdice) – como
que nos leva a uma terceira carac-
terística não despicienda de muita
da poesia do autor de Regressoaum
CenárioCampestre. Ironia, eis o que
esta voz não pode dispensar jamais.
E não pode dispensar porque é essa a
arma retórica que explicita as regras do
jogo da leitura, num pacto que Júdice
estabelece com o seu leitor, obrigan-
daloso, e vice-versa?) que não pode
ser organizado partindo-o em partes,
dado que a voz que nesse discurso se
encena é, de um para outro poema,
a mesma voz. O que acontece é que
o poema longo, forma consabida na
poética judiciana, é como se fosse um
processo em curso (quase insisto nesta
ideia de que, de livro para livro, há
um “poema contínuo” na fabricação
mental que tal poema exige), facto
que, nesta coletânea, permite que a
voz se coloque no palco da escrita e
diga, de cena para cena, num tom
que não oscila e é temperado por uma
especulação (uma imaginação, melhor
assim) arguta, feita de deambulações,
o que está em causa nessa escrita de
encenações, de ficções. Um exemplo:
“Apanho o comboio da noite. Os com-
boios/ da noite costumam ter grandes
compartimentos/ vazios, bancos onde
podemos sonhar, janelas/ fechadas
Maria Graciete Besse (MGB), profª
na Universidade de Paris - Sorbonne
IV, publicou o ensaio JoãodeMelo.
EntreaMemóriaeaPerda, reportando
uma visão nova sobre a obra do autor,
que atualiza e prolonga a já abun-
dante bibliografia sobre o escritor.
Em síntese, transfigura a obra de João
de Melo (JM) numa longa narrativa
sobre a “perda”: a perda da identidade
individual e a perda da identidade
coletiva: “Intimamente relacionada
com a dolorosa perceção de um fim
eminente, toda a obra de JM poder
ser caraterizada por uma poética da
perda, chave fundamental para a
interpretação da sua escrita que se
desenvolve a partir da lembrança de
uma série de situações traumáticas,
ora evocadas nas perplexidades da
infância açoriana, ora descritas na
crueldade bélica em Angola, ambas
marcadas pela carência e pela derrota,
passando ainda pela perda de Fé na
adolescência” (p. 15).
Assim, os romances e os contos de
JM tornam-se o palco de um longo
conflito, iniciado em 1983 com O
meumundonãoédestereino, sobre os
Açores, romance em que a perda da
identidade real do açoriano, furta-
da pela ideologia do Estado Novo,
é compensada e harmonizada com
descrições fantásticas (donde provém
ao autor a ilusória classificação de per-
tença ao movimento do “realismo má-
gico”), bem como AutópsiadeumMar
deRuínas (1984, reescrita deMemória
deVerMatareMorrer, de 1977), sobre a
guerra colonial em Angola, marcante
da perda do império colonial portu-
guês. Maria Graciete Besse singulariza
deste modo a obra narrativa de JM no
atual panorama da literatura portu-
guesa como um autor do “tempo do
Maria Graciete Besse
Autópsia da obra de João de Melo
Porém, MGB não deixa de subli-
nhar outras experiências narrativa
do autor: a poesia (Navegação da
Terra, 1980), a crónica (Dicionário
de Paixões, 1994), o ensaio (Toda e
Qualquer Escrita, 1982), a narrati-
va de viagens (Açores. O Segredos
das Ilhas, 2000 – uma espécie de
reconciliação com o arquipélago
natal), a prática literária de antologi-
ador (Antologia Panorâmica do Conto
Açoriano, 1978; Os Anos da Guerra,
1988; Antologia do Conto Português,
2001). Sublinha igualmente a expe-
riência da relação identidade/alte-
ridade em O Mar de Madrid (2006) e
a busca de um transcendente em As
Coisas da Alma (2003) e Lugar Caído
no Crepúsculo (2014).
Em síntese, MGB não esconde ser
João de Melo um autor complexo, com
um destino feito de literatura e para
a literatura, cujo cosmopolitismo,
acrescentaríamos nós, o estatui como
o maior romancista português vivo de
origem açoriana, comprovado, aliás,
pela extensa bibliografia ensaística
que lhe tem sido dedicada.
fim”, fim do arcaísmo social e político
açoriano, fim do Império. Por isso,
escolhe como epígrafe uma frase de
JM, que, de certo modo, dá o tom ao
ensaio: “Ninguém me pode valer.
Pertenço ao número dos vivos perdi-
dos no fim da história da vida…”.